quinta-feira, 29 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6272: Notas de leitura (99): Spínola, a biografia de Luís Nuno Rodrigues (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso Camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil At Inf, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Abril de 2010:

Queridos amigos,
Segue uma primeira súmula sobre a biografia de Spínola, no tocante ao período da Guiné.
Espero concluir na próxima semana.

Um abraço do
Mário



Spínola, a biografia de Luís Nuno Rodrigues (I)
Beja Santos

A lenda de Spínola como grande e carismático militar inicia-se em Abril de 1962, está ele à frente do Batalhão de Cavalaria 345. Os que o recordam desse tempo falam sempre do militar destemido e arrojado. É curioso observar que Spínola sempre se considerou e definhou a si próprio como um militar. É escusado dizer que o seu pensamento e acção dividem claramente em opinião pública, da guerra colonial até hoje, não há (nem se prevê tão cedo) consenso possível acerca de Spínola. E as controvérsias que irão estalar à volta do seu nome não têm principalmente a ver com a sua actuação em Angola (para onde partiu como voluntário no início da guerra colonial), mas na Guiné e mais tarde, em 1974, como Presidente da República, e depois no exílio, como dirigente máximo do MDLP.

Compreende-se como Spínola fascine os historiadores, tal é a sua capacidade de dividir, de forma tão cortante, opiniões: a lenda, o mito, permanecem na opinião pública como conceitos altamente discutíveis; se há quem lhe confira a dignidade de um guerreiro sem sombra de medo, muito humano e compreensivo com os seus soldados, intolerante com as chefias ineptas, há quem minimize a sua estratégia na Guiné, considerando mesmo que ele foi o obreiro da gradual implantação do PAIGC, isto já para não falar das críticas em volta da sua inaptidão para a condução dos negócios políticos no período conturbado que se viveu a seguir ao 25 de Abril de 1974Entende-se, assim, como esta personalidade atraiu o historiador Luís Nuno Rodrigues, que já se distinguira pela sua biografia sobre o Marechal Costa Gomes, publicado em 2008 (Spínola, por Luís Nuno Rodrigues, Esfera dos Livros, 2010).

Como não podia deixar de ser, o Spínola que aqui se irá referir é aquele que foi chamado em Maio de 1968 por Salazar e de quem receberá instruções para partir urgentemente para a Guiné, de onde regressará cerca de cinco anos depois.

O seu nome terá sido sugerido ao ministro do Ultramar, Silva Cunha, por Supico Pinto, figura grada do regime. Spínola tem a aura de grande militar, de oficial enérgico, interessado nos problemas das praças (caso da GNR) e de ser partidário intransigente, indefectível, da defesa do Ultramar. De acordo com as notas pessoais de Spínola, o encontro com o ditador motivou-lhe perplexidade. Spínola terá dito a Salazar que acreditava numa comunidade que ele terá designado por “Nação Pluriestatal” em que cada uma das parcelas aceitaria a unidade da nação portuguesa.

Seguramente que esta doutrina atrapalhada não comoveu Salazar que o foi ouvindo sem fazer quaisquer comentários. Spínola sentia-se muito honrado pelo convite mas advertiu o ditador que o problema militar exigia um novo conceito de desenvolvimento e um impulso socioeconómico para a província da Guiné. E fez exigências: queria ter plena liberdade de escolha da sua equipa militar, melhores remunerações para os combatentes, melhor equipamento e um reequacionamento do conjunto “Guiné/Cabo Verde”, na estratégia portuguesa em África. Ainda de acordo com o documento de Spínola, este dizia dispor de informações de que o PAIGC estaria a negociar com a União Soviética a aquisição de aviões, pelo que requeria material de resposta.
Spínola solicitou ainda “em regime de excepção” autorização para se lhe dirigir directamente sempre que problemas fundamentais não estivessem a ser solucionados com “necessária urgência”. Depois de o ouvir em silêncio, Salazar só lhe disse: “É urgente que embarque para a Guiné”.

Logo numa carta para Salazar, datada de 26 de Junho de 1968, Spínola afirma que “os danos causados [na Guiné] são mais profundos do que supunha e os reflexos locais dos erros acumulados são mais graves do que pensava. A actividade da guerrilha ocupava já metade do território da província as nossas forças estavam muito dispersas, «vivia-se um clima psicológico de frustração». Além disso, impunha-se um grande esforço no desenvolvimento socioeconómico da região. A partir de Outubro, irá corresponder-se directamente com Caetano, falará sempre em situação crítica e de uma forma recorrente refere mesmo a eventualidade de um colapso militar. É inegável que nesta correspondência bem como nas suas aparições no Conselho Superior da Defesa Nacional usa dispersões alarmantes e declina a responsabilidade se não lhe deram os meios que ele considera indispensáveis para estar à altura da missão que lhe confiaram.

Mal chega, começa a reorganização da estrutura do comando, retira autonomia a nível operacional à Armada e à Força Aérea, vai depurando as chefias, escolhe os seus colaboradores mais directos e prepara a alteração do dispositivo das forças militares no terreno, procura a concentração de meios humanos e o abandono de ponto sem interesse militar: Boé, área de Aldeia Formosa, o corredor de Guilege, as áreas de Sangonhá-Cacoca e Cantanhez, a região de Empada e ilha do Como. Começa igualmente por insistir na melhoria do trem dos soldados que chegavam ao território e, paralelamente, procurou desenvolver um centro de treino para os militares envolvidos em operações. A partir de Setembro de 1968, expressa o seu contentamento sobre a conduta operacional das tropas, atribuindo-os a erros de conduta, a um conhecimento deficiente do inimigo e ao desconhecimento da doutrina e técnica de combate das forças do PAIGC. Spínola pretende que se retome a iniciativa militar e que se obrigue o inimigo a recuar. Numa directiva de Junho de 1969 exige que as Forças Armadas desenvolvam cinco tipos de acções: acções dinâmicas de reconhecimento, com vista a detectar trilhos de passagem do inimigo e a reconhecer simultaneamente locais para implantação de emboscadas sobre os mesmos trilhos acções de emboscadas, preferentemente nocturnas, com vista a interceptar o inimigo; implantação de minas e armadilhas nos corredores de passagem do inimigo; acções nocturnas de emboscadas sobre os trilhos que conduzam às prováveis bases de fogos do inimigo; acções de aniquilamento nas áreas de refúgio do inimigo, com destaque para golpes de mão. O historiador refere que Spínola terá dado instruções para reduzir o uso do napalm sobre os elementos da população afecta ao PAIGC. O uso do napalm tinha-se tornado frequente desde 1965 mas em Maio de 1973, as estimativas apontavam para um consumo médio mensal de 42 bombas incendiárias de 300 quilos, 72 de 80 quilos e ainda de 273 granadas incendiárias.

Spínola criou também uma estreita colaboração entre as autoridades militares e a PIDE: é assim que o inspector Fragoso Alas se torna um homem influente na estratégia de Spínola, sendo mesmo autorizado a assistir aos briefings diários do Comando-Chefe. O recrutamento dos africanos para as Forças Armadas da Guiné conheceu novo impulso: começam a ser constituídas companhias de caçadores, de comandos e de fuzileiros. Se o número de militares africanos era, em 1968, de 3280, em 1973 tinha subido para 6425. Este processo de africanização encontrava correspondência no discurso ideológico de Spínola relativamente à participação crescente dos guineenses na construção de uma Guiné melhor.

(Continua)
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 28 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6266: Notícias de Francisco Henriques da Silva, ex-Alf Mil da CCAÇ 2402, que foi Embaixador em Bissau, em chamas, em 1998 (Beja Santos)

Vd. último poste da série de 27 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6259: Notas de leitura (98): Em Chão de Papel na Terra da Guiné, de Amândio César (Beja Santos)

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