quarta-feira, 29 de julho de 2020

Guiné 61/74 - P21207: Historiografia da presença portuguesa em África (224): Viagem à Guiné, para definir as fronteiras, 1888 (4) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Dezembro de 2019:

Queridos amigos,

Dou como totalmente incompreensível o silenciamento de um texto tão precioso, redigido no exato momento em que tomávamos posse da península de Cacine e entregávamos a bacia de Casamansa à França.
O Capitão-de-Fragata Costa Oliveira é minucioso e não esconde a paixão desta descoberta guineense.

Deixa-nos um excelente relato sobre o chão Felupe. Alerta as autoridades para a importância do presídio de Bolor, era preciso muita firmeza para manter os Felupes respeitosos à presença portuguesa, cita Marques Geraldes que combatera com bravura Mussá-Moló na região do Geba, era indispensável "um severo corretivo àqueles selvagens, ocuparmos novamente o antigo presídio de Bolor".

E conclui, como bom marinheiro: "Será bom não esquecer que para auxiliar esta ou qualquer outra expedição que tenha de operar à beira-mar são indispensáveis as lanchas a vapor adequadas a esta perigosa navegação e um navio de guerra de maior lotação, que possa com o fogo da sua artilharia e escaleres armados, proteger o embarque e desembarque das forças militares e auxiliares".

E há outro dado fundamental deste documento: a Guiné não estava pacificada nem a Norte, nem no Centro, nem no Sul, e bem sabemos os sustos com que se vivia dentro das muralhas de Bissau, com os Grumetes e os Papéis prontos para as escaramuças. São dados que se pretendem silenciar quando se fala na nossa presença de cinco séculos na Guiné Portuguesa...

Um abraço do
Mário


Viagem à Guiné, para definir as fronteiras, 1888 (4)

Beja Santos

O Boletim da Sociedade de Geografia, 8.ª Série, N.º 11 e 12, 1888-1889, traz um importantíssimo trabalho do Capitão-de-Fragata Eduardo João da Costa Oliveira, sócio da Sociedade de Geografia e que fora o comissário português encarregado de estudar a demarcação das fronteiras à luz da Convenção Luso-Francesa.

É um documento precioso, na minha modesta opinião, um dos mais valiosos sobre a época em referência. Como se poderá ver neste e textos subsequentes. Costa Oliveira fora nomeado para dar execução ao tratado assinado por Portugal e a França, parte com o adjunto, um antigo secretário-geral da Guiné, o Sr. Augusto César de Moura Cabral.

O comissário português para a demarcação das fronteiras da Província da Guiné, em consonância com a Convenção Luso-Francesa de 1886, deixou-nos um esplêndido relato das suas incursões, repleto de observações vivacíssimas e considerações políticas de inestimável valor político. A Província de Cacine subiu até ao Corubal, vemo-lo agora no Geba, onde escreve:

“O futuro da Senegâmbia está ligado ao rio Geba. Geba e Dandum são pontos estratégicos e importantes do sertão, e, se fossem convenientemente guarnecidos e defendidos, assim como Sambel Nhantá, S. Belchior e outros pontos no Corubal, à sombra dessa protecção, havia de desenvolver-se rapidamente”.

Relata com imensa intensidade um ataque de formigas, bebe água como uma sanguessuga, um guineense resolve o problema preparando-lhe uma beberragem com sabão. Sente-se fascinado pela floresta, pelos rios e rias, é recorrente em exclamativas, assim: “É formosíssimo o sertão de Buba!”.
Estão agora a caminho de Contabane e não esconde a sua atração por todo este fascínio:

“Quem vê a Guiné de fora, e conhece somente os seus mangais e os lodos das suas extensas planícies, morbíficas e pestilenciais, não pode sequer imaginar as belezas que o seu interior encerra. Cursos de água cristalina correm em todas as direcções e sentidos; grandes manadas de gado vacum pastam sossegadamente na erva viçosa e fresca de seus vastos prados, matizados pelas cores variegadas de mimosas boninas; campos cultivados pela mão da mulher africana que, com o filho às costas e vergada sob o peso das costas cheias de maçarocas de milho, lá vai a caminho da povoação; florestas impenetráveis aonde abundam o ébano, o mogno, o pau-sangue e tantas outras madeiras apreciadas na Europa; caça variada e em prodigiosa quantidade, enfim, um encanto para quem pela primeira vez pisa o interior do tão cobiçado continente negro!

E dizem ser pobre a Guiné!

Pois será pobre um país onde a vegetação é tão vigorosa e rica; aonde há milhares de cabeças de gado bovino e lanígero; aonde vive o elefante em numerosos rebanhos; aonde há mel, cera e oiro nativo; aonde a árvore-da-borracha é vulgaríssima, e como que a completar todo este esplendor, rios enormes e navegáveis por onde se podem conduzir todas estas riquezas às capitais? Não, não pode ser! A Guiné é rica, muito rica, mas… desconhecida, e tanto basta!”.

Voltam a Buba, e a sua narrativa quase que ganha um cunho épico, vê-se que tem o condão para a literatura de viagens:

“Cobertos de pó e lodo, com o fato esfarrapado pelos acerados espinhos das florestas e extenuados de fadiga, entrámos em Buba, aonde éramos esperados pelos membros da Comissão Francesa, Comandante da Praça e destacamento, Capitão Bacelar, nosso companheiro de trabalhos, e muitos indígenas que, com verdadeira curiosidade infantil, se acotovelavam e apertavam para verem mais de perto os viajantes portugueses.

Buba, cabeça do concelho de Bolola, magnificamente situada na margem direita do rio Grande, defendida pelo lado de terra por forte paliçada e onze peças de artilharia e duas metralhadoras – mas sujeita a qualquer insulto pelo lado do rio – com um clima relativamente saudável, foi uma estação comercial florescente, quando a mancarra era cultivada naquela região”.

A terceira e última parte da sua viagem começa com algumas explorações na ilha de Bolama e depois partem para Carabane – Casamansa – Zinguinchor, que eram territórios portugueses que foram ocupados pelos franceses. Sobre a ilha de Carabane observa:

“A ilha é pequena e pantanosa. Ao NE e sobre areia fina e branca edificaram os franceses, em 1836, a povoação, que pouco tem prosperado. Apenas se notam uns três edifícios construídos à europeia, o posto ou residência do administrador, as casas Blanchard, Maurel Frère & Cª. e a residência do missionário. Na retaguarda do posto estende-se um vasto pântano, exalando continuamente miasmas paludosos. Há um posto aduaneiro, dirigido por europeus, e parece-me ser importante o movimento comercial. Carabane está abaixo de tudo quanto vimos na Guiné!”.

Seguidamente, temos uma descrição do Casamansa em que Costa Oliveira dá a palavra a Brosselard, o comissário francês. De facto, esta viagem formalizava a tomada de posse da região do Casamansa pelos franceses. Insista-se na riqueza dos pormenores, a sua narrativa, é bem perceptível, envia recados para os governantes de Lisboa. Por exemplo, explica a importância do presídio de Bolor e a necessidade de intensificar a presença portuguesa em chão Felupe.

É um texto irresistível:

“Naquele país sem outeiros nem vales por toda a parte se navega (e navegando se vai a toda a parte), por entre muralhas impenetráveis de viçosíssimos mangues que tapam as margens, sotopostos às verdes palmeiras de dez castas diferentes, aos corpulentos poilões, aos elevados cedros e a mil outras espécies de árvores tão antigas como o solo onde se prendem.

A perspectiva exterior da Guiné é, pois, encantadora; mas assim como entre essas ramagens floridas se aninham venenosas serpentes, também à sombra desse arvoredo parrado se aspiram miasmas que ameaçam morte; tudo está em resistir ao primeiro combate: a vitória fica segura para sempre.

É nesses plainos intermináveis e paludosos da Guiné Portuguesa que correm os rios de S. Domingos, de Geba ou Corubal, o Grande de Bolola, o Tombali, o Cumbijã e o Cacine, e seus muitos braços e esteiros que neles desaguam.”

É neste contexto que nos fala das ruínas do presídio de Bolor, em chão Felupe, e o porto de Bolor, deploravelmente em ruína. E observa:

“De toda a nossa Guiné, é esta a posição mais saudável e para lá vão convalescer os doentes de Cacheu, por ser um solo de areia desassombrado de matas em derredor e exposto às direcções frescas do mar”.

A mensagem que deixa nas suas conclusões é como que uma sacudidela aos governantes, aos políticos, enfim, aos vindouros:

“A Guiné é rica ou não é. Se é rica e pode ter ainda um futuro brilhante, dê-se-lhe o que for preciso para a fazer desenvolver. Se não é rica e o défice cresce anualmente em progressão assustadora, ceda-se à França”.

O capitão-de-fragata deixa-nos um testemunho espantoso da sua viagem em que concebeu uma carta da Guiné com várias limitações, circunscreve a topografia aos pontos por onde passou, mas é um documento riquíssimo. E a sua mensagem final tem algo de pungente, um território rico e fértil entregue à indiferença.







Extratos da Carta da Guiné Portuguesa, elaborada pelo capitão-de-fragata Eduardo João da Costa Oliveira.
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Nota do editor

Último poste da série de 22 de julho de 2020 > Guiné 61/74 - P21191: Historiografia da presença portuguesa em África (223): Viagem à Guiné, para definir as fronteiras, 1888 (3) (Mário Beja Santos)

12 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Tens razão, Mário, é um período mal conhecido e mal amado da nossa história comum, de Portugal e da Guiné... Bolas, isto diz-nos respeito a todos, portugueses e guineenses... A identidade de um povo também passa pelo território!...

Estou-te grato por estas preciosas "pérolas"... Estou a ver que o arquivo da Sociedade de Geografia é uma "mina" de informação sobre a nossa presença em África, e protanto sobre a África, que é preciso tratar, transformando-o em conhecimmento.

Um abraço, Luís...

PS - E "boas férias", se for caso disso...

Valdemar Silva disse...

....era indispensável "...ocuparmos...o antigo presídio de Bolor".
Não consigo perceber que presídio era este, também havia o presídio de Geba e mais.
Que presídios eram estes?
Porquê indispensável a ocupação?

Valdemar Queiroz

Manuel Carvalho disse...

Meu caro Valdemar os presídios julgo que eram locais onde mantinham os escravos até serem embarcados. No caso deste de Bolor nunca lá fui mas ficava na margem direita do rio Cacheu mesmo na foz a sul de Suzana. Podes ver no mapa da Guiné.

Um abraço

Manuel Carvalho

Anónimo disse...

Quanto aos acima referidos “Presídios”....

Documentação sobre eles e toda a costa da Guiné no seu importante tráfego de escravos é passível de ser consultada na Biblioteca do Congresso Norte Americano.
Fundada1800,transformou-se em fonte de conhecimentos internacionais de incrível dimensão.
Com 103 milhões de documentos,cerca de 20 milhões de livros,filmes,mapas,fotografias,música,manuscritos e gráficos de todo o mundo.
Contendo material em mais de 450 idiomas é hoje a maior biblioteca a nível mundial.
Recebe mais de dois milhões de visitantes anuais.

Um abraço
J.Belo

António J. P. Costa disse...

Bom dia Camaradas

Este tipo de documentos continua a dar-nos o conhecimento do que era a Guiné no Séc. XIX.
O mais provável é que ninguém tenha considerado útil ler estas descrições. Imaginar dava trabalho intelectual e não conduzia a nada. Quem tinha que decidir, se o fizesse com base em pouca informação teria decisão simplificada.
Neste, como noutros documentos da Sociedade de Geografia, pode ser colhida muita informação colateral e não apenas geográfica. A análise da toponímia leva a concluir quais seriam as localidades que, naquele tempo era mais importantes. Poderemos assim ver a mudança da importância das diferentes localidades, desde a antiguidade aos tempos da guerra.

O termo "presídio" é antigo na terminologia militar e não obrigatoriamente ligado à escravatura. Encontrei referência ao "presidio de Cascais", o que me levou a concluir que, pelo menos no Séc. XVII a expressão "presídio" seria sinónimo de força militar permanentemente posicionada.

Um Ab.
António J. P. Costa

Anónimo disse...

Terminologia ainda mais moderna quanto ao uso do termo “presídio” pela Instituição Militar.
O chico esperto do Cap.Belo passou uma semana de férias (pagas e alimentadas) no Presídio Militar de Tomar por declarações não autorizadas a jornalistas na Suíça ,Alemanha e Holanda.
A terminologia quanto a “presídios” evoluiu no tempo,os “nabos” dos peões de brega ...não!

(Será que esta está documentada na Biblioteca do Congresso Norte Americano?)

Como muito bem escreveu A.Branquinho..... “Conversa com o meu umbigo “.

Um abraço presidiário do J.Belo

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Amigos, nada como ir ao dicionário:

presídio | s. m.

pre·sí·di·o
(latim praesidium, -ii)
nome masculino
1. [Antigo] Acto de defender um forte ou uma praça militar.

2. Força militar que guarnece uma praça de guerra. = GUARNIÇÃO

3. Essa praça de guerra.

4. Prisão militar.

5. Pena de prisão que se deve expiar numa praça de guerra.

6. [Por extensão] Pena de detenção. = PRISÃO

7. Edifício onde se cumpre essa pena. = CADEIA, PENITENCIÁRIA, PRISÃO


"presídio", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2020, https://dicionario.priberam.org/pres%C3%ADdio [consultado em 30-07-2020].

... Mas não confundir com:

Presidium | s. m.

Presidium |prèzídiu-m|
(palavra russa)
nome masculino
[História] Órgão do Soviete Supremo da U.R.S.S. que exerceu até 1990 a presidência colegial do Estado.


"presidium", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2020, https://dicionario.priberam.org/presidium [consultado em 30-07-2020].


... A etimologia da palavra "presídio" remete para o latim "presidium", que significa antes de mais proteção...

https://pt.wiktionary.org/wiki/pres%C3%ADdio

Tabanca Grande Luís Graça disse...

O vocábulo está claramente associado à expansão marítima (, parece que agora é "politicamente incorreto" dizer-ser "Descobrimentos")...

Aparece na nossa língua por volta de 1562-1575, segundo o dicionário Michaelis

Valdemar Silva disse...

Então, já se percebe o 'indispensável ocupar o antigo presídio de Bolor' por se tratar do local de uma guarnição militar.
Parece que presídio de Geba era muito importante e surge, agora, a questão quanto à sua localização. Seria em Geba próximo de Bafatá? Nesse caso ficaria muito no interior e afastado da costa.
Lembro-me de Geba por lá haver artífices de metais, mas nunca lá fui e nem sequer sei como seria a tabanca, e julgo que durante a guerra nunca teve destacamento militar.
E quanto a presídios, os outros por cá, em Tomar, Elvas e mais alguns, estavam dentro da 'estratégia militar' existente. Portugal, mesmo antes de 1961, seria o único país da Europa (vá lá) com quartéis militares em todas as cidades, algumas vilas e até aldeias. Para quê tanta tropa?
Realmente estes documentos da Sociedade de Geografia, que Beja Santos nos tem apresentado, são muito importantes e explicam o que verdadeiramente foram os '500 anos' dos portugueses naquelas paragens.

Ab. e saúde da boa
Valdemar Queiroz

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas

Tenho ideia de que em Geba, em 1968, existia uma guarnição militar. Não sei a que nível. Talvez Gr Comb....
Os livros da CECA poderão tirar esta dúvida.
Ficámos a saber que "presídio" é um termo antigo com vários signifucados, perdidos e ganhos ao longo do tempo.
Quanto à distribuição da unidades militares pelo país, direi que "a coisa vareia". Há países que optam por grandes/médias concentração de tropas em certos locais; outros dispersam pequenas guarnições por todo o território, de acordo com os seus conceitos de defesa nacional ou virados para a "ordem interna", o que também é uma opção. Não há soluções bacteriologicamente puríssimas.
Quanto à biblioteca do congresso diria que ou está muito bem organizada e informatizada ou ficará inconsultável com a devida precisam. As pequenas obras e documentos serão cilindradas pelos grandes volumes/assuntos, especialmente ao menor erro de catalogação/indexação. Por mim não vou lá. E se o Trump está na sala de consulta? Dassssssssssssse!

Um Ab. e bom dia
António J. P. Costa

António J. P. Costa disse...

Há um erro!
A palavra é precisão e não precisam.
Um Ab.
Bom FdS

Valdemar Silva disse...

Consultando o blogue verificamos ter existido uma guarnição militar em Geba, a CART 1690 (1967-69).
Foi em Geba, que morreu em combate o Cap. Art. Manuel Carlos Guimarães, devido a arrebentamento de uma mina.
Há uma certa 'confusão' com destacamento de Bajara e Geba, que parecem ser militares da mesma CART 1690, e em ambos cercados por arame farpado, mas parece que Banjara não tinha população.
Fica, no entanto, a dúvida se seria esta a Geba do 'presídio de Geba', que sendo esta haveria por certo vestígios antigos.

Valdemar Queiroz