sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21585: A galeria dos meus heróis (40): O meu amigo Doc - II (e última) parte (Luís Graça)



Lourinhã > Praia da Areia Branca >  14 de agosto de 2020 >  Pôr do sol com uma traineira da pesca da sardinha a regressar ao porto de Peniche.

Foto (e legenda): ©  Luís Graça (2020). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



A galeria dos meus heróis: o meu amigo Doc 
(II e última parte)

por Luís Graça


4. A mãe não conteve o espanto e as lágrimas quando ele, o Doc, 
de rompante, espavorido, lhe entrou pela casa dentro, 
à hora do chá, um hábito colonial 
que o casal mantinha desde Moçambique… 
Com duas malas na mão, uma com a roupa 
e os demais objetos pessoais, e outra com o resto 
dos seus livros, algumas garrafas de uísque, 
mais peças de artesanato africano. 


Eu só soube da sua chegada da Guiné, passados uns dias. A mãe, quando ia à praça do peixe, frutas e legumes, viu-me de relance, na redação do jornal, parou, espreitou, entrou e disse-me:

− Luisinho (também me tratava por Luisinho, como o filho), o teu amigo chegou!... Mas não está nada bem, coitado!... Está há dias ferrado a dormir, fechado no quarto, diz que não quer ver ninguém… Passa por lá, no fim de semana, pode ser que ele, por ti, se queira levantar e falar um pouco… Só lhe fazia bem...

A dona Domitília Meneses era uma santa senhora. Era professora primária, ainda no ativo. Tinha sido minha professora da 4ª classe e do exame de admissão ao liceu. Era moçambicana, de origem goesa, descendente de gente da pequena nobreza local, um dos seus antepassados teria sido vice-rei da Índia em meados do séc. XVIII.

Já o mesmo não se poderia dizer do marido, também ele professor do ensino primário, velho republicano, maçónico, dizia-se. Era mais velho do que ela uns bons vinte anos, e fora aposentado compulsivamente da função pública por ter apoiado a candidatura do general Humberto Delgado à Presidência da República em 1958.

Conhecia-o mal, era um homem amargurado, pouco sociável, para não dizer misantropo… Aliás, confesso que tinha medo dele, ou melhor, não gostava dele. Respeitava-o por ser o pai do meu amigo e o marido da minha querida professora. 

 Na realidade, ele tinha sido  marginalizado,  legalmente pelo poder político central e socialmente  pela elite local. Passando a ser declaradamente um “oposicionista, um indivíduo contra a situação” (sic), deixara de ser convidado para integrar os corpos sociais das diversas associações locais e confrarias de que era sócio ou membro  (a filarmónica, os bombeiros, o clube recreativo, desportivo e cultural, o núcleo local da liga dos combatentes, etc.). Em boa verdade, foi a sua "morte social". Amargurado, foi obrigado a deixar as suas funções de encenador das récitas e cegadas que na época carnavalesca animavam o palco do teatro local bem como as ruas da cidade.

Raramente saía à rua, a não ser em algumas efemérides patrióticas, como o 1º de dezembro de 1640 ou o 5 de outubro de 1910. Ou para ir a Lisboa, consultar vários arquivos públicos. Dedicava-se aos seus livros, era um apaixonado africanista, correspondente da Sociedade de Geografia de Lisboa, interessando-se, muito em particular, sobre a história da colonização de Moçambique, no tempo da monarquia constitucional e da I República.

O único ponto em que estava de acordo com a política do Estado Novo era na questão da “defesa intransigente do Ultramar”. Tinha estado na sua juventude em Moçambique, primeiro como expedicionário e depois, mais tarde,  como professor. E alí viria a conhecer a mulher no final dos anos 30. O filho nasceria, na Beira, em 1942. E tivera como ama de leite uma jovem mãe negra. 

Parecidos em muitos aspetos de personalidade, pai e filho, separados por 4 dezenas de anos de diferença,  engalfinhavam-se com frequência em discussões, por vezes violentas, sobre o que se estava a passar nos territórios ultramarinos portugueses (mas também na África Austral do "apartheid").

Tinha ideias, o “Velho”, sobre o futuro desses territórios (“possessões ou colónias, como queiras chamar-lhe”, dizia ele ao filho), defendendo todavia o princípio da autodeterminação progressiva, a par da criação de uma  "Commonwealth" à portuguesa. Era um admirador da colonização britânica.

Apoiava o esforço militar do País, contra o “terrorismo internacional” (sic), mas era crítico em relação à vontade e à capacidade de Salazar de enveredar por uma “solução política” para o problema, nomeadamente em relação a Angola e Moçambique, que eram,  para ele,  as verdadeiras “joias da Coroa”, depois de perdida, “miseravelmente” (sic), a Índia Portuguesa.


5. O meu amigo Doc era, para mim, o irmão mais velho 
que eu nunca tivera, separavam-nos uma meia dúzia de anos.   
Tínhamos  alguns interesses intelectuais em comum, 
a começar pelo teatro, a literatura, a arte 
e, claro, a política. 

Nessa época, poucos jovens da minha idade tinham ainda “consciência política” (como então se dizia), porque só uma minoria tinha acesso a um educação de nível superior e a fontes de informação, independentes e credíveis.  Vivíamos num regime de partido único, não havia opinião pública, os jornais estavam sujeitos à censura, havia a polícia política, a PIDE, e a única televisão de que dispúnhamos, a RTP, era a voz do dono, tal como a Emissora Nacional… Era o tempo dos 3 FFF: Fátima, Futebol e Fado, três coisas que o meu amigo Doc solenemente detestava…

O que é que eu sabia do que se passava em África, no nosso glorioso Império Colonial ? Racismo, colonialismo, trabalho forçado, revoltas nacionalistas… ? Não, nunca ouvira falar...  Só me lembro, na igreja, de pedirem dinheiro ao meu avô, para ajudar as missões católicas, o mesmo era dizer, os “pretinhos da Guiné”...

Eu vivia numa pequena cidade da região centro, onde só os mais afortunados iam estudar para Coimbra (que ficava mais perto do que Lisboa)… A maioria dos jovens da minha geração sabia lá o que se passava em África… Mal sabiam do se passava à sua volta, nos campos e nas fábricas, no mar, nas escolas, nos quartéis, nos hospitais… 

Aliás, o que é que a gente sabia e podia saber ? Só o que "eles" queriam que a gente soubesse..."Saber ler, escrever e contar", acrescentava o meu amigo Doc, "o que não quer dizer... saberes pensar pela tua própria cabeça"...

Além disso, as nossas aldeias, vilas e pequenas cidades do interior começavam a ficar envelhecidas, com a saída dos mais jovens, para o ultramar e a emigração (interna e externa). Muitos dos meus colegas de escola nunca mais os vi. Alguns como eu fixaram-se em Lisboa ou no Porto, onde eram maiores e melhores as oportunidades de emprego. 


6. Enquanto ele, o Doc,  esteve na Guiné, correspondiamo-nos 
regularmente,  duas vezes por mês. Eu guardei 
religiosamente os aerogramas que ele me mandava.
Tinha intenção de os organizar por data e devolvê-los 
ao remetente, logo que ele chegasse, “são e salvo”, 
como eu esperava que ele chegasse.

Quando eu o fui visitar, não me deixou sequer falar dos aerogramas, que naturalmente lhe traziam recordações dolorosas da Guiné, que ele queria extirpar para sempre da memória. A sua resposta, brusca e mal humorada, foi:

− Queima-os, Luisinho, queima-os!
− É um pedido ?
− Não, é uma ordem!

Não lhe fiz a vontade. Devia tê-lo feito ? Continuaram guardados ao meu cuidado. Sempre pensei que ele poderia, com os anos, mudar de opinião. Mas, nunca mais quis falar da Guiné e desses "anos de chumbo" em que esteve na tropa e na guerra,,, (Acabei por entregar os aerogramas à irmã, no dia do seu funeral, e hoje tenho pena de não os ter fotocopiado, limitei-me a copiar alguns excertos. )

Curiosamente ele nunca me escrevia cartas, mas apenas aerogramas, que eram de borla. "Com o dinheiro que poupava nos selos, comprava livros, revistas, peças de artesanato e... uísque", dizia-me ele, a gozar. 

Eu tinha receio que a correspondência, trocada entre nós, pudesse ser intercetada pela PIDE. Ele tranquilizou-me a esse respeito. Tinha confiança no SPM (acrónimo de Serviço Postal Militar) que lidava todos os dias com várias toneladas de papel, a circular pelos diversos territórios ultramarinos. 

Por outro lado, e até pelo conhecimento pessoal que ele tinha da PIDE na Guiné, com quem tinha de lidar, a contragosto, na sua qualidade de oficial de informações e operações, ele conhecia relativamente bem os pontos fortes e fracos daquela polícia, a começar pela sua estrutura e a organização… 

Os recursos humanos, dizia-me,  deixavam muito a desejar: fracas habilitações literárias, baixo nível cultural, insuficiente conhecimento de línguas estrangeiras (a começar pelo francês e o inglês), iliteracia política… "Até o português escrevem mal e porcamente!"... 

Por outro lado, havia alguma rivalidade e até desconfiança em relação ao exército…(e vice-versa). “Os gajos eram uns cepos, eram capazes de desconfiar de uma inofensiva bíblia protestante mas passavam por cima de um livro do Franz Fanon, que era dinamite” – afiançava o meu amigo. 

Cepos ?... "Só não eram maus a torturar, a arrancar informações dos pobres diabos que a gente, o exército, lhes entregava, para eles fazerem o trabalho, sujo,  que lhes competia... Felizmente, que o meu pelotão de informações e operações não foi treinado para torturar e  eu, por mim, nunca tolerei essas práticas", garantiu-me o Doc (a quem um dia perguntei que raio de especialidade era aquela que lhe haviam dado).

Cepos ou não, eu é que não ia na conversa do Doc: com os meus verdes anos, e com os medos  que alguns amigos, no liceu, me haviam metido na cabeça, achava que a PIDE era como Deus, omnipotente, omnisciente e omnipresente. Pelo sim, pelo não, não fosse o diabo tecê-las, era melhor pôr a salvo a correspondência do Doc, para mais sabendo que ele tivera “chatices” na Universidade e, depois, na Guiné.

Sabia que o meu avô, materno,  era da “situação”… Era um bom homem, ia à missa, raramente discutia política, e muito menos comigo… Não gostava do Salazar, é verdade, mas tolerava-o. Encolhia os ombros e, às vezes, desabafava com os filhos e netos, quando jantávamos lá em casa:

− Meus filhos, hoje o Salazar, amanhã, quem sabe, talvez pior, o diabo em figura de gente…

O meu avô, coitado,  era dos que acreditavam que o Salazar é que nos tinha livrado da guerra, com a ajuda da Nossa Senhora de Fátima… Um seu irmão mais novo, que eu nunca cheguei a conhecer,  tinha sido  expedicionário nos Açores, durante a II Guerra Mundial, e tinha regressado a casa, “são e salvo"...,  para morrer,  afinal,  uns anos depois, de "doença do peito", de tísica, de tuberculose... Falava-me que tinha tido muito medo, por causa do irmão,  dos submarinos alemães que infestavam o Atântico Norte… e que chegavam a Cabo Verde.

De resto, tinha a sua tertúlia, os seus amigos, os seus petiscos. Mais importante: o meu avô tinha uma adega, a que chamavam a “adega do povo”, aberta a todos os amigos e vizinhos, embora já fora da cidade… Na adega também tinha o seu escritório e o seu arquivo.

O meu avô estava acima de todas as suspeitas. Era um homem respeitado e respeitável, guarda-livros de profissão, conhecia os “podres” das várias famílias importantes da terra… Razão por que todos o estimavam (e temiam), pondo as mãos no lume por ele. Em contrapartida, podiam contar com o seu “silêncio de ouro”.

Eu gostava muito dele, tinha bonomia e bom humor, nunca se chateava comigo. Dizia-me na brincadeira que era ele, o guarda-livros, quem tinha uma das três chaves do céu…

− Então?... E as outras duas, avô ?

− Tem-nas o padre e o médico!...

A pior desgraça que podia acontecer a um guarda-livros era ser despedido (e, nalguns casos, preso) por abuso de confiança:

− Tens a chave mas não podes abrir a porta… E houve casos, meu filho (tratava-me por filho) de gente, nesta profissão, que não soube qual era o seu lugar, na ordem natural das coisas… Olha, um matou-se, o outro foi parar à prisão…


6. O Doc nunca me deixou publicar nenhuma notícia, 
a seu respeito, no jornal, um quinzenário, 
onde eu trabalhava, como estagiário 
e, em boa verdade,  como  “pau para toda a obra”, 
desde paquete a repórter, embora ainda sem cartão 
de jornalista. Tínhamos uma secção, 
“Correio dos Heróis do Ultramar”, 
onde publicávamos notícias dos filhos da terra 
a cumprir “missões de soberania” além-mar. 


O jornal, regionalista, tinha uma orientação editorial que não se coadunava, de todo, com as ideias (políticas, estéticas, éticas e culturais) do meu amigo que, de resto, era conhecido na cidade como filho de um oposicionista, e já teria, ele próprio, ficha na PIDE (o que, em boa verdade, nunca foi confirmado pelo próprio, não sabendo eu se ele alguma vez tivera tempo e pachorra para confirmar essa suspeita na Torre do Tombo). 

O Doc estava a estudar em Coimbra, na faculdade de medicina, quando foi inesperadamente chamado para a tropa. Na secretaria, explicaram-lhe secamente que, tendo chumbado a uma cadeira, deixava automaticamente de beneficiar do privilégio do adiamento da incorporação militar… Nunca se chegou a apurar a verdade relativamente à suspeita de ter sido a PIDE a despoletar a questão na reitoria ou na direção da faculdade.

Preciso, entretanto, de acrescentar algo mais sobre o jornal onde eu trabalhava (e que foi, de resto, o meu primeiro emprego).

O “meu” jornal estava ligado a uma família local, política, social e economicamente influente. O proprietário era o presidente do Grémio do Comércio.

A filha mais velha, por sinal minha catequista, casara com um “jovem e promissor advogado” que viera de Coimbra, no princípio dos anos 50, e que aqui se fixara.

A minha terra sempre acolheu bem “os de fora”. De imediato, esse advogado foi admitido no “seleto clube local” e aí não levou tempo a perceber quem poderia ser a sua futura clientela e, mais do que isso, quem eram as meninas casadoiras… Era ali que estava a elite local, aquela que tinha património, estatuto, influência, charme, poder e... algum dinheiro.

Ora um dos seus primeiros clientes foi justamente a empresa do futuro sogro, grande (para a época) armazenista de vinhos que exportava para África, e proprietário urbano, “dono de uma rua inteira da cidade” (como se dizia, não sem exagero).

Numa altura em que ainda não havia agências bancárias na província, e com os negócios a prosperar durante a II Guerra Mundial e no pós-guerra, o “Tio Patinhas” (como a gente lhe chamava, nas costas…), era o “banqueiro do povo”, emprestando dinheiro a taxas de juro, usurárias, dizia a má língua do povo. E também se acrescentava que ele fizera fortuna na II Guerra Mundial com os refugiados que se instalaram na nossa costa (Lisboa, Cascais, Ericeira, Figueira da Foz, Espinho, etc.), aguardando um visto para as Américas.

Também dizia a “santa inquisição local” que ele tinha costela de... “cristão novo”.  O que toda a gente sabia, isso sim,  é que ele tinha duas filhas casadoiras, que estavam à espera dos seus príncipes encantados. E esses só poderiam vir de fora. Uma, a mais velha, a minha catequista, como disse, irá casar com o “jovem e promissor advogado de Coimbra”; a mais nova irá dar o nó com um médico, também coimbrão, que igualmente se fixara na nossa terra.

O meu futuro patrão, o advogado, teve, como uma das prendas de casamento 
a direção do jornal (a menos valiosa, materialmente falando, mas nem por isso despicienda para o seu projeto de promoção pessoal, profissional e até polílica). 

Na realidade, era um "jornaleco", um "pasquim" (como lhe chamava o Doc), que todavia se irá tornar, mais tarde, no consulado marcelista,  num influente semanário regionalista com algum prestígio, audiência e até qualidade. 

Dentro de todos os condicionalismos da época (censura, autocensura, ausência de formação profissional e de  regras de deontologia, não dissociação da propriedade e da direção, etc.) foi para mim a minha escola de jornalismo e de escrita, muito embora o Doc andasse sempre a gozar comigo por causa do meu “jornaleco”… Penso que ele não gostava sobretudo da pessoa do diretor…


Tínhamos uma diferença de quase trinta anos, eu e o meu diretor,  a quem, confesso, devo alguns favores.  Numa conversa franca, “cara a cara”, que tive com ele, diretor,  na redação, no dia em que o Marcelo Caetano substitui o Salazar no Governo, ele fez questão de desvendar alguma coisa sobre a sua algo obscura vida coimbrã…

Vivia numa república de estudantes, envolvendo-se na política, no MUD Juvenil, o movimento juvenil democrático, constituído em 1945, no rescaldo da guerra…

− Paixões da juventude, coisas de garotos,  que às vezes têm um preço alto – comentou ele, de um modo algo enigmático.

Como diretor do jornal, gostava de acarinhar os “jovens literatos” da terra, onde me incluía, gente que tinha saído do liceu, uns, poucos, que haviam entrado na universidade, outros, como eu, que esperavam a “sorte grande” da tropa…
Ele próprio me confessara que em Coimbra publicara um livro de poemas, de “qualidade sofrível” (sic), na linha estética da revista "Vértice" (ou seja, do neorrealismo, acrescentei eu, com alguma ousadia).

Admirava agora os jovens, da geração 60, que estavam a aparecer, e que tinham até mais talento do que a sua geração… Para esses havia um cantinho no jornal, uma página juvenil… onde poderiam escrever, “sempre era uma melhor alternativa do que andar por aí a dar cabo da vida e da saúde, e a comprometer o seu futuro, em antros imorais e quiçá subversivos" (sic)...


Percebi o seu "recado" (que, no meu caso, visava "más companhias" como o meu amigo Doc)... Mas só mais tarde é que eu vim a contextualizar toda esta conversa "de pai, mais do que de patrão": tinha como pano de fundo uma campanha que alguns “estado-novistas” estavam a fazer para refrescar as velhas e bolorentas fileiras da União Nacional, de que o proprietário do jornal era um histórico na região… 

Não admira por isso que o “meu patrão” se tornasse rapidamente um entusiástico defensor da “primavera política” do Marcelo Caetano e das suas "conversas em família"...

7. Voltando ao meu amigo Doc… 
que nessa altura  já estava em Coimbra  
e em risco de ser suspenso  pela segunda vez. 

Sempre o tratei por Doc, a partir do momento em que ele entrou na faculdade de medicina, ou até antes, quando ele começou a manifestar a sua intenção de abraçar a carreira médica, já no último ano do liceu… Eu, por meu turno, ainda estava longe de saber o queria fazer da minha vida... Mas começava a preocupar-me com a guerra que alastrava em Angola e com a mobilização dos meus vizinhos e conhecidos, mais velhos...

Em 1962 houve a crise académica, que só mais tarde vim a saber o que era... Em 1964 o Doc foi chamado para a tropa e, menos de um ano depois, estava na Guiné.

Parte da minha formação intelectual e até literária devo-lha a ele, ao meu amigo Doc. Emprestava-me livros, trazia-me livros e revistas quando vinha de Coimbra nas férias, incluindo alguns jornais e revistas, estrangeiros, franceses, que não chegavam à província, como “Le Monde” ou “Le Nouvel Observateur”…

Depois da sua prolongada “cura de sono” (que passou também por uma clínica de desintoxicação alcoolólica, devo acrescentar sem trair a sua memória…), acabou por voltar a Coimbra e à sua “doce boémia”… Com as economias que trouxe da Guiné, conseguiu assegurar a sua independência económica. Fez algumas cadeiras atrasadas no ano letivo de 1968/69. Mas o curso marcava passo. Houve mesmo quem apostasse comigo que ele nunca chegaria a ter o diploma de médico, "quanto mais a poder receitar uma aspirina a um morto"…

Mas foi também a época em que eu deixei de ver o Doc, com regularidade. Soube depois que se tinha incompatibilizado de vez com o pai, por causas eleições legistivas de 1969, rompendo de vez com a sua cidade natal. Há muito que  deixara definitivamente o teatro da cidade, que de resto passou a ter um novo diretor, quando ele foi mobilizado para a Guiné. Enfim, fixou-se de vez em Coimbra.

E eu nessa altura já estava na Guiné, onde votei em branco nas eleições para a Assembleia Nacional.  Ia tendo algumas notícias dele pela sua mãe, sempre extremosa, mas também pela irmã que estava em Lisboa, a tirar línguas germânicas, e que não escondia os seus cuidados pela saúde do irmão, mais velho. Depois perdemos o contacto... Deixámos mesmo de ser íntimos, se bem que a nossa amizade  estivesse para durar até ao fim da vida...

Soube, por outras vias,  que o Doc  se envolvera também na crise de 1969, fora suspenso por dois anos, e tivera  que ir trabalhar na Propaganda Médica (o que terá sido deveras penoso para ele).

Curiosamente, não tenho aerogramas dele do meu tempo de Guiné. E um ou dois que lhe escrevi, não tive coragem, confesso,  de os pôr no correio...

Depois do meu regresso à Guiné, e da minha própria "cura de sono", soube notícias, já a viver e a trabalhar em Lisboa,  da família do Doc:  a dona Domitília Meneses não sobrevivera a um cancro da mama, uns bons anos antes da morte do filho.

Por seu turno, o marido já tinha morrido antes dela, não sem ter tido, porém, duas alegrias: a de ver o seu filho finalmente formado em medicina, aos 30 e picos anos, e logo a seguir a de ter podido dar vivas à liberdade, no 25 de Abril de 1974. (À boa maneira republicana, lançando o chapéu ao ar, enquanto alguns dos seus tradicionais inimigos políticos se trancavam em casa para ver em que paravam as modas.)

A entrada do Spínola para a Junta de Salvação Nacional ainda lhe dera algum alento quanto à possibilidade de se organizarem "eleições livres", com vista à independência de Angola e Moçambique, mas os acontecimentos precipitaram-se e a descolonização que se seguiu foi um dor de alma para o “Velho”, como lhe chamava o filho; morreu em finais da década de 1970, sem ter realizado  o sonho de "um dia ainda poder voltar a Moçambique", terra que ele amava de alma e coração.


8. Por onde andou o Doc, agora médico de pleno direito, 
depois do 25 de Abril e até morrer, 
em 1990 ? 

Apaixonou-se pelo Baixo Alentejo, onde fez o Serviço Médico à Periferia, fez medicina do trabalho numa empresa mineira e numa empresa da pesca do alto, praticou clínica geral nas caixas de previdência da margem esquerda do Tejo, integrou-se na carreira de clínica geral, criada em 1983, pediu uma licença sem vencimemto para se poder alistar como voluntário numa ONG francesa que tinha uma missão médica na Amazónia...

Enfim, "ando por aí", como me garantiu, "a ver se ainda consigo gostar da humanidade" ... Mas nunca mais voltou à Guiné. De tempos a tempos íamos falando ao telefone, ele é que me ligava, eu nunca sabia ao certo por onde ele parava... Gostava de cultivar o mistério de uma certa clandestinidade.

Tinha-me manifestado o interesse em tirar o curso de medicina do trabalho, queria fazer algo de  "socialmente útil"... E eu ainda o ajudei a preparar a candidatura. Detestava a "medicina da caixa" que ainda se fazia nesse tempo, por todo o lado... 

Entretanto, deixara de fumar... Tarde demais.  A doença pulmonar começava a cortar-lhe as asas dos seus sonhos de liberdade, já de si frágeis e erráticos... Teve altos e baixos, euforias e depressões.  Tiraram-lhe um pulmão...

Finalmente, foi pela irmã que eu soube que ele estava a morrer.  
No hospital, num pequeno quarto escuro, ao fim de um corredor sombrio, a 300 metros  do meu gabinete de trabalho…Sozinho como um cão.

© Luís Graça (202o). Revisto: 1mai2022
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Nota do editor:

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17 comentários:

Anónimo disse...

Caro Luís

Uma das inúmeras vantagens de se mugir as renas a tais horas matinais são as divagações literárias que sempre acaba por proporcionar.

Longe de ser a primeira vez que leio “escritos” teus.
Alguns dos textos,e principalmente poemas, têm-me sempre levado à eterna pergunta quanto à publicação em livro.

Ao contrário da criação das referidas renas,ou mesmo do Direito Internacional dentro dos parâmetros Norte-Americanos,(ambos são o que são) não me sinto de modo algum habilitado para crítico literário.
A clássica “ne sutor ultra crepidam”,sapateiro não passes da chinela,ajuda-nos sempre a encontrar o nosso lugar nestas “coisas”.

Este teu texto é...abrangedor.
Porquê abrangedor?
Estranhamente,não sendo o futebol o meu desporto favorito, veio-me à ideia que... “foste a todas as jogadas”!
Mas,e ao terminares o texto,senti a falta (e lá volta a riqueza inspiracional futebolista!) de um golo,ou um cartão encarnado, ou mesmo uma garrafa vazia atirada com raiva para o relvado.

Tudo isso estará “latente” ao longo do texto mas...... falta (será que os “assuecamento” são contagiosos?) o PANG final!

Um grande abraço do J.Belo

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Zé Belo, também concordo contigo: fica-se com a ideia de que, na história, ninguém morre como heroi, morremos todos na praia... incluindo narrador. Mas esta série tem um títuo enganador, "A galeria dos meus heróis"...

Fica a tua sugestão, de verdadeiro crítico literário, para um dia, se eu sobreviver a esta maldita pandemia, "dar a volta ao texto"... Preciso de distanciamento, até afetivo...em relação ao "meu amigp Doc"... que em boa verdade morreu, pela primeira vez, na Guiné...

Boa saúde para ti e as tuas renas. LG

Anónimo disse...

Caro Luís

Também haverá heróis que morrem na “praia”.
Serão dos tais que a vida os leva a morrer... muitas vezes.

O nosso,por muitos tão injustamente ignorado Guerra Junqueiro escreveu “Os Simples”,no qual pede à sua velha ama que lhe cante cantigas de adormecer.

Vindo de tal “pensador” vale a pena lê-lo na sua quase ingénua simplicidade.

“Dei a volta ao Mundo,dei a volta à vida...
Só achei enganos,decepções,pesar........”

Um abraço desde o Círculo Polar Árctico com muita neve,temperaturas bem negativas, e escuridão nas 24 horas do *dia*.

J.B

Manuel Luís Lomba disse...

Luís:
Muito apreciei.
A tua memória e homenagem a um ser como nós, do alvorecer do seu sentido de cidadania, a nosso camarada da Guerra da Guiné, de inquieto soldado da paz pela Medicina ao seu fim na cama de hospital - uma espécie de encontro de contas com os avatares da vida.
O esplendor da condição humana.
Aquele abraço
Manuel Luís Lomba

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Obrigado, Zé Belo, obrigado, Manuel Luis Lombalde. Ter leitores como vocês é já um privilégio,um cria dor de renas no Círculo Polar Artico,outro em Barcelos...
Não preciso de lembrar mais uma vez que esta é uma série literária baseada em figuras de carne e osso que eu conheci.O meu amigo Doc morreu mesmo no Pálido Valente e era médico... Acho que omiti muita coisa da segunda metade da sua vida... Mas o conto é um género literá rio tramado e eu não tenho o génio do Torga ou do Tchekov... Nos "Novos Contos da Montanha" não há gorduras,são obras primas aqueles pequenos contos....Sinto que me perco demasiadas vezes com o circunstancial, defeito de sociólogo.As vossas críticas são essenciais para melhorar a próxima versão. Abracelos. Luis5



Tabanca Grande Luís Graça disse...

Peço desculpa pelas grachas. Escrevo no teclado do telemóvel, o que detesto. Vim a
Lisboa, tenho de voltar até as 23h00 a casa, na Lourinhã.

Anónimo disse...

Gostei muito deste teu trabalho. Parabéns, Luís.

V Briote

Anónimo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Antº Rosinha disse...

Luis Graça, este heroi da tua galeria que nos trazes aqui, traz-me à minha memória as figuras que eu conheci "iguaisinhas" ao pai dele, que não gostavam do Salazar, e que votaram Humberto Delgado.

O que retratas do pai dele, o "Velho", era exactamente o retrato do pensamento político da maioria que em 1958 votava no Humberto Delgado, e estavam convencidos que iam correr com Salazar de vez.

Eu que em 1958 tinha 19 para 20 anos ainda não votava, mas já tinha começado a trabalhar em Angola, festejei com os meus muitos colegas "Velhos", que euforicamente festejaram a vitória garantida de Humberto Delgado.

Esses "Velhos", no caso tal como o pai do teu heroi, ultramarinos, achavam que sem Salazar estava o caso das colónias e outras coisas mais resolvido, mas não sabiam ainda que ia dali a 3 anos aparecer uma "UPA" com suas catanas.

E aí, esses "Velhos", todos anti-salazaristas, penso que se tornaram o grande apoio silencioso do Salazar até ao fim deste.

Para mim, essa geração foi a que sofreu a grande decepção com o fim de Angola e Moçambique as "joias da coroa".

A nossa geração, enfim, ainda estava em idade de reprodução, tudo se resolve.

Até o teu amigo ainda voltou a Coimbra e seguiu a sua vida.

Havia muita gente nas colónias de origem goesa, muito apoiantes das políticas de Salazar.





Hélder Valério disse...

Já tinha produzido um comentário na "parte I" pelo que agora, tendo já adivinhado o desfecho, pouco posso acrescentar a não ser o seguinte:

Concordo com o Zé Belo em que, durante este relato/memória/homenagem, "foste a todas". Seria prudente dizer "quase todas" na eventualidade de haver lembrança de mais alguma faceta.

Realmente o percurso de vida do "Doc" parece ser o resultado da dificuldade de viver e lidar com as contradições que se lhe foram deparando (aliás como acontece com quase todos nós). E não soube, não pude ou não foi capaz de "resolver" essas situações.
É dramático mas não é assim tão raro.

E, curiosamente, ou talvez não, este texto já proporcionou um conjunto não desprezável de comentários os quais, por sua vez, "apontam" para mais umas quantas abordagens. E isso é bom.

Para finalizar, achei graça à "gralha" que te saiu para explicares e pedir desculpa por gralhas anteriores, como por exemplo o "Doc" ter falecido no "Pálido Valente" em vez do "Pulido Valente", ou seja num "Valente menos reluzente e mais empalidecido", já que também a "coisa" escorregou e em vez de "gralha" saiu "gracha", o que não deixa de ter graça.

Hélder Sousa

José Botelho Colaço disse...

Li gostei adorei o texto bem assim os comentários Abraço.

Manuel Luís Lomba disse...

Saudações ao Camarada J. Belo, a curtir a sua noite boreal, sociabilizando com as renas.

No princípio, Portugal foi o Condado Portucalense, o território do Minho e o Douro, mais propriamente, Entre o Minho e Douro, e, quando se alçou a Condado de Portugal, os nortenhos, essa malta patega de aquém-Douro, correu logo com os mouros para além-Mondego e acabará por os correr a eito, só parando em Vila Real de Santo António.

Portanto, Portugal começou, é (foi), o norte; além-Mondego foi (até deixar de ser) a sua primeira colónia. (Ai, o que eu disse!...)

Antes do 25 de Novembro de 1975, havia na minha aldeia um grupo vivencial, menos de uma dúzia, heterogéneo e plural, os mais novos revolucionários, os mais velhos reaccionários, activistas de fim de semana.

Aos sábados e domingos, de dia faziam a revolução e a contra-revolução, mas nas noites de sábado e nas tardes de domingo juntavam-se, para jogar a "lerpa" e emborcar verde tinto. Então os reaccionários de mais posses gratificavam os revolucionários mais desfavorecidos para estes lhes meter os panfletos debaixo das portas e colar cartazes.

Mas o 25 de Novembro veio tirar os reaccionários da sua zona de conforto. E que noite de insónia! Cumprido o horário dos empregos, andou-se por caminhos e a bater às portas dos lavradores, armados ou a armar-se de foices encabadas, enxadas e até de caçadeiras, para "catar" revolucionários.

E no fim dessa semana juntaram-se todos, para o costume...

Os sociólogos que registem: A guerra civil esteve este espoletada e só não explodiu detonada, porque a esmagadora maioria dos intervenientes sabia o que era a guerra, tinha experiência própria dos horrores do combate.
Abraço
Manuel Luís Lomba





Anónimo disse...

As “Lendas e Narrativas” quando contadas à moda do Norte têm sem dúvida um outro “sabor”.
Um sabor ao “antigamente” que só lhes fica bem.

Sendo este mui humilde Lusitano o que sem dúvida vive mais ao Norte do Norte europeu compreendo bem o que as serranias e nevoeiros têm de influências nas Lendas mais obscuras.
O que seria a vida dos velhotes sem algumas “mitologias”?
Mesmo que estas mais não sejam que as...mitológicas suecas!

Um abraço ao Amigo e Camarada Manuel Lomba .

J.Belo

Valdemar Silva disse...

Luís Lomba
Tergiversar a 27 de Novembro aproveitando a boleia do amigo Doc para chegar ao 25 de Novembro de 1975, que bem podia ser 25N75, é quase, quase a querer dizer que estava tudo combinado e até havia um plano B, mas os tais bem organizados na clandestinidade estragaram tudo. E foi o que se viu, só faltou ficarem donos das minas de açorda com coentros e ovos escalfados.
Ainda bem que o cornodovirus não nos chateia, e, assim, sempre vamos falando da reconquista que afinal, verdadeiramente, foram saques e fixação em colónias além Mondego. (ai se os mouros sabem disto)

Sobre mais uma "A galeria dos meus heróis", do Luís Graça, é mais um extraordinário testemunho que podemos considerar do nosso tempo, mesmo havendo quem ouvisse mais novo ou mais velho falar do assunto.

Abracelos
Valdemar Queiroz

Anónimo disse...

Paulo Cordeiro Salgado (por emial)
28 nov 2020 08:32
Caros Editores,

Camaradas deste Blogue e daquelas “batalhas”

Há dias fiz um comentário que dirigi ao Luís [, e que ele depois publicou...], pela força emocional do seu depoimento sobre o seu amigo DOC.

Sobre esta segunda parte, confirmo a gratidão por esta partilha. Aqui residem os sentimentos nobres de amigos que se conheceram e que viveram e em que cada um, à sua maneira, era – é, no caso do Luís – de uma nobreza digna de “homens grandes”. Destas “batalhas” aprecio o carinho, a solidariedade e a sobriedade. Grande Doc. Tu, Luís, já eras homem grande, pela luta em favor de um enorme Blogue, com os companheiros que te acompanham na sua edição - com estas “batalhas” emboscaste-nos nas emoções – afinal o que, quanto a mim – é o que de mais fino nos resta.

Um abraço a todos vós, Editores. Por favor, publiquem.


Paulo Salgado

28.11.2020

Manuel Luís Lomba disse...

Desculpem-me, camaradas.
O antepenúltimo parágrafo deste comentário (a repto do J. Belo), saiu-me obtuso.
A insónia da noite de 25 de Novembro foi temerosa, aconteceu a patrulhar caminhos e a bater às portas dos lavradores (...), a dissuadi-los de "catar" revolucionários.
A História registará que a "reacção" do norte teve enquadramento militar (Alpoim Calvão e outros camaradas, creio que ainda entre nós), mas manifestou-se essencialmente popular. Nem sequer "levamos" com o estado de sítio - que confinou o vírus do PREC e o seu antídoto, o da Reacção...
Desejo o melhor fim de semana a todos (ainda jogam à "lerpa"? De certo o J. Belo jogará à sueca...)
Abraço
Manuel Luís Lomba

Anónimo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.