segunda-feira, 13 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20853: Notas de leitura (1279): “O jornalismo português e a guerra colonial”, com organização de Sílvia Torres, Guerra e Paz Editores, 2016 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Março de 2017:

Queridos amigos,
Dirão alguns que esta investigação universitária aborda o demasiado óbvio: havia censura de que um regime totalitário não abria mão, a guerra colonial ainda é uma história para contar. Há que reconhecer o mérito da metodologia utilizada: o que foi concretamente o jornalismo português na divulgação da guerra colonial, como operou a censura, que memórias guardam radialistas e jornalistas que chegaram a pisar o solo nos teatros de operações, qual a atmosfera das redações, que papel desempenhou a autocensura, e muito mais. Há memórias e testemunhos de valor perdurável e estamos em querer que a investigação histórica de futuro não poderá prescindir desta sondagem sobre o jornalismo e os jornalistas, em Portugal e nas colónias.

Um abraço do
Mário


O jornalismo português e a guerra colonial (2)

Beja Santos

Sílvia Torres
“O jornalismo português e a guerra colonial”, com organização de Sílvia Torres, Guerra e Paz Editores, 2016, é um laborioso trabalho de pesquisa e de inquirição a protagonistas diretos na ótica de uma dupla temática: como era feita a cobertura jornalística dos jornalistas portugueses da Metrópole e das províncias ultramarinas envolvidas no conflito, uma investigação que obrigou a identificar o jornalismo português durante o Estado Novo, quais os meios de comunicação portugueses vigentes nas colónias/províncias ultramarinas sobretudo durante a guerra colonial, com se fabricavam as notícias, como agia a censura, sob que prisma, e com base em testemunhos de alguns dos protagonistas diretos este género jornalístico é de estudo indispensável na investigação histórica.

O professor Francisco Rui Cádima aborda o tratamento da guerra colonial na RTP, observa que a ausência da ideia de império nos telejornais da década de 1950, ou mesmo a ausência de uma estratégia deliberada de manipulação das consciências, a informação era tipo oficioso, com pouco uso da imagem.

Iniciada a guerra colonial em Angola, mostram-se imagens do terror praticado, mas insistia-se na tese de tranquilidade e incriminava-se a ingerência estrangeira e os bandidos vindos do exterior. A RTP abriu uma campanha nacional de apoio às vítimas do terrorismo em Angola para recolha de donativos.

Toda a informação televisiva aparecerá altamente condicionada. Manuel Maria Múrias irá desempenhar o papel de agente de legitimação da política salazarista. Haverá uma viragem com a chegada de Ramiro Valadão em 1970. “Esta mudança não foi apenas uma mudança de pessoas, ou de liderança na redação, mas significou também uma importante alteração no quadro do próprio discurso jornalístico televisivo”. O regime não deixou abrir fendas na doutrina oficial de que o Ultramar era matéria fora de discussão.

Vários autores debruçam-se sobre a censura e como esta se constituiu como o elemento dissuasor de qualquer veleidade em abrir discussões sobre o nacionalismo, a existência de atrocidades ou até exploração económica.

A equipa organizada por Sílvia Torres ouviu memórias de jornalistas e intervenientes na guerra colonial, desde Agostinho Azevedo que escrevia no oficioso Voz da Guiné, passando por Armor Pires Mota que publicava crónicas durante a sua comissão militar na Guiné no Jornal da Bairrada, nem a PIDE nem a censura deram por nada, publicou o livro Tarrafo com as mesmíssimas crónicas, foi imediatamente apreendido e houve interrogatórios, depõem igualmente Baptista Bastos, Cesário Borga, Diamantino Monteiro, do Rádio Clube da Huíla, como também David Borges da Rádio Clube da Huíla, o jornalista Fernando Correia que pisou os três teatros de operações e que explica cabalmente todo o processo de crescente desinteresse do próprio regime em dar informações sobre a guerra; o jornalista Fernando Dacosta observa que a guerra foi muito mal contada, nenhum jornalista legou um grande trabalho sobre a guerra colonial e justifica:

“Não podia fazer. Na literatura, hoje, a história já começa a ser contada. Cada vez se escrevem mais livros sobre a guerra colonial. Mas, neste plano, importa destacar um dos primeiros escritores: o jornalista Fernando Assis Pacheco, que escreveu Walt, um livro que situa a guerra colonial na guerra do Vietname para, desta forma, poder falar sobre a guerra colonial e escapar ao corte da censura. É talvez um dos documentos mais importantes sobre a guerra colonial que foi publicado muito antes do 25 de Abril”.

E analisa igualmente a imprensa na metrópole: “A censura era ferocíssima em relação às notícias, filtrava tudo quanto os jornais tentassem publicar e, de uma maneira geral, cortava. Só se publicavam as informações que a própria censura entendia ou que o gabinete militar divulgava”.

Uma figura lendária, o jornalista Fernando Farinha, que acompanhava as tropas no terreno, descreve os seus métodos de trabalho, como é que as suas reportagens chegavam à redação:

  “Fazer chegar os rolos fotográficos e os textos ou notas de texto à redação requeria alguma imaginação. Umas vezes, aproveitava o transporte de feridos, feito por helicóptero, para o Hospital Militar de Luanda, para enviar rolos e notas de texto. Punha o papel dentro do rolo e colava tudo com fita-adesiva às ligaduras ou talas dos feridos. Os próprios feridos ou outros militares informavam depois a redação de que era preciso ir buscar o material ao hospital. Outras vezes, verbalmente, via rádio do Exército para o rádio do avião que sobrevoasse a zona, pedia aos pilotos que transmitissem determinadas informações”.

E discreteia quanto ao modo quanto o conflito passou a ser visto internamente:

“No início, a guerra era vista pelos militares como um dever de patriotismo a cumprir. Era fundamental manter a pátria unida e defender um território que era português, custasse o que custasse. O inimigo era terrorista e tinha de ser abatido. Mais tarde, o pensamento já não era este, sendo a guerra vista como desnecessária. No final, já só se queria um entendimento com os terroristas e o fim da guerra. O inimigo passou a ser mais respeitado, porque as tropas portuguesas perceberam que os guerrilheiros lutavam pela sua terra. O amor à pátria e a portugalidade das colónias foi-se perdendo à medida que a guerra avançava”.

Segue-se a entrevista a alguém que teve atividade humorística na imprensa, Fernando Gonçalves criou o cartoon Zé da Fisga, que aparecia em publicações com sede em Luanda; Francisco Pinto Balsemão, João Palmeiro e Joaquim Letria irão depor sobre o seu papel de jornalistas ou intervenientes nos meios de comunicação social.

Letria fala dos problemas com a censura mas também da autocensura, e conta a experiência amarga que teve na Guiné como repórter de guerra:

“Posso contar que me levaram ao Palácio do Governo por causa de um telegrama, com cerca de 150 palavras, que eu enviei para o Diário de Lisboa por correio. Julgava eu que o telegrama tinha sido enviado, quando aparece um jipe, conduzido por um funcionário para me levar ao palácio. E aí fui muito maltratado por General Arnaldo Schulz e pelo representante do SNI. Porquê? Porque eu tinha tentado enviar para Lisboa informação classificada que prejudicava as nossas tropas. Eu escrevi no telegrama que tinha havido um ataque do PAIGC que tinha matado nove soldados portugueses e dizia aonde é que tinha sido o ataque, quantos soldados é que tínhamos na Guiné e quando é que a guerra tinha começado. Fui repreendido por ter contado a verdade. Tinha cometido um erro gravíssimo e se o voltasse a fazer mandavam-me para Lisboa”[1].

Para Letria a guerra colonial é uma história por contar, ainda há muito para mostrar. E recorda que ainda não foi ouvida gente que gravava as mensagens de Natal, esses operadores da RTP ainda não testemunharam.

(Continua)
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Notas do editor:

[1] - A propósito destas mortes anunciadas pelo jornalista Joaquim Letria, consultar o Poste de 7 de Dezembro de 2017 > Guiné 63/74 - P15455: Notas de leitura (783): “Sem Papas na Língua”, Joaquim Letria em conversa com Dora Santos Rosa, Âncora Editora, 2014 (Mário Beja Santos).

Último poste da série de 6 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20820: Notas de leitura (1278): “O jornalismo português e a guerra colonial”, com organização de Sílvia Torres, Guerra e Paz Editores, 2016 (1) (Mário Beja Santos)

3 comentários:

Fernando Ribeiro disse...

A capa do livro mostra-nos Fernando Farinha, o lendário repórter de guerra da revista Notícia, de Luanda, que tinha o mesmo nome que um popular fadista da época. Apesar de se apresentar vestido de camuflado na fotografia, Fernando Farinha era civil. Como tal, participou sempre desarmado nas muitas operações militares que fez. As suas "armas" eram apenas uma máquina fotográfica, uma esferográfica e um bloco de notas. E tudo isto para quê? Para que a censura cortasse 95% ou mais das reportagens que ele fazia, com tanto risco para a sua própria vida.

Quase nunca se podia falar de guerra na imprensa angolana, tanto ou menos ainda que na imprensa metropolitana. Oficialmente, a guerra em Angola já estava ganha, limitando-se a umas quantas ações punitivas contra meia dúzia de bandoleiros que teimavam em inquietar as populações pacíficas e "portuguesas". As reportagens de Fernando Farinha iriam pôr em causa esta "verdade" oficial e eram, por isso, censuradas sistematicamente. Mas Fernando Farinha nunca desistiu, como nunca desistiu o próprio órgão de informação para o qual trabalhava. Mais tarde ou mais cedo, uma das suas reportagens iria conseguir romper o silêncio imposto pela censura e a revista iria aumentar as suas vendas substancialmente, ao abordar um tal assunto tabu.

Foi, de certo modo, o que aconteceu algures no segundo semestre de 1973. Fernando Farinha partiu para uma operação no distrito do Cuando-Cubango com um grupo de "Flechas", que eram uma força paramilitar criada pela PIDE/DGS, constituída por Bosquímanos, os verdadeiros indígenas da região, chamados Khoisan pelos antropólogos. Os "Flechas" que Fernando Farinha acompanhou partiram para a operação sem rações de combate na mochila. Em vez de rações, levaram unicamente uma panela vazia cada um. Os alimentos que eles iriam comer durante a operação iriam ser as frutas, raízes e peças de caça que fossem encontrando pelo caminho. A progressão feita por eles foi de tal modo violenta, que ao terceiro dia Fernando Farinha teve que ser evacuado de helicóptero! Ficou uma semana numa cadeira de rodas, com os pés enfaixados em ligaduras. A revista Notícia teve então autorização para publicar uma reportagem, não sobre a operação militar, mas sobre o estado em que Fernando Farinha ficou ao tentar tomar parte nela!

Antº Rosinha disse...

No Cuando Cubango os últimos 4 anos de guerra foram dominados pelos flechas, pela PIDE e principalente pelo Governador de distrito, Capitão e depois Major Branco Ló, que governou com tudo na mão, com a política de Spínola na Guiné, mas com muito mais sucesso e mais facilidades.

Os sobas estavam todos com o governador, com a maior da tranquilidades e a maior das confianças.

Com os 40 anos de guerra seguintes, foi naquela região que se deu a célebre batalha do Cuito, fazemos ideia o que sofreram aquelas sanzalas, que nunca tinham visto qualquer guerra até ao 25 de Abril.

A tropa portuguesa limitava-se a alguma força aérea, base aérea de Serpa Pinto e a duas companhias (N'riquinha e Longa) naquele suplício da claustrofobia do arame farpado, nas terras-do-fim-do-mundo.

DE 70 a 74, foi ali o meu passatempo na Regional da JAEA.

Era uma região muito visitada por jornalistas e caçadores.

Manuel Luís Lomba disse...

Pelo P15455, em 7/12/2015, o Beja Santos dá-nos a conhecer a afirmação do Joaquim Letria à jornalista Dora Santos Rosa, de que no dia do desembarque do PR Américo Tomás e da sua comitiva na ponte-cais de Bissau, ocorrido em 1/2/1968, a 9 ou 10 km dali, o PAIGC havia matado em combate 11 soldados portugueses, uma certeza absoluta, colhida dum médico militar, que telegrafara ao seu Diário de Lisboa para a noticiar, mas que que o telegrama fora censurado, etc. etc.
Sujeita à prova pelo nosso meticuloso co-editor Carlos Vinhal, a notícia era falsa, informou o Beja Santo que não editaria aldrabices e este contactou o editor do livro, no sentido de chamar o Joaquim Letria à colação. Sem resposta.
Neste livro da da Sílvia Torres, Joaquim Letria é recorrente nessa afirmação, que o Comandante-Chefe e o director do SNI se haviam levado do diabo contra ele, por ter telegrafado ao Diário de Lisboa que, no dia desse evento, o PAIGC havia matado 9 soldados portugueses, com a indicação do local dessa matança, mas que o telegrama fora censurado na Central de Bissau.
Em 1968, o mancebo Joaquim Letria já teria cumprido o serviço militar(?) e deveria saber duas coisas: o que fizera não era comunicação social, mas a informação ao IN; que, em situações de guerra, todos os Estados censuram a comunicação referida a ela. Nos regimes democráticos, os jornalistas, noticiaristas e os seus directores incorrem no dever da auto-censura e os correspondentes de guerra estão sujeitos à censura militar.
No século XX, os soldados portugueses apenas morreram em combate, como moscas, na Batalha de La Lys, sob o alto-comando da Inglaterra...
A Guerra da Guiné continua a ser mal contada...
Ab.
Manuel Luís Lomba