quarta-feira, 2 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20197: Historiografia da presença portuguesa em África (179): “Duas descrições seiscentistas da Guiné”, de Francisco Lemos Coelho, introdução a anotações históricas por Damião Peres, Academia Portuguesa de História, 1953 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Janeiro de 2017:

Queridos amigos,
Quanto às ilustrações que aqui se apresentam, constam de uma esplêndida publicação da Sociedade de Geografia de Lisboa onde se mostram os seus tesouros artísticos. Pedi autorização ao seu presidente para destacar no nosso blogue estas quatro peças artísticas guineenses, amavelmente acedeu.
Continuo a frequentar com regularidade a biblioteca desta Sociedade, possuidora de valiosa documentação que me permite estudar e recolher belíssimos relatos de viajantes para uma obra que idealizei com o título "Guiné: as suas páginas de ouro", uma recolha de preciosidades escritas a partir de Zurara até aos nossos dias. O trabalho prossegue e o ânimo não desfalece, é um prazer documentar-me e descobrir pepitas de ouro nesta literatura tão injustamente esquecida.

Um abraço do
Mário


Francisco de Lemos Coelho, aventureiro seiscentista na Guiné (2)

Beja Santos

Francisco de Lemos Coelho é autor de duas impressivas descrições que avivam e complementam os conhecimentos e relatos de outros viajantes anteriores e contemporâneos.

Em texto anterior, vimos como ele define territorialmente a Guiné a partir do rio Senegal, viaja e comenta tudo quanto vê no que é hoje correspondente ao território senegalês, demora-se em Cacheu e Bissau e quando parte escreve: “Antes de passar daqui para diante me parece dar notícia das ilhas dos Bijagós que ficam já de trás e começam de frente das ilhetas ao mar, e vão correndo para a banda do Sul, farei sua narração, e direi primeiro o costume e natural dos negros, e o que foram, e são hoje de presente”. E enceta a descrição do território Bijagó, seus ritos e costumes: “Esta casta de negros dizem os antigos que foram povoadores do Reino dos Beafares, os quais foram conquistados pelos ditos Beafares, gente do sertão adentro e que vendo-se apertados fugiram em canoas que também chamam almadias, e vieram povoar estas ilhas”. Tendo sido perseguidos pelos Beafares acabaram por vencer e arrebanharam as suas presas como escravos. Os Bijagós fizeram-se grandes guerreiros, atacaram os Papéis, chegaram ao Geba e a Cacheu, em toda a parte eram temidos.

Mais adiante Lemos Coelho observa: “Hoje é a gente mais doméstica que tem a Guiné, e mais amiga do branco”. Considera as mulheres Bijagós como formosíssimas, dizendo que na sua terra vestem saias de palha até ao joelho. E adianta: “Não é proibido o matrimónio se não no primeiro grau de consanguinidade, o homicídio não se castiga mas os parentes do morto podem matar o matador se podem, não há rei entre eles mas os grandes são juízes em suas desavenças”.

O relato prossegue com a descrição a partir da ilha de Bissau para o rio de Geba. “Corre da ilha de Bissau para Leste o rio de Geba o qual tem à banda do Norte os Balantas, que vão correndo da terra de Antula, e da banda do Sul o Reino de Guinala, que é o maior que têm os Beafares; assim que da banda do Norte acabando a terra dos Balantas se dá logo no Reino de Gole, também de Beafares, aqui começa o rio a estreitar, e aqui começa o macaréu que há neste rio, o qual é uma correnteza de água quando vem a enchente com tanta veemência, que quando se sente que vem porque antes de chegar vem fazendo estrondo como de trovoada, e o navio que está solto suspende a âncora para não soçobrar”. Adianta que acima de Gole, da mesma banda do Norte está o reino de Amchomene, também de Beafares, “gente ruim os deste reino, e traidores, logo se segue a terra de Geba sujeita ao Farim de braço, tem seu reizinho, mas está a Farim sujeito”.

“Da banda do Sul está o reino dos Beafares sujeito ao rei de Guinala, ou do rio grande. É a povoação de Geba a terceira que há hoje na Guiné, e agora faz 30 anos que se podia dizer era a primeira no trato (comércio), como nos moradores, mas como o capitão de Cacheu mandou levar os moradores para com eles fazer a povoação de Tubabodaga (Farim) e hoje não há nela mais do que filhos da terra, se bem ainda destes há mais de 200 almas cristãs e costuma o Cabido de Cabo Verde mandar aqui um clérigo para administrar os sacramentos a estes cristãos”. E retrata Geba: “Era a dita povoação de Geba de maior trato de toda quantas havia em Guiné, aqui era que se vendia à cola, aqui se despachava muito ferro a troco de cera, aqui se comprava muito marfim que vinha da terra dos Cocolins, gente que confina com os Beafares. Esta é a povoação que foi de Geba à qual não ficou mais do que o nome, e com isto torno ao porto de Bissau para dele fazer o caminho para o Rio Grande”. E começa a descrição do Rio Grande, dizendo que indo de Bissau para o Sul se chega à ilha de Bolama, que era povoada de Beafares e que por causa dos Bijagós está hoje despovoada, observa que tem à entrada muito bons portos a que se chama prainhas por causa de umas alegres praias de área que tem em terra e junto delas há muito bons recifes de pedra; “a terra é fertilíssima mui cheia de palmeirais e de árvores frutíferas”.

E começa a descrição de Guinala: “Há no fim da terra de Guinala uma grande aldeia que se chama Corubal que é como feira adonde vêm mercadores de todas as partes a comprar e vender, vende-se nela principalmente muitos negros, roupas e tintas com que se tinge a roupa na Guiné de azul. Os moradores desta aldeia são geralmente Mandingas. Há também na terra de Guinala o melhor gado vacum que tem toda a Guiné, nem entendo se há melhor no mundo, assim na gordura como no sabor”. E começa a comentar o povo Beafare: “Os Beafares não têm religião nenhuma mais que adorarem uns paus a que chamam Chinas, aos quais sacrificam vacas e galinhas, e os untam com o sangue como os Bijagós”. E tece outros comentários: “Tem o porto de Guinala o melhor peixe que há em toda a costa da Guiné, principalmente umas tainhas brancas de que há tanta quantidade que fazem negócio delas secas ao sol".

O primeiro documento de Francisco de Lemos Coelho caminha para o fim, no que toca à descrição do território onde aproximadamente se vai constituir a presença portuguesa na pequena Senegâmbia. Este texto descreve o que ele vê do Rio Grande para o Rio de Nuno, ou seja a região Sul da Guiné e a orla litoral do que é hoje a Guiné Conacri. “Partindo do Rio Grande a primeira terra que nos fica pela costa abaixo é o rio dos Tambalis, os moradores da terra são Beafares, o negócio é negros, marfim e muito mantimento, não há má viagem para os brancos que vivem no rio Grande. Toda a mais terra daí até ao rio de Nuno que são pela costa abaixo mais de 30 léguas tudo são Nalus, se bem não temos comunicação com este gentio pelos seus portos por quanto há por este caminho muitas coroas e recifes”.

O rio de Nuno tinha grande importância nestas viagens até à Serra Leoa, daí a presença de brancos: “Tem na povoação do rio de Nuno uma igreja de Santo António, santo para quem se tem notável devoção, daqui para baixo não só os brancos mas também o gentio; morou aqui um frade capucho castelhano que veio morrer em Bissau. Também costuma o Cabido de Cabo Verde mandar aqui às vezes sacerdote administrar os sacramentos a estes cristãos”.

Vai seguir-se “Descrição da Costa da Guiné e situação de todos os portos e rios dela, e roteiro para se poderem navegar todos os seus rios”, quem o escreve é o Capitão Francisco de Lemos Coelho, em São Tiago, Cabo Verde, 1684.

(Continua)

Espada Mandinga
Irã Bijagó
Máscara Nalu

Machado, ritual Nokubê
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Nota do editor

Último poste da série de 25 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20174: Historiografia da presença portuguesa em África (177): “Duas descrições seiscentistas da Guiné”, de Francisco Lemos Coelho, introdução a anotações históricas por Damião Peres, Academia Portuguesa de História, 1953 (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P20196: Dando a mão à palmatória (32): O texto sobre os "Alentejanos de pele escura" é do nosso camarada Fernando de Sousa Ribeiro, é de 2008 e tem sido sistematicamente "pirateado" na Internet... O interesse pelo tema surgiu quando o autor conheceu, em Mafra, na EPI, no COM, um soldado-cadete que era um "mulato de Alcácer" e que, na recruta, foi vítima de "bullying" racista...


Alcácer do Sal > 28 de janeiro de 2018 > A frente ribeirinha, ao pôr do sol, vista da moderna ponte pedonal que faz a "cambança" do rio Sado...

Foto (e legenda): © Luís Graça (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Comentário do Fernando de Sousa Ribeiro:

Luís, o texto intitulado "Alentejanos de pele escura" é meu! Fui eu que o escrevi! Juro que fui eu! O texto é meu, desde as quadras populares (exclusive, claro) até ao fim. [. Ou seja, excluimdo os três primeiros parágrafos.]

O que o blogue "Comporta - Opina" fez foi transcrever ipsis verbis o conteúdo de um post publicado em 2009 num fórum neonazi (!!!), chamado Stormfront, por um membro do dito fórum que usa o nick "Looking for a fight", que talvez seja um antirracista infiltrado no fórum. O poste está neste endereço: https://www.stormfront.org/forum/t592627/.

O membro do fórum "Looking for a fight" indicou os endereços de onde retirou os textos que transcreveu, mas o blog "Comporta - Opina" omitiu-os.

O texto "Alentejanos de pele escura" foi publicado pela primeira vez em 2008 no blogue "Da Kappo" (escrito propositadamente com K), da angolana Paula Santana, que é economista, vive em Londres e usa o nick Koluki. 

Um dia, Koluki convidou-me a escrever um poste destinado  a ser publicado no seu blogue, sobre um tema que eu muito bem entendesse. Como Koluki é negra, lembrei-me de falar sobre os negros que deram origem aos "mulatos de Alcácer".

"Como é que um gajo do Porto se atreveu a escrever sobre pessoas de Alcácer do Sal?", poderás perguntar. Por incrível que pareça, tudo começou na tropa!

Em Mafra, numa das casernas destinadas aos cadetes do 1.º ciclo do COM [, Curso de Oficiais Milicianos], eu partilhei um beliche com um "mulato de Alcácer". Ele dormia na cama de cima e eu na de baixo. 

Não consigo lembrar-me do nome dele, por mais que me esforce. Do que eu me lembro (bem demais) é do seu aspeto nitidamente mestiço, da sua inconfundível pronúncia alentejana, assim como do racismo de que ele era vítima por parte de alguns outros cadetes instalados na caserna. Este "mulato" era troçado e gozado por eles de todas as formas e feitios, naquilo que agora se chama "bullying". 

Como eu não o gozava, e além disso partilhava o beliche com ele, esse "mulato" deu-se bem comigo e contou-me as suas origens e a razão de ser do seu aspeto físico. Ele foi um excelente companheiro, que sofria muitíssimo com as manifestações de racismo de que era alvo, apesar de ser um português da Metrópole como os restantes cadetes.

Mais tarde, no meu pelotão em Angola, houve um soldado que era de Grândola, chamado Nunes. De vez em quando, este soldado fazia referências aos "mulatos de Alcácer", nas conversas que tinha comigo e com o resto do pelotão.

Depois de ter passado à disponibilidade e ao longo dos anos que se seguiram, continuei a ter uma certa curiosidade pelos "mulatos de Alcácer". Fui a Alcácer do Sal várias vezes, assim como a Grândola e ao Torrão, além de ter percorrido a Ribeira do Sado. Fui, nomeadamente, a S. Romão, que é, aliás, uma aldeia muito pequena.

Quando a angolana Koluki me convidou a escrever um artigo para o seu blog, fui à Biblioteca Pública Municipal do Porto consultar a bibliografia que lá existisse sobre os "mulatos de Alcácer" (escassíssima, para minha grande surpresa), no sentido de refrescar a memória e completar a informação que eu próprio tinha sobre o tema. 

Finalmente escrevi o pequeno texto que a blogger Koluki publicou em 2008 e eu próprio reproduzi no meu blog pessoal em 2012.

A concluir, lembro-me de uma canção que foi um grande êxito há uns quantos anos, chamada As Meninas da Ribeira do Sado. Em parte nenhuma da canção é referida a cor da pele das ditas meninas, e por isso toda a gente pensa que elas são tão brancas como as outras alentejanas. Mesmo assim, pergunto-me se não haverá algum racismo nesta canção, que troça das meninas da Ribeira do Sado, assim como foi troçado o cadete de Alcácer do Sal com quem partilhei o meu beliche em Mafra.

Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alferes miliciano, CCAÇ 3535 do BCAÇ 3880, Angola 1972-74

2. Comentário do editor Luís Graça:

Fernando, o seu a seu dono... Eu tinha visto o teu texto, "Alentejanos de pele escura", no blogue A Matéria do Tempo", de Fernando Ribeiro [ 18 de abril de 2012 > Alentejanos de pele escura],  nome que só agora relaciono com a tua pessoa...

Fernando Ribeiro, engenheiro, do Porto, só podias ser tu... Pelo nome, e sobretudo  pelos conteúdos... Aliás, o blogue já era meu conhecido e seguido por mim, ocasionalmente... Reparo agora, com mais atenção, que já existe desde dezembro de 2005, e tem entre os seus "companheiros de jornada" o nosso blogue, Luís Graça & Camaradas da Guiné.). Obrigado, e sobretudo parabéns,  o teu é um blogue de grande qualidade, temática e literária...   Por que é que nunca me falaste dele antes ?

Mas vi que este teu  texto, com maiores ou menores acrescentos (e sobretudo imagens) estava "espalhado" pela Net, desde 2010 a 2019... Tendo tido dúvidas sobre a fonte original, e sobretudo o autor, acabei por "encalhar" no blogue "Comporta-Opina", para mais tinha umas belas gravuras que me convinha reproduzir. Enfim, devia ter apurado a minha pesquisa...

O poste da "Comporta-Opina" é de 2010, mas afinal de contas o texto original é teu, e é mais antigo, é de 2008: como dizes, foi publicado pela primeira vez em 2008, sob pseudónimo ("Denudado", o teu "nickname"), no blogue "Da Kappo", da angolana Paula Santana ("Koluki"). E eu confirmo, acabei por descobrir aqui o link, que reproduzo:https://koluki.blogspot.com/2008/07/be-my-guest-ii-denudado.html.

O lapso foi involuntário, mas aqui fica o meu/nosso  pedido de desculpa... Nestes casos, costumo/costumamos dar a mão à palmatória. (**)

Deixa-me acrescentar que lamento a "praga" do plágio e de outras práticas desonestas,  de violação da propriedade intelectual... O mínimo que temos que é é dar o seu a seu dono, citado as fontes...  Enquanto professor na Escola Nacional de Saúde Pública, apanhei para aí uma dúzia de casos de "pirataria" em trabalhos académicos (em cursos de pós-graduação, mestrado e até doutoramento)... Nunca humilhei ninguém por isso, tinha sempre uma "conversa particular" com o/a prevaricador/a, e dava-lhe uma segunda oportunidade para refazer o trabalho... 

A nota final, naturalmente, ressentia-se. Mas cheguei a dar zero a um grupo de médicos estrangeiros que copiaram um trabalho uns pelos outros... Uma coisa "tosca", "grosseira"... Nos outros casos, havia sempre uma história pelo meio: gente com dificuldades (, a começar pelos estrangeiros que são admitidos em Portugal como médicos e não dominam o português escrito e falado), mas também de alunos, mães e pais, profissionais de saúde, para mais, que tinham dificuldade em lidar com o stress conjugado da vida académica, familiar e profissional...

"Copiar" é sempre mais fácil do que  "criar", mas é um "crime" que acaba por dar nas vistas, mais tarde ou mais cedo, e por não compensar... Eu costumava avisar os meus alunos, logo de início: "A cometerem um crime, que seja um crime perfeito"...

Obviamente, há aqui problemas éticos e deontológicos graves, mas também disciplinares e legais... A Academia só há pouco anos começou a levar estes casos a sério... Mas fico-me por aqui... LG
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terça-feira, 1 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20195: (Ex)citações (358): Fernando Calado, camarada de Bambadinca, gostei de ler o teu poste... Também eu escrevia cartas diárias, com muitas páginas, para a minha namorada... (Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933, Nova Lamego e São Domingos, 1967/69)


Guiné > Região de Gabu > Nova Lamego > CCS / BCAÇ 1933 (1967/69) > c. set/out 1967 > Tabuleta com as indicações das distâncias, para Sul, Norte e Leste, localizada numa das saídas-entradas de Nova Lamego. Bafatá para sudoeste a mais longa, com 53 kms, e temos de juntar mais cerca de 60 dali até ao porto fluvial e depósito da Intendência em Bambadinca. 


Foto (e legendas): © Virgílio Teixeira (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné] 



1. Comentário (*) de Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69); natural do Porto, vive em Vila do Conde, é gestor reformado; tem 136 referências no blogue:



Fernando Calado (**), estive a ler com toda a atenção esta narrativa, e quase se confunde com a minha estadia na Guiné. 


Levei tempo a escrever, andei à procura do Batalhão que nos foi render em 26fev68 em Nova Lamego. Tinha ideia que era o BCAÇ 2856, mas afinal acabei por encontrar e era o BCAÇ 2835.

Quando ao resto,  eu em Nova Lamego, de 21set67 a 26fev68, as histórias e os locais eram quase os mesmos. Estive várias vezes em Bafatá, mas por Bambadinca, apenas passei por lá duas vezes, em 4out67 e 26fev68. 

Depois fui lá várias vezes à Intendência, em colunas para reabastecimentos, cujo Pelotão era comandado por um camarada do meu curso na EPAM [, Escola Prática de Administração Militar], o Alferes Ramos, pequenino como eu. Era do Pelotão de Intendência, é do Porto como eu, e por vezes falamos, ele tinha uma Galeria de Arte na Foz. Pouco falamos da Guiné, ele não deve gostar, suponho.

Eu era o Chefe do CA - Conselho Administrativo, dependia apenas do 2º comandante, quase não lidava com mais ninguém. O nosso Transmissões era o Alferes Mesquita, tinha vários fotos com ele, e ainda nos vemos nos encontros anuais, quando eu vou.

Frequentávamos muito a Tabanca do Morteiros,  do Alferes Azevedo, que afinal era de Évora e não de Beja como eu pensava. Soube há dias que tinha já falecido, nunca mais o encontrei.

Esse modo de vida era quase o meu, excepto as cartas, nunca joguei, escrevia cartas diárias com muitas páginas para a minha namorada, que afinal eram como seja um diário...

Das centenas delas, apenas me restam meia dúzia, as outras foram todas queimadas e centenas de fotos, devido a um incidente e ficaram cheias de bicharada. Estava lá toda a minha vida de 23 meses, mais os outros na recruta e antes de embarcar.

Nunca fui apanhado nessas posições matinais, normalmente dormia sempre com umas calças de pijama de "terylene" e por vezes o casaco, sem qualquer outra roupa, nem lençóis. Dormíamos uns 10-12 na mesma camarata, e não me lembra de situações dessas, embaraçosas. 

Pois quanto ao resto das DST [, Doenças Sexualmente Transmissíveis,]  não me faltaram,  era de tudo o que vinha nos cardápios, já falei nisso várias vezes, o nosso Pastilhas (mais tarde formou-se em médico, mas já falecido) tratava disso tudo, eram injecções de Terramicina, que nem podíamos andar depois...

O Whisky com a água Perrier e muito gelo era também a minha bebida preferida.

As bajudas, sempre as tratamos bem, elas apareciam lá pelos quartos com as roupas, e gente por vezes ficava embaraçado, mas elas, ainda miúdas, de 15 anos, e eu com mais 10 em cima, levavam aquilo de brincadeira. O quanto eu daria para ir hoje conhecer umas das minhas lavradeiras, quer seja em Nova Lamego quer em São Domingos.

Foi agradável este Poste, por vezes fazem-nos sonhar com aquela idade, e não havia ataque ao aquartelamento que eu não fosse fotografar.

Vamos continuando.

Abraço,

Virgilio Teixeira
ex-alf mil do SAM
BCAÇ 1933/RI15
1967-1969
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Notas do editor:


(*) Último poste da série > 23 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P20005: (Ex)citações (357): para um fula, bom muçulmano, crente, como o pai do Cherno Baldé, o homem nunca chegou à lua (nem poderia chegar)... Do mesmo modo, só as mulheres grandes, como a Fatumatá, de Sinchã Sambel, chegavam às 100 luas ou mais (Cherno Baldé, Bissau / Hélder Sousa, Setúbal)


(**) Vd. poste de 30 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20191: (De) Caras (112): O aerograma de 1 de dezembro de 1969: "Meu amor, se calhar esta noite vou ter de pôr um lençol na cama, não vou transpirar a dormir, e… talvez tenha um sonho manga di bom"... (Fernando Calado, ex-alf mil trms, CCS/ BCAÇ 2852, Bambadinca, 1968/70)

Guiné 61/74 - P20194: Blogues da nossa blogosfera (111): os alentejanos de pele escura: "Ribeira do Sado, / Ó Sado, Sadeta, / Meus olhos não viram / Tanta gente preta." (Blogue Comporta - Opina, 2/1/2010)





Imagens, sem data, documentando a presença de descendentes de escravos negros na lezíria e ribeira do Sado



Fonte: Blogue Comporta-Opina (2010), com a devida vénia..



1. Com a devina vénia, transcreve-se do blogue Comporta-Opina, este texto interessante sobre a colonização do vale do Sado por escravos oriundos da Senegâmbia, já provavelmente a partir do séc. XVI (*).




Comporta-OPinia > 2 de janeiro de 2010 > 




Durante séculos a Lezíria e Ribeira do Sado foram um território desabitado, com fama de insalubridade, rodeado de charnecas e gândaras. Apenas a exploração das salinas implicava a deslocação de trabalhadores temporários, funcionando o rio como via de comunicação e escoamento de diversos produtos regionais e locais, de onde avultava o sal, produto que, pelo menos desde o século XVI a meados do século XX, constituiu a principal actividade económica das regiões ribeirinhas entre Alcácer e Setúbal.


O paludismo, localmente conhecido por febre terçã ou sezões, era um mal endémico, correndo ainda hoje a versão que a pouca população existente em períodos anteriores ao século XX era constituída por africanos - supostamente imunes à doença - aí fixados pela Coroa como forma de assegurar alguma agricultura.


Lenda ou não, o certo é que Leite de Vasconcelos na sua monumental "Etnologia Portuguesa", refere e descreve os chamados pretos de Alcácer ou mulatos da Ribeira do Sado, correspondentes a habitantes desta região que apresentavam nítidos traços africanos.


Alentejanos de pele escura

Ribeira do Sado,
Ó Sado, Sadeta,
Meus olhos não viram
Tanta gente preta.

Quem quiser ver moças
Da cor do carvão,
Vá dar um passeio
Até São Romão
.

(do cancioneiro popular de Alcácer do Sal,
Alentejo, sul de Portugal)
Ribeira do Sado é o nome de uma região que se estende ao longo do vale do Rio Sado, no sul de Portugal, a partir de Alcácer do Sal e para montante, não longe de Grândola, a Vila Morena. São Romão do Sado é uma das aldeias existentes na referida região.

Quem agora for passear pela Ribeira do Sado, já não verá gente verdadeiramente preta diante dos seus olhos, nem encontrará moças da cor do carvão propriamente dito na aldeia de São Romão. A mestiçagem já se consumou por completo. Mas são por demais evidentes os traços fisionómicos observáveis em muitos dos habitantes da região, assim como a cor mais escura da sua pele, que nos remetem imediatamente para a África a Sul do Sahara.

Nem sequer é preciso percorrer a Ribeira do Sado. Se nos limitarmos a dar uma ou duas voltas pelas ruas de Alcácer do Sal, por certo nos cruzaremos com uma ou mais pessoas que apresentam as características físicas referidas. São os chamados mulatos de Alcácer, por vezes também designados carapinhas do Sado. O seu aspecto é semelhante ao de muitos cabo-verdianos, mas eles não têm quaisquer laços com as ilhas crioulas. São filhos de portugueses, netos de portugueses, bisnetos de portugueses e assim sucessivamente, ao longo de muitas gerações. Quando falam, fazem-no com a característica pronúncia local. São alentejanos.

É frequente atribuir-se ao Marquês de Pombal a iniciativa de promover a fixação de populações negras no vale do Rio Sado. Mas não é verdade. Existem registos paroquiais e do Santo Ofício que referem a existência de uma elevada percentagem de negros e de mestiços em épocas muito anteriores a Pombal. Segundo tais registos, já no séc. XVI havia pessoas de cor negra vivendo nas terras de Alcácer.


O vale do Rio Sado, no troço indicado, é um vale alagadiço onde hoje se cultiva arroz. Até há menos de cem anos, havia muitos casos de paludismo nesse troço. A mortalidade causada pelas febres palustres fazia com que as pessoas evitassem fixar-se naquela região.


No séc. XVI, muitos portugueses embarcavam nas naus, o que agravava ainda mais o défice demográfico existente. Terá sido esta a razão por que, naquela época, os proprietários das férteis terras banhadas pelo Sado terão resolvido povoá-las com negros, comprados nos mercados de escravos. Os mulatos do Sado dos nossos dias são, portanto, descendentes desses antigos escravos negros. (**)


[Nota, a posteriori: a autoria deste texto, não das imagens, deve ser atribuído ao nosso camarada Fernando de Sousa Ribeiro, que o publicou aqui, originalmente, sob pseudónimo ("DEnudadp"), no blogue "Da Kappo", da angolana Paula Santana ("Koluki"). 

Link: https://koluki.blogspot.com/2008/07/be-my-guest-ii-denudado.html ]

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Notas do editor:

(*) Últino poste da série > 7 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19756: Blogues da nossa blogosfera (110): O livro "Imagens e Quadras Soltas", de JERO e Manuel Maia, no Blogue da Tabanca do Centro (José Eduardo Reis Oliveira)

(**) Vd. poste de 30 de setembro de 2019 > Guiné 63/74 – P20192: Agenda cultural (703): Livro do nosso camarada ranger António Chaínho "A escrava Domingas". (José Saúde)

Guiné 61/74 - P20193: Em busca de... (298): ex-furriel Godinho, do Pelotão 1118 ou 1119, que esteve na Ilha da Boavista, Cabo Verde, em 1968 (Paula Spencer)


Posição relativa da ilha da Boavista (ou Boa Vista), que
pertence ao grupo do Barlavento do arquipélago de Cabo Verde.
Das 10 ilhas, é a mais próxima do contunente africano,
que fica a leste, a cerca de 450 km de3 distância.
Fomte: Adapt. de Wikipedia  (om a devdia vénua...)
1. Mensagem da nossa leitora Paula Spencer:

De: Paula Spencer <paula.spencer66@gmail.com>

Date: quarta, 7/08/2019 à(s) 11:27

Subject: Pedido de informação

Exmo Senhor,

Venho pelo presente, solicitar informação sobre o paradeiro de uma pessoa que fez parte do pelotão 1118 ou 1119 no ano de 1968, na ilha da Boavista, Cabo Verde. 

A única informação que tenho é que ele era furriel e se chamava Godinho.

Gostaria de saber o paradeiro deste senhor, caso seja possível.

Sem outro assunto de momento, subscrevo-me com os melhores cumprimentos.

Atenciosamente,

Paula Moura


2. Resposta do nosso editor, com data de 8 de agosto passado:

Paula:

Obrigado pelo seu contacto. Temos muito gosto em poder ajudá.la. Reencaminho o seu pedido para  um ou mais dos nossos colaboradores para eventual pesquisa no Arquivo Histórico-Militar, já que não dispomos, aqui, na base de dados do  blogue, de informação sobre forças militares estacionadas na ilha da Boavista, em 1968, ao tempo da guerra colonial. Pode ser também que alguns dos nossos leitores nos ajude.

No entanto, a informação de que dispõe a Paula também é escassa. Vamos para já tentar apurar que subunidade militar é que terá estado na ilha da Boavista em 1968, durante a guerra colonial: o nº 1118 ou 1119 é uma pista, mas tanto tratar-se de um pelotão de infantaria (por exemplo, um pelotão de morteiros) como de um pelotao de reconhecimento de cavalaria. (Panhard, Daimler, Fox)....

Vamos manter-nos em contacto. Presumimos que a Paula esteja a viver em Cabo Verde, não ? E já agora, dado o seu apelido, Spencer, diga-nos se tem algum parentesco com o nosso infortunado camarada Virgolino Ribeiro Spencer, furrriel miliicano, da Companhia de Caçadores 18 [, CCAÇ 18], morto "por acidente", em Aldeia Formosa / Quebo, no sul da Guiné, em 15/1/1972.

As nossas melhores saudações, Luís Graça

3. Resposta da Paula Spencer, em 10 de setembro último:

Bom dia,

Peço desculpa pelo meu silêncio mas estive a indagar com os meus familiares se tinham conhecimento do infortunado “Virgolino Spencer” mas ninguém tem conhecimento.

Nasci em Cabo Verde mas vivo em Portugal há 48 anos.

Muito obrigada pela atenção dispensada.

Atenciosamente,

Paula Moura

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Nota do editor:

Último poste da série > 14 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19785: Em busca de... (297): 46 anos depois, o reencontro de Alberto D'Aparecida Couto com o amigo José Augusto da Silva Dias que o salvou de morrer afogado, no dia 30 de Abril de 1973, no rio Geba, em Bambadinca (Sousa de Castro)

segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Guiné 61/74 – P20192: Agenda cultural (703): Livro do nosso camarada ranger António Chaínho "A escrava Domingas". (José Saúde)

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem. 

Livro do nosso camarada ranger António Chaínho 

"A escrava Domingas"
Escravos africanos


Escravos! Parafraseando o autor, António Chaínho, um camarada ranger do meu curso, 1º de 1973 em Penude, Lamego, e antigo combatente em Angola, proponho uma leitura da sua última obra intitulada: A escrava Domingas.

Escravos é, somente, a palavra inicial de um livro que trata de um assunto real onde se escondem histórias, algumas mórbidas, sendo o patrão da “matéria comprada” uma das figuras proeminentes que geriam a força humana a seu belo prazer.

A escravatura foi, sem dúvida, uma realidade social que transvazou a dignidade de homens e mulheres, trazidos em lotes, para serem vendidos a patrões que procuravam naqueles seres uma exequível razão para um trabalho onde a força física se sobrepunha aos valores morais.

O livro espelha os custos de cada lote de escravos, sendo o preço das mulheres superiores aos dos homens. É fácil entender que a mulher era, além de serviçal, utilizada para os senhorios satisfazerem-se sexualmente. Logo, o procriar era entendido como uma mais valia para o comprador. Um negro nascido era, naturalmente, um novo escravo. 

A escrava Domingas, foi uma negra oriunda de uma sanzala situada na foz do Zaire, Angola, e vendida, entre outros nove escravos, para o morgado de S. Mamede, em Vale do Sado.


Domingas, propriedade de Diogo Menezes de Athayde Lencastre, 3º Morgado de São Mamede, travou uma batalha de resistência ao longo de uma vida marcada pela escravatura e onde se sujeitou a torturas e humilhações. Porém, a sua dignidade humana foi portadora de inconfessáveis segredos que foram hermeticamente guardados no seu coração.

A história, inteligentemente trabalhada pelo autor, onde o leitor se prende com o desenrolar da narrativa, pois cada página traz-nos uma nova mensagem sobre a evolução das personagens envolvidas, remete-nos para uma crueldade racista mas que se associa, em simultâneo, com sentimentos de paixão.

Diogo Lencastre, proprietário de uma herdade muito extensa, incentivado por amigos próximos, resolveu comprar um lote de escravos a qual incorporava a escrava Domingas.

Domingas era uma jovem airosa o que desde logo provocou ao 3º Morgado de São Mamede uma enorme apetência sexual, situação esta considerada então normal nesses idos tempos, século XVIII.

Desse romance amoroso, praticado no segredo dos deuses e longe do pensamento de D. Diana, a esposa do morgado, foi gerada um criança de nome Maria Rosa. Batizada só com o nome da mãe, filha de pai incógnito, a criança cresceu e quando começou a olhar para a sombra apaixonou-se pelo filho do patrão Diogo.

Henrique, irmão de Mafalda, e por ora os únicos herdeiros do morgadio, retribuía esses ensejos e, às escondidas, lá travavam olhares para um romance amoroso futuro mas que após a morte dos pais a verdade seria literalmente desvendada.

Ou seja, após Henrique ter acesso ao testamento deixado pelo seu pai, Diogo Menezes de Athayde Lencastre, este deixou escrito que Maria Rosa era na verdade sua irmã. O clã passou a contar com o triunvirato – Henrique, Mafalda e Maria Rosa -.

No testamento deixou explícito a questão das partilhas, entre os três, e não esqueceu uma pequena dádiva para a escrava Domingas.

Proponho, de novo, a compra da obra A escrava Domingos, de António Chaínho, um camarada que vive em Grândola. 

Abraços, camaradas
José Saúde

Nota: os interessados na compra podem, caso assim o desejem, contactar o telemóvel número 961 482 269 (Zé Saúde). 



Um abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.: 

Vd. último poste desta série em:

20 DE SETEMBRO DE 2019 > Guiné 61/74 - P20162: Agenda cultural (702): Festival TODOS 2019: "A rapariga mandjako": hoje às 21h00, amanhã às 20h00, na Escola Básica de Santa Clara, Campo de Santa Clara, 200, São Vicente, Lisboa

Guiné 61/74 - P20191: (De) Caras (136): O aerograma de 1 de dezembro de 1969: "Meu amor, se calhar esta noite vou ter de pôr um lençol na cama, não vou transpirar a dormir, e… talvez tenha um sonho manga di bom"... (Fernando Calado, ex-alf mil trms, CCS/ BCAÇ 2852, Bambadinca, 1968/70)



Lisboa > Casa do Alentejo > 26 de Maio de 2007 > Encontro do pessoal de Bambadinca 1968/71 > A organização coube ao Fernando Calado (na foto, à esquerda), coadjuvado pelo Ismael Augusto, ambos da CCS/BCAÇ 2852 (1968/71).

O grupo (mais de 60 convivas) teve na dra. Rosa Calado (na foto, ao centro), elemento da direcção da Casa do Alentrejo, uma simpatiquíssima anfitriã. O editor do blogue e fotógrafo, à direita, chegou tarde, mas ainda a tempo de constatar que a organização esteve impecável e o que o sítio não podia  er melhor, em pleno coração de Lisboa. O fotógrafo de circunstância foi o Ismael. 
  

Lisboa > Casa do Alentejo > 26 de outubro de 2013 > Sessão de lançamento do livro do José Saúde, "Guiné-Bissau, as minhas memórias de Gabu, 1973/74" (Beja: CCA - Cooperativa Editorial Alentejana, 170 pp. + c. 50 fotos) > Dois alentejanos e camaradas do nosso blogue, o Fernando Calado (de camisola vermelha) e o Ismael Augusto.(Ambos foram alf mil da CCS/BCAÇ 2852, Bambadinca, 1968/70). E ambos partilharam o mesmo quarto...Um terceiro elemento era o João Rocha.


Foto (e legendas): © Luís Graça (2019). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]-


1. O Fernando Calado, natural de Ferreira do Alentejo, vive em Lisboa há muito; é casado com a dra. Rosa Calado,  uma das "almas alenetinas " que animam há muito a Casa do Alentejo, em Lisboa (, tem integrado sucessivas direções,  exercendo o pelouro da cultura); foi alf mil trms, CCS/BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70); trabalhou na GALP e na RTP; foi docente universitário; tem página no Facebook. tem cerca de dezena e meia de referências no nosso blogue. 

Mandou-nos, no passado dia 26, a seguinte mensagem: "Conforme combinado, junto um exemplar do modelo do aerograma e um texto do conteúdo de um dos muitos que enviei.  Um grande abraço. Fernando Calado"...

             

AEROGRAMA

por Fernando Calado


A guerra colonial configura um acontecimento trágico que envolveu toda uma geração a que pertenço.

Estão feitas algumas análises políticas e sociais, mas, como é sabido, muito pouco é conhecido acerca do que pensavam e sobretudo do que sentiam no dia a dia, os militares enquadrados em unidades operacionais de intervenção.

As razões deste silêncio contido são, do meu ponto de vista, as seguintes:

- condenação política generalizada, após 25 de Abril, dos militares que  participaram, obrigados pelo regime, na guerra colonial, em contraponto com os elogios aos “heróis revolucionários” que conseguiram escapar para Paris ou outras paragens conhecidas;

- insensibilidade quase total a esta questão, por parte  das elites sociais dos últimos 44 anos;

- vergonha de comportamentos desumanos praticados ou observados sem contestação e que sempre se registam em situações-limite como é o caso da guerra;

- participação em situações de extrema violência das quais resultaram, em muitos casos, a morte daqueles que já eram nossos amigos para sempre.


Como a maioria de vós sabe, o pensamento e o sentimento que faziam parte do quotidiano era, na maior parte dos casos, transmitido aos pais, à madrinha de guerra ou à namorada através do celebérrimo aerograma.

Como também sabem, o aerograma era distribuído no embarque pelo Movimento Nacional Feminino, estrutura do regime que tinha por missão dar apoio moral aos militares nas três frentes de guerra (Angola, Moçambique e Guiné)

Estive na Guiné de Julho de 1968 a Julho de 1970 num local designado por Bambadinca,  a cerca de 30 km de Bafatá,  onde, quase diariamente, ao princípio da noite, escrevia o aerograma à minha namorada.

Gostava de partilhar com os leitores do blogue o conteúdo de um desses aerogramas com as óbvias pequenas adaptações.


Bambadinca, 1 de Dezembro de 1969

Meu amor:

Esta manhã, acordei sobressaltado, e reparei que estavam no quarto 2 bajudas (mulheres jovens da Guiné) que nos traziam a roupa lavada e que riam à gargalhada.

Estava nu, de barriga e outras coisas para cima e transpirado como sempre.

Olhei para o camarada do lado que estava tão aflito como eu, e, à boa maneira europeia, tentei cobrir-me com um lençol que não tinha.

Perguntei então às bajudas porque se riam, tendo elas respondido o seguinte: alfero, sonho manga di bom hoje mesmo.

Para além do embaraço, pensei depois que afinal eu, um homem dito civilizado, tive uma postura naturalmente preconceituosa enquanto que elas, mulheres ditas primárias, tiveram uma postura naturalmente genuína, tendo expressado com rigor o que se tinha passado e rido com gosto a propósito de uma situação bastante caricata.

Passei a manhã a tratar da organização das transmissões de vários grupos operacionais escalados para operações e mais uma vez os comandantes de pelotão disseram-me que os rádios são uma merda e que, por vezes, não funcionam em situações de emergência.

Eu bem sei que me disseram sempre que os rádios são os mesmos da 2ª. guerra mundial mas, mesmo assim, custa-me anos de vida quando não se consegue fazer o contacto para evacuação de feridos.

Sinto assim, apesar dos meus 24 anos, que tenho uma responsabilidade excessiva e não me resta outra alternativa senão tentar ser o mais eficiente possível.

Antes do almoço, depois do 2º. banho do dia, dirigi-me ao bar onde saboreei descontraidamente o meu whisky com água Perrier.

Gosto particularmente deste momento do dia.

Diz-se aqui, que na Guiné existem apenas 2 coisas boas: o whisky com água Perrier e o avião para a Metrópole.

Chegou depois o meu colega de quarto e a propósito de qualquer coisa que já não me recordo, ocorreu uma discussão de tal ordem que quase andámos ao murro.

Foi uma vergonha e fomos até ameaçados de ser castigados. São horas, dias, semanas, meses, anos a aturar-nos, sempre em tensão e dentro deste espaço ladeado por arame farpado.

Na verdade, penso que as discussões, a batota, os copos, o calor, os ataques, as emboscadas, etc. criaram uma cumplicidade tal, que tudo indica que seremos amigos do peito para toda a vida

Como se isso não bastasse durante o almoço o médico veio comunicar-me que mais de metade dos soldados da companhia estavam infectados com blenorragia (designação apropriada do termo de calão muito conhecido que dá pelo nome de esquentamento e que se reporta a uma infecção nos órgãos genitais).

Segundo ele, a penicilina não está a actuar em virtude do calor excessivo e da elevada taxa de humidade e, portanto, é necessário organizar uma reunião de esclarecimento com todos os soldados disponíveis.

Soube depois que o pedido a mim dirigido, resultava afinal, do facto do meu pelotão ter a maior taxa de elementos infectados.

Durante a tarde algumas pessoas conseguem dormir a folga, coisa que nunca consegui e ainda menos com este calor e esta humidade.

Eu, como todos os dias que não saio do aquartelamento, cumpri algumas tarefas burocráticas que a tropa, mesmo em guerra, não dispensa.

Mais tarde vagueei, uma vez mais, dum lado para o outro sempre com a sensação de estar encurralado, na ânsia de conseguir gastar o tempo que me falta para me livrar disto.

Por vezes ocorrem, no final do dia, momentos de alguma descontracção. Conversamos sobre a nossa vida na Metrópole e damos umas voltinhas de jeep.

Não tenho carta de condução, mas conduzo. Recebi umas lições do meu colega de quarto e desenrasco-me. De qualquer modo ninguém, nesta situação, está interessado em saber se tenho ou não carta de condução.

Já anoiteceu e partir de agora e até pegar no sono, o que acontecerá lá para as tantas da manhã, instala-se o medo e a saudade.

Eu, que sempre gostei da noite, juro-te que aqui odeio a noite. Estamos todos fartos de fumar, de beber e de jogar, mas a verdade é que estas actividades aliviam, de facto, o medo e a saudade.

Hoje é feriado [, 1º de Dezembro, dia da Restauração da Independência de Portugal, ] e a probabilidade de haver problemas aumenta. A malta está mais concentrada, fala mais baixinho. [No dia 28 de Maio de 1969, Bambadinca tinha sido atacada em força.]

A questão do medo é surpreendente. Há camaradas que parecem não ter medo nenhum. É como se estivessem em casa ou numa esplanada e, mesmo debaixo de fogo, funcionam normalmente.

Depois, talvez a maioria, tem imenso medo, mas mercê de um enorme esforço consegue controlar a situação (julgo que me enquadro neste grupo).

Finalmente há camaradas, alguns deles aparentemente corajosos, que em quase todas as situações, entram em pânico total e que precisam sempre de ajuda. São obviamente os que sofrem mais, quer durante a situação, quer sobretudo pela vergonha que sentem depois.

Tenho saudades de tudo na metrópole: das pessoas, das ruas, dos jornais, da rádio, dos carros e até dos comboios que aqui não existem.

Quanto a ti, meu amor…

Acredita, nunca imaginei que a saudade que sinto de ti me provocasse tamanha dor física. Dói-me a cabeça, dói-me as pernas, dói-me o peito… enfim dói-me tudo.

Sei que estou desesperado, mas não resisto a dizer-te que dava anos da minha vida, se é que os vou ter, para estar neste momento contigo.

São 8 horas da noite e a temperatura nesta altura é um pouco mais amena.
Se calhar esta noite vou ter de pôr um lençol na cama, não vou transpirar a dormir, e… talvez tenha um sonho manga di bom.

Do teu para sempre

Fernando

[Revisão / fixação de texto para efeitos de edição no blogue: LG; negritos e realce a amarelo, da responsabilidade do autor]

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Nota do editor:

Último poste da série > 4 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20122: (De)Caras (111): Carlos Marques de Oliveira, membro da Magnífica Tabanca da Linha, ex-fur mil, Pel Mort 2115, 5º Pel Art e 7º Pel Art (Catió e Cabedu, 1969/71): tive o privilégio de comandar valentes artilheiros

Guiné 61/74 - P20190: Notas de leitura (1222): História das Tropas Pára-Quedistas Volume IV, é dedicado à Guiné e tem como título História do Batalhão de Caçadores Paraquedistas n.º 12; responsável pela redação e pesquisa Tenente-Coronel Luís António Martinho Grão; edição do Corpo de Tropas Paraquedistas, 1987 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Janeiro de 2017:

Queridos amigos,
A Biblioteca da Liga dos Combatentes continua a reservar-me surpresas e leituras inesperadas. Tanto quanto me é dado saber, esta obra é a primeira iniciativa de levantamento do que foi a atividade do BCP 12 e seus antecedentes.
Trata-se de uma edição cuidada, relevando as operações em que os paraquedistas capturaram material, guerrilheiros, tiveram combates extremamente sofridos. E também se analisa a lógica seguida durante o governo de Schulz e o que se alterou com Spínola. Fica bem claro, a despeito do esforço mediático que envolveu a governação de Spínola, tropas como as paraquedistas desenvolveram atividades ofensivas de caráter notável ao tempo de Schulz. Mas no seu todo, toda a governação de Schulz continua envolta em bruma, o que é lamentável.

Um abraço do
Mário


História das tropas paraquedistas na Guiné (1)

Beja Santos

“História das Tropas Paraquedistas Portuguesas”, Volume IV, é dedicado à Guiné e tem como título História do Batalhão de Caçadores Paraquedistas n.º 12, é responsável pela redação e pesquisa o Tenente-Coronel Luís António Martinho Grão, edição do Corpo de Tropas Paraquedistas, 1987.

A primeira parte da obra é dedicada à geografia física, notas históricas, a geografia humana, estruturas administrativas, económicas e sociais, dados que o leitor manifestamente conhece, muitas obras aqui versadas abordam à exaustão estes diferentes aspetos. A segunda parte é dedicada à luta armada, começando pela pacificação da ilha de Bissau, as campanhas do Oio, a pacificação das regiões do Cacheu e do Churo, seguindo-se a história dos movimentos políticos emancipalistas, dados igualmente conhecidos pelo leitor do blogue.

Entramos seguidamente na história do Batalhão de Paraquedistas, dá-se relevo à presença de tropas paraquedistas na Guiné em 1959, em 10 de Agosto desse ano um pelotão de paraquedistas foi transportado para Bissau, acabaram por simbolizar uma missão de paz. É com a situação de conflito armado em 1963 que um pelotão de paraquedistas é enviado para a zona aérea de Cabo Verde e Guiné, com a missão fundamental da defesa do AB 2, o Aeródromo Militar de Bissau. Também nesse ano chegou à Guiné um pelotão de paraquedistas que ficou a fazer parte da companhia mista “Páras-Polícia Aérea”. No início de 1964 é enviado para Bissau um segundo pelotão de paraquedistas. O batismo de fogo ocorre em Agosto de 1963, no Sul. Em Fevereiro de 1964, as tropas paraquedistas sofreram o seu primeiro morto em território guineense. Com a intensificação da luta armada, em Fevereiro de 1964, é colocada na Guiné uma companhia de paraquedistas, os pelotões vão chegando ao longo do ano. Cria-se a Esquadra de Defesa Mista, composta pela companhia de paraquedistas, efetivos pertencentes à Polícia Aérea e por um pelotão reforçado de artilharia antiaérea, sob o comando do Capitão Tinoco de Faria. Em 1966, os paraquedistas estão em permanente atividade no corredor de Guileje. É na operação Grifo que é atingido mortalmente Tinoco de Faria.

Em Maio de 1964, Arnaldo Schulz chega à Guiné e solicitará mais tropas, será assim criado o BCP n.º 12. O livro dá conta da atividade operacional que decorreu entre Janeiro de 1967 a Maio de 1968.
Registe-se a observação:  
“As tropas paraquedistas, mercê da sua grande mobilidade e poder ofensivo, foram empenhadas pelo Comando-Chefe em operações e curta duração, onde o poder de fogo e a manobra rápida contavam decisivamente para o êxito nos ataques a bases e concentrações de guerrilheiros. Até meados do ano do 1968, os paraquedistas foram utilizados em ações de helitransporte de assalto, emboscadas e batidas de curta duração. As tropas do BCP 12 atuavam quase sempre em operações independentes sob comando operacional de um oficial superior paraquedista. O seu comandante, Tenente-Coronel Costa Campos, comandou quase todas as operações em que os militares paraquedistas tomaram parte”.
Ao longo do relato faz-se o sumário de operações onde se obtiveram êxitos significativos ou se travaram duros combates: a Operação Trovão, em que o carregamento de material capturado, em vários helicópteros demorou cerca de quatro horas; a Operação Ciclone I, em Caboxanque; Operação Barracuda III, realizada em Maio de 1968, mais uma vez o volume de material capturado foi de tal envergadura que exigiu várias horas para a sua total evacuação. O BCP, em Fevereiro de 1968 recebeu uma companhia de milícias que deu-lhes instrução, foi assim formada a companhia de milícias que operava ao lado dos paraquedistas.

O documento relata igualmente um grave incidente ocorrido com os fuzileiros, formara-se uma associação desportiva denominada ASA, sob o patrocínio dos Comandos da BA 12 e do BCP 12. Houvera até então um excelente clima de amizade entre paraquedistas e fuzileiros. Em 3 de Junho de 1967 paraquedistas e fuzileiros envolveram-se em violenta desordem que custou a vida a dois paraquedistas, os Comandos encerraram a associação desportiva ASA. Faz-se igualmente destaque para a atividade aeroterrestre, a construção de infraestruturas e destaca-se as condecorações recebidas.

Dá-se entretanto a alteração em Maio de 1968 dos comandos superiores, chega Spínola e um novo tenente-coronel para comandar o BCP 12. É instituída uma nova lógica para a atividade dos paraquedistas:  
“O novo Comandante-Chefe iria, de imediato, introduzir alterações de emprego operacional das tropas do BCP 12; às missões de combate helitransportadas, de curta duração e sob comando direto do seu comandante, irão suceder-se as operações em que os militares paraquedistas se vão manter durante períodos muito dilatados em áreas distintas do seu aquartelamento em Bissau, muitas vezes sob comandos estranhos ao BCP 12, em missões de reforço de tropas de quadrícula”.
Neste novo contexto, a atividade operacional dos novos efetivos do BCP 12 desenrola-se no itinerário Bula-Có, tratava-se de proporcionar aos novos elementos do Batalhão um primeiro contacto com o terreno da Guiné. Em Agosto desse ano, Spínola criou os Comandos Operacionais nas áreas mais críticas e/ou vulneráveis à ação do inimigo. As tropas paraquedistas, tal como outras forças de intervenção do Comando-Chefe, passaram então a ser empenhadas, durante largos períodos, conjuntamente com unidades de quadrícula do exército. Os Comandos Operacionais integravam, normalmente uma ou mais companhias do BCP 12, sendo o seu comando atribuído, com frequência, a oficiais superiores paraquedistas. Neste novo ambiente, as tropas do BCP 12 são usadas em operações de grande risco nomeadamente no Sul. Por esse tempo, o PAIGC passou a concentrar o seu esforço ofensivo sobre Gandembel, para contrariar a atividade guerrilha do PAIGC as nossas tropas iam lançando ações diárias de patrulhamento nas imediações dos aquartelamentos de Gandembel, Porto Balana, Guileje e Mejo. O PAIGC reage, é um período de inferno sobre Gandembel.

(Continua)


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Nota do editor

Último poste da série 27 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20183: Notas de leitura (1221): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (25) (Mário Beja Santos)