Uns de bicicleta e a maioria a pé lá abalavam para mais uma jornada de trabalho, vomitando fogo dada a pureza da aguardente branca das uvas verdes.
Da minha memória de infância tenho bem viva a importância da mercearia da aldeia, que rivalizava com a da igreja. Antes da missa, um "neguinhos" para apaziguar a tosse e depois da missa para encontrar o caminho para casa.
Eram as duas instituições mais importantes da aldeia: uma alimentava a alma e a outra o corpo (A César o que é de César a Deus o que é de Deus!). Razão pela qual o padre e o dono da mercearia eram as pessoas mais respeitadas na terra. Mais do que a do próprio regedor!
Havia mesmo uma grande cumplicidade entre estas duas instituições ao ponto de a festa da Páscoa entrar na taberna dando a cruz a beijar aos mais renitentes e o dono da mercearia ser sempre convidado para mordomo da festa em honra do santo padroeiro da terra.
Ainda muito novo me dei conta da miséria que reinava na maioria das famílias, assistindo com um nó na garganta às lágrimas das mulheres suplicando ao Zé fiado para um naco de pão, um naco de bacalhau e uma mão de arroz para o almoço que levavam aos maridos que trabalhavam numa pedreira de extração de granito. O Zé, sempre dizendo que não, dada a dívida acumulada, mas sempre cedendo.
Tivesse ele recebido todas as dívidas que constavam no livro dos "assentos" e hoje eu seria um homem rico.
Durante a tarde a mercearia parecia um galinheiro (dizia o Zé), dado a algazarra que faziam as mulheres.
Para além do trabalho, havia muitos momentos de diversão com as conversas sem filtro de todo aquele "mulherio" ali reunido, em que muitas vinham comprar o que não precisavam só para participarem naquele extraordinário "fórum".
A partir das 19horas chegavam exaustos os homens e aí confraternizavam, jogando as cartas (e bebendo), jogando dominó ( e bebendo), cantando ao desafia (e bebendo), e às vezes zangando-se, lutando e depois fazendo as pazes bebendo. Regressavam a casa com um (ou muitos) grãos na asa, mas recompostos de mais um dia de trabalho. Este "fórum" era muito mais difícil de controlar...
Aos domingos, depois da missa das sete, aqui se juntavam todos os homens da aldeia dispersando-se pelas diferentes tarefas:
- uns faziam fila junto do engraxador para limpar os sapatos de domingo;
- outros faziam fila no barbeiro aparando o cabelo e o bigode;
- outros participavam na reunião do clube da terra – os mais jovens carregavam os seis paus e abalavam para o campo da Bela (terreno baldio) para o treino da equipa da aldeia;
- outros jogavam a malha e às vezes ao galo com setas de pressão de ar;
- outros participavam na reunião semanal da "Caixa dos vinte amigos" (no fundo era uma réplica de um banco onde cada um pagava uma quota mensal, e onde os mais abastados depositavam determinadas quantias pelo qual recebiam juros; em função do valor em caixa faziam-se empréstimos a juros negociados; na época ainda a D. Branca não tinha nascido!)
Era aqui, na mercearia/taberna onde tudo acontecia. Era a vida da Aldeia.
Aqui não havia lugar para advogados e juízos, todas as desavenças eram resolvidas com muita gritaria, zaragatas – larga-me que eu vou-me a ele! – e decididas em última instância pelo dona da mercearia ou pelo "supremo", o padre.
Numa das desavenças mal resolvidas, um habitante frequentador assíduo da taberna, consumidor de "neguinhos" (pequenos copos de vinho), enquanto todos bebiam em canecas de porcelana com uma cinta metálica, resolveu ir à vila ouvir a opinião de um entendido sobre leis.
(i) ex-fur mil at armas pesadas inf, CCAV 8351, "Tigres do Cumbijã" (Cumbijã, 1972/74);
(ii) membro da Tabanca Grande desde 30/1/2021, tem mais de 7 dezenas de referências no blogue;
(iii) autor da série "Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74)" (de que se publicaram 28 postes, desde 3/2/2021 a 28/7/2022) , e que depois publicou em livro ("Memórias de um Tigre Azul - O Furriel Pequenina", por Joaquim Costa; Lugar da Palavra Editora, 2021, 180 pp);
(iv) tirou o curso de engenheiro técnico, no ISEP - Instituto Superior de Engenharia do Porto;
(v) foi professor do ensino secundário, tendo-se reformado como diretor da escola secundária de Gondomar (EG nº;
(vi) minhoto, de Vila Nova de Famalicão , vive em Rio Tinto, Gondomar, e adora o Alentejo;
(vii) tem página no Facebook.
(Revisão / fixação de texto, negritos: LG)
(*) Reproduzido com a devida vénia da página do Facebook de Joaquim Costa, 3 de janeiro de 2024, 11.57 > Memórias "boas" da minha infància > A mercearia /taberna