quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P24926: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (13): O cruzeiro das nossas vidas

Foto do álbum de Luís Henriques (1920-2012), que foi 1º cabo inf, 3º Companhia, 1º Batalhão, RI 5, Mindelo, São Vicente, Cabo Verde, 1941/43, entretanto integrado no RI 23. Sem legenda no verso. Com toda a probabilidade, a autoria é da famosa Foto Melo.


O N/T Serpa Pinto, com as cores da CCN - Companhia Colonial de Navegação. Fonte:  Blogue Restos de Colecção >  7 de outubro de 2015 > Paquete "Serpa Pinto" (com a devida vénia...)

O N/T Serpa Pinto foi uma das glórias da nossa marinha mercante. Era um navio de passageiros, com  cerca de 142 metros de comprimento e cerca de 8,3 mil toneladas de arqueação bruta,  operado, desde 1940 (e até 1954), pela Companhia Colonial de Navegação na Carreira da América do Norte (Lisboa–Nova Iorque), na Rota do Ouro e Prata (Lisboa–Rio de Janeiro–Buenos Aires) e na Rota das Caraíbas (Lisboa–Havana), entre 1940 e 1955... Era originalmente  um navio inglês, da Royal Mail.  Em 1944 esteve na iminência de ser afundado por um submarino alemão. Foi salvo "in extremis"...

Para mostrar aos beligerantes da II Guerra Mundial, que pertenciam a um país neutral, os  nossos navios (bem como os barcos de pesca, incluindo a "frota branca")  eram pintados de negro,  com o nome de Portugal, bem visível, pintado a branco,  tal o nome do navio. Toda as as tripulações da nossa marinha mercante, bem como da nossa frota bacalhoeira,  sem esquecer a marinha de guerra, foram verdadeiros heróis, naquela época. E não poucos, bravos marinheiros e pescadores, perderam a vida, engrossando a lista de vítimas da nossa história trágico-marítima

De facto, e embora com pavilhão de um país neutral, os nossos navios e barcos da frota pesqueira  eram frequentemente intercetados tanto pelos Aliados como pelas potências do Eixo (e em especial pelos alemães, cujos submarinos "infestavam" o Atlântico...) e alguns foram atacados e afundados. Por exemplo, o  barco de pesca "Exportador primeiro" foi cobardemente atacado a tiro de canhão por um submarino italiano, a sul do Cabo de São Vicente, em 1/6/1941... Ou o navio de carga  e passageiros, da CCN, o "Ganda", afundado, "por engano", por um submarino alemão, ao largo da costa de Marrocos, em 22/6/1941... Estes são apenas 2 dos 11 navios, de pavilhão português,  afundados durante a II Guerra Mundial. 

Diz a Wikipedia a propósito do N/T  Serpa Pinto: 

 "Foi o navio de passageiros que, durante a Segunda Guerra Mundial mais viagens transatlânticas realizou entre Lisboa, Nova Iorque e Rio de Janeiro, transportando refugiados da guerra em geral, e particularmente judeus em fuga do nazismo, trazendo de volta à Europa, cidadãos de origem germânica expulsos dos países americanos. Adquiriu assim popularidade, ficando conhecido pelos epítetos de "Navio da Amizade", "Navio Herói" e "Navio do Destino". (...)

O incidente mais grave ocorreu na noite de 26 de maio de 1944 quando se encontrava 600 milhas a leste das Bermudas, a caminho de Filadélfia. Depois de examinada a documentação e feito refém o primeiro imediato do navio português, um submarino alemão, U-2, ordenou a evacuação total dos 500 passageiros para as baleeiras (em 15 minutos!) e solicitou a Berlim o torpedeamento do Serpa Pinto. Durante toda a noite, a tripulação e os passageiros aguardaram nos escaleres pela decisão do Estado-Maior da Marinha Alemã.

Depois dessa noite de angústia, só pelas 3 horas da tarde do dia seguinte chegou a resposta do almirante Karl Dönitz (1891-1980), a de não autorizar o afundamento... Recorde-se que, na altura, a Marinha Alemã já em estava em pleno declínio. (No final da guerra, a Alemanha terá perdido mais de metade da sua frota de submarinos. )

Na operação de abordagem do N/T Serpa Pinto, faleceram três passageiros, o médico do navio (vítima de um ataque cardíaco), um cozinheiro (que se atirou ao mar), e um bebé polaco de 16 meses de idade (que seguia acompanhado pelos pais judeus).

Fonte: NovoMilénio > Rota de Ouro e Prata, página de José Carlos Rossini > 7 de julho de 2013 > Navios: o Serpa Pinto

O cruzeiro das nossas vidas  

por Luís Graça


"Sobre a nudez forte da verdade, o manto diáfano da fantasia" 
(Eça de Queiroz, A Relíquia, 1887) 


A bordo do Niassa
Quarta feira,  28 de Maio de 1969. 


Eis-te nos tristes trópicos, parafraseando o título brasileiro do livro de viagens e de etnografia do  francês Lévi-Strauss,  que levas na babagem que está no porão. (Trazes uma mala de cartão cheia de livros, convencido de que vais passar umas férias a um país exótico com extensas praias de areia branca e fina, bordejadas de palmeirais, e bar aberto.)

Atravessaste hoje o Trópico de Câncer, com velocíssimos peixes voadores e alguns alegres e endiabrados  golfinhos a acompanhar-nos. Quem sabe se não vieram do estuário do Tejo a "escoltar-te"... Deviam pressentir o nosso destino e queriam consolar-nos e quiçá proteger-nos...

Lembraste-te, por outro lado, do romance escaldante do Henry Miller, também em edição brasileira (não havia edição portuguesa), mais tarde proibida pela ditadura militar. (Ditadura e erotismo parecem que não combinam bem; mas as grandes democracias norte-americana e britânica, para não falar do Vaticano, puseram  também o livro no  Index Librorum Prohibitorum).

Lembraste-te sobretudo do "teu velho", que esteve em Cabo Verde, como "expedicionário" (adoras a palavra!), com o posto de 1º cabo, em plena II Guerra Mundial, mobilizado pelo RI 5, das Caldas da Raínha. (Ironia da história, também foi lá que fizeste a recruta, era o quartel mais perto da tua casa.)

Mas a ti não te chamam "expedicionário", indivíduo que faz parte de uma "expedição", o mesmo é dizer, "enviamento de tropas a determinado ponto e com determinado fim".  Sabes, isso sim,  que vais para a Guiné.  Mas não exatamente para fazer o quê: a tua reduzidíssima companhia (um terço do que seria normal),  leva um capitão, quatro alferes, um primeiro sargento, dois segundos sargentos, "todos chicos", mais 13 furriéis milicianos (5 especialistas e 8 atiradores de infantaria, e umas cinco dezenas de praças, entre cabos e soldados, todos especialistas em qualquer coisa, condutores,  mecânicos, operadores de transmissões, enfermeiros, cozinheiros,  etc.)

Segredo de polichinelo... Alguém, na véspera de desembarcares em Bissau, irá dar com a língua nos dentes, e dizer, numa rodada de uísques, que a malta iria dar formação a uma companhia... da "nova força africana" do Spínola!... Ninguém gostou da "sorte grande"... E ficou a pairar no ar a dúvida sobre o nosso próximo destino...
 
E enquanto ainda estavas a bordo do T/T Niassa (que navegava ao largo da costa de Marrocos, sem qualquer escolta visível...),  vieram à tona de água da memória as histórias de tubarões que o "teu velho" te contava, ainda quando criança. Ele gostava de fazer mergulho e nadar, na baía do Mindelo, do Porto Grande, mas tinha medo que se pelava dos tubarões! E dava-te exemplos arrepiantes: de um que ficou com o peito todo marcado pela dentadura de aço de um tubarão: de um outro, abocanhado, que conseguiu escapar mas sem uma perna; de um terceiro tipo, que ele salvou de morrer afogado, tinta-se atirado do cais, desesperado, depois de lhe ter sido amputado o  pilau (por "venéreo", acrescentava pudicamente o teu velho, sem te explicar que raio de doença era essa).

Trazes contigo uma das suas fotos. Lês no verso: "No dia em que fiz 22 anos tirei esta fotografia em Mindelo, celebrando as minhas vinte e duas primaveras felizes.   Em 19/8/942. S. Vicente, C. Verde. Senti neste dia muitas saudades dos meus, dos amigos e também da minha terra (...)".

"Vinte e duas primaveras felizes", com todo o mundo em guerra, em plena II Guerra Mundial!...  E o Atlântico , cemitério de centenas de navios e dezenas e dezenas de milhares de vidas.

Em 28 de maio de 1969 (data aziaga!), na véspera de chegares a Bissau, tu tinhas 22 anos e 4 meses. Do fundo da memória, vêm-te à superfície fotos amareladas de barcos e tubarões. Barcos ingleses, italianos, alemães, portugueses, ancorados na baía do Mindelo, ou ao largo, numa entente cordiale... Grandes navios de cruzeiro italianos transformados em hospitais, e que traziam doentes, refugiados e diplomatas... Acabada a grappa a bordo, bebiam álcool puro, os diplomatas ao serviço do "Duce", contava-te o teu pai...

Lembraste-te de um desses navios da nossa frota da marinha mercante, o Mouzinho de Albuquerque, que tomou o nome de um trágico herói colonial... Dizem que o Mouzinho, o herói de Chaimite, o "carrasco do Gungunhana" (dizia-te a tua professora da 4ª classe) se suicidou por não suportar o boato que corria nos mentideros de Lisboa de que era o amante da rainha Dona Amélia, fidelíssima esposa do seu amado rei D. Carlos... (Ele era o precetor de um dos principes; por outro lado o rei estava longe de ser um exempo de virtudes.)

E o mítico Serpa Pinto (cento e quarenta e tal metros de comprido, um pouco menos que o Niassa), que na Jugoslávia escapara, em 1940, de cair nas garras dos nazis,  para passar a ostentar o pavilhão português... Estará no periscópio  de um U-2 para ser abatido quatro anos depois.

A bordo do Niassa perguntavas-te a ti próprio:

– E se Cabo Verde tivesse sido invadido, em 1941, 42 ou 43, como ao que parece chegou a estar nos planos dos Aliados ou até das potências do Eixo ? 

Muito provavelmente tu nunca terias nascido, ou se tivesses nascido falarias hoje alemão,  e não estarias agora a caminho da Guiné, a bordo do Niassa, um navio da carreira colonial fretado pelo exército… O teu pai só tinha barco (e correio) de três em três meses, mas escrevia todos os dias, compulsivamente (as cartas dele e as dos camaradas que não sabiam ler nem escrever).

Alguém se lembrou, entretanto, de abrir uma garrafa de "champagne" (um espumantezeco nacional, de cabaré) como se a malta tivesse atravessado o Equador ("ali mais abaixo"),  em alegre cruzeiro de meninos ricos de colégio fino pelo Atlântico Sul. Era o sargento Vidigal que também já andara noutros  "cruzeiros", a caminho de Angola e Moçambique.  Com um sorriso verde-amarelo, também participaste estupidamente, a contra-gosto,  nesse ritual de iniciação, erguendo a tua taça:

– Afinal, estamos todos no mesmo barco! – comentaste para o teu parceiro do lado, o furriel miliciano enfermeiro..., a quem desde cedo, desde Santa Margarida, tinham posto a alcunha do Pastilhas... (Todos os enfermeiros eram Pastilhas.)

Não chegaste a saber se ele terá percebido o teu humor negro. Não era tipo para achar piada às tuas piadas, ali deslocadas. Recorda-lo,  ainda hoje, como um homem simples, sensível, tímido, reservado, com ar bonacheirão mas assustado, a par de uma calvície precocemente galopante:

– Estamos todos no mesmo barco, camarada!... Quero eu dizer: estamos fo...didos, quilhados, lixados,  embarcados numa aventura que pode ser sem regresso… –  repetias-lhe tu, em vão.

Tu que te julgavas um tipo bem educado e civilizado, começaste a falar mal, a praguejar como o carroceiro que, na tua terra, fazia o serviço combinado com a CP, e tinha quatro possantes cavalos pretos que puxavam a sua galera.  Rosnavas, entre dentes, desde que soubeste da tua mobilização para a Guiné, em finais de fevereiro de 1969. A falar mal, a beber e a fumar. Falava-se mal, na tropa. Bebia-se e fumava-se, em demasia, no teu tempo de tropa. Como se o Niassa fosse uma extensão marítima do Cais do Sodré e das suas espeluncas. 

O enfermeiro, por seu turno,  era incapaz de dizer uma asneira: constava-se que já era enfermeiro na vida civil… Mas tu sabias pouco ou nada dele. Em boa verdade, sabíamos muito pouco uns dos outros.  Nem valia a pena fazer perguntas: nunca tinhas ido às terras deles, nem eles à tua... Para ti, Freixo de Espada à Cinta era no Cu de Judas... Viajava-se ainda muito pouco nos anos 60...  Portugal, todavia, estava bem representado, de Norte a Sul, na tua minicompanhia: dos alferes e furriéis milicanos, havia gente de todo o lado, do Algarve a Trás-os-Montes, da Estremadura  ao Minho, sem esquecer  a Madeira e o Alentejo. 

Tinha piada, as voltas que o mundo dará: o Pastilhas, que voltarás a encontrar muito mais tarde, em 1991, na Anadia, no 1º encontro do pessoal da companhia, vinte anos após a "peluda", virá  depois a fazer o curso de medicina.   E o ranger Azevedo, transmontano, tinha-se tornado empresário e autarca. 

A bordo comia-se e sobretudo bebia-se o dia todo, pelo menos os privilegiados dos graduados, para matar o tédio, para suportar a angústia da viagem, para fazer lastro e sobretudo para não dar parte de fraco e andar a chamar pelo Gregório pelos cantos do navio. 

Não há gaidjas, queixava-se o Vidigal, o 2º sargento do quadro, também ele transmontano, que à última hora ainda havia desafiado alguns gajos da corda   para ir fazer a despedida ao Bairro Alto. Um safado que, à conta da úlcera no estômago, iria depois arranjar maneira de escapar à dura vida no mato.  Um 1º cabo irá tomar conta da sua secção... Sempre era mais novo, com pelo menos 15 anos de diferença... Aquela guerra só podia ser feita por putos com 20 anos... Pobre do capitão que tinha 38 e estava à bica para ser promovido a major.

Era a velha tradição das rotas da navegação colonial, o álcool.  Havia os viciados da lerpa e do king. Como haveria depois, no teatro de operações da Guiné (no TO da Guiné, para utilizar a nossa linguagem de código), os viciados do álcool, da comida, do sexo, da caça, da guerra, da escrita diária de aerogramas (ou "bate-estradas")... 


Os oficiais superiores (eram poucos, e iam em rendição individual), esses, divertiam-se com o tiro ao alvo na popa do navio, enquanto a malta da classe turística escrevia cartas, aos pais, namoradas, noivas, mulheres, madrinhas de guerra..., cartas que tu imaginavas já molhadas de lágrimas salgadas e de saudades.

As praças, essas, vomitavam nos porões. (Só uma vez tiveste "estômago" para  "ir lá baixo".) Eram a "carne para canhão",  transportada como gado, queixava-se o nosso cripto, o Joselito. Um riacho de água verde-escura, fedorenta,  escorria pelo convés. Todo o navio fedia, tresandava a merda,  e no meio do cheiro nauseabundo havia um desgraçado de um desertor  que ia a ferros, qual gado levado para feira. Diziam que fora apanhado pela Pide na fronteira de Vilar Formoso, e recambiado para Santa Margarida, ainda a tempo de apanhar o comboio-fantasma até ao Cais da Rocha Conde de Óbidos onde o esperava o Niassa. (Enfim, uma história mal contada, como tantas outras, com que nos entretinhamos para aliviar a angústia da incerteza sobre o nosso destino, uma vez desembarcados em Bissau.)

– De mal o menos, ó Peniche , vais como básico, para a Guiné. Melhor do que seres atirador ou ficares a apodrecer no presídio militar de Elvas ou Penamacor…– consolaste-o tu e Oliveira, que estava de sargento de dia.

O pobre do desertor era alvo da chacota da maralha: alguém insinuara que o gajo era maricas e que não teve tomates (sic) para ir para a guerra… Faltosos, refractários e desertores eram a "escória da Nação", opinava o Gravata... Era um velho truque da velha instituição militar que das tripas sabia fazer coração, que da merda fazia nervos de aço, e dos cagarolas heróis... Só para manter o moral das tropas, só para aguentar a guerra, de vitória em vitória até à derrota final…

– Até quando ? – interrogavas-te tu, em silêncio.

– Lembrem-se, seus cabrões, que vocês são a fina flor da nação! – massacrava-te o tenente da tua companhia, na parada em Tavira, no Curso de Sargentos Milicianos…

Dentro de um dia desembarcaríamos na Guiné da qual espantosamente tu não sabias nada a não ser aquilo que te haviam impingido nos bancos da tua velha escola do Conde de Ferreira (onde o teu velho e o teu avô também andaram, e se calhar ainda o avô do teu pai) e que tu terias reproduzido, como um papagaio, no exame da 4ª classe ou da admissão no Liceu Passos Manuel:

– Descoberta pelo navegador português Nuno Tristão, que viria a ser morto pelos indígenas ao tentar desembarcar numa das ilhas do arquipélago dos Bijagós, a Guiné tem mais do que um terço da superfície de Portugal Continental...

E acrescentavas tu,  de acordo com o livro de leitura:

–  O clima é tropical húmido, e o território muito plano e baixo, com vastas regiões alagadiças e pantanosas, o que torna difícil a adaptação do europeu. Quanto à vegetação, predomina a floresta tropical e a savana arbustiva. A população – um pouco mais de meio milhão de almas – divide-se por uma grande variedade de grupos da raça negra, sendo os mais importantes os balantas, animistas, e os fulas, muçulmanos. 

E finalizava com a informação sobre a agricultura da província que dava tudo, era só semear e adubar com sol e chuva... Tão rica que até exportava arroz... para a o faminto arquipélago de Cabo Verde.

Desde que deixáramos as Canárias, que tu não suportavas aquele calor pegajoso, aquela angústia difusa que destilavas através dos poros da pele. Tinhas sintomas de febre e já não sabias distinguir onde acabava a realidade e começava o delírio. O Pastilhas deu-te um LM para baixar a febre. LM, o comprimidinho milagroso , a panaceia do Laboratório Militar, que o nosso Pastilhas  irá distribuir, às centenas, todos os dias, à população indígena , e que sofria de todos os males, do paludismo à lepra, da desnutrição à desinteria, das doenças venéreas à tuberculose...

De facto tudo fora tão brutal: a ordem de mobilização recebida em Castelo Branco, aonde davas instrução de recruta; a ressaca dos primeiros copos na noite do tremor de terra, em 28 de fevereiro de 1969; a apresentação no Campo Militar de Santa Margarida; a Escola Preparatória de Quadros e a Instrução de Aperfeiçoamento Operacional (IAO)  com os rocambolescos assaltos nocturnos aos bivaques do inimigo para sacar tudo o que fosse bebível e comestível; os breves dias, tristes, vazios, de licença antes do embarque, em que decidiste não te despedir de ninguém; a viagem directa, nocturna, quase clandestina, em comboio especial até ao cais de embarque, no porto de Lisboa; os capacetes brancos dos polícias militares; os nossos familiares e amigos de rosto tenso, alguns, poucos,  de gravata preta; as gaivotas, agoirentas,  estranhamente pousadas nos mastros dos navios; as fragatas do Tejo, silenciosas mas tensas, polvilhando o estuário; os guindastes, o Tejo, a ponte que, de Almada, tu viras elevar-se das águas nos primeiros anos de 60; o Cristo-Rei, de braços abertos como um espanta-pardais numa tela de Dali; o apito breve mas pungente do navio, breve como um tiro, arrepiante como o sentimento indefinível de quem em Lisboa partia e de quem em Lisboa ficava; o marinheiro que soltava as amarras, um vulto, uma mão, um lenço…

E, já no mar alto, ao largo da costa da África Ocidental, entre o Senegal e Cabo Verde, tu próprio tiveras a sensação de ter atravessado o pórtico do tempo e entrado num barco-fantasma, sobrevivente da odisseia dos antigos nautas, à deriva nos medonhos mares de que nos falavam as velhas histórias trágico-marítimas…

Que fazia tu, que fazíamos nós – o Pastilhas, o Vidigal, o Joselito, o Tony, o Ranger Azevedo,  o Zé Neves, o Campanhã, o Meia Leca, o Vagomestre,  o Vat 69, o sacana do Gravata, e tantos outros, que ainda mal conhecias, mais o desgraçado do Peniche, e centenas e centenas de homens, milicianos ou do contigente geral, estes último acondicionados como gado em beliches, nos porões nauseabundos, ali naquele barco da carreira colonial, vogando fora do tempo e do espaço, como se o Gil Eanes nunca tivesse dobrado o temido Cabo Bojador, desfeitas as lendas do Mar Tenebroso e assim aberto o caminho marítimo para o longínquo sul, para o fim do mundo, e para os eldorados que havia por achar?!...

– Duplamente embarcado, meu velho. Fo...dido, quilhado! – repetias tu, de novo para o Pastilhas ao avistarem ao longe algumas  luzes trémulas 
Ilha do Rei, à entrada do Porto de Bissau, no estuário do Geba,  e ao ouvirem pela primeira vez uma tempestade tropical que, no meio do alvoroço provocado pelo grito Terra à Vista!, alguém confundira com o tão temido ribombar dos canhões.

– As principais exportações são o amendoim, o coconote, as madeiras exóticas e o óleo de palma. A capital e a residência do Governador é a linda e moderna Bissau... Blá-blá, blá-blá...

Foi a pensar nas zonas pantanosas e alagadiças da Guiné, nos seus mil e rios e braços de mar, nas suas margens lodosas, nos seus tentáculos traiçoeiras, que tu encomendaste ao teu velho
 um par de botas de cano alto, à cavaleiro... Coitado do teu velho que nunca passará da cepa torta,  pomposamente colectado nas finanças como industrial de sapataria, e dando trabalho a um série de mânfios (sapateiros eram às carradas na tua terra, antes do grande éxodo do país... Julgavas tu, na tua santa ignorância ou ingenuidade, que ficarias melhor protegido contra as temíveis sanguessugas e víboras, crocodilhos e outra bicharada... Felizmente, tiveste  o bom senso de cancelar a encomenda à última hora, com as medidas e a forma do pé já nas mãos de um dos oficiais de sapateiro que trabalhavam para o teu pai...

– Tite, Fulacunda, Jabadá! - alguém alvitrava nomes, como se fosse o cicerone daquele estranho tour by ngiht de aproximação à capital de um país em guerra...


Bissau. 
Quinta feira, 29 de Maio de 1969... 


De manhã, a malta desembarcava numa cidadezinha plana,  desenhada a régua e esquadro no tempo da República (a avenida principal, a única avenida digna desse nome, chamava-se "da República"),  de casas térreas, de adobe, rachas de cibe e chapas de zinco, com quintais cheios de mangueiras, papaieiras, bananeiras e trepadeiras, e onde em dois ou três quarteirões  se concentrava a administração, o comércio,  a tropa e a religião (católica, apostólica e a romana).

Nas ruas, sujas das primeiras enxurradas de fim de maio, putos vendiam mancarra e tu começavas a aprender as minhas primeiras palavras de crioulo. Gilas, de balandrau branco, óculos de sol e transistor a tiracolo, mercadejavam bugigangas de contrabando, falando um estranha mistura de francês, crioulo e dialectos locais. Os sons, os sabores e as cores de África baralhavam-te os sentidos e as emoções.


Nunca esquecerás aquela baforada de ar quente quando, nos primeiros dias, saímos dos Adidos e púnhamos o pé em cima da terra vermelha escaldante ou do asfalto quase líquido... E dos primeiros pesos gastos em bebidas em lata  bem geladinhas... Foi em Bissau que tu pela primeira vez viste bebidas em lata que se bebiam dum sorvo, à sombra de uma mangueira ou debaixo de uma ronceira ventoínha... E quanto nais bebias, mais a sede aumentava, devido o teor de açúcar... Foi em Bissau que descobriste a Seven-Up, a Orange ou a Coca-Cola, em lata...

Em relação à Cola-Cola, confessarias mais tarde que não te tornaste fã, talvez por uma razão tão estúpida como  político-ideológico: partilhavas dos preconceitos da época segundo a qual a Coca-Cola era a água suja do imperialismo norte-americano... O ódio ao imperialismo estava na moda, por causa da guerra do Vietname  e da velha doutrina Monroe segunda qual a América era dos americanos, explicava-te o Zé Neves, que era jornalista,  o mais politizado de todos nós.

As imagens que tu tens de Bissau, entre 30 de maio e 2 de junho de 1969, são fugidias, impressionistas, estereotipadas... Logo de manhãzinha, já as esplanadas estavam cheias de tropa à civil, beberricando cerveja, enquanto no mastro da fortaleza oitocentista da Amura flutuava uma descolorida bandeira verde-rubra. Indiferente aos velhos canhões de bronze e aos poilões pintados com uma barra branca, uma mulher passava com o filho às costas e um balaio à cabeça. Canoas talhadas em grossos troncos de poilão partiam do lodoso cais do Pijiguiti, sulcando as águas lamacentas da ria, em busca de mafé...

Tinhas uma vaga ideia do que se passara naquele cais, 10 anos atrás, em 3 de agosto de 1959, pelo que leras ou escutaras da pouca propaganda clandestina do PAIGC que  chegava à capital do império, ou que era difundida pelas emissões que se ouviam, às tantas da noite, das rádios afetas aos forças oposicionistas: a Rádio Portugal Livre, a emissora clandestina dos comunistas, e a Rádio Voz da Liberdade, que emitia partir de Argel, ligada à Frente Patriótica de Libertação Nacional.

Ronceiros aviões levantavam voo de Bissalanca e, no meio da praça do Império, em cima de um Unimog, de pé e de braços abertos, frente ao mamarracho do monumento "Ao Esforço da Raça", há um sacana que exclama, histriónico (seria o Azevedo, o Ranger, que ia no UNimog da frente):

– Camaradas, cinco séculos de honra e glória vos contemplam! 

E toda a gente teve de gramar a formatura de boas vindas, no dia seguinte em Brá, e o discurso do "ventríloquo" do  general Spínola:

– Bem vindos à Spinolândia! – ironizava o Zé Neves, que não ia à bola com o com-chefe. 

Estragado com o calendário do fim-de.semana ficara o Vidigal que, não tendo arranjado transporte nem guarda-costas, desistira da ideia de ir ao Pilão... "mudar o óleo" (sic). 

Nos Adidos, três ou quatro topónimos eram pronunciados com um misto de temor e de respeito:  Gandembel, Madina do Boé, Guileje... Os dois primeiros aquartelamentos tinham sido "retirados" no princípio do ano de 1969...


Pelo Geba acima, na LDG 101 Alfange... 
Segunda feira, 2 de junho de 1969. 

Três dias depois iriam dar-te uma G-3, novinha em folha, e uma ração de combate, para de seguida te porem no fundo duma LDG, a caminho do Leste, Rio Geba acima, escoltados por uma equipa de fuzileiros navais que, à medida que o rio estreitava, batiam com fogo de morteirete a cerrada vegetação das margens (o tarrafe) até às proximidades do Xime, em Ponta Varela… Uma ração de combate e dois cantis de água mais ou menos potável:

– Seus sacanas – vociferava  o Ranger, ao lado do capitão, de lencinho preto ao pescoço, era o seu "amuleto"  – aprendam desde hoje a gerir a auguinha. E ficam a saber que neste barco de cruzeiro, rio Geba acima, não há bar aberto a estas horas...

Íam dois, tu e o Pastilhas, sentados em cima de uns colchões de espuma, empilhados numa Berliet, à mistura com centenas de malas de viagem, algumas já rebentadas e atadas por cordões… O fogo de morteirete dos fuzileiros apanhou-te de surpresa… E qual não é o teu espanto quando o enfermeiro, à saída da primeira granada se lançara de cabeça para o fundo da LDG!… 

Tu, que era de armas pesadas de infantaria, não tiveste felizmente reflexos tão rápidos como os dele que, na queda, acabou por ser a  primeira vítima da Companhia na Guiné.

– Vítima do fogo amigo! – comentaste, entre a risota, a compaixão e a  apreensão, ao vê-lo de olho inchado, e o sobrolho a sangrar.

Com um olho-à-Belenenses e com contusões no rosto, o pobre do Pastilhas, por ironia enfermeiro, foi o primeiro de nós a testar a competência dos nossos cabos auxiliares de enfermagem, seus subordinados dos serviços de saúde militar, que, noutras circunstâncias bem mais dramáticas, irão salvar a vida a alguns de nós: pelo menos sabiam aplicar um garrote e administrar o soro... a um desgraçado, atingido por tiro ou estilhaço n0 mato ou na picada.

 Como um cão apanhado na rede! –  resmungavas tu sentado na capota da Berliet, prescrutando a linha do horizonte, a bordo da LDG Alfange...

Pobre do Olho-à-Belenenses, pobre do Pastilhas!... A alcunha, as alcunhas, ficaram-lhe para sempre coladas à pele. 

Hoje, reconstituindo os acontecimentos em retrospectiva, pensas que ele foi o o teu  primeiro herói, ou melhor, o teu primeiro anti-herói: nunca o viste  a pegar uma arma, nunca deu um tiro (nem sequer contra um jagudi),  nunca matou ninguém, duvidas até que fosse capaz de pôr a G-3 em posição de tiro; nunca alinhara com a malta em operações, mesmo nas grandes operações; recorda-lo sempre de bata branca, na palhota que servia de enfermaria, no posto médico de Bambadinca, e onde todos os dias uma interminável fila de mulheres, crianças e velhos aguardava a sua consulta de enfermagem (alguns seguramente gente de Nhabijões, Mero, Santa Helena, Fá Balanta, etc.,  quiçá até vivendo no mato, sob controlo do PAIGC, ou do IN, como se dizia eufemisticamente)...

Como enfermeiro, era um tipo competente, despachado, lesto, e a quem de resto recorríamos, com frequência, para picar as nossas bolhas de água nos pés, curar os nossos  esquentamentos, com umas valentes doses de penicilina, ou aliviar os febrões do nosso paludismo, ou pintar o cu com uma estranha poção à base de tintura de iodo quando chegávamos lá, de pernas arqueadas, com a flor do Congo estampada no cu...

Ele foi o talvez o mais útil de todos nós, soube cuidar de nós e da população local... Em contrapartida, gostávamos de lhe pregar partidas, algumas de mau gosto, gratuitas e até perigosas: recordas-te de um dia, às tantas da noite, no regresso de um patrulhamento ofensivo com emboscada até à meia-noite,  dois ou très chanfrados, "apanhados do clima", o terem acordado, com uma pistola Walther apontada à cabeça; ou de o termos obrigado, com a cumplicidade do comandante da companhia (qwue até era um homem bonacheirão), já na parte final da comissão, a vestir o camuflado, a pegar na G-3 e a pôr ao ombro a mochila dos primeiros socorros... 

Simularam uma ida ao mato, soprando-lhe ao ouvido temíveis nomes como Ponta Varela, Poindom, Ponta do Inglês, Baio, Burunbtoni, Fiofioli, Curobal... Dissemos-lhe que ele não nunca poderia voltar connosco a Lisboa, virgem, sem o baptismo de fogo... 

Cinquenta metros depois de termos passado a porta de armas a caminho do objectivo, o Pastilhas teve um colapso, um ataque de pânico, vomitou por cima e por baixo, acabou por ser ele a pregar-nos um grande susto... Levámo-lhe de urgência ao posto médico...

No dia seguinte lá estava ele a servir as suas pastilhas e a dar as suas picas e os co,primidos LM, os "mezinhos",  aos doentes africanos da tabancas em redor... Era aí que ele se sentia gente, e sobretudo enfermeiro a tempo inteiro... Um homem absolutamente deslocado na tropa e na guerra...

Voltarás a encontrá-lo, muitos anos mais tarde, vinte anos depois, na Anadia no "Zé dos Leitões": era o dr. Andrade, médico de clínica geral em Aveiro, e médico do trabalho, numa fábrica de automóveis em Cacia.

Voltaste a encontrá-lo mais tarde e lembras-te de ele me ter falado, sem ressentimentos, com muito orgulho, com um brilhozinho nos olhos, dos seus dois filhos, um deles médico e professor na NOVA e outro engenheiro aeroespacaial, a trabalhar em Montepellier, França
.. 

Perdeste-lhe entretanto o rasto,   mas confessaste ao Zé Neves que gostaria de voltar a encontrá-lo,  para lhe dizer que ele agora fazia parte da tua "galeria de heróis", a ele que tinha sido vítima  de  algumas das nossas brincadeiras mais estúpidas, praxes de mau gosto, que ele suportou com a sua proverbial bonomia... Na realidade, sermpre houve "bullying" na caserna, e não apenas na esccola, na catequese, no liceu, ou no local de trabalho.

– A guerra é estúpida e cruel, e torna os homens estúpidos e cruéis. E o homem, 
 primata social, territorial e predador,  tem, além disso, a particularidade comportamental de ser o único animal do mundo que mata ou humilha as suas presas por mero prazer, usando a violência gratuitamente, sem necessidade... – comentataste tu para o Zé Neves, agora jornalista reformado, profundo conhecedor do Bairro Alto, em Lisboa, e que tu reencontravas com alguma frequência na Cervejaria Trindade, nos idos anos de 1975.

O Pastilhas tivera o azar de ter sido marcado, desde muito cedo, como alguém que parecia transmitir medo, fraqueza, vulnerabilidade, insegurança  sinais a que qualquer predador está atento, quando observa uma potencial presa. O enfermeiro era um verdadeiro animal acossado nos primeiras semanas ou meses na Guiné: ainda antes do lusco-fusco era frequente vê-lo a rondar os abrigos como se estivessemos na iminência de um ataque...  

Por outro lado, ele cometera, ainda a bordo do Niassa, um erro tático ao relacionar-se, de maneira preferencial, com o grupinho do 1º sargento Gravata, com quem de resto tinha mais afinidades ... Os furriéis milicianos, sobretudo os operacionais, em conflito com Gravata, marcaram o Pastilhas e às vezes faziam-lhe a vida negra...

 Não tens qualquer esperança que ele te leia este "conto com mural ao fundo"... Há uma conversa que tu e ele começaram  no Niassa e  se prolongou  pela LDG Alfange, mas que ficou por terminar... Nunca gostaste de conversas interrompidas a meio... De qualquer modo,  vais ter de lhe perguntar: 

–  Afinal, em que ponto é que a gente ia, depois daquele incidente na LDG quando  seguíamos rio acima até ao Xime ?... Ainda te lembras, em 2 de junho de 1969?"... 

Claro que ele não se vai lembrar de coisa nenhuma: terá sido o primeiro de todos nós a esquecer a Guiné... para sempre! 

– Guiné ?!, um pesadelo de um noite de verão!... Esquece, não sejas masoquista!... – arrematava-te o Zé Neves, entre duas imperiais e um bife à Trindade, no verão quente de 75 .

© Luís Graça (2006). Nova versão, revista e melhorada, em 1/12/2023. 
____________

Nota do editor:

Último poste da série > 31 de outubro de 2023 > Guiné 61/74 - P24808: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (12): de Montemuro a Montmartre ou uma história de vida "casapiana"

Guiné 61/74 - P24925: Notas de leitura (1645): Boletim da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro (1931-1939) - Parte V: O colonialismo republicano, em oposição ao salazarismo, que se assumia sem complexos, e que de certo modo antecipava as tendências reformistas que levaram, em 1951, à revogação do Acto Colonial de 1930

Angola > "A Exma. Esposa  do Coronel Félix montada num búfalo-pacaça, que, minutos antes, ela própria abatera a tiro de rifle"  (Joaquim António da Silva Félix era ofcial do exército, coronel, industrial, agricuktir e publicista, dono da fazenda Glória.)

Fonte: Boletim da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro, nº 8, janeiro e março de 1934, pág. 35.

Ilha da Madeira, vista geral do Funchal e da sua baía... "Fotografia  gentilmente cedida pela Casa da Madeira, Lisboa" (A Madeira também foi lugar de desterro... até aos anos 30.)

Fonte: Boletim da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro, nº 8, janeiro e março de 1934, pág. 46.



Fonte: Boletim da SociedadeLuso-Africana do Rio de Janeiro, nº 10-11, agosto - dezembro de 1934, pág- 1984


1. O investigador brasileiro Marcelo, F. M. Assunção que fez uma tese de doutoramento sobre os 20 boletins da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro, publicados ao longo década de 1930 (1931-1939), coincidindo com o triunfo da Ditadura Militar e do Estado Novo em Portugal, faz questão de sublinhar que, apesar do  seu "racismo culturalista", (...) "os republicanos na oposição ao salazarismo detinham uma visão mais progressista das relações entre metrópole e colônias do que a que existia na institucionalidade dos anos 30",  e anteciparam de algum modo  o "reformismo que ganhou força nos 50, com a revogação do Ato Colonial e as reformas estatuarias (mais vocabulares do que práticas) no contexto do pós-guerra e das guerras coloniais".  Recorde-se que com  a revisão constitucional de 1951 as colónias passaram a chamar-ser "províncias ultramarinas"... Mas o trabalho forçado só foi abolido por Adriano Moreira em 1961...

Enfim, um trabalho académico que merece uma leitura mais atenta e demorada, e não apenas a correr e em diagonal:


"(...) CONSIDERAÇÕES FINAIS

Uma tese não pode ser considerada o esgotamento do objeto e de suas múltiplas determinações, pois os problemas e respostas que levantamos são limitados por nossos recortes temporais e teórico-metodológicos. 

Como afirmamos em nossa introdução, o estudo do Boletim constitui apenas uma parte de um projeto maior de análise do colonialismo no seio das relações culturais luso-afro-brasileiras por meio de periódicos. A despeito dos limites dessa pesquisa, que serão adereçados posteriormente em uma pesquisa mais global, podemos destacar algumas especificidades sobre a relação entre o colonialismo e a produção de periódicos. 

O projeto colonial da Sociedade Luso Africana do Rio de Janeiro e de seus sócio correspondentes representa, apesar de suas diversas particularidades, um projeto mais amplo de dominação simbólica e material das colônias que na prática não se distancia tanto do projeto colonial salazarista.

As vertentes mais “humanistas” do colonialismo na prática não abdicavam da coerção e da integração forçada das populações nativas ao sistema colonial. As diferenças, como já reiteramos diversas vezes, não apagaram o projeto global de dominação e expropriação/coerção das diversas etnias. 

Entretanto, a modernização capitalista tão almejada pela intelligentsia republicana da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro, em oposição ao modelo de austeridade e centralismo salazarista, diferenciavam-se em alguns termos, inclusive em seus instrumentos de análise do “outro” colonizado.  

A antropologia de viés cultural era muito mais dominante nessa intelligentsia do que uma antropologia mainstream de cunho biológico (a Escola do Porto). Por isso, não era arbitrária a presença de antropólogos e etnólogos brasileiros já críticos aos modelos racialistas de cunho biológico nas publicações do Boletim, invertendo o sinal negativo da presença do negro na cultura brasileira, e afirmando também a importância lusitana para o processo de “democratização racial” no Brasil.

A cultura imperial republicana, salazarista ou monárquica, era unânime na defesa da manutenção da presença do Império no ultramar. Colonizar e civilizar faziam parte de uma suposta essência portuguesa. Portugal, para esses intelectuais, precisava se “alimentar” continuadamente de “gentes exóticas” para realizar a sua essência, a “antropofagia lusitana”, como já disse um arguto antropólogo (THOMAZ, 2002: 144) (...)

Todavia, a suposta assimilação do exótico, tão explícita no ideário panlusitano, dava-se em um sentido “hierárquico” entre um “nós” lusitano da metrópole culturalmente superior e um “outro” que deveria chegar ou foi levado à “civilização”. A valorização do “mestiço”, cabo-verdiano ou brasileiro, no Boletim, não se dava exclusivamente porque a cultura negra começava a ser vista como um contributo para a sociedade lusitana, mas porque, na percepção destes intelectuais, os nativos foram culturalmente “civilizados” segundo os parâmetros europeus.

O racismo culturalista desta intelligentsia era, portanto, hierárquico, e o lusitano, uma espécie de “ser vocacionado” para o “sacrifício” da colonização.

A despeito disso, os republicanos na oposição ao salazarismo detinham uma visão mais progressista das relações entre metrópole e colônias do que a que existia na institucionalidade dos anos 30. Foram de certa forma uma vanguarda 'avant la lettre' do reformismo que ganhou força nos 50, com a revogação do Ato Colonial e as reformas estatuarias (mais vocabulares do que práticas) no contexto do pós-guerra e das guerras coloniais. 

Apesar de toda a sua retórica republicana ser de fato “paradoxal”, foi em decorrência desta onda conservadora que a Sociedade e sua intelligentsia foram perseguidos até a sua completa extinção em 1939, com o último número do Boletim." (#)

(#) Fonte: Considerações finais. In: ASSUNÇÃO, Marcelo, F. M. - A sociedade luso-africana do Rio de Janeiro (1930-1939): uma vertente do colonialismo português em terras brasileiras. 2017. 324 f. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2017, pp. 276/277.


(Seleção, revisão e fixação de texo, negritos: LG) (com a devidfa vénia...)
____________

Nota do editor:

Postes anteriores da série: 



quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P24924: Historiografia da presença portuguesa em África (397): "Viagem ao arquipélago dos Bijagós", 1879, por Maximin Astrié (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Maio de 2023:

Queridos amigos,
Maximin Astrié, comerciante francês por conta de outrém, anda pelos Bijagós, numa altura em que a presença portuguesa estava praticamente reduzida a Bolama. Decide-se por visitar Orango, é confrontado com as crueldades de um rei déspota, exalta as belezas da natureza e só espera por uma oportunidade para sair dali, já foi espoliado, teme pela sua vida, felizmente que gente da sua equipagem lhe apela ao bom senso, até agora está tudo a correr bem, deixamos para o terceiro e derradeiro texto o desfecho da história, é claro que o comerciante francês saiu são e salvo, agora o leitor fica a perceber que uma coisa foi a pacificação de Teixeira Pinto, em 1915, os Bijagós fizeram a vida negra aos portugueses e Canhabaque só se rendeu em 1936. No meio de toda esta hostilidade, fazia-se imenso comércio na região, tive a possibilidade de estudar a documentação do BNU da Guiné e a agricultura bijagó tinha o seu peso. Os comerciantes sediados em Bolama tudo fizeram para que a capital não fosse para Bissau, sabiam bem porquê.

Um abraço do
Mário


Viagem ao arquipélago dos Bijagós, 1879 (2)

Mário Beja Santos

A Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa possui um exemplar de Viagem ao Arquipélago dos Bijagós, por Maximin Astrié, negociante francês em Bolama, Luchon, 1880, o exemplar foi uma oferta de Godefroy Gairaud, vice-cônsul de Portugal em Carcassonne. Lembro-me perfeitamente de ter deitado uma vista de olhos a este texto, mas não me recordo de o ter traduzido no essencial, tem elementos até de caráter antropológico do maior interesse. E ficamos claramente a perceber que em 1878 a nossa presença nos Bijagós era por demais ténue. Vamos então ao essencial do texto. Como se escreveu no texto anterior, o rei déspota de Orango, depois de consultar os seus deuses matando um galo que enquanto estrebuchava se afastava do mercador francês, anunciaram-lhe que estava preso. E um conjunto de peripécias mirabolantes irão ter lugar, conforme ele vai escrever no seu testemunho.

Uma centena de bijagós dirigiu-se para a minha embarcação e dela tudo retiraram. Eu estava suficientemente aterrado para me opor ao saque. Resistir não tinha sentido, este povo estava submisso a este déspota, se reagisse seria trucidado. Resignado com a minha sorte, pedi à minha gente que esperasse pacientemente o evoluir dos acontecimentos. O meu cozinheiro, com a maior serenidade, trouxe-me um prato de galinha com arroz. A minha refeição foi interrompida com a chegada do touro que fora degolado diante dos meus olhos. O rei comunicava que fizera matar o touro em minha intenção e pedia-me que lhe oferecesse um quarto, é claro que prontamente concordei. Parecia que a situação não era tão má como eu inicialmente supusera. Respondi que oferecia dez galões de aguardente, logo se ouviu um murmúrio de congratulação. Até o rei veio pessoalmente agradecer-me. E através do meu intérprete fez-me saber que eu era livre de percorrer toda a ilha e que, entretanto, se iriam preparar festividades públicas.

Estava desorientado com este rei que me mantinha prisioneiro e que oferecia ao mesmo tempo presentes e festividades, tudo me parecia incompreensível, embora tenha vindo a constatar, no seguimento das minhas viagens, que era um procedimento bastante comum a alguns dos reis destes países.

No dia seguinte dirigi-me para o interior da ilha. Após ter atravessado muitos campos de milho, de inhames e de batatas, entrámos numa floresta que cobre grande parte da ponta oeste de Orango. Já tinha visto muitas florestas, lido numerosas descrições, mas nunca tinha lido nem visto nada que se parecesse com esta prodigiosa natureza. Encontrávamo-nos debaixo de uma abóbada de árvores gigantes da costa africana, cujo tronco serve para construir as pirogas. Lianas com as formas mais bizarras e as mais variadas envolviam-se à volta dos troncos vigorosos, trepando até ao topo. Estas árvores, cuja altura ultrapassa em muito os nossos maiores carvalhos, estão cobertas de uma folhagem de tal modo espessa que os raios solares não podem penetrar, e, por isso, não há nenhuma vegetação no solo. Atravessámos livremente uma clareira que me parecia infindável e que era dominada por uma vasta cúpula de verdura onde vibravam os gritos, os cantos, os meados e os uivos de milhares de animais. De quando em quando, numa aberta de luz, apareciam goiabeiras inclinadas sob o peso dos frutos amadurecidos. Estes frutos têm um gosto saboroso. Viam-se misturados o caju, o bambu, a palmeira; esta é objeto de muitos usos, desde vestuário a cordame, dela se extrai o vinho de palma e o óleo. Avançávamos muito lentamente, numa contemplação muda. Subitamente, chegou-nos o ruído de vozes humanas misturada com golpes de machado e sons guturais estranhos, entre o riso e o urro. Logo nos apercebemos, como numa visão fantástica, uns cinquenta negros agrupados à volta de um mesmo tronco, faziam uma piroga destinada ao rei. A construção de uma piroga exige não só meses inteiros de trabalho, mas uma quantidade considerável de braços, pois os indígenas estavam munidos de instrumentos grosseiros de trabalho que exigiram apenas alguns dias a um trabalhador europeu. Explicaram-me que esta piroga se destinava a substituir a piroga de guerra que ficara danificada pelo mais recente maremoto. Esta nova piroga destinava-se a uma expedição contra o rei de Oul. A piroga é considerada pelos bijagós como o mais importante sinal de poder e riqueza. O que parecia ser o chefe dos trabalhadores fez-me sinal que tinha qualquer coisa de especial a mostrar-me. Segui-o através de um tufo de bambus onde me foi dado ver a cabeça de um touro em madeira com grandes cornos, este objeto deveria ser colocado à frene na piroga, à maneira dos emblemas que vemos nos navios europeus. Veio, entretanto, um negro avisar-me que o meu cozinheiro tinha preparado uma refeição.

Seriam duas horas e estava em a fazer uma sesta quando vi entrar o ministro da Justiça que me convocava para eu ir a casa do régulo. Oumparé esperava-me deitado numa esteira, o rosto inchado, os olhos injetados de sangue, pareceu-me fatigado e nauseado pelas orgias da noite anterior. Anunciou-me em primeiro lugar que na minha ausência fora visitar as minhas mercadorias e que retirara para si os objetos que mais lhe agradaram. Adiantou que passara a dispor do meu barco que fora transferido para outro ponto da ilha, perto dos bancos onde naufragara o navio austríaco. Acolhi a notícia com uma indiferença aparente. Seguidamente o rei quis saber a maneira como os brancos procedem para fazer a guerra, para praticar a justiça e receber os impostos. O seu espanto foi imenso quando lhe falei de exércitos permanentes, de cavalaria, de metralhadoras. Manifestou imediatamente o desejo de possuir estas armas para combater contra o rei Oul. Devo confessar que as informações que lhe dei sobre o modo de praticar a justiça em França lhe causaram uma admiração muito limitada. Teceu considerações que me comprovaram que Oumparé tinha o sentimento do poder pessoal muito desenvolvido, seria considerado num país civilizado um déspota. Não me perguntou nada quanto ao modo de vida nos nossos países, o que comemos, as festas que fazemos, tudo o que se prende com a civilização material deixava-o absolutamente frio. A nossa conversa foi interrompida porque trouxeram ao rei cinco enormes talhas cheias de vinho de palma. Explicou-me que era hora das libações, estas duravam cinco horas até à meia-noite. Bebia até cair na esteira. Despedi-me e fui ver o que o rei apresara das minhas mercadorias. Servira-se das minhas mercadorias à grande.

No dia seguinte, testemunhei um acontecimento bizarro que vos vou contar aqui com todos os pormenores. Alguns dias antes da minha chegada à ilha, um pobre diabo chamado Outapa tinha sucumbido a uma doença misteriosa, que é designada na Senegâmbia por doença do sono. Os infelizes tocados por este mal perdem o uso das suas faculdades intelectuais, ficam autênticos animais. Parece que só obedecem ao supremo instinto de conservação, movem-se, falam e alimentam-se maquinalmente. Incapazes de trabalhar, caem na extrema miséria. Atribui-se este mal a um veneno vegetal que será muito comum nas florestas onde cresce a borracha. A questão não está medicamente esclarecida.

A mulher de Outapa, Tchiourra, era acusada de lhe ter acelerado a morte. Como saber a verdade? Em França, ter-se-ia simplesmente procedido à autópsia. Estes selvagens atuam de outra maneira. O chefe religioso manda construir um manequim que se pensa representar o defunto Outapa. Este manequim é colocado num ponto alto da tabanca preso por cordas ligadas a quatro estacas fixadas no solo. Evoca-se a alma do morto e cada um pode perguntar publicamente, na presença de divindades, quem é o verdadeiro culpado. Após a sesta, Samba Salla veio avisar-me que tudo estava pronto para a cerimónia. O chefe religioso pronunciava palavras misteriosas que me parecia evocar a alma do infeliz Outapa. Estendeu as mãos para o manequim e gritou bem alto: Outapa, porque morreste, fui eu que te matei? O manequim não respondeu. Vieram os principais habitantes da ilha fazer as mesmas perguntas ao manequim. Veio depois Tchiourra, uma negra de grande beleza, fez as mesmas perguntas e ocorreu um fenómeno inexplicável para mim, o manequim pareceu estremecer e balançou-se duas vezes como se estivesse a dizer sim. Houve grande clamor da multidão, Tchiourra foi levada à justiça do rei.

Deu-se uma cena de uma ferocidade selvagem. A um sinal do rei, um negro, hercúleo, aproximou-se munido de um martelo parecido aos nossos martelos de forja e com uma corrente que tinha em cada extremidade dois aros informes, a condenada foi algemada. Apareceu um cepo sob o qual foram colocados os braços de Tchiourra, esta estava energicamente presa por quatro bijagós. A rebitagem das cadeias de ferro provocou um enorme sofrimento à condenada, um martelo acidentalmente quebrou-lhe um antebraço, ela caiu inanimada.

Não pude suportar mais tempo esta carnificina e esquecendo que estava eu próprio à mercê destes selvagens, tirei de um bolso um revólver, mas senti que me prendiam vigorosamente a mão, era Samba Salla que antevendo as consequências da minha loucura me afastou deste horrível espetáculo. Tchiourra foi levada para a prisão, um buraco que mais parecia o inferno escondido de Dante. Já lá estavam dois condenados e com Tchiourra eram agora três condenados destinados a uma morte lenta roídos pela febre e fome.

Costumes bijagós, imagem publicada em Panorama, revista portuguesa de arte e turismo, Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo, n.º 10/11, 1954
Régulos bijagós, fotografia de Luís Paulo Ferraz, com a devida vénia
Escultura bijagó
Máscara bijagó, Museu Nacional de Etnologia, com a devida vénia
Rapaz bijagó em cerimónia de iniciação

(continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 29 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24897: Historiografia da presença portuguesa em África (396): "Viagem ao arquipélago dos Bijagós", 1879, por Maximin Astrié (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P24923: Excertos dos melhores escritos de António Eduardo Ferreira (1950-2023), ex-1º cabo cond auto, CART 3493 / BART 3873 (Mansambo, Cobumba e Bissau, 1972/74) - Parte VIII: do que a população sob controlo do PAIGC tinha mais medo era do "passarinho grande", o avião


Guiné > Região de Tombali > Sector S4 (Cadique) > Cobumba > CART 3493 (1972/74) > O António Eduardo Ferreira à porta do abrigo.

Foto (e legenda): © António Eduardo Ferreira (2013). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1.  Série com pequenos excertos dos melhores postes do António Eduardo Jerónimo Ferreira (1950-2023) (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493 / BART 3873, Mansambo, Cobumba e Bissau, 1972/74) (*).

O nosso camarada era natural de Moleanos, Alcobaça. Na tropa e na guerra era mais conhecido por Jerónimo. Lutou quase 20 anos, desde 2004, contra um cancro. Criou o blogue Molianos, viajando no tempo, por volta de 2013 ou 2014.


Parte VIII -  Coitada da população de Cobumba que tinha de parecer estar bem com os dois lados, as NT e o PAIGC


(..) Foi difícil, a vida dos homens da CART 3493 em Cobumba, mas a daquela gente que por lá morava não foi melhor, deixaram de ser bombardeados pelos "tugas", passaram a ser por alguns dos seus que integravam as forças do PAIGC (uma mulher da população morreu,  vitima de uma flagelação).

Não deve de ter sido nada fácil de encaixar a mudança, o que eles de facto desejavam era a paz e não a continuação da guerra. (Muito tempo já passou e a esperança de muita daquela gente numa vida melhor parece continuar a ser uma miragem.)

Havia certos dias em que as poucas pessoas que por lá estavam a maior parte do dia passavam-no junto ao seu abrigo, que seria certamente mais seguro que os nossos, dado o sítio onde se localizavam (debaixo de um grande mangueiro) e a forma como eram construídos(apenas com cerca de um metro de largura). 

Era nossa convicção que eles estavam por ali porque tinham informações que nós não tínhamos… Algumas vezes o “arraial” acontecia mesmo e nesses momentos estar perto de um abrigo podia fazer toda a diferença (...).

Apesar das poucas conversas que tínhamos com a população, por vezes lá íamos fazendo algumas perguntas a que eles normalmente respondiam (aqueles que nos entendiam)... Certo dia perguntei ao filho do chefe de tabanca de que é que eles tinham medo quando ainda não estava lá a tropa branca, ele respondeu que era do "passarinho grande" (o avião)... 

Quando o "passarinho" aparecia, se estavam na bolanha e esta tinha água, velhos e novos deitavam-se, ficando apenas com parte da cabeça de fora. Ele dizia: " só com um olho fora da água". 

Era um menino de doze ou treze anos (o Zé) que certos dias saía com uma pequena saca onde dizia levar os livros e que ia para a escola em Pericuto que ficava do lado de lá da bolanha mas onde nós não íamos, porque apesar de ser perto era arriscado… A haver escola ou coisa parecida, teria que ser da responsabilidade do PAIGC…

Um outro com quem falei dizia que tinha sido carregador do PAIGC, transportava material de guerra à cabeça (chamava-se Miranda) o sítio mais longe onde tinha chegado foi ao Xitole:  era um homem já de certa idade,  normalmente não saía lá da tabanca. 

Já perto do fim da nossa estadia naquele sítio as minas continuavam a causar-nos grandes preocupações, pois eram colocadas mesmo do lado de dentro do arame que nessa altura já circundava todos os abrigos e parte da picada.

Devido a essa situação foi exigido ao chefe da tabanca que nomeasse alguém que teria de andar todo o dia no carro ao lado do condutor, era uma forma de pressionar possíveis familiares que estavam do lado do PAIGC para não colocarem as minas, se é que isso poderia ter alguma influência nas ordens dimanadas do Partido.

Recordo-me do primeiro (e não sei se o único) que andou comigo,  foi o filho do chefe, o Zé, entre eles era quem falava melhor português. Também para os condutores era uma situação estranha, andarmos todo o dia com alguém a nosso lado,  coisa a que não estávamos habituados. Não sei se psicologicamente isso nos terá ajudado.

Não me recordo se foi detectada mais alguma mina depois dessa exigência (nem faço ideia com que vontade foi cumprida pelo chefe de tabanca). 

Também nunca soube se essa ordem foi pensada no Comando da Companhia ou veio de outro sítio, o certo é que aconteceu e chegou ao conhecimento do PAIGC, pois na rádio que transmitia em seu nome,  através da voz daquela a quem chamávamos a “Maria Turra”,  esse assunto foi muito falado.

 A esta distância no tempo dá para entender melhor como era difícil a vida daquela gente, que tinha de parecer estar bem com os dois lados (PAIGC e a Tropa Portuguesa), mas na verdade isso não era possível. (...) 

Cobumba era um local onde os homens novos durante dias não se viam e, quando estavam, com o aproximar da noite abalavam…

As pessoas mais velhas estavam sempre por ali, algumas delas tinham estado ao serviço do PAIGC como carregadores de material de guerra (caso do  Miranda). 

Havia várias crianças (caso do filho do chefe da tabanca) que  andavam na escola do PAIGC em Pericuto, povoação próxima de nós, não sei qual seria a frequência de alunos.

Pessoal novo, por lá, só estavam crianças, algumas que diziam ser oriundas de Bedanda. (...) Chegava a acontecer, em alguns dias, aparecerem por ali vários homens mais novos, não sabíamos de onde vinham, que passavam o tempo que lá estavam, a beber numa espécie de taberna que tinha sido feita depois de nós lá termos chegado, cujo dono servia de tradutor quando era necessário falar com alguma população que não conhecia a nossa língua. 

Quando chegava o fim da tarde iam todos embora, na maioria bêbados. Às vezes acontecia cenas de pancadaria entre eles em que nós agíamos como se nada estivesse a acontecer… era problema deles. (....) (**)

(Seleção / revisão e fixação de texto / negritos: LG)
___________


terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P24922: Fichas de unidade (32): CCAÇ 15 (Bolama e Mansoa, 1970/74); divisa: "Taque Tchife" (Agarra à mão)

Crachá e brasão da CCAÇ 15 


Fichas de unidade > Companhia de Caçadores nº 15

Identificação: CCaç 15

Cmdt:

  • Cap Inf Manuel José Reis do Nascimento
  • Cap Inf Luís da Piedade Faria
  • Cap Mil Inf João Nuno Rocheta Guerreiro Rua
  • Cap QEO José Eduardo Marques Patrocínio
  • Cap Inf Idílio de Oliveira Freire
  • (oficial n/ identificado)
  • Alf Mil João António de Magalhães

Divisa: "Taque Tchife" (Agarra à mão)"

Início: 29Jan70 | Extinção: finais de Ju174

Síntese da Actividade Operacional

Foi constituída e organizada no CIM, em Bolama, com quadros e algum pessoal especialista metropolitano e o restante pessoal natural da Guiné, da etnia Balanta, sendo inicialmente designada por CCaç Balanta e tomando a designação de CCaç 15 a partir de 28Fev70.

 Após a instrução inicial, efectuou a IAO no CIM, em Bolama, de IS a 28Fev70.

Em 04Mar70, deslocou-se para Mansoa, a fim de substituir a CCaç 2857 na  função de intervenção e reserva do sector, tendo actuado em diversas operações na região de Locher-Changalana, na interdição da ligação Sara-Sarauol e na segurança e protecção de itinerários e dos trabalhos das estradas Mansoa-Bissorã e Jugudul-Bambadinca. 

Destacou ainda pelotões para reforço de outras guarnições, nomeadamente de Mansabá, de 08 a 25Nov70 e de Cutia, de 27Nov70 a finais de Mar71).

Em finais de Ju174, foi desactivada e extinta.

Observações - Tem História da Unidade até 31Mar72 (Caixa n." 130 - 2." Div/4." Sec, do AHM).

Tem 22 referências no nosso blogue. Na Tabanaca Grande temos dois camaradas que pertenceram à CCAÇ 15: o António Sampaio e o Joaquim Mexia Alves.

Fonte - Adapt de Portugal. Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África, 1961-1974 [CECA] - Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 7.º volume: fichas das unidades. Tomo II: Guiné. Lisboa: 2002, pág. 635
____________

Nota do editor:

Guiné 61/74 - P24921: Boas Memórias da Minha Paz (José Ferreira da Silva) (20): 10 de Junho (Só para Patriotas)


1. Em mensagem do dia 30 de Novembro de 2023, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689 / BART 1913, Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), reapareceu volvidos três anos, enviando-nos esta Boa memória da sua paz, intitulada "10 de Junho (Só para Patriotas)".


BOAS MEMÓRIAS DA MINHA PAZ - 18

10 de Junho
(Só para Patriotas)


Há um grupo de ex-combatentes da Guerra do Ultramar que se vem reunindo mensalmente em alegres convívios, usufruindo de excelentes “provas” de gastronomia, enriquecidos com admiráveis programas de lazer e de cultura. Neles se cimentaram grandes laços de amizade, solidariedade e camaradagem.

Chama-se “O Bando do Café Progresso” e deve a sua formação a um pequeno grupo de jovens que frequentava assiduamente o “Café Progresso” (o mais antigo do Porto), especialmente no período anterior ao seu ingresso no serviço militar e sua consequente mobilização para a Guerra do Ultramar. Por coincidência passaram maioritariamente pelo mesmo percurso (Caldas, Mafra, Vendas Novas, Tavira, Santarém, Espinho e… Guiné).

Muito mais tarde, o Facebook promoveu a reaproximação de uns e a adesão de outros. Quem fomentou mais a afirmação do grupo foi o saudoso Jorge Portojo. Os membros do “Bando” tratam-se por tu, convivem como irmãos, sem distinção militar, social, clubística, profissional e académica. Cada um vai-se integrando ou afastando livremente, conforme a sua disposição para adaptação à camaradagem, amizade, solidariedade e tolerância. Graças a isso, e a mais de uma dúzia de anos de vivências regulares, temos um bom núcleo de base de grande confiança e amizade. Aqui, ninguém impõe nada, nem é obrigado a nada. Apenas tem de se sentir bem sem chatear ninguém.

Portugal não respeita o dia da sua Independência. Deve ser o único país do Mundo que não festeja o dia da sua independência!

Há quem diga que na “corte” da nossa Capital nunca foi nem será aceite que a fundação de Portugal tenha sido antes da conquista de Lisboa aos mouros.

Graças à grandeza do Camões (muito anterior ao Eusébio, Ronaldo, José Sócrates e Pinto da Costa), os portugueses vêm assinalando a data da sua morte como ponto alto da nossa portugalidade.

E chegou mais um 10 de Junho. Nada de novo: uma descentralizaçãozita das cerimónias para o interior do País e para junto das comunidades lusas de emigrantes no estrangeiro, garantindo assim a participação popular, mais pura e mais patriótica. Oportunidade única para se mostrar alguns adereços locais, mais políticos, mais medalhas discutíveis, mais fardas de vários tipos, incluindo algumas orientadas pela anquilosada/estatizada/Salazarenta Liga dos Combatentes. Mesmo assim, temos vindo a assistir a desfiles de figuras do poder, suas selfies e seus discursos vergonhosamente desenquadrados da importância solene que este Dia de Portugal exige.

Nós, “Bandalhos” do “Bando”, que sempre nos honramos da Pátria que defendemos, que além da Guerra, nos preocupámos e lutámos pela dignidade, honra e solidariedade dos nossos Camaradas, infelizmente pouco conseguimos e muito nos desacreditámos.

Prevalece, isso sim, o espírito “Bandalho”, que nos proporciona a boa ambiência, a amizade e a óptima camaradagem. E sempre manteremos o sentido patriótico com orgulho e muito respeito.


10 de Junho de 2023

Sem políticos, sem fardas, sem desfiles e sem medalhas, o “Bando” poisou, mais uma vez (a 10.ª), na lindíssima povoação de Crestuma,

Concentrados no Miradouro deslumbrante do Largo da Igreja, pelas 12h00 fizemos a Romagem ao Cemitério onde foi depositado um lindo ramo de flores. O Romualdo Silva complementou a Homenagem aos ex-Combatentes locais, enaltecendo a sua prestação militar, espirito de sacrifício e dever patriótico, na defesa do seu País e da sua comunidade.

Seguimos para as instalações do Clube Náutico de Crestuma, onde tivemos a oportunidade de conhecer um dos principais clubes da Canoagem Portuguesa.
Na montra de Troféus do C. N. Crestuma, deparamos com o Troféu Olímpico, que é atribuido ao clube desportivo de maior destaque no período dos 4 anos de Ciclo Olímpico
Como Fundador e Primeiro Presidente (e Honorário) desta Colectividade, “deixaram-me” fazer o papel de Guia. O Clube (propriamente dito) estava ausente, a participar em Provas de Canoagem na Catalunha.

Subimos para a Esplanada, onde prosseguiu o nosso 10 de Junho “à nossa maneira”.
Ali, quase debruçados sobre as águas do Rio Douro, envolvidos numa belíssima paisagem e acarinhados pelo aconchego das nossas queridas, resolvemos homenagear (finalmente!) as nossas Madrinhas de Guerra
Ainda entretidos a “decidir opções” perante a excelente mostra das entradas, o Ricardo Figueiredo já aproveitava para citar Camões, a referência ao dia e o expoente máximo da nossa cultura.
“Eternos moradores do Luzente
Estelífero polo e claro acento,
Se do grande valor da forte gente
De Luso não perdeis o pensamento”


E referiu:
“…Ao longo da nossa história, muitos foram os exemplos de dedicação, altruísmo e coragem de militares que, em cumprimento do dever, sublimaram as suas capacidades ao serviço de Portugal. Foram heróis que connosco partilharam o quotidiano das suas vidas. Afinal, homens simples, capazes de feitos extraordinários.
Ao percorrermos a nossa memória, lembramo-nos dos cerca de 10.000 portugueses mortos e de mais de 54.000 feridos em combate e aí revemos os nomes de familiares e amigos.
E recordamos também aqueles que, ao longo de 9 séculos, deram a vida por Portugal.
Fomos Combatentes!
Somos ex-Combatentes!
Fomos soldados de excepção. Fizemos da distância e da saudade um desafio a vencer, aceitámos a falta de recursos como razão para a iniciativa e para a adaptabilidade fizemos da juventude o tempero da camaradagem.
E é desta lembrança de uma camaradagem fortalecida em tempos difíceis de guerra que resultam os nossos sentimentos de saudade.
Lembramos os nossos camaradas que sobreviveram e os que recentemente da lei da morte se passaram para outra dimensão.


Lembramos:
Jorge Portojo,
Carlos Peixoto,
Armando Santos,
Barreto Pires,
José Valente,
António Piteira,
Francisco Alen
Henrique Azevedo
Carneiro de Miranda
Manuel Maia
…”

Após o minuto de silêncio, procedeu-se à distribuição dos Diplomas de Homenagem às Madrinhas de Guerra, entregues pelos seus próprios afilhados. A nossa geração não esquece.

E a pedido, o Ricardo também leu:

Ex.mas Madrinhas de Guerra
Camaradas Combatentes
Desde miúdos, que nos habituámos a respeitar o 10 de Junho, como Dia de Camões, Dia da Raça. Dia de Portugal.
Era neste dia que se enalteciam os maiores feitos dos Portugueses!
Dia consagrado aos nossos heróis!
Vimos jovens, robustos, firmes, inteiros ou estropiados, garbosamente fardados.
Vimos pais, mães e filhos, vestidos de negro.
Vivos ou mortos, os nossos valorosos Combatentes estavam ali, orgulhosamente, para Honra e Glória da nossa Pátria.
Eram respeitados como a expressão máxima do nosso heroísmo.
Os tempos foram mudando, os combatentes foram esquecidos e as Cruzes de Guerra foram substituídas por grandes e abundantes Comendas.
Agora, os heróis são outros. São experts da política, da economia, da vigarice, do marketing e do chico-espertismo.
Curiosa e vergonhosa a situação reinante.
É que muitos deles (nós também), aguardam da verdadeira Justiça, a desejada e demorada condenação!
Volvido meio século da nossa história, nós, a geração que tudo sofreu,
A geração que em tudo acreditou,
A geração que sempre trabalhou,
Sente-se agora algo envergonhada pela situação a que chegamos.
Sem força, física e anímica, resta-nos a razão moral que nos alimenta vida fora.
Muito fizemos!
Mas muito deixamos por fazer!

É por isso, que, volvido tanto tempo, ainda vivemos preocupados com desejados acertos da nossa História.
Hoje, mais uma vez, lembramos o 10 de Junho, através de uma singela Homenagem.
A Homenagem às nossas Madrinhas de Guerra.
Sem elas, a guerra teria sido outra.
Sem elas, não teríamos vivido a Paz e o Amor.
Sem elas, não valeria a pena viver!
Obrigado Madrinhas de Guerra!
Obrigado Madrinhas no Amor!
Vós sois a razão da nossa existência.
VIVAM ÀS NOSSAS MADRINHAS !!!
VIVA PORTUGAL !!!


Uma inédita e muito singela Homenagem que provocou momentos de grande emoção e ainda de …muito amor.

Foram Homenageadas as seguintes Madrinhas de “Bandalhos”:

Gilda Ferreira - de - José Ferreira
Virgínia Teixeira - de - Jorge Teixeira
Carminda Cancela - de - Jose Manuel Cancela
Margarida Peixoto - de - Joaquim Peixoto
Cândida Rainha - de - Ricardo Figueiredo
Almerinda Freire - de - José Freire
Constantina Silva - de - Fernando Silva
Rosário Guimarães - de - Manuel Cibrão Guimarães
Amélia Fonseca - de - Luis Bateira
Maria Inês Sá - de - Manuel David Sá
Isabel Encarnação - de - João Encarnação
Emília Silva - de - Romualdo Silva
Maria Anjos Ramalho - de - Alberto Moura
Júlia Gomes - de - Isolino Gomes
Eulália Oliveira - de - António Pimentel
Maria de Fátima Carvalho - de - Antonio Carvalho
Umbelina Carneiro - de - Joaquim Carneiro
Constança Lopes - de - António Moreira
Fátima Sousa - de - José António Sousa
Maria José Costa - de - José Sousa
Conceição Claro - de - Damião Carneiro
Fátima Anjos - de - Francisco Baptista
Ana Maria Marques - de - António Duque Marques
Quina Carmelita - de - Manuel Carmelita
Assunção Paupério - de - Rogério Paupério
Constança Maria - de - António Gonçalves
Manuela Campos - de - Eduardo Campos
Fernanda Soares - de - Alberto Godinho
Luísa Lopes - de - José Manuel Lopes

Dia de emoções fortes
No 10 de Junho destes “guerreiros”, o Amor sempre prevalece.
Alimentados os corações, há que abastecer o estômago com a “Paella do Marques”, complementada com mais umas lambarices.
Tudo bem regado com bebidas escuras, brancas e outras e bem-humorado, com destaque para a animação da dupla “Ricardo e Carneiro” e para o grupinho das “Tecedeiras de Crestuma”
Os animadores Ricardo e Carneiro
Grupo das “Tecedeiras de Crestuma”
Já o dia ia longe e ainda “restavam” vários Bandalhos, pacificamente “colados” à terra, quietinhos, quentinhos e em sonolenta recuperação.

“Estes guerreiros são bons
C´o copito no punho
Clamam em vários tons
Pureza no 10 de Junho”


Silva Da Cart 1689
José Ferreira da Silva

____________

Nota do editor

Último poste da série de 16 DE AGOSTO DE 2020 > Guiné 61/74 - P21260: Boas Memórias da Minha Paz (José Ferreira da Silva) (19): O Sousa da Ponte… de Pedra

Guiné 621/74 - P24920: Dos calores da Guiné aos frios da Gronelândia (6): Em Reykjavik, Islândia, onde nada nos assusta: se a terra treme,é porque o vulcão, não longe, barafusta (António Graça de Abreu)


Foto nº 31


Foto nº 32


Foto nº 33


Foto nº 34

Islândia >  Reykjavik > Agosto de 2023 


Fotos (e legendas): © António Graça de Abreu (2023). Todos os direitos reservados [Edição e lendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
 

1. Mais textos e fotos enviados (20/11/2023 , 19:56), pelo nosso amigo e camarada António Graça de Abreu ( ex-alf mil, CAOP1, Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74), referentes a mais um cruzeiro que efetuou, com a esposa, em agosto passado, desta vez à Gronelândia e à Islândia (*):



Dos calores da Guiné aos frios da Gronelândia (6): Reykjavik, Islândia

por António Graça de Abreu


Em Reykjavik, cem mil coisas havia, acontecia, de noite, de dia.

Em Reykjavik, o velho viking, pirata de antanho, uma saudação de todo o tamanho.

Em Reykjavik, gente boa a trabalhar, o tempo a esfriar, prisões a arejar, ausência de ladrões a roubar.

Em Reykjavik, baleias ao longe para contemplar, golfinhos para embalsamar, salmões para pescar.

Em Reykjavik, um palácio de vidro chamado Harpan a cantar, grande música a escutar.

Em Reykjavik, mocetonas loiras, peitudas para acariciar e uma bofetada levar.

Em Reykjavik, uma casa assombrada para Ronald Reagan e Mikhail Gorbachov se encontrar, o falso bom governo do mundo a tentar mandar.

Em Reykjavik, uma rua de encantar, pavimentada a cores gay para a malta lgbt exultar, e todos os outros, passear.

Em Reykjavik, uma belíssima catedral protestante, sem santos no altar. A quem rezar?

Em Reykjavik nada nos assusta, a terra treme porque o vulcão, não longe, barafusta.

Em Reykjavik, um pobre português de passagem, que se entretém a escrevinhar, usando rimas pindéricas em "ar."

Em Reykjavik, The Iceland Phallological Museum, um museu do Pénis vagabundo, profundo, como mais nenhum outro museu existente no mundo.

__________

Nota do editor:

(*) Último poste da série >  18 de novembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24861: Dos calores da Guiné aos frios da Gronelândia (5): Banho Geotermal, Reikjavik, Islândia (António Graça de Abreu)