Fotos ( e legendas): © João Crisóstomo (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
João Crisóstomo
(a viver em Nova Iorque desde 1977)
1. Continuação da publicação da publicação das memórias do João Crisóstomo, ex-alf mil, CCAÇ 1439 (1965/67)
CCAÇ 1439 (Xime, Bambadinca, Enxalé,
Porto Gole e Missirá, 1965/67) : a “história”
como eu a lembro e vivi
(João Crisóstomo, luso-americano,
ex-alf mil, Nova Iorque) (*)
Parte XIII: Um dia fatídico, 6 de outubro de 1966, duas minas A/C, dois mortos
Depois de 9 Set 1966 (o ataque a Enxalé):
Haverá com certeza muito a lembrar sobre a vida e actividades da CCaç 1439 depois do ataque a Enxalé. Recordo apenas de ter ficado surpreendido e consternado que o IN tivesse tido a coragem de vir atacar a própria Sede da Companhia, onde, pensávamos, estávamos bem seguros.
Lamentavelmente nem eu (mea culpa, mea culpa) nem ninguém mais teve o cuidado de pôr algo em papel para memória desses dias que se seguiuram e portanto nada mais me resta do que continuar esta “história da CC1439” como se tudo continuasse como antes e este ataque não tivesse acontecido.
De facto, as várias minas de que fomos vítimas, a seguir, o ataque a Missirá e outros acontecimentos levam-me a concluir que este ataque a Enxalé é evidência de que o IN se sentia cada vez mais à vontade para se aproximar das NT, intensificar os seus ataques e aumentar o seu campo de acção. Foi isso que senti e mais tarde vim a confirmar ao ler o primeiro livro de Beja Santos ,“ Diário da Guiné, na Terra dos Soncó”.
Dia 23 de Setembro de 1966
Copio à letra o relatório:
(...) " Um grupo de combate da CCaç 1439 participou na Op Girândola que consistiu numa acção ofensiva na mata de Belel. As NT detectarm um acampamento IN o qual se encontrava abandonado. Foram destruidas as casas de mato e culturas, No regress as NT foram emboscadas duas vezes não tendo sofrido qualquer baixa." (...)
Não posso dizer as datas, mas sei que entre as muitas lacunas deste relatório contam-se muitas “patrulhas de reconhecimento” que fazíamos, e que não chegavam a receber o termo pomposo de “operações”. Umas fáceis e outras “menos fáceis”.
Lembro de várias vezes termos permanecido , como que emboscados junto de picadas suspeitas de serem usadas pelo IN. Lembro de ter uma vez descansado ao fim do dia com a minha cabeca em cima de uma pedra antes de tomarmos posições para passar a noite junto a uma picada ; não sei se foi nesta mesma ocasião ou foi noutra em que fiquei numa depressão de terreno ( talvez fosse mesmo terreno de bolanha, não sei) e eu fiquei com água pela cintura, quase louco de frio, esperando que o dia chegasse depressa e não aparecesse ninguém na picada.
Um destes casos, que não constam deste relatório, aconteceu nos dias 4 e 5 de Outubro. E creio que o efectivo das NT neste dia não era de um simples pelotão mas bem maior . A razão de eu lembrar este caso e não outros deve-se ao seu relacionamento com o dia fatídico de 6 de Outubro.
Guiné >Zona Leste> Sector L1 > Bambadinca > Estrada Enxalé-Missirá > Sítio do Mato Cão > 6 de Outubro de 1966 > Cratera povocada por uma mina A/C cuja explosão provocou a morte do Soldad Manuel Pacheco Pereira Junior, da CCaç 1439. Era natural de São Miguel, Açores. Os restos mortais (cerca de 3kg) ficaram no Cemitério de Bambadinca, Talhão Militar, Fileira 2, Campa 1, Guiné-Bissau. NO regresso de Missirá, a mesma coluna accionou outra mina A/C que decepou a perna do Fur Mil Op Esp António dos Santos Mano, acabando por morrer.
Foto (e legenda): © Henrique Matos (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Dia 6 de Outubro de 1966, um dia fatídico
Copio à letra o que consta no relatório: e escreverei depois “a minha versão” como as coisas se passaram, baseado na minha memória, por vezes bem fresca sobre casos como este, e também na memória de outros com quem tenho falado sobre o assunto.
(...) "As NT acionaram dois engenhos explosivos quando se efectuaram duas colunas, uma vinda de Missirá (para) Enxalé, e outra ao encontro da primeira. Os engenhos explosivos encontravam-se em pequenas poças de água, embora se tivesse os cuidados julgados necessaries na picada da estrada.
"Resultados dos dois engenhos explosivos:
Dois Unimogs destruidos
Uma espingarda G3 perdida em virtude de ter sido projectada para o Rio Geba.
Baixas sofridas pelas NT:
Furriel Mil António dos Santos Mano ( morto em combate) (**)
Soldado 203/65 Manuel Pacheco Pereira Jr. ( morto em combate) (***)
Furriel Mil ( Mec Auto) Octávio Albuquerque da Silva ( ferido)
1º cabo 7316565 Manuel Abreu Velosa
1º cabo 3456665 José Firmino Quintal
Soldado 9311265 Ernesto Camacho Rodrigues
Sold 7317965 Manuel Correia
Sold 5974165 Francisco de Freitas Timóteo
Sold 1011265 Manuel de Sousa Mendes
1º Cabo 9271565 José Ilídio Andrade Gouveia .
Soldado 8356465 Manuel Alves Junior
Sold 9805565 Agostinho Gerardo
Sold cond auto 2630164 José Maria Mendes
Sold cond auto5140464 Jerónimo Gonçalves Sadio
Caç Nat Contratado Pucha Nanan, ferido
Foi detectado na região de Mato Cão uma armadilha antipessoal a qual foi destruida. Foi distinguido nesta acção o soldado telefonista 2642365 Júlio Martins Pereira, louvado pelo Cmdt Militar e condecorado.
Este foi um dia fatídico e traumático para todos e que todos mais ou menos lembram imediatamente quando se fala dele.
O Alferes Zagalo estava destacado neste momento em Missirá e precisava de reabastecimentos. Sabendo que o pessoal em Enxalé estava exausto e não podia fazer uma coluna para o abastecer, resolveu vir ele mesmo a Enxalé buscar o que precisava. A sua coluna constava de um jipe e um Unimog, com todo o pessoal que estes podiam transportar.
Antes de chegar a Mato Cão o Unimog pisou uma mina anticarro escondida numa poça de água. O jipe tinha-se desviado para evitar essa poça, precaução que o Unimog não teve.
Os resultados podem-se avaliar pelas fotos e pelo número de mortos e feridos. Entre estes o Furriel Mano. Como o Unimog vinha superlotado , ele vinha em cima do Unimog mas com a perna de fora e veio a falecer no local antes da chegada do helicóptero.
Houve ainda um outro morto, José Moreira, caçador nativo “contratado” e uma dezena de feridos, alguns deles com muita gravidade que foram evacuados para Bissau. A situação era desesperada e nem meios de comunicações para pedir auxílio tinham. Pelo que o soldado de comunicações Júlio Pereira que felizmente não estava ferido, pegou na sua G3 a tiracolo e foi a correr vários quilómetros , sujeitando-se a ser apanhado pelo IN em direcção a Finete, na margem do Geba, oposta a Bambadinca.
Aqui ,com a ajuda do pessoal amigo desta tabanca, conseguiu passar o Geba numa canoa e chegar a Bambadinca onde lhe facultaram um rádio para chamar os helicóperos e avisar Enxalé do sucedido.
Em Enxalé esperávamos passar esse dia como um dia de descanso .O pessoal da Companhia tinha acabado de regressar duma dura saída ao mato ( embora nada conste no relatório) e estávamos todos exaustos. E de manhã ouvimos ao longe um estrondo, mas não fazíamos idéia do que fosse. Passado o que me perece ter sido mais de um hora recebemos notícia de que a coluna do Zagalo tinha sofrido uma mina, havia feridos e que os helicópteros já estavam a caminho.
Ficamos todos preocupados, incluindo o capitão Pires. Quando este disse que era preciso ir ao encontro da coluna para ajudar o Zagalo, eu ofereci-me. Ele aceitou logo e disse-me: “Eu sei que o pessoal está todo estafado. Pega em todo o pessoal de serviços que ficaram no quartel (nos dois dias anteriores) e vê se arranjas mais alguns voluntários. Se não arranjares voluntários, diz-me que eu arranjo-os."
Assim fiz e depois de ter dados instruções a todo pessoal de serviços, antes de perguntar a outros por voluntários, eu chamei o meu pelotão, certo de que haveriam alguns que iriam comigo. Foi para mim uma sensacão tremenda quando, logo após eu ter dito o que precisava, eles barafustavam como se eu os tivesse ofendido; que não havia um nem dois e que iam todos . “O que é que o nosso alferes está a pensar da gente?” ouvi o “Figueira” a dizer para os outros .
E assim fomos, picadores à frente, um Unimog vazio a seguir e o resto da coluna atrás , caminhando tão ligeiro quanto possível. A região de Mato Cão é uma passagem muito perigosa: a estrada passa perto do Geba e do lado esquerdo há uma colina. Era sempre com o coração nas mãos que aí passava.
Por isso ao passar a bolanha que precede Mato Cão, já perto deste eu disse ao furriel Lopes: "Olha, Lopes, isto é mesmo um bom sítio para uma emboscada; eles sabem ( o IN) que a gente (ao ouvir o rebento duma mina) não deixa de vir e são capazes de estar à nossa espera. Pega na tua secção, sobe e faz um reconhecimento pela esquerda".
Ele assim fez e a coluna continuou; e depois, logo passada a bolanha, de repente houve um grande estrondo e o Unimog deu um salto pelos ares. A mina, como o que sucedeu com a coluna do Zagalo, estava dentro duma poça de água e não foi detectada pelos picadores.
Imediatamente nos deitámos nas redondezas do buraco e do Unimog destruido, prontos a responder, mas nada sucedeu. E depois de algum tempo respirei fundo; ao fim e ao cabo podia ter sido muito pior, pensei eu: perdeu-se o Unimog, mas o importante é que não há mortos nem feridos. E não me recordo do que sucedeu a seguir, e o que foi o resto do dia, mas imagino (agora) o que terá sido para todos quando soubemos da morte do furriel Mano e dos vários feridos.
De volta no Enxalé, no dia seguinte fez-se a formatura geral de manhã. E parecia estar tudo certo, até que quando foi chamado o nome do Manuel Pacheco ( conhecido de todos como o Açoriano por ser dos Açores e o único soldado que não era madeirense) ele não respondeu. Perguntei se alguém o tinha visto ou se alguém sabia onde ele estava e foi então que alguém disse : "Quando o vi ontem a última vez ele estava a caminhar junto do Unimog… com certeza por não ter ouvido as intruções do furriel Lopes a cuja secção ele pertencia, ele estava junto do Unimog quando a mina rebentou"…
Imediatamente voltamos ao local (recordo que o Alferes Henrique Matos que estava naquele dia em Enxalé decidiu ir connnosco ) . Reproduzo o testemunho que sobre este momento ele deixou neste blogue, referindo-se ao Manuel Pacheco: no dia 10 de maio de 2008, poste P 2830 (***):
(...) "Quando digo pulverizado é o termo que melhor descreve a situação, pois sou um dos que andou à procura de restos do corpo e apenas encontrámos pequenos fragmentos de ossos com que fizemos um embrulho que pesava poucos quilos. Tem a sua campa em Bambadinca, como se pode ver na relação do Marques Lopes (...). A G3 dele nunca mais se viu, pensando-se que terá voado para o Geba que passa a não muitos metros de distância."
Mais informa ainda no poste P15998 (**), referenciando o lugar da sua sepultura: (...) "Era natural de São Miguel, Açores. Os restos mortais (cerca de 3 kg) ficaram no cemitério de Bambadinca, talhão militar, fileira 2, campa 1, Guiné-Bissau".
Como já está dito foram momentos tristes e difíceis estes, em que com todo o respeito fomos juntando o que restava do nosso querido ‘Açoriano'. Lembro também o momento em que os seus restos sairam depois do Enxalé, num caixão normal, como se dentro estivessem uns restos mortais completos.
Durante esta busca pelos seus restos mortais e pela G3 que desapareceu , e que deve ter sido projectada com tanta violência que atingiu o Geba , mesmo ao lado da estrada, veio-se a descobrir uma mina antipessoal. A nossa sorte foi que alguém viu um fio, suspeitou e …lá estava uma mina, que foi destruida no mesmo momento.
16 e 27 de Outubro:
O relatório menciona a seguir três operações neste mês de Outubro de 1966:
Operação Grude a 16 de Outubro, Operação Grisu a 16 de Outubro
Operação Giesta, a 27.
As três são descritas como “patrulhas de reconhecimento fluvial e terrestre ao longo do Rio Geba.” Sem qualquer acontecimento digno de nota. Mas há com certeza engano nas datas pois, tendo nós os forças divididas/destacadas em Missirá e Porto Gole, além de não podermos deixar Enxalé sem protecção, não me parece que fosse possível fazer duas operações no mesmo dia.
(Continua)
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