domingo, 2 de maio de 2010

Guiné 63/74 - P6300: Notas de leitura (100): Paraíso Verde - Contos de Francisco Valmoura (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso Camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil At Inf, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Abril de 2010:

Queridos amigos,
O Francisco Valoura terá sido porventura um funcionário colonial que amou Bolama, as suas gentes, viu chegar a guerra que lhe levou um filho. Diria que estas histórias são sinceras no cultivo do respeito pela cultura do Outro, na sua noção de transcendente e na vontade do contador mostrar as profundas riquezas das chamadas culturas nativas. Valoura não foi o único neste afã de descer à floresta e ao mundo das tabancas, escalpelizando o exótico e o incompreensível ao nosso olhar ocidental.

Terá sido o último, pelo menos fará parte dos derradeiros testemunhos coloniais que nos quiseram transmitir compreensão por estes fascínios verdes.

Um abraço do
Mário


Francisco Valoura e as suas estórias etnológicas e etnográficas

Beja Santos

Terá sido funcionário da administração colonial, publicou os seus trabalhos no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, são verdadeiros documentos etnológicos e etnográficos de quem soube captar, com profundo afecto e com olhos de “civilizado”, importantes aspectos sentimentais, religiosos e étnicos da Guiné, do lado “indígena”. “Paraíso Verde” (Editora Pax, Braga, 1973) é uma recolha de histórias que envolvem a crença nos feiticeiros, a justiça nativa, os sentimentos de hospitalidade, a natureza esplendorosa dos trópicos. Quem escreve é um branco de cultura ocidental que se mostra desvanecido com esses usos e costumes, que se terão recolhido em múltiplos pontos da então província da Guiné: velhos poderosos que querem comprar lindas bajudas; chás miraculosos que salvam brancos, a padecer da biliosa; funcionários coloniais que perseguem criminosos; o temor dos irãs, deuses tumultuosos que invadem até o coração dos muçulmanos... Francisco Valoura tudo regista com disciplina e método e com grande sentido de divulgação. Basta ver o que ele escreve no conto “O Balanta e a Bolanha”:

“O balanta é trabalhador, audaz e inteligente. É ainda muito alegre e talvez o maior bebedor de aguardente de cana. É, no entanto, de uma ingenuidade infantil. É uma das raças que nos últimos tempos tem evoluído de forma considerável, por forma da grande rede de escolas e de postos de ensino dispersos pelo interior da província. Levando em conta o facto de jovens balantas que tenham concluído a instrução primária jamais poderem pegar num arado ou numa enxada (o que na realidade seria ofensa grave para a família) o certo é que a tribo balanta é mais devotada à causa da agricultura, em especial no que diz respeito à formação de bolanhas e cultura de arroz, sem dúvida uma das maiores riquezas da terra.

Vamos dar uma ideia muito aproximada como o balanta do Sul amanha a bolanhas e cultiva o arroz.

Bolanhas são terrenos de uberdade incalculável, que, nos vários sectores do território, têm sido a fonte de riquíssimos celeiros das gentes da Guiné. Os terrenos para a cultura do precioso cereal são trabalhados de duas maneiras distintas, até porque a bolanha de lala difere da bolanha de tarrafe ou profunda.
Para a cultura da bolanha de lala, o agricultor balanta prepara planícies de maior ou menor extensão, por vezes cobertas de capim exuberante, começando por queimar essa vegetação na área que pretende cultivar. Finda esta primeira fase de trabalho, ergue em volta do terreno uma barreira, construída de paus, tarrafe, lama e torrões, a que se dá o nome de ouriques, os quais permitem regula a entrada e a saída das águas.

Se o terreno escolhido for húmido, procedem à lavoura com arados primitivos, em jeito de remos de embarcações, com uma ferragem ponteira em forma de ferradura. Essa operação é feita para que os raios solares que incidam sobre a terra lavrada não só acabem de inutilizar as ervas daninhas mas também beneficiem a terra”. E ficamos por aqui, porque o que importa ilustrar é a ânsia de informar o que se passa na Guiné e nas suas gentes: o que são belufos, guardas de corpo, paus de purgueira, as diferentes danças, como vivem as tribos da Guiné, coisas da fauna e da flora, os cerimoniais do casamento, os enterros dos poderosos e os respectivos soros, os modos alimentares, os tipos de embarcação, as lutas inter-étnicas que precederam a pacificação, a natureza dos vestuário. Só no final das suas histórias é que Francisco Valoura poisa na guerra de libertação graças ao conto “Um Balanta nos Comandos”, Joaquim dos Santos Balanta, soldado n.º 1847/64, dos Comandos.

Com imensa ternura e dor contida, estes contos de “Paraíso Verde” são dedicados ao filho José Luís Valoura, nascido em Bolama a 20 de Janeiro de 1949 e morto ao serviço da Pátria em Pirada a 11 de Maio de 1972. Foi graças ao Armor Pires Mota que pude ler estas histórias que me falaram ao coração, houve momentos em que calcorreei aquelas terras rodeado das minhas gentes e exactamente no meu paraíso verde.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 29 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6272: Notas de leitura (99): Spínola, a biografia de Luís Nuno Rodrigues (1) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Manuel Amante da Rosa disse...

O Sr. Francisco Valoura que ainda conheci era um graduado da Polícia e muito conhecido pela Guiné.
O Zé, meu amigo, era Cabo Especialista da Força Aérea quando faleceu numa despropositada manobra que causou a queda da DO em Pirada. O
Chefe Valoura e a família ficaram muito abatidos com a perda deste filho e irmão querido por todos. Manuel Amante