quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Guiné 63/74 - P5294: Blogoterapia (129): A guerra que Portugal não ganhou (José Teixeira)

1. Mensagem de José Teixeira*, ex-1.º Cabo Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada , 1968/70, com data de 18 de Novembro de 2009:

Caros Editores
Saúde e bem estar.

Há tempos enviei um artigo em resposta ao José Belo sobre os Ui! ui! de Mampatá, a solicitação do Luís, que não vi publicado. Agora já perdeu a oportunidade, pelo que não agradeço não o publiquem.

Há dias, enviei um trabalho sobre a Tabanca de Matosinhos que também não veio a lume.
Suponho que é uma questão de falta de tempo que compreendo. Se for por outra razão por favor avisem-me**.

Abusando um pouco, junto um novo artigo sobre um assunto velho, que a meu ver nunca será esgotado. Se entenderem que não é oportuno a sua publicação, por favor avisem-me.

Abraço fraterno
José Teixeira


2. Blogoterapia > A guerra que Portugal não ganhou
por Zé Teixeira

Guerra que não for inclinação natural ou expressão de um desejo, torna-se difícil. (Li esta frase no “Cidadela”, do Saint-Exupéry, piloto francês desaparecido num raide aéreo durante a segunda guerra Mundial. Muito conhecido pelo seu livro “ O Principezinho”)

Deixei-me transportar para a guerra que fui forçado a fazer na Guiné. Guerra, que uns teimam a afirmar que estava perdida, outros, atiram-se para o chão a afirmar que não estava perdida, mas também não estava ganha nem a ganharíamos, penso eu.

Tenho lido no nosso blogue, muita coisa sobre este tema. Tenho reflectido nele, mas não tenho comentado. Esperei que as águas acalmassem um pouco. Agora ponho em comum o resultado da minha reflexão, respeitando todas as opiniões.

O povo a que pertenço, o de brandos costumes, como se orgulha que seja classificado, não tinha de facto nenhuma inclinação para a guerra que estava a fazer. Por mais apelos que se fizessem ao meu patriotismo, a Guiné, não me dizia nada, como parte de Portugal. Talvez me sentisse um pouco orgulhoso por pertencer a um país tão grande. Na verdade tinha aprendido desde os bancos da escola que Portugal ia do Minho a Timor, mas nada me ligava a África, como me ligava o meu Porto, Trás-os-Montes ou o Algarve.

Guerra que não era a expressão de um desejo de um povo, o nosso povo português, como seria por exemplo se fôssemos invadidos pelos espanhóis. A demonstrá-lo basta pensar na forma como o povo português aderiu ao 25 de Abril.

Era, sim, a expressão do desejo de um sistema político, que como a história já provou, estava a fazer, teimosamente, uma leitura errada, não sei se propositadamente, dos ventos da história contemporânea que, na sequência da Primeira Guerra Mundial e sobretudo depois da Segunda, gerou uma dinâmica de liberdade nos povos autóctones controlados pelos europeus.

Efectivamente, a sua participação directa ou indirecta nos conflitos mundiais, através dos países que os tutelavam política e economicamente, permitiu aos povos dominados, uma leitura de que seriam capazes de assumir e gerir o seu próprio destino. Para o bem e, ou para o mal.

Esses ventos de mudança, chegaram, naturalmente, às colónias portuguesas. Foi só dar gás à sua inclinação natural para a liberdade sonhada. Alimentada por interesses de terceiros e combatida ferozmente pelo sistema político português, gerou uma guerra na qual me envolveram. Era realmente a expressão de um desejo, mas de um povo, não o português, mas o guineense.

Voltando a Saint Exupéry, ele afirma:
- Então o vosso exército será semelhante a um mar que não exerce pressão sobre um dique. Sois uma massa sem fermento. Uma terra sem semente. Uma multidão sem desejos…

Somos, todos, testemunhas do desejo forte que nos alimentava o espírito. Apenas e só, o desejo de voltar, são e salvo. Poucos de nós, creio que mesmo muito poucos, tinham assumido conscientemente o desejo de lutar pela Guiné de Portugal. E, aos que tal acontecia, rapidamente mudavam de opinião face à realidade vivida.

Para os comandantes, desde os furriéis milicianos ao capitão, tenho orgulho em afirmá-lo, era seu grande e fundamental desejo, regressar com todos os seus homens.

Numa situação destas em que não havia alma no projecto de guerra, para o qual fomos atirados, os generais limitavam-se a administrar a guerra em lugar de a conduzir. Quem diz, os generais, diz os oficiais do Q.P. que se refugiavam nos gabinetes do ar condicionado, salvo honrosas e valorosas excepções, a quem presto a minha homenagem. Deixem-me, em abono da verdade, afirmar que poucos oficiais do Q.P. conheci no interior da Guiné, mas esses poucos eram pessoas com grandes qualidades humanas e excelentes condutores de homens.

É um facto histórico que, logo no início da guerra, as Forças Armadas disseram ao poder instituido, pela voz dos seus mais altos dignitários, que a solução era de cariz político. Era aos políticos que cabia a responsabilidade de acabar com uma guerra para a qual o povo português não tinha inclinação natural, nem era para si a expressão de um desejo.

Aos militares cabia-lhes aguentar a situação.

De nada vale, agora ou num futuro próximo, os historiadores tentarem explicar as causas do desastre. Sim, um desastre para nós, que saímos sem glória de uma terra, regada com o sangue de tantos compatriotas, deixando os povos entregues a si mesmos, sem a preparação adequada para gerirem a liberdade conquistada. Um desastre para os povos que, para conseguirem a sua independência, tiveram de derramar o sangue dos seus melhores filhos e, porque não estavam preparados para a liberdade que sonhavam, a têm esbanjado. Receberam-na de bandeja, sem contar, quando o poder político de Lisboa caiu.

Dirão os historiadores, para nos justificar, que o inimigo se serviu de técnicas de guerrilha, para as quais não estávamos preparados, tinha melhor equipamento, conhecia melhor o terreno, possuía elementos infiltrados nos nossos espaços de actuação, etc, etc, etc.

Penso que o inimigo, mais que tudo isso, que em parte é pura verdade, tinha, sim, uma forte vontade de ganhar a liberdade sonhada. Tinha a alma que nos faltava.

Nós, portugueses, fomos fazer a guerra com objectivo político de fazer a paz. O que eu senti é que por onde passava, alimentava mais a guerra.

A paz não é um estado que se atinge através da guerra. Se acredito na paz conquistada pelas armas e desarmo, corro o risco de morrer, como diz o Saint Exupéry.
Creio que foi isto mesmo o que nos aconteceu na Guiné.

Como não havia a tal inclinação natural, por se tratar, quer queiramos, quer não queiramos, uma terra estranha e inóspita, que pouco ou nada nos dizia afectivamente, não existia em nós o tal forte desejo de vencer, mas sim a vontade de regressar.
Os nossos oficiais de comando directo, na sua grande maioria milicianos, sofriam desta mesma doença. Logo, assumida a queda do poder político que nos forçava a fazer a guerra para tentar conseguir o impossível – a sua paz -, deixaámos cair as armas, de tão cansados que estávamos. Quem os pode censurar?

Não ganhámos nem perdemos a guerra. Saímos da guerra sem glória.

O inimigo, tornado agora amigo, não ganhou a guerra. Recebeu um presente envenenado. Um País com um povo dividido. Um povo profundamente confundido. Parte, que ontem era português e hoje já não o é. Parte, que ontem recebia ordens para combater os Tugas assassinos, que nos negam o direito à independência e à liberdade e hoje recebe ordens para visitá-lo e fazer festa.

Recebe um país sem estruturas, (estavam na mão dos dominadores que se foram embora). Sem pessoas com capacidade técnica e política para gerir o País, pois até então tinha apostado na formação de guerrilheiros combatentes. Sem trabalhadores. A força braçal estava quase toda empenhada na guerra, que acabou. A sua experiência era trabalhar com a G3 ou a Khalash.

Sem técnicos para dinamizar a agricultura, base da riqueza da Guiné, praticamente abandonada, devido ao esforço de guerra, por ambas as partes. Sem técnicos para desenvolver comércio e a parca indústria, áreas fundamentais para o desenvolvimento, que estavam na mão de firmas afectas ao regime colonizador.

Afinal quem ganhou a guerra?

Não foi o povo português, mas também não foi o povo guineense.

Foram algumas patentes douradas que a alimentaram, dentro gabinetes, quando integrados dentro do sistema político português, ganhando chorudo pré. Escamoteando ou escondendo a verdade da guerra, iam-na alimentando, enviando carne para canhão.

Foram os militares oportunistas do PAIGC, transformados em políticos de aviário, que acorreram a Bissau e agarraram os poleiros.

Os povos, esses, que tanto lutaram e sofreram, perderam. E continuam a perder. Queixámo-nos, nós os ex-combatentes, por nos sentirmos desprezados, abandonados e espezinhados pelos novos senhores do poder político. O povo da Guiné, continua na miséria. Sem esperança a curto, médio, longo prazo de conseguir libertar-se do fantasma da fome.

Dizia-me em 2008 um conceituado chefe guerrilheiro, que se retirou para a sua tabanca de origem quando acabou a guerra e se dedicou à agricultura:
- A paz e o bem-estar só se vai conseguir, quando os meus camaradas da guerrilha, os generais morrerem e cederem o lugar a pessoas competentes.

Alegra-me no entanto encontrar um povo que continua a acreditar que é possível a mudança. Alegra-me muito a forma como me recebe. Como me pede para voltar. Não escondo que chorei de emoção quando a velhinha Fatma, (tem agora 96 anos,) mulher do Régulo Chambel de Contabane, me abraçou em 2005 dizendo:
- Branco volta ! Branco volta !.

Sinais de uns tempos que vivemos em conjunto para uns e em confronto mortal para outros, os quais poderiam estar marcados pelo ódio, mas bem pelo contrário reflectem uma relação de afecto e carinho.

É essa relação de bem-estar que nos faz correr para lá, em visita aos lugares por onde passamos e às pessoas com quem convivemos. É essa relação que nos faz pensar em formas de colaboração e ajuda, de modo a tentar que aquele martirizado povo saia do burako.

Talvez, até num estado de guerra, conseguimos ser um povo de brandos costumes. Quem sabe!


A Fatma Chambel

O João Rocha e a sua lavandera
Em Mampatá com a Ádama e com a Djuba e Zé Teixeira
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 24 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 – P5001: Ser solidário (38): O Zé tem 840 € para comprar sementes (José Teixeira)

(**) Foi enviada mensagem ao Zé Teixeira a propósito deste assunto.

Vd. último poste da série de 16 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5281: Blogoterapia (128): (Im)possível regress(ã)o (Torcato Mendonça, CART 2339, Mansambo, 1968/69)

5 comentários:

Anónimo disse...

Zé Teixeira.....AQUELE ABRACO! Mais nao é preciso dizer por parte de um camarada de pelotao.José Belo

Anónimo disse...

"Quem diz, os generais, diz os oficiais do Q.P. que se refugiavam nos gabinetes do ar condicionado, salvo honrosas e valorosas excepções, a quem presto a minha homenagem. Deixem-me em abono da verdade, afirmar que poucos oficiais do Q.P. conheci no interior da Guiné, mas esses poucos eram pessoas com grandes qualidades humanas e excelentes condutores de homens."

Comentário breve:
Nos 36 meses dos anos de 68,69 e 70 (anos referidos como tendo estado na Guiné) do total de comandantes de companhias de combate:
61.33% foram capitães QP
38.18% foram capitães Milicianos
0.50% foram capitães QEO
5.90% foram alferes Milicianos

A mim coube-me o comando de Gadamael (Jan71) para substituir um camarada de curso que sucumbiu ao "ar condicionado" da zona o que é razão bastante para estar farto de ser objecto de "palpites".

Se pretender quadro descriminativo com a estatística disponível envie-me o seu e-mail para antoniocmsilva@netcabo.pt
Cumprimentos
Morais da Silva

Luís Graça disse...

Parafraseando o Manuel Rebocho, que ontem apresentou na ADFA, o seu livro, agora já não são só os sargentos a "fazer doutrina" sobre a estratégia (etimologicamente falando: do latim 'strategĭa' que vem do grego antigo στρατηγία ,strategía, e que é a arte do general), agora também temos os "Esquilos Sorridentes" (os cabos, e ainda por cima, os pastilhas, os seringas!), a mandar bitaites sobre as grandes metafísicas da paz e da guerra...

Humor à parte, tu, como homem grande da Tabanca, senador do blogue, já tens aquele estatuto que te permite pairar sobre as cabeças da arraia miúda, de fazer o teu discurso do homem sábio, experiente, avisado e, todavia, sempre de coração aberto e generoso, capaz de fazer pontes com os nossos amigos e irmãos da Guiné-Bissau...

Zé: vou-te nomear Embaixador da Boa Vontade da Tabanca Grande... E, já agora que a selecção de todos nós carimbou, mais uma vez com sangue, suor e lágrimas, o seu passaporte para a África do Sul, para o próximo Campeonato Mundial de Futebol, deixa-me dizer-te quanto isso me alegra, e nos deve alegrar a todos...

Não sou homem dos futebóis, de "ir à bola" como quem vai à igreja, não vejo um desafio na TV, mas fico feliz pela nossa selecção ir a África!!!

Não imaginas os tremenos prejuízos que isso teria para a nossa imagem, para a lusofonia, e até mesmo para a nossa economia e diplomacia, se Portugal claudicasse nesta fase do chamado 'play off'...

Penso na felicidade (mesmo ocasional, precária...) que o futebol pode trazer aos nossos compatriotas da diáspora e aos nossos irmãos lusófonos de África... Só por isso vale(u) a pena...

Espero que Portugal, pequeno mas velho e nobre país, ganhe agora noutros 'tabuleiros', a começar pela consolidação da CPLP, da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa... Olhemos para o passado, não para nos autoflagelarmos, mas para (re)desenharmos o futuro...

Um Alfa Bravo. Luís

Anónimo disse...

Grande "Tiseira" (não sei se seria assim que te tratavam naquele crioulo de Mampatá).
Acabei agora de ler a tua análise ao que se passou na Guiné.
Dou-te os meus parabéns pela forma racional do teu ponto de vista sobre assunto que tanta controvérsia tem lançado por quem, se limita a interpretar os factos apenas com o coração e a emoção, esquecendo a racionalidade que deve presidir a estas análises.
Eu, como Cap Mil e pela amostra que julgo já ter dado de nada gostar do "Braço Armado", não embarco na posição simplista de dizer que o pessoal do QP fugiu da guerra e se refugiou no "ar condicionado".
Nunca se pode avaliar "um todo" apenas "por uma parte".
Fugas houve-as dos dois lados (QP e Mil).
E a partir de certa altura, práticamente já só havia o recurso ao Pessoal Mil.
Lembrem-se que até já tinham esgotado a "bolsa de recurso" daqueles como eu, e tinham de enviar os recém formados Asp Mil, promovidos a Alf e logo a seguir como Capitães.
Como é que isso iria acabar?
Já pensaram?
Mais uma vez parabéns, Homem Grande da mini Tabanca de Matosinhos e desta Grande Tabanca.
Um grande Abraço
Jorge Picado

Anónimo disse...

Afinal quem ganhou a guerra?

Não foi o povo português, mas também não foi o povo guineense.

Ha haver um vencedor,teria que ser voce...pelo dedicacao e carinho, que continua a nutrir e a desfrutar das gentes da minha terra. As fotos sao eloquentes !

La isso exortava um ditado criolo..Kossa unde ki kossou ...

Mantenhas
Nelson Herbert
USA