quinta-feira, 23 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25552: O Cancioneiro da Nossa Guerra (23): Os Gandembéis - Canto II, Estrofes de I a XVI (CCAÇ 2317, Gandembel, Ponte Balana e Nova Lamego, 1968/69)











Guiné > Região de Tombali > Gandembel > CCAÇ 2317 (8 de abril de 1968 a 28 de janeiro de 1969) > Aspetos da dura vida quotidiano dos homens-toupeira, que tiveram de construir de raíz e defender, num curto espaço de tempo (inferior a nove meses), dois aquartelamentos, Gandembel e Ponte Balana. Total de ataques e flagelações: 372.  

De abril a maio foram ainda auxiliados pelos veteranos da CART 1689 / BART 1913 (Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69)... com quem, entre outras subunidades,  fizeram, por ex., a Op Bola de Fogo... Na última foto, já de janeiro de 1969, "uns dias antes do abandono de Gandembel/Balana [ em 28 de Janeiro de 1969] Spínola também viria cá despedir-se". Mas a primeira visita terá sido em 26 de maio de 1968. 

Fotos do notável álbum de Idálio Reis e seus camaradas.


Fotos (e legenda): © Idálio Reis (2007). 
Todos os direitos reservados. Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. 



1. Continuação da publicação de "Os Gandembéis", poema épico-burlesco, parodiando "Os Lusíadas", de autoria coletiva (mas com forte contributo do poeta João Barge, 1944-2010), escrito em 1969, que retrata a epopeia da CCAÇ 2317 em Gandembel e Ponte Balana (*), recolhido e reproduzido pelo nosso camarada e amigo Idálio Reis, engenheiro agrónomo reformado, ex-alf mil at inf da CCAÇ 2317, no seu livro "A CCAÇ 2317 na guerra da Guiné: Gandembel / Ponte Balana", edição de autor, s/l, 2012 (il, 250 pp.). (O livro é ilustrado por mais de meia centena de fotos dos arquivos do Idálio Reis e dos seus camaradas.) (*)


O lançamento do livro, uma peça fundamental para a historiografia da guerra colonial na Guiné, foi feita feito no Palace Hotel, em Monte Real, em 21 de abril de , no âmbito do VII Encontro Nacional da Tabanca Grande.(**)

Os Gandembéis > Canto II, Estrofes de 1 a XVI

 

Capa do livro do Idálio Reis



I
Em Gandembel, tanta tormenta e tanto dano,
Tantas as vezes a morte apercebida;
No arame farpado, tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade aborrecida;
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida?
Que não se arme e se indigne o céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno.

II
Dali para Changue-Iaia se parte (9)
Onde as tropas estavam temerosas
Para que à gente mande que se aparte
Da mata inimiga e terras suspeitosas
Porque mui pouco vale esforço e arte
Contra infernais vontades enganosas;
Porque na estrada rebentam fornilhos
E há mais noivas por casar e mães sem filhos.

III
Agora nestas partes se nomeia
Simões furriel, o africano Fome,
Coelho transmissões, que se arreia (9)
Das vitórias da Pátria sem nome.
Aqui, enquanto as minas não refreia
O soldado Pacheco fica informe.
Um braço do forte Quicão aparece
E o coração de todos, pela dor, escurece.

IV
Assim, nesta incógnita espessura
Para sempre deixámos os companheiros
Que, em tal caminho e em tanta desventura
Sempre connosco foram aventureiros.
Quão fácil é ao corpo a sepultura!
Quaisquer negras terras, quaisquer outeiros
Estranhos, assim mesmo como aos nossos,
Receberão de todo o Ilustre os ossos.

V
Mas o magriço, que já então lhe convinha
Tornar a Bissau, acostumado, (10)
Que tempo concertado e ventos tinha,
Para ir buscar o descanso desejado.
Recebendo o piloto que lhe vinha
Foi dele alegremente agasalhado;
Rapidamente no helicóptero entrou
E, sadicamente, c'o a mão ligada acenou.

VI
Jorge de Moura, o forte Capitão (11)
Que a tamanhas empresas se oferece,
De soberbo e altivo coração,
A quem a Cunha sempre favorece,
Para aqui se deter não vê razão,
Que sequiosa a terra lhe parece
Por diante passar determinava
E assim lhe sucedeu como cuidava.

VII
Tamanho o ódio foi e a má vontade,
Que ao soldado súbito tomou,
Sabendo ser sequaces da Verdade
Que o Filho de David nos ensinou.
Pois o Maia, com gana e virilidade (12)
Da companhia as rédeas tomou.
E foi assim, à base de mérito e favores
Que este se encheu de louvores.

VIII
Corrupto já e danado o mantimento,
Danoso e mau ao fraco corpo humano;
E, além disso, nenhum contentamento,
Que sequer da esperança fosse engano.
Cremos nós, se este nosso ajuntamento
De soldados não fora lusitano,
Que durara ele tanto obediente?
Porventura, o que será desta gente?

IX
Imagine-se agora quão cuidados,
Andaríamos todos, quão perdidos,
De fomes, de tormentas quebrantados.
Por climas e por terras não sabidos!
E do esperar comprido tão cansados
Quanto a desesperar já compelidos,
Por céus não naturais, de qualidade
Inimiga da nossa Humanidade.

X
Enquanto os deuses do QG famoso
Onde o governo está da humana gente,
Se ajuntam em jantar lauto e guloso
Formando um concílio indiferente;
Bebendo vinho fino e espumoso
Vão para a piscina conjuntamente
Convocados da parte do Melhor
Onde domina o Chefe do Estado Maior.

XI
E enquanto isto se passa na formosa
Ilha do Bissau omnipotente,
Defendia a terra a gente belicosa
Lá da banda do Guilege muito quente,
Entre a fronteira da Guiné e a famosa
Base de Salancaur, o sol ardente
Queimava então os homens, que Tifeu
C'o temor grande em heróis converteu.

XII
E o velho careca, de aspecto venerando,
Chefe da Secretaria, cheia de gente,(13)
Postos em nós os olhos, meneando
Três vezes o lápis, descontente,
A voz pesada um pouco alevantando,
Que em nós em volta ouvimos claramente,
C'um saber só de guerras feito,
Tais palavras tirou do esperto peito:

XIII
Ó gloria de mandar, ó vã cobiça,
Desta vaidade, a quem chamamos fama!
Ó fraudulento gosto, que se atiça
C'uma aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades nos soldados experimentas!

XIV
A que novos desastres determinas
De levar esta Companhia e esta gente?
Que perigos, que mortes lhes destinas,
Debaixo de algum louvor proeminente?
Que promessas de paz e de minas
Levantadas, que lhe farás tão facilmente?
Que vida lhes prometerás? Que histórias?
Que triunfos? Que palmas? Que vitórias?

XV
Deixas criar às portas o inimigo,
Por ires buscar outro de tão longe,
Por quem se despovoe o quartel amigo,
Se enfraqueça e se vá deitando ao longe!
Buscas o incerto e incógnito perigo
Por que a fama te exalte e te lisonge,
Chamando-te senhor inteiro
De Gandembel, do Balana e do Carreiro. (14)

XVI
E tu, Comandante, de grande fortaleza,
Da determinação que tens tomada
Não olhes por detrás, pois é fraqueza
Desistir-se da cousa começada.
E mais, pois excedes em ligeireza
Ao vento leve e à bala bem mandada,
Não esqueças de defender o quartel
A que nós outros chamamos Gandembel.


(Continua)

(Revisão / fixação de texto: IR / LG)

__________________


Notas de IR/LG:

(9) Referência ao trágico dia 4 de agosto de 1968 em que a CCAÇ 2317 perde, em combate, 4 dos seus elementos, na sequência de uma coluna logística, proveniente de Aldeia Formos, perto da ponte sobre o Rio Changue Iaia. 

Foram eles o fur mil at inf Abel Gomes Simões (natural de Montemor-o-Novo), o sold at inf António Pereira Moreira e o sold at inf Eduardo Costa Pacheco, ambos de Paços de Ferreira, e ainda o sold trms inf Manuel Roxo Coelho, natural de Castelo Branco. Morreu ainda um soldado do Pel Caç Nat 69 (referência no poema ao "africano Fome" ?). Há ainda dois feridos graves, que serão evacuados para Lisboa.

(10) "Magriço": referência a Spínola ou mais provavelmenet ao capitão (mais ausente que presente) da Companhia ?... De qualquer modo, no dia 26 de Maio [de 1968]  Spínola, ainda com poucos dias no cargo das suas funções de comandante-chefe, visita Gandembel logo pela manhã e sem qualquer aviso prévio.

(11) Cap inf Jorge Barroso de Moura,  hoje ten-general,  terá ficado estava longos períodos em Bissau por razões de saúde.   Parece haver um contencioso (uma "pedra no sapato") entre ele e os seus homens.  Na prática foi substituído pelo alf mil at inf Mário Moreira Maia, o segundo comandante da companhia. Já no fim da comissão, em Nova Lamego,  a Companhia teve um capitão do quadro, de nome Pinto Guedes, e que fora integrado ab initio na CCS, segundo informação do Idálio Reis.

(13) O chefe de secrataria era o o 1º srgt inf  António Conceição Martins.

(14) Carreiro: corredor de Guileje, corredor da morte (NT), "carreiro do Povo" (PAIGC)...



Guiné > Região de Tombali > Carta de Guileje (1956) > Escala 1/50 mil > Posição relativa de Gandembel e Changue Iaia.
  
Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024)

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Leiria > Monte Real > Palace Hotel > VII Encontro Nacional da Tabanca Grande >  21 de Abril de 2012 > 

Sessão de lançamento do livro do Idálio Reis,  "A CCAÇ 2317 na Guerra da Guiné - Gandembel / Ponte Balana" >  Os seis magníficos (Ou "gandembéis") gandembelenses presentes na sala... Ao centro, o Idálio Reis que, juntamente com o Joaquim Gomes Soares (o da ponta direita), eram os únicos representantes da CCAÇ 2317. Os restantes representam outras subunidades que passaram por (ou intervieram em) na mítica Gandembel/Ponte Balana: da esquerda para a direita,   o Eduardo Moutinho dos Santos, ex-cap mil grad inf  (que comandou a CCaç 2381,  "Os Maiorais", Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Buba, Empada, 1968/70),  o José Manuel Samouco, ex-fur mil armas espadas, também da CCAÇ 2381 (e natural de Torres Vedras), o Hugo Guerra (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 55 e Pel Caç Nat 60, Gandembel, Ponte Balana,Chamarra e S. Domingos, 1968/70, hoje Cor DFA reformado, e que fazia anos nesse dia), o nosso Zé Teixeira, outro Maioral (que nos emocinou a todos, em 1 de março de 2008, na sentida homenagem que fez nas ruínas de Gandembel a todos os combatentes que ali, em pleno "carreiro" ou "corredor da morte" ( lutaram, morreram, foram feridos, sofreram, entre abril de 1968 e janeiro de 1969)... 

Esteve no encontro mas faltou à foto de grupo o José Ferreira da Silva (ex-fur mil op esp da CART 1689/BART 1913, CatióCabeduGandembel e Canquelifá, 1967/69)... Faltou também o Alberto Branquinho, que desta vez não pôde comparecer ao encontro. Faltou também, infelizmente para sempre, o João Barge (1944-2010)... Faltaram outros camaradas ligados à história de Gandembel, de 1968/69 (os páras do BCP 12, as enfermeiras paraquedistas, embora uns e outros estivessem representados, e bem,  no nosso encontro, etc.).

Foto (e legenda) © Luís Graça  (2012). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

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Notas do editor:

(*) Último poste da série >

21 de maio de 2024 > Guiné 61/74 - P25547: O Cancioneiro da Nossa Guerra (22): Os Gandembéis - Canto I, Estrofes de XII a XXVII (CCAÇ 2317, Gandembel, Ponte Balana e Nova Lamego, 1968/69

19 de maio de 2024 > Guiné 61/74 - P25541: O Cancioneiro da Nossa Guerra (21): Os Gandembéis - Canto I, Estrofes de I a XI (CCAÇ 2317, Gandembel, Ponte Balana e Nova Lamego, 1968/69)

(**) Vd. poste de 27 de abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9813: VII Encontro Nacional da Tabanca Grande (16): Um momento alto: o lançamento do livro do Idálio Reis (Parte I): um abraço solidário para todos os nossos amigos guineenses, na pessoa do Pepito e do Cherno Baldé, nossos grã-tabanqueiros, que estão em Bissau... Um voto de esperança e de confiança no futuro da Guiné-Bissau!!!

6 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

De Gandembel se pode dizer que Deus (Schulz) pôs e o Diabo (Spínola) dispõe.... A decisão de abandonar aquele fatídico lugar, em pleno corredor de Guileje, cedo foi tomada pelo novo Com-Chefe.... E o comandante da CCAÇ 2317 nunca lá pôs os pés:

(...) Jorge de Moura, o forte Capitão
Que a tamanhas empresas se oferece,
De soberbo e altivo coração,
A quem a Cunha sempre favorece,
Para aqui se deter não vê razão,
Que sequiosa a terra lhe parece
Por diante passar determinava
E assim lhe sucedeu como cuidava. (...)

Tabanca Grande Luís Graça disse...

O Idálio Reis (que vive em Cantanhede mas de quem não tenho noticias há muito) pergunta e bem: Gandembel, para quê ? Porquê?

Valdemar Silva disse...

Realmente, os soldados portugueses eram os maiores em desenrasca.
Não sei se havia alguma NEP para a construção de abrigos na Guiné, mas o normal seria a Engenharia Militar a construir os abrigos.
As fotografias dão uma ideia de como se construía um abrigo à prova de morteirada.

"Em Gandembel, tanta tormenta e tanto dano,
Tantas as vezes a morte apercebida;
No arame farpado, tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade aborrecida;
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida?
Que não se arme e se indigne o céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno. "


Valdemar Queiroz

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Valdemar, nenhum dos nossos filhos faria hoje um aquartelamento como aquele, em tempo recorde, à prova de 120 !A á e pica!... Estamos a falar, em escassos meses!... E mesmo já sabendo que o "senhorio" no fim os iria despejar!... Não chegaram a perfazer nove meses!...

Quando por lá passei, em 1 de março de 2008, com tudo arrasado, fiquei de boca aberta, levei um murro no estômago|... Gandembel, para quê, porquê ? Quem foi a "besta" que mandou construir aquele aquartelamento a escassos 3,5 km meio da fronteira, sabendo-se que o PAIGC já tinha ou ia ter o morteiro 120 mm?!...

Valdemar Silva disse...

Pois, Luís, se era para defender a fronteira então deveria ter sido a Engenharia na construção do quartel.
Assim, até pareciam deportados ou homiziados para defender a fronteira como na Idade Média.

Valdemar Queiroz

José Teixeira disse...

Quando fui a Gandembel pela primeira vez em meados de Julho de 68 os abrigos já estavam construídos. Numa noite escura apontaram creio que onze canhões sem recuo em tiro direto a um ponto do muro em betão de um dos abrigos e conseguiram furar a parede. Em Janeiro do ano seguinte fui com a minha Comp. Proteger a sua retirada.
A CCac 2317 saiu de Gandembel e foi fazer umas “férias” a Buba alinhando na dura missão de proteger a construção da nova estrada para Aldeia Formosa. A minha companhia alinhava na mesma tarefa. Foi duro. Uns meses que rebentaram com muita gente. A minha Comp. Chegou a estar reduzida a trinta e seis operacionais. Um Grupo de Combate.