sábado, 12 de setembro de 2015

Guiné 63/74 - P15107: O segredo de... (26): Ser ou não ser furriel na data de embarque (Domingos Gonçalves, ex-Alf Mil da CCAÇ 1546)

1. Em mensagem do dia 2 de Setembro de 2015, o nosso camarada Domingos Gonçalves, (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68) enviou-nos o seu terceiro segredo.

Prezado Luís Graça: 
Confesso, por este meio, mais um dos meus pecados, 

Um grande abraço
Domingos Gonçalves

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Tinha no meu pelotão um furriel, (quando cometi este pecado ainda era cabo miliciano) do qual só posso dizer que era um bom rapaz.
Nado e criado na zona da Ribeira, no Porto, tinha todas as virtudes, e também alguns defeitos do ambiente em que crescera.
Uma das virtude, que cultivava, era a seguinte: Não gostava que lhe pisassem os calos.
Por isso, quando lhos calcavam, reagia mal. Daí que, entre ele e o comandante de companhia, que era especialista em calcar calos, gerou-se um sentimento de repulsa mútua.

O comandante, - na altura tenente -, andava à procura de uma oportunidade para lhe dar uma porrada. Estávamos num pequeno aquartelamento, no Pragal, perto do Cristo Rei, a aguardar embarque para a Guiné.
Num certo fim de dia, com outros colegas cabo milicianos, ele foi jantar num restaurante da zona, e embriagou-se. Coisas da vida, que aconteciam. Dadas as circunstâncias, as bebedeiras funcionavam, para alguns colegas, como uma espécie de refúgio, onde durante um pequeno período de tempo se esqueciam de um fantasma, que se chamava Guiné.

No regresso ao aquartelamento, devido ao estado em que se encontrava, perdeu, resumindo, o aprumo exigido a um militar fardado. O comandante da companhia, que andava à procura de um pretexto para dar uma porrada no rapaz, quando alguém o informou do sucedido, obrigou uma das testemunhas a elaborar a respectiva participação. Depois, por despacho, incumbiu-me de elaborar o processo de averiguações.

O cabo miliciano era do meu pelotão, e repugnava-me o facto de ser eu a propor qualquer porrada, face aos factos que fossem averiguados. Interroguei as testemunhas indicadas pelo autor da participação, que confirmaram que de facto tinham visto: o rapaz a vomitar, a contorcer-se, etc.

Interroguei o prevaricador, que confirmou os factos de que era acusado, mas que desabafou:
- Já viu a minha sorte! Vou para a Guiné como cabo miliciano. Sou casado! O gajo se puder, FFF.

Perguntei-lhe:
- Quem estava contigo no restaurante, durante o jantar? - Ele indicou-me o nome.

Voltei a perguntar:
- São teus amigos? Confias neles? Vão ser tuas testemunhas.
- Claro que confio.

Continuei:
- Então, se eles concordarem, vão dizer que durante a refeição tu não bebeste vinho, nem qualquer bebida alcoólica. Estavas mal disposto, e apenas bebeste água das pedras.

O rapaz olhou-me, com um olhar malandro que o caracterizava, sorriu-se, e perguntou:
- Vai fazer isso?
- Vou tentar, - respondi-lhe.

Interroguei, depois, os colegas que tinham estado com ele, pedi-lhe que lessem o texto do depoimento, com o qual concordaram.

Resumindo: Juraram por Deus dizer a verdade, e só a verdade, declarando que o colega estava doente, e que as cenas constantes na participação só podiam ser causadas pela forte dor de estômago, que já no restaurante o atormentava.

As conclusões foram óbvias. Não havia matéria que justificasse a aplicação de qualquer porrada. E entreguei o processo.

O comandante da companhia, - na altura tenente -, leu as conclusões, olhou-me com um olhar, daqueles olhares que nunca mais se esquecem, deu um murro na secretária, mas não disse qualquer palavra. Eu, também não abri a boca e, respeitosamente, retirei-me. E o cabo-miliciano, a partir da data do embarque, foi promovido a furriel, e a vida continuou...
Não houve porrada nenhuma, nem no Pragal, nem depois na Guiné.

Um abraço para todos os camaradas
Domingos Gonçalves
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P15053: O segredo de... (25): A caneta do Governador (Domingos Gonçalves, ex-Alf Mil da CCAÇ 1546)

5 comentários:

Anónimo disse...

Na linha da caneta... Pasmo!
Mendes

José Botelho Colaço disse...

Os oficiais milicianos na sua maioria sempre primaram pela parte humana esquecendo o RDM e nestes tenho que incluir o meu comandante de companhia capitão do quadro permanente.

Manuel Carvalho disse...

Muito bem camarada Gonçalves.Quem é que nunca bebeu o seu copito a mais.Na minha opinião devemos ser tolerantes com o nosso semelhante e não perdemos nada com isso.

Manuel Carvalho

José Nascimento disse...

Se caísse nas mãos do coronel "Onze", decerto não se livrava de uma porrada.

Hélder Valério disse...

Caro camarada Domingos

Entendo que a tua acção/decisão foi mais no sentido da valorização humana do que no do escrupuloso cumprimento cego do RDM.
À luz deste último, certamente sairia uma porrada.
Justa? Injusta? À luz do Regulamento teria com certeza enquadramento...
Mas seria 'moralmente' correcta?
Pelo que percebi, a preocupação do Sr. Tenente não era tanto a 'moralização' das tropas mas antes uma espécie de vingança, de afirmação pessoal.
Não vejo que a tua actuação tivesse trazido mal ao mundo.
E, atenção, fosse o que fosse, já passou, já prescreveu, passou-se para aí à cerca de 50 anos!

Abraço.
Hélder S.