segunda-feira, 18 de julho de 2011

Guiné 63/74 - P8566: Blogpoesia (152): Uma parte de nós ficou para sempre lá (Juvenal Amado)

1. Mensagem de Juvenal Amado, ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, (Galomaro, 1971/74), com data de 16 de Julho de 2011:

Caros Luís,Carlos, Magalhães, Briote e restante Tabanca Grande
Uma pequena recordação dos nossos regressos, quando pensávamos que tudo faríamos por esquecer.
O nosso horizonte tinha sido tabelado pela guerra como se fosse um ritual de passagem à idade adulta. Agora regressados rasgaríamos as nossas fronteiras e o Mundo poderia ser nosso.

Bem sabemos que não foi assim para todos.

Hoje a dura realidade é que muitos dos nossos camaradas sofrem de degradante abandono. As famílias sofrem pois por muito tempo não compreenderam o modo errático deles se comportar e sem ajuda, optaram pela a resignação. Hoje é tarde para muitos ou para todos, que no regresso não alcançaram a Paz.

Será que ainda poderemos ajudar alguns?

Um abraço
Juvenal Amado

Terceiro Natal na Guiné


UMA PARTE DE NÓS FICOU PARA SEMPRE LÁ

A luz fere-me os olhos
O mar que me embalou na viagem
Quebrou-se manso na barra
Lá está a ponte no seu vai e vem
Ainda guardo a imagem da partida

Para trás ficaram as águas barrentas
O calor sufocante
O cacimbo
O Céu de chumbo
Os dias e noites de insónia
A insanidade afogada num copo
O rosto, que duvido se terá existido

Tão ansioso da partida
Mal posso esperar pela chegada
O Sol resplandece na manhã fria
A maresia invade-me o peito
Voltam os cheiros adormecidos
No cais a molhe de sorrisos cresce

Lisboa maravilha-me
O ar fresco e límpido
Mal posso esperar pelos braços que me aguardam
Haverá lágrimas, serão de alegria

Deito o cigarro fora
Fico a vê-lo rodopiar até tocar na água
Finalmente caminho no passadiço
Vim para ficar
Pensei que o passado ficara para trás

Como pude ser tão cego
Pensar que esquecia tudo
Que uma parte de mim não ficaria lá para sempre
Na ânsia da partida
Neguei-me a olhar para trás

E agora, que a saudade me corrói
Sei que nunca regressei na totalidade

Galomaro > Abrigo da "Ferrugem"

A caminho do Dulombi
____________

Notas de CV:

(*) Vd. poste 8 de Julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8528: (Ex)citações (142): O espaldar do morteiro 81 de Cancolim estava no meio da parada (Juvenal Amado)

Vd. último poste da série de 20 de Junho de 2011 > Guiné 63/74 - P8451: Blogpoesia (151): De manhã, sentindo o tempo (Felismina Costa)

7 comentários:

Anónimo disse...

Bravo Juvenal!

Muito completo!

Traduz inteiramente o sentir!

Claro e preciso, completamente...

Os meus parabéns!


Um abraço fraterno

Felismina Costa

Torcato Mendonca disse...

Gosto, Juvenal
É possível que sim. Por vezes assim penso. Será que o Blogue veio trazer mais fortemente ao presente esse nosso passado?

Galomaro...e eu recordo aquilo. Se não aparecesse a foto eu iria recordar aquilo? Não!

As fotos são importantes, mesmos as esquecidas como as que de mim ontem apareceram.
Ab,T.

Anónimo disse...

Meus amigos Torcato e Juvenal

Tive a olhar as fotos destes últimos postes, e é notório a ausência do sorriso nos vossos rostos.
Sente-se o peso do clima bélico, a preocupação, o aborrecimento, o cansaço.
Realmente, as fotos são registos magníficos que falam por si.

Observei o espaço à volta, em algumas fotos do Torcato e senti a distância e o ambiente de pura sobrevivência.

Senti-me deprimida!

Parabéns, por terdes regressado.

Um abraço para todos os ex-combatentes, que no princípio da vida, se viram atirados para a morte.

Felismina Costa

Torcato Mendonca disse...

Dizem que ela andava lá. falamos e devia ser ela. Ofendia-a e, certamente por isso, deixou de me ligar...desconhecia-me ou ignorava-me...foi uma chata.

Abraço os doiss Amigos e Poetas.
T.

Hélder Valério disse...

Caro Juvenal

Muito bem observado. Não que tal situação, o da reflexão sobre o que fazer após o regresso, não tenha já sido aqui referido, há até uma série dedicada a isso, ao regresso, salvo erro.
O que tem de notável é a força que o poema imprime.
Realmente parece-me terem sido muito aqueles de nós que tiveram atitudes semelhantes: "isto acabou para mim, Guiné nunca mais, agora vou tratar da vida".... mas, qual vida?
Pois é! Pois foi!
O contraste marcou, a desadaptação em muitos casos também, a falta de perspectivas, idem... mesmo que não se soubesse muito bem o que isso era..
E hoje? Como é? Diferente?

Um grande abraço, Juvenal.
Hélder S.

Anónimo disse...

Claro
então qual é a razão de existir este blog..se não fosse isso há muito que teria desaparecido..sem leitores e comentários.
Em 98 chorei ao entrar na Guiné por Pirada e ao sair também.Em 2006 chorei ao regressar ,após 8 dias de turismo, indo a Gadamael e percorrendo uma parte do território que desconhecia.Sou um "chorão".. nem por isso..que me lembre chorei mais duas vezes na minha vida..que são do foro privado.
Então chorei porquê?
Por ver tanto sofrimento naquele povo..por ouvir da boca de antigos IN..que os tugas podiam voltar que agora já não faziam guerra..por antigos camaradas combatentes abandonados ao seu destino, dizerem com orgulho que eram portugueses e guardarem religiosamente os seus documentos militares..por verificar que a independência apenas serviu aos politicos de ocasião e talvez nem a esses...por constatar que os nossos sacrifícios e, porque não, os do antigo IN foram em vão..por tudo..tudo..
Mer... estou emocionado.
Porque é que não consigo auto-explicar-me sabendo eu psicologia e psiquiatria...é tão paliativo..é bom desabafar...mas melhor seria que a minha parte que lá ficou para sempre, fosse mentira.
Porque é que isto tinha de acontecer à nossa geração...porquê?

C.Martins

Anónimo disse...

Não sei como cheguei aqui à Tabanca que dizem ser grande.
Estão de parabens, pelo pouco que já vi acho que encontrei uma mina de diamantes.
O Juvenal Amado descreveu com tamanha precisão a partida e o regresso que até comoveu este calhau que sou.
Fez-me tembrar o abraço que dei ao Januário, que por acaso estava no cais, e a chegada a Lisboa sem ninguém à minha espera.
Fez-me lembrar tantas coisas que a vida nos tem preparado.
Parabéns Juvenal, um abraço como se dava a um amigo em 1970 do Fur.Milº.Gonçalves-C.Caç.1787
Guiné 1967/69.
Gonçalves