Publicamos um texto do nosso camarada Mário Beja Santos sobre o livro "O Fenómeno Marcelino da Mata - O Herói, O Vilão e A História", da autoria de Nuno Gonçalo Poças; Casa das Letras, 2022, desta vez não destinado ao nosso Blogue mas à comunicação social, já publicado em jornais.
Marcelino da Mata, o operacional valoroso, entre o mito e as investigações às três pancadas
Por Mário Beja Santos
É a narrativa mais recente sobre o mais condecorado militar português, intitula-se "O Fenómeno Marcelino da Mata, o Herói, o Vilão e a História", por Nuno Gonçalo Poças, Casa das Letras, 2022. Vindo na sequência de outras narrativas, e depois da controvérsia que acompanhou o desaparecimento do herói, era expectável uma investigação em contexto inovador, com questões pertinentes, abordagens facultadas por contemporâneos e camaradas operacionais do falecido herói, enfim, um trabalho que saísse da pura ruminação e do copy-paste. Nuno Poças promete e não cumpre. Diz ter como móbil do seu trabalho:
“Parti para este livro para tentar perceber quem era o homem por detrás do debate, e também para compreender quem nele teria mais razões. Mas rapidamente constatei que aquilo que era mesmo importante, na minha modesta e frágil opinião, não foi discutido. Marcelino tinha em si, no seu percurso, tudo aquilo que nos devia ter feito refletir e procurara acomodar todas as sensibilidades, num quadro de moderação e concórdia, relativamente a um passado recente que não deixa – ou não devia deixar – muita gente orgulhosa. Esse passado é por natureza controverso, na medida em que se trata, essencialmente, de dois períodos (guerra em ditadura e processo revolucionário) não devem ser olhados, em democracia, como se olha para um passado recente já construído em período democrático”.
E quando se despedir do leitor, o autor voltará à tónica de que é necessária uma perspetiva de apaziguamento e moderação, de que há muitas contradições e confrontos na historiografia da Guerra Colonial, é indispensável a busca do justo equilíbrio, ele diz que foi o que tentou fazer, concluindo que Marcelino carregava em si o peso das contradições de um passado comum a tantos portugueses ainda vivos. E finaliza com uma quase boutade: “Nestas contradições andará, como quase sempre, a verdade possível”.
O autor passa como cão por vinha vindimada em ouvir opinião ou comentários sobre as diferentes entrevistas dadas por Marcelino. Apresenta a Guiné de um modo grotesco, incorreto:
“O território da Guiné, descoberto pelos portugueses em 1446. Depois de povoado por meio de Cabo Verde, ocupado por holandeses, povoado por portugueses, abandonado, colonizado por ingleses, foi finalmente constituído como colónia portuguesa em 1879, depois da união de Bissau e Cacheu. Só em 1951 seria criada a Província Ultramarina da Guiné”. Brada aos céus!
Apresenta-nos Marcelino e procura contextualizar em que meio, o que escreve é mais do que consabido, vem em todos os relatos anteriores, mesmo aquela névoa de quem da sua família foi assassinado pelo PAIGC, o pai, a mãe, a irmã ou a mulher.
Como a diacronia não é a principal preocupação de Nuno Poças, logo sobre a vingança em quadro psicanalítico de Marcelino temos o comentário de Manuel dos Santos, o Manecas, comandante do PAIGC, dizendo, em 2015, que o Marcelino da Mata era uma vergonha para o exército português. Mas o autor dá como demonstrado que a vingança e o sentimento de pertença à comunidade portuguesa marcaram a atuação de Marcelino.
Nada de novo nos traz no seu relato sobre os primórdios da guerra da Guiné, daqui parte para a apresentação de Amílcar Cabral e a criação do PAIGC, também não há elementos novos e assim chegamos ao quadro de atuação de Marcelino, já ganhara notoriedade quando participa na Operação Tridente, assim chegamos a 1986 e Marcelino fará parte de um grupo que ganhou fama, Os Roncos, combate ao lado de um outro bravo, Cherno Sissé, este também altamente condecorado, e que teve uma triste sina em Portugal. É aqui que Nuno Poças traz um contraditório face a uma bravata de Marcelino que afirmava uma operação de libertação de prisioneiros da CCaç 1546, coisa que nunca aconteceu, bravata e pura mentira. E o autor observa:
“Parece evidente que se foram inventando episódios acerca de Marcelino da Mata, e existem testemunhos que afiançam que várias dessas invenções tinham origem no próprio, mas o certo é que, indiferente à mitomania, a lenda crescia durante a guerra à medida que as medalhas e os louvores se sucediam e confirmavam todas as qualidades militares de Marcelino. E o PAIGC, por sua vez, ganhava a Marcelino da Mata um receio e uma raiva crescentes”.
E, mais adiante:
“Retratado como um herói pelo regime que o condecorava, era também visto como um sanguinário e criminoso de guerra pelo lado oposto, graças a episódios ocorridos no mato, factos de real selvajaria dos quais quem não conhece a guerra terá sempre uma distância inevitável”.
Parece um comentário do Conselheiro Acácio.
Como a diacronia não é o forte de Nuno Poças, voltamos à Operação Tridente e passamos rapidamente para a Operação Mar Verde, e depois a Operação Ametista Real, também nada de novo, seguramente para justificar a presença e os atos de bravura de Marcelino. Nuno Poças vai repetir frases que se encontram em dezenas de livros sobre o período da governação Schulz, que tinha apostado exclusivamente numa estratégia militar de recuperação das áreas ocupadas pela guerrilha do PAIGC, mas sem produzir grandes resultados, que recebeu mais efetivos militares, aumentou os bombardeamentos e as operações por tropas helitransportadas; mas, coitado, chegara com a saúde fragilizada e uma visão burocratizada da guerrilha, acabou demitido (aqui não é o Marcelino a disparatar, é o autor). E chega Spínola, intensifica a africanização da guerra, etc. e tal, chega o 25 de abril, dias antes Marcelino acidentado é transferido para Lisboa, e aqui fica.
Anos depois, numa entrevista Marcelino virá dizer que só a tropa guineense chegava para controlar a Guiné.
“Podia ter-se negociado com o PAIGC para formar um exército no qual eles se integrassem: porque nós éramos um exército formado e com largos anos de guerra, e eles era guerrilheiros sem formação militar e sem quadros – portanto, eles deviam integrar-se nesse exército e não nós no deles”.
Fica bem claro neste comentário a visão irrealista de Marcelino da Mata face ao processo descolonizador, tal como ele aconteceu.
Nada se esclarece quanto às razões que levaram à detenção de Marcelino da Mata em 1975, foi espancado no RALIS, nunca aparece alguém, factualmente, a desmentir a ligação de Marcelino com spinolistas, o ELP, parece que foi o MRPP que o descobriu por ciência infusa, aproveita-se a oportunidade para novamente enxovalhar o nome de Leal de Almeida, comandante do RALIS, que teria aproveitado a oportunidade para exercer uma vingança pessoal sobre Marcelino. E depois vem a sua ligação às manifestações dos antigos comandos guineenses, em 1986, tudo é exposto sem nenhum contraditório, aliás está na moda, até em processos de doutoramento as calúnias andam impunemente à solta.
E depois o herói morre, e por muito que o autor diga que falar de Marcelino exige uma perspetiva de apaziguamento e moderação, há que reconhecer que é preciso ter muita desfaçatez para escrever esta narrativa completamente inútil.
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Nota do editor
Último poste da série de 15 DE AGOSTO DE 2018 > Guiné 61/74 - P18924: Bibliografia (48): "Portugal à Lei da Bala, Terrorismo e violência política no século XX", por António Luís Marinho e Mário Carneiro; Círculo de Leitores e Temas e Debates, 2018 (Mário Beja Santos)