domingo, 13 de maio de 2018

Guiné 61/74 - P18626: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capítulos 47/48/49: "Quero dizer-te que só em quinze dias os turras derrubaram cinco aviões"


Fiat G-91. O primeiro a ser abatido por um Strela foi em 25 de março de 1973, sob os céus de Guileje.. Era pilotado pelo nosso camarada Miguel Pessoa, então tenente piloto aviador.

Foto de arquivo do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.


1. Continuação da pré-publicação do próximo livro (na versão manuscrita, "Em Nome da Pátria") do nosso camarada José Claudino Silva [foto atual à esquerda] (*) 

(i) nasceu em Penafiel, em 1950, "de pai incógnito" (como se dizia na época e infelizmente se continua a dizer, nos dias de hoje), tendo sido criado pela avó materna;

(ii) trabalhou e viveu em Amarante, residindo hoje na Lixa, Felgueiras, onde é vizinho do nosso grã-tabanqueiro, o padre Mário da Lixa, ex-capelão em Mansoa (1967/68), com quem, de resto, tem colaborado em iniciativas culturais, no Barracão da Cultura;

(iii) tem orgulho na sua profissão: bate-chapas, agora reformado; completou o 12.º ano de escolaridade; foi um "homem que se fez a si próprio", sendo já autor de dois livros, publicados (um de poesia e outro de ficção);

(iv) tem página no Facebook; é avô e está a animar o projeto "Bosque dos Avós", na Serra do Marão, em Amarante;

(ix) é membro n.º 756 da nossa Tabanca Grande.

2. Sinopse dos postes anteriores:

(i) foi à inspeção em 27 de junho de 1970, e começou a fazer a recruta, no dia 3 de janeiro de 1972, no CICA 1 [Centro de Instrução de Condutores Auto-rodas], no Porto, junto ao palácio de Cristal;

(ii) escreveu a sua primeira carta em 4 de janeiro de 1972, na recruta, no Porto; foi guia ocasional, para os camaradas que vinham de fora e queriam conhecer a cidade, da dos percursos de "turismo sexual"... da Via Norte à Rua Escura;

(iii) passou pelo Regimento de Cavalaria 6, depois da recruta; promovido a 1.º cabo condutor autorrodas, será colocado em Penafiel, e daqui é mobilizado para a Guiné, fazendo parte da 3.ª CART / BART 6250 (Fulacunda, 1972/74);

(iv) chegada à Bissalanca, em 26/6/1972, a bordo de um Boeing dos TAM - Transportes Aéreos Militares; faz a IAO no quartel do Cumeré;

(v) no dia 2 de julho de 1972, domingo, tem licença para ir visitar Bissau, e fica lá mais uns tempos para um tirar um curso de especialista em Berliet;

(vi) um mês depois, parte para Bolama onde se junta aos seus camaradas companhia; partida em duas LDM para Fulacunda; são "praxados" pelos 'velhinhos' (ou vê-cê-cês), os 'Capicuas", da CART 2772;

(vii) faz a primeira coluna auto até à foz do Rio Fulacunda, onde de 15 em 15 dias a companhia era abastecida por LDM ou LDP; escreve e lê as cartas e os aerogramas de muitos dos seus camaradas analfabetos;

(viii) é "promovido" pelo 1.º sargento a cabo dos reabastecimentos, o que lhe dá alguns pequenos privilégio como o de aprender a datilografar... e a "ter jipe";

(ix) a 'herança' dos 'velhinhos' da CART 2772, "Os Capicuas", que deixam Fulacunda; o Dino partilha um quarto de 3 x 2 m, com mais 3 camaradas, "Os Mórmones de Fulacunda";

(x) Dino, o "cabo de reabastecimentos", o "dono da loja", tem que aprender a lidar com as "diferenças de estatuto", resultantes da hierarquia militar: todos eram clientes da "loja", e todos eram iguais, mas uns mais iguais do que outros, por causa das "divisas"... e dos "galões"...

(xi) faz contas à vida e ao "patacão", de modo a poder casar-se logo que passe à peluda; e ao fim de três meses, está a escrever 30/40 cartas e aerogram as por mês; inicialmente eram 80/100; e descobre o sentido (e a importância) da camaradagem em tempo de guerra.

(xii) como "responsável" pelo reabastecimento não quer que falte a cerveja ao pessoal: em outubro de 1972, o consumo (quinzenal) era já de 6 mil garrafas; ouve dizer, pela primeira vez, na rádio clandestina, que éramos todos colonialistas e que o governo português era fascista; sente-se chocado;

(xiii) fica revoltado por o seu camarada responsável pela cantina, e como ele 1º cabo condutor auto, ter apanhado 10 dias de detenção por uma questão de "lana caprina": é o primeiro castigo no mato...; por outro lado, apanha o paludismo, perde 7 quilos, tem 41 graus de febre, conhece a solidariedade dos camaradas e está grato à competência e desvelo do pessoal de saúde da companhia.

(xiv) em 8/11/1972 festejava-se o Ramadão em Fulacunda e no resto do mundo muçulmano; entretanto, a companhia apanha a primeira arma ao IN, uma PPSH, a famosa "costureirinha" (, o seu matraquear fazia lembrar uma máquina de costura);

(xv) começa a colaborar no jornal da unidade (dirigido pelo alf mil Jorge Pinto, nosso grã-tabanqueiro), e é incentivado a prosseguir os seus estudos; surgem as primeiras dúvidas sobre o amor da sua Mely [Maria Amélia], com quem faz, no entanto, as pazes antes do Natal; confidencia-nos, através das cartas à Mely as pequenas besteiras que ele e os seus amigos (como o Zé Leal de Vila das Aves) vão fazendo;

(xvi) chega ao fim o ano de 1972; mas antes disso houve a festa do Natal (vd. capº 34º, já publicado noutro poste); como responsável pelos reabastecimentos, a sua preocupação é ter bebidas frescas, em quantidade, para a malta que regressa do mato, mas o "patacão", ontem como hoje, era sempre pouco;

(xvii) dá a notícia à namorada da morte de Amílcar Cabral (que foi em 20 de janeiro de 1973 na Guiné-Conacri e não no Senegal); passa a haver cinema em Fulacunda: manda uma encomenda postal de 6,5 kg à namorada;

(xviii) em 24 de fevereiro de 1973, dois dias antes do Festival da Canção da RTP, a companhia faz uma operação de 16 horas, capturando três homens e duas Kalashnikov, na tabanca de Farnan.

(xix) é-lhe diagnosticada uma úlcera no estômago que, só muito mais tarde, será devidamente tratada; e escreve sobre a população local, tendo dificuldade em distinguir os balantas dos biafadas;

(xx) em 20/3/1973, escreve à namorada sobre o Fanado feminino, mas mistura este ritual de passagem com a religião muçulmana, o que é incorreto; de resto, a festa do fanado era um mistério, para a grande maioria dos "tugas" e na época as autoridades portuguesas não se metiam neste domínio da esfera privada; só hoje a Mutilação Genital Feminina passou a a ser uma "prática cultural" criminalizada.

(xxi) depois das primeiras aeronaves abatidas pelos Strela, o autor começa a constatar que as avionetas com o correio começam a ser mais espaçadas...


3. Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capºs 47/48/49



O autor faz questão de não corrigir os excertos que transcreve, das cartas e aerogramas que começou a escrever na tropa e depois no CTIG à sua futura esposa. E muito menos fazer autocensura 'a posterior', de acordo com o 'politicamente correto'... Esses excertos vêm a negrito. O livro, que tinha originalmente como título "Em Nome da Pátria", passa a chamar-se "Ai, Dino, o que te fizeram!", frase dita pela avó materna do autor, quando o viu fardado pela primeira vez. Foi ela, de resto, quem o criou. ]


47º Capítulo  > FELICITAÇÕES


Todas as gerações são diferentes. A minha foi, indiscutivelmente, a mais diferente de todas.

Começa meia dúzia de anos após a 2ª guerra mundial, atravessa metade do século XX e entra pelo século XXI, talvez no período em que o mundo mais rapidamente evoluiu.

Orgulho-me de ter vivido este tempo. Sem grandes meios financeiros, consegui ter uma vida. Não fora a minha falta de tacto familiar, poderia ter sido um exemplo para muitos. É bem verdade que não há bela sem senão.

Pelos outros, lamento não ter a imagem que gostavam que eu tivesse. Por mim, vindo de onde vim, fiz mais que alguma vez sonhei fazer.

(28 De Setembro de 2017. Quinta-feira 19H00.

Há quarenta e cinco anos escrevi para uma pessoa que hoje comemora 65 anos:

“Queridinha do meu coração. Neste dia do teu aniversário que tem um significado especial para mim, te escrevo com redobrado amor, pois quero que este dia, que passaremos muitas vezes juntos, esteja sempre radioso de felicidade e que o nosso amor continue sempre forte como agora é.”

As circunstâncias da vida alteraram-se o que não me impede de manter os desejos de feliz aniversário a uma mulher que, se não fosse ela, estes textos não existiriam. Chama-se Maria Amélia Moreira Mendes. Ainda hoje é a minha esposa. Perdoem-me esta pequena lembrança mas, como estou a escrever no dia do seu aniversário, é a minha pequena homenagem à mãe dos meus filhos e avó da minha querida neta Catarina.)


48º Capítulo  > ABATERAM UM AVIÃO


Estranhamente, e sendo um leitor de vários géneros literários, como já frisei, faço um discurso completamente obscurantista. Quero acentuar que os meus estudos se resumiam ao 2º grau (4ª Classe). O que sinto, quanto mais avanço na leitura do que naquele tempo escrevi é que vou lentamente alterando a minha forma de pensar. Espero não ter grandes surpresas de comportamento, mais lá para diante. Para já, trata-se dum avião.

“Querida lamento que andes constipada, podia perguntar ao médico que remédio devias tomar mas quando o aéro aí chegasse, decerto já estarias curada, sabes que nem sempre a avioneta vem buscar correio. Penso até que decerto vai piorar, os “turras” abateram um avião nosso e morreu o piloto, como vês não somos só nós que matamos às vezes também sofremos baixas e agora devem ter melhores armas pois até aviões abatem”

Peço desculpa pela violência das palavras e confesso-me, de facto, preocupado que no restante correio que tenho de ler se me deparem piores situações. Continuarei a escrever, desdobrando um a um cada aerograma ou carta que imediatamente colocarei no computador. Uma coisa continuo a garantir-vos: 90% do que escrevi até ao dia 31 de Março de 1973, é amor, ternura e carinho.

“Hoje fiquei contente porque o Sr. Padre do batalhão que é o alferes capelão pediu-me para eu escrever alguns artigos para o jornal de Tite. Ainda vou ser famoso. Ah ah ah”

No dia seguinte, por ser domingo, mandei uma quadra duma canção de Dércio Marques. Título: “Vim de Longe”

Sou o riso das lavadeiras,
Aroma das madrugadas,
Sou o silêncio das eiras,
Sou a raiva das enxadas.

Nessa semana, soubemos que íamos ser aumentados. Seria verdade? No dia seguinte ou poucos dias depois, já confirmaria.


49º Capítulo  > ABATERAM CINCO AVIÕES


Dizia eu, mais atrás, não saber se com a morte de Amílcar Cabral, dirigente máximo do PAIGC, iria melhorar ou piorar a situação bélica na Guiné, mas em Abril eu escrevia:

“Quero dizer-te que só em quinze dias os “turras” derrubaram cinco aviões, aliás três avionetas e dois aviões. Por isso já podes ver que desde que morreu o Amílcar Cabral que era o chefe deles isto em vez de melhorar piorou. Nós felizmente temos tido sorte e espero que a sorte nos continue a proteger para regressarmos todos sãos e salvos.

Um amigo meu que está em Manpatá escreveu-me a dizer que na companhia dele já houveram três mortos e bastantes feridos. Nós graças a Deus ainda nenhum ferido tivemos.

Agora outro assunto. Saiu na ordem de serviço que eu passo a ser o único responsável pelas contas da cantina. Que merda. Até agora era um alferes mas o esquema foi alterado. Acontece que as contas da cantina nunca batiam muito certas e numa primeira análise parece que continua assim. Já viste? Vou passar a lidar com mais ou menos cinquenta contos por mês e se há algum desvio de dinheiro? Até aqui só lidava com papéis. Creio que vou estar à altura do encargo e hoje mesmo vou pedir ao 1º Sargento para fazer um balanço às contas. Se não estiver tudo direito não aceito nem que me castiguem. Fiquei contente por saber que o Castro e o teu primo regressaram bem”.


Na carta seguinte em que só falava de amor, talvez pelo título, aproveitei para mandar uma letra duma canção do Roberto Carlos – “Escreva uma carta, meu amor”

Nos dias seguintes, começámos a perceber que as avionetas já não viriam com tanta frequência.
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5 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

A notícia da morte do tem cor pilav Almeida Brito chegiou célere a Fulacunda:

Recorde-se que a 25 de março de 1973, foi o tenente pilav Miguel Pessoa o primeiro a ser abatido por um Strela na zona de Guileje, no sul da Guiné, muito perto da fronteira com a Guiné-Conakry. Conseguiou ejectar-se e foi recuperadi no dia seguinte.

Três dias mais tarde, a 28 de março, outro Fiat, desta vez pilotado pelo Tenente-Coronel pilav Almeida Brito, também é abatido no sul da Guiné. O avião explode no mar e o piloto morre. È a esta morte que o Dino se refere... Houve depois, já nos princípios de abril de 1973, mais 3 casos de aeronaves abatidos pelo míssil Strela...

Tabanca Grande Luís Graça disse...

É de destacar a observação do Dino:

"Nos dias seguintes [aosd primeiros ataques com Strela], começámos a perceber que as avionetas já não viriam com tanta frequência."

Mário Santos disse...

Caros amigos e camaradas.
Apenas uma pequena correcção que se impõe: O 1º Fiat G-91 R4 foi o 5411, abatido por fogo de Anti-Aérea no dia 28 de Julho de 1968 levando no Cockpitt o nosso Comandante de Grupo Operacional Ten./Cor. Costa Gomes, após ter dido atingido junto a Gandembel. Ejectou-se e fugiu por entre a mata até alcançar o Aquartelamento de Gandembel.
Tenho no meu espólio a Foto dessa aeronave, pouco antes de ter sido atingida, uma vez que era eu que estava encarregado dela nesse longínquo dia de 1968.
Não a consigo colocar aqui, uma vez que esta zona apenas permite escritos em texto.

Um abraço do Mário Santos
Engº Técnico.

Mário Santos disse...

Caros camaradas e amigos.

Só e apenas mais uma achega, segundo creio a principal e intenção do Blogue é preservar a nossa memória colectiva. Para isso, na minha modesta opinião será necessário que ao publicar as nossas "estórias de guerra" consigamos ao relatar as nossas peripécias e acções o mais perto possível das datas e factos dos acontecimentos que tentamos relatar.

Eu pertenci à "Esquadra de Tigres" (Fiats G-91 R4) entre 67/69, havendo mesmo camaradas Mecânicos e Pilotos ainda vivos e que por lá estiveram entre entre 67/70 até aos anos em que o inimigo de então iniciou as hostilidades com os famosos misseis strella.

Estarei ao dispor de qualquer camarada que pretenda esclarecer qualquer dúvida relativamente à acção da FAP nesses tempos longínquos.


Um abraço a todos,

Mário Santos

Anónimo disse...

Obrigado, Mário, pelo teu contributo.

Temos 9 referências no nosso blogue ao ten cor pilav [José Fernando de] Almeida Brito, na altura comandante do Grupo Operacional 1201. Não há dúvidas sobre a data em que foi abatido o seu Fiat G - 91-R4 nº 5419: foi em 28 de março de 1973. E sabemos o local: foi à vertical de Madina do Boé.

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/search/label/Almeida%20Brito%20%28Ten%20Cor%20Pilav%29


9 DE FEVEREIRO DE 2009
Guiné 63/74 - P3859: FAP (6): A introdução do míssil russo SAM-7 Strela no CTIG ( J. Pinto Ferreira / Miguel Pessoa)

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/2009/02/guine-6374-p3859-fap-6-introducao-do.html


Um abraço, Luís Graça


PS - Sobre o abate do Fiat G-91, em 28 de Julho de 1968, que levava no cockpitt o vosso Comandante de Grupo Operacional ten cor pilav Costa Gomes, em Gandembelm, manda-nos fotos e relato por e mail... Aqui só é possível deixar comentários.