domingo, 29 de abril de 2018

Guiné 61/74 - P18576: Efemérides (279): O 25 de Abril de 1974... visto de Bissau, através de aerogramas enviados por Jorge Gameiro ( REP / ACAP / QG / CC) à sua esposa Ana Paula Gameiro e ao seu filhinho Nuno Gameiro... Documentação comprada no OLX, há 5 ou 6 anos (Carlos Mota Ribeiro, Maia) - Parte IV




Cabeçalho de panfleto do PCP (m-l)  (Partido Comunista de Portugal, marxista-leninista) com a palavra de ordem "Nem mais um só soldado para as colónias"...  Data: 26 de abril de 1974. 

Fonte: com a devida vénia ao Gualberto Freitas: 1969 Revolução Ressaca [documentos para a história de uma revolução]



Lisboa > Dia 28 de Abril de 1974, ao fim da tarde, na Rua Fontes Pereira de Melo, antes de chegar às Picoas. Começou espontaneamente o pessoal a aglomerar-se, já depois da Rotunda [do Marquês], e, enquanto o diabo esfregou o olho, estruturou-se uma manifestação, com muitos militares da Força Aérea, como se pode ver nas linhas da frente com farda azul e boina verde. As palavras de ordem: 'Nem mais um soldado para o ultramar'…  Manifestações e palavras de ordem como estas (*) começaram a ter um efeito psicológico negativo no moral das nossas tropas que estavam a milhares de quilómetros de casa, como se pode depreender do aerograma que abaixo se transcreve.

Foto (e legenda): © José Corceiro (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].




Imagem da primeira parte do aerograma, datado de Bissau, 4/5/74.



Desta vez o aerograma é dirigido à mesma pessoa, a esposa do Jorge Gameiro, Ana Paula Gameiro, mas com outro endereço postal: Rua Sampaio Bruno, 8, 3º Esq, Lisboa 3, em Campo de Ourique [ Código postal atual: 1350-283 Lisboa;  pertence à freguesia de Santo Condestável]. 



Remetente: Jorge Gameiro, ACAP, SPM 0348


1. Continuação da publicação dos aerogramas de Jorge Gameiro [ militar colocado na REP / ACP / QG /CC, Bissau, 1974], relativos aos acontecimentos pós-25 de abril...

Cópias desses aerogramas foram-nos enviadas pelo leitor (e futuro membro da Tabanca Grande, Carlos Mota Ribeiro, engenheiro, residente na Maia, filho do nosso querido amigo, camarada e coeditor Eduardo Magalhães Ribeiro; estes documentos foram comprados por ele há 5 ou 6 anos no OLX).

Os aerogramas (o primeiro datado de Bissau, 30/4/1974) (**) eram dirigidos à esposa do Jorge Gameiro, Ana Paula Gameiro. O casal tinha um filho de tenra idade, Nuno Gameiro, cujo paradeiro o Carlos Mota Ribeiro gostaria de poder descobrir para lhe poder oferecer esta correspondência que ele provavelmente nunca terá lido. A Ana Paula Gameiro aparece com duas moradas: uma na Av Mouzinho de Albuquerque, 5-5- Esq, Lisboa-1, freguesia de Penha de França; e outra na Rua Sampaio Bruno, 8, 3º Esq, Lisboa 3, em Campo de Ourique, freguesia de Santo Condestável. Não sabemos ao certo onde é que o casal vivia. Nem sabemos como os aerogramas foram parar ao OLX: uma hipótese é a separação do casal; ou a  morte de um dos correspondentes...

Também não sabemos, até agora, quem é (ou foi) o Jorge Gameiro, a não ser que: (i) estava colocado, no QG/CC, na Amura, na Repartição ACAP - Assuntos Civis e Apoio à População; e (ii) em maio de 1974 estava a 4 meses de acabar a comissão... Especulando, achamos que podia ser arquitecto, na vida civil, ou estudante de arquitetura ou de engenharia ou coisa assim parecida. Devia ser miliciano, mas desconhecemos o seu posto e especialidade.

Como nos explicou o Carlos Mota Ribeiro [, foto atual acima, à direita]:

(...) Em relação aos aerogramas comprei-os a alguém no OLX, já foi há uns 5 ou 6 anos e não me recordo do nome da pessoa que mos vendeu, lembro-me que os comprei por terem o sentido histórico do 25 de Abril de 74 e os achei muito interessantes.

Como tenho um colega britânico que se interessa pela Revolução dos Cravos, enviei-lhe as fotos dos aerogramas com a tradução em inglês para ele dar uma leitura e compreender o sentimento que alguns jovens tinham naquela época e naqueles dias conturbados.


Quando estava a transcrever o mencionado aerograma, fiquei a pensar no Nuninho (Nuno Gameiro) do aerograma e do carinho daquele pai pelo filho. Por isso entrei em contacto contigo para tentar encontrar o tal Nuninho e lhe fazer chegar a meia dúzia de aerogramas que tenho, enviados pelo seu pai, da Guiné Portuguesa para a Metrópole.

É claro que apenas lhos vou oferecer, se o Nuno Gameiro quiser esta recordação dos pais, pode nem querer saber deste assunto ou não dar qualquer valor sentimental aos aerogramas, mas como para mim este tipo de itens tem muito valor e são documentos que considero históricos, guardo-os religiosamente na minha coleção particular sobre o Ultramar Português. [...]


 Do aerograma do dia 4 de maio, que transcrevemos a seguir, só temos a primeira parte. segundo informação prestada pelo nosso coeditor Magalhães Ribeiro, que está a digitalizar estes documentos.

 2. Transcrição do aerograma de 4 de maio de 1974

Bissau 04.05.74
Minha Paula, meu amor:

Recebi hoje a tua cartinha do dia 28 [, de abril, de 1974], a qual me deixou muito feliz por te achar tão calma e feliz, calma essa que é contagiante e que para mim foi um bem, pois também eu com esta tua tão preciosa ajuda fiquei mais calmo, que é coisa que não consigo ter de há uns dias a esta parte.

A nossa situação aqui no ultramar continua sem ser definida, não há meio de se pronunciarem, mas pelos vistos as coisas em relação ao ultramar as mudanças serão muito significativas pois soube que ontem saiu um contingente de tropas, do qual a população pelos vistos não gostou muito pois até foram raptados 10 militares, mesmo do estilo “sacados” à mão do aeroporto. [***]

É claro e bem sei que isto não pode ser resolvido de um dia para o outro, e por isso penso que a atitude dessas pessoas até foi inconsciente, pois enquanto não houver nada resolvido,  as tropas terão de continuar a vir. E não é parar com as mobilizações que se podem resolver as coisas, pois assim os únicos prejudicados seriamos nós, aqueles que estão a terminar a comissão, não tendo rendição não nos poderíamos ir embora, o que não é justo. 

Mas esta espera, sem saber nada, torna a vida angustiante para todos nós os que aqui estamos. Resta-nos a consolação de que, mesmo se a situação aqui continuar a mesma,  quando voltarmos espera-nos um ambiente mais leve, mais puro, onde já não seremos espezinhados como dantes,  seremos livres mais que nunca e isso pelo menos,  apesar de não ser de maneira nenhuma uma compensação para os 2 anos que passamos aqui, já é pelo menos algo positivo e muito bom. 

Outra das coisas pela qual andamos doidos todos os que aqui continuamos,  é não pudermos partilhar mais de perto desses tão grandes momentos que se vêm passando desde o dia 25 [de Abril] até agora,  principalmente desse grandioso 1.º de Maio festa culminante da libertação de um povo dominado por uma ditadura fachista [sic] durante 48 dolorosos anos. E só espero, e o meu grande desejo, é que este grande passo que iniciou uma maravilhosa caminhada ,não seja afundado por minorias de esquerdistas a cometerem atos impensados como aquele que se passou no aeroporto, mas não isto é certamente precipitações dos primeiros dias causados pelos [...] [**]

Continua 
 

Fotos (e legendas): © Carlos Mota Ribeiro (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

[Revisão e fixação de texto: Carlos Mota Ribeiro / Luís Graça]


Translation to English:

Bissau 04.05.74

My Paula, my love:

I received today your letter of the 28th, which made me very happy to find you so calm and happy that is contagious and that for me was a good, because I too with this your precious help I am calmer, which is something that I can not get from a few days ago to this part, our situation here overseas is still not defined, there is no way to pronounce, but by the way things in relation to overseas the changes will be very significant because I knew that yesterday left a contingent of troops, of which the population was not very pleased because 10 military personnel were even kidnapped by the airport, of course, and I know that this can not be solved overnight, and so I think the attitude of these people was even unconscious, as long as nothing is resolved the troops will have to continue to come. And it is not to stop with the mobilizations that can solve things, therefore the only losers we would be those who are finishing the commission, not having surrender we could not leave what is not fair. But this waiting without knowing anything makes life anguish for all of us here. There remains the consolation that even if the situation here continues the same when we return, we expect a lighter but cleaner environment where we will not be trampled as before we will be free more than ever and this at least despite not being at all a compensation for the 2 years that we spent here, is already at least something positive and very good. Another of the things we are going crazy about here is that we can not share more closely those great moments that have been happening since the 25th until now, especially on this great May Day, the culminating celebration of the liberation of a people dominated by a fascist dictatorship for 48 painful years and I only hope and my great desire is that this great step that started a wonderful journey is not sunk by minorities of leftists to commit unthinking acts like the one that happened at the airport, but this is certainly not precipitation of the first days caused by

To be continued

[Translation by Carlos Mota Ribeiro]

___________


4 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Eu não estava lá, na Guiné, nos primeiros dias do 25 de Abril de 1974, mas dá para perceber, da leitura deste aerograma, o grau de ansiedade dos nossos camaradas, face à rapidez alucinante dos acontecimentos e à total incerteza sobre o "desfecho" da guerra...

Logo a 26 de abril de 1974, já havia palavras de ordem do tipo "Nem mais um soldado para as colónias"", "Regresso imediato dos soldados!", "Independência total e incondicional para os povos irmãos das colónias"...

É interessante saber a história deste PCP (ml)...

https://pt.wikipedia.org/wiki/Partido_Comunista_de_Portugal_(marxista-leninista)

http://media.rtp.pt/extremaesquerda/eu-estive-la/da-cmlp-ao-pcp-ml/

Juvenal Amado disse...

Mesmo antes do 25 de Abril de 1974 já haviam pichagens nas paredes de Lisboa contra a guerra colonial, contra os embarques e a favor do rápido regresso dos soldados
O Jorge Gameiro pelo o que escreve no aerograma prova é que muito do que se diz quarenta e tal anos após os acontecimentos, são releituras inclinadas dos verdadeiros acontecimentos daquela época.
A verdade é que quem cá estava não queria ir para lá e os que lá estavam, queriam vir embora nem que pagassem do próprio bolso.
Que fazer para conseguir uma posição de alguma força que permitisse negociar uma solução para o problema ultramarino que reduzisse o stress que se sentia cá e lá ?
Não esquecer que havia no seio das forças armadas a nível de oficiais como o Spínola que apanharam o "comboio da revolução" depois do derrube de Marcelo Caetano estar consumado, que não queriam dar autodeterminação bem como desactivar a Pide-DGS e foi a pressão nas ruas e dois golpes falhados que obrigaram a abdicar do poder.

Agora tantos anos passados ainda há quem defenda que se podia fazer outra coisa sem continuar com a guerra e a continuar quem é que mobilizavam para ir?
Quanto ao PCP-ML penso haver um camarada no blogue bem informado sobre que organização se tratava .

Hélder Valério disse...

O conjunto desses documentos é de facto muito interessante para se perceber bem o contexto vivido aquando desses acontecimentos, tanto por cá como por lá, na Guiné.

Confesso que também tenho um sentimento de reserva por parecer que se está a entrar na privacidade de pessoas que não podem (ou não queiram) refutar essa devassa. Mas, como 'consolação' sabemos que tais documentos foram colocados à disposição de qualquer um, pela sua colocação no OLX.
Especular com esse facto só pode, por agora, ser isso mesmo: especulação.

As cartas trocadas entre os pais têm valor afectivo e também documental.
Não sabemos realmente o que levou à sua alienação, começando desde logo por não se saber quem as dispensou. Por tal também poderá ser legítimo pensar se o Nuno Gameiro as chegou a conhecer ou se, caso disso, preferiu desfazer-se desse testemunho do passado. Todas as especulações são possíveis.

Hélder Sousa

José Marcelino Martins disse...

Dizem, os conhecedores da matéria, que foi na Guiné que teve inicio o Movimento dos Capitães, depois baptizado com outros nomes até ao MFA.
Porém, também consta que, na Guiné, no pós 25 de Abril de 1974, haveria 3 (TRÊS) movimentos de militares, com o mesmo objectivo:
1- O MFA e o programa difundido em Lisboa;
2 - O MFA-Guiné, chamemos-lhe assim, com um programa "um pouco diferente"; e
3 - Um movimento com origem em, fundamentalmente, com origem em militares recrutados na Metrópole.

Alguém sabe de alguma coisa?