terça-feira, 14 de janeiro de 2025

Guiné 61/74 - P26388: Nunca Tantos Deveram Tanto a Tão Poucas (1): Uma portuguesa, mulher de um furriel, perdida num aquartelamento do Nordeste... (Giselda Pessoa)



Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Cacheu > Forte (séc. XVII) > 1995 > Giselda Antunes Pessoa entre os "despojos do Império". Foi a primeira, das ex-enfermeiras paraquedistas, a integrar a Tabanca Grande, em 20 de fevereiro de 2009 (*). Em 1995, ela e o marido, o cor pilav ref, Miguel Pessoa, voltaram ao CTIG, com uma equipagem de filmagem da SIC. Como se vê pela imagem, o forte do Cacheu estava ao abandono. Foi de objeto de recuperação e requalificação em 2004, com recurso a fundos disponibilizados  pela União das Cidades Capitais de Língua Oficial Portuguesa (UCCLA)

Foto (e legenda): © Miguel Pessoa (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Base Escola de Tancos > 1970 > 7.º curso de paraquedismo, para enfermeiras civis. Foto de grupo.


Foto (e legenda: © Giselda Pessoa (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Winston Churchil, num discurso que fez na Câmara dos Comuns, em 20 de agosto de 1940, proferiu a frase mais famosa (ou uma das mais famosa) de toda a II Guerra Mundial: "Nunca tantos deveram tanto a tão poucos"... 

Referia-se, neste caso,  às tripulações, inglesas e aliadas, da Royal Air Force, que, em inferioridade numérica, travaram a épica e decisiva batalha da Grã-Bretanha contra a Luftwaffe alemã.

Parafraseando o grande estadista inglês, e numa escala e num contexto completamente diferentes (o da guerra colonial portuguesa, de 1961/74), podemos também dizer que "nunca tantos deveram tanto a tão poucas"...  

Queremos com isso evocar, dar a conhecer melhor e homenagear o papel das nossas 46 enfermeiras paraquedistas, jovens, todas  elas voluntárias, que foram as primeira mulheres, portuguesas, a envergar, a entre nós,  uma farda militar, a partir de 1961.

Um terço já morreu e poucas das que estão vivas terão opotunidade de acompanhar esta série.  Das 46 houve trinta que participaram com as suas memórias, fotos e testemunhos na elaboração do livro "Nós, enfermeiras paraquedistas" (ed. lit. Rosa Serra, 2ª ed., Porto, Fronteira do Caos, 2014, 439 pp.).

Destas 30, há pelo menos 5 que são membros da Tabanca Grande: 

Oito destas nossas camaradas de armas participaram no filme da Marta Pessoa, "Quem Vai à Guerra" (2011)
  • Aura Teles
  • Cristina Silva,  
  • Ercília Pedro
  • Giselda Pessoa,
  • Júlia Lemos,
  • Maria Arminda Santos, 
  • Natércia Neves, 
  • Rosa Serra.

Já se passaram mais de 10 anos do lançamento do livro "Nós, enfermeiras paraquedistas" (que teve como prefaciador o prof Adriano Moreira, entretanto falecido com 100 anos, em 2022). Com a benevolência das autoras (e da editora), temos vindo a republicar no blogue alguns excertos das suas histórias, quer na série "Humor de caserna" quer em postes avulsos...

Esta nova série "Nunca Tantos Deveram a Tão Poucas" é uma forma de as continuar a homenagear e de tentar também suscitar a produção de depoimentos dos nossos camaradas da Guiné que foram objeto dos seus cuidados ou que com elas conviveram... 

Não vai ser fácil, porque elas eram mesmo poucas e na época pertenciam à FAP, prestando serviço na BA 12, em Bissalanca.  O seu contacto com a malta do exército era pontual, por ocasião de evacuações no mato ou nos quartéis do interior. De qualquer modo mais histórias sobre este tema serão bem vindas. 


Infelizmente também não há estatísticas sobre a sua atividade. Quantas evacuações terão feito, no TO da Guiné (e também em Angola e Moçambique) ? E recorde-se que não eram apenas de feridos ou doentes militares, mas também de população civil, de mulheres grávidas a crianças, sem esquecer combatentes do PAIGC, feridos, aprisionados, e até combatentes estrangeiros como o capitão cubano Peralta...

Óbvio que também não podemos esquecer aqui o resto das tripulações dos helicópteros (AL II e AL III), avionetas (DO-27) e outros aviões (Dakota...) que as nossas enfermeiras paraquedistas integravam, nomeadamente pilotos e especialistas (na época, "mecânicos").  A todos eles, a nossa gratidão .Ajudaram a  salvar muitas vidas... O seu trabalho (bem como o de todos o pessoal dos serviços de saúde militar, incluindo o do HM 241 e doo HMP - Hospital Militar Princopal)  está sempre no nosso espírito:  médicos, enfermeiros, técnicos de meios complementares de diagnóstico e terapêutica, administrativos, condutores de ambulância, etc. , sem esquecer os capelães.

O descritor Os nossos médicos tem 418 referências... Outros: os nossos enferemeiros (152); os nossos capelães (86); HM 241 (165); Hospital Militar Principal (28), etc. 

2. A Giselda Pessoa foi a primeira a entrar para o nosso blogue (*).  É também aquela com quem temos convivido mais, nomeadamente nos encontros das nossas tabancas. Com ela,  a Rosa Serra e a Maria Arminda também falamos ao telefone. A Aura devo tê-la visto uma vez ou duas vezes.

Vamos aqui reproduzir uma das singelas (e tocantes) histórias com que  a Giselda se estreou no nosso blogue (**). Recorde-se que fez uma comissão de 28 meses no CTIG, entre 1972 e 1974, que não era frequente entre as enfermeiras paraquedistas que, ao fim de a um ano, mudavam para outro teatro de operações. (#)  Da Guiné é tem inúmeras histórias.

Natural de São Martinho de Anta, concelho de Sabrosa (conterrânea, por tanto, do escritor Miguel Torga),  frequentou a Escola de Enfermagem do Hospital de S.João, no Porto, em 1966. Começou a trabalhar como enfermeira,  em 1968, no Serviço de Urgência do S.João. 

Tinha uma irmã, Antonieta,  também enfermeira, então integrada na Força Aérea como enfermeira paraquedista, e que lhe dava notícias de África.  Mas "foi um pouco por acaso que numa deslocação a Lisboa à Direcção do Serviço de Saúde da Força Aérea, alguns dos presentes me incentivaram a inscrever-me no novo curso que estava em preparação".  

(...) "Assim, em 1970 acabei por frequentar o curso de paraquedismo na Base Escola em Tancos, o 7º constituído por enfermeiras civis. Das nove que constituíam o curso acabaram oito, iniciando nós então um rodopio entre a base-mãe, os Açores, Guiné, Angola e Moçambique.

"No meu caso pessoal, fui inicialmente colocada em Moçambique durante todo o ano de 1971, onde se pode dizer que tive um período de férias razoável, pois para além de curtos períodos em Nacala e Nampula, estive essencialmente baseada em Lourenço Marques. Aí prestava apoio no serviço de saúde, o que incluía deslocações periódicas a Lisboa, acompanhando e apoiando os militares evacuados, inicialmente no DC-6, mais tarde nos Boeing 707.

"Deve dizer-se que em Lourenço Marques ainda se sentia menos a guerra do que em Lisboa e que este período não foi representativo para a minha formação militar, desgostando-me mesmo certos comportamentos que pude observar localmente, quer em alguma da população branca, quer em alguns militares mais acomodados a uma vida fácil e pouco arriscada." (***)


Uma portuguesa, mulher de um furriel, perdida num aquartelamento do Nordeste...

por Giselda Pessoa


No decorrer de uma evacuação que tinha como objectivo um aquartelamento no nordeste da Guiné, o helicóptero aterrou na placa, onde embarcou o militar  evacuado. No decorrer dessa operação, aproximou-se do AL-III um furriel daquela unidade, o qual se me dirigiu com um pedido fora do vulgar. Explicou-me que com ele estava naquele quartel a sua mulher, sendo ela a única branca que ali vivia; e que, não vendo nenhuma branca há já muitos meses, certamente apreciaria falar comigo por uns momentos. 

 Expliquei-lhe que o facto de transportarmos um ferido e o pouco combustível de que dispunhamos não permitia prolongar a nossa estadia ali. Mesmo assim, ele montou a sua motoreta e foi buscar a mulher, para a levar junto de nós. 

A espera prolongou-se por mais tempo do que aquele de que dispúnhamos, o que levou o piloto a decidir-se por descolar, com grande pena minha. Já no ar, tive a possibilidade de ver aproximar-se da placa a motoreta com o furriel, trazendo a mulher à boleia. Ali chegados, apenas teve ela tempo para nos acenar enquanto o AL-III rodava em direcção a Bissau. 

 Senti naquele momento um desgosto enorme por não ter podido proporcionar àquela mulher um momento de carinho e de solidariedade, de que ela tanto necessitaria. E imagino a sua frustação quando não lhe foi possível partilhar de uns momentos de proximidade com alguém que lhe recordaria outras companhias e outros ambientes deixados há muito para trás. (**)

Giselda Pessoa 

 
 (#) As comissões das enfermeiras paraquedistas variavam entre seis meses e um ano, o que provocava uma constante rotação do nosso pessoal. Vá-se lá saber porquê, fui optando por prolongar a minha estadia na Guiné, muito provavelmente devido ao ótimo ambiente que ali se vivia e também por me sentir realizada no trabalho que ali desenvolvia, numa atmosfera que não deixava esconder a guerra que nos rodeava. 

(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos, itálicos e título: LG)

 

3. Comentário do editor  L.G.: 

 Como tive ocasião de dizer â Giselda, na altura em que ela foi apresentada pelo Carlos Vinhal à Tabanca Grande, nesta "caserna virtual"...  "somos todos generais de muitas estrelas, somos todos VIP, somos todos importantes, isto é, somos todos camaradas (um termo castrense ou militar, por excelência)"... 

Não fazíamos na altura nem fazemos hoje distinção de idade, género, nacionalidade, posto, especialidade, arma, condição social, estatuto, estado de saúde, risco de morrer... 

Enfim, fiz questão de sublinhar qua a sua entrada na Tabanca Grande, em 2009,  "nada tinha a ver com feminismo ou, muito menos, com o politicamente correcto: conquistaste por direito próprio, nos céus da Guiné, o direito de estar aqui em pleníssima igualdade com os outros camaradas, da Força Aérea, da Marinha ou do Exército"...

 Mas não se podia escamotear o facto de ser ela "a primeira mulher militar", e ainda por cima enfermeira e paraquedista, "a entrar para o nosso blogue" (em boa verdade, o corpo de enfermeiras paraquedistas já tinha sido extinto há 30 anos, em 1980)...

Depois tratava-se de "uma mulher do Norte, corajosa, determinada e... bem disposta".

Em terceiro lugar, era "uma profissional de saúde, uma enfermeira (uma profissão que foi durante muito tempo estigmatizada, a ponto de o Estado Novo proibir as enfermeiras de se casarem, proibição essa, fundamentalista, que só acabou em... 1963!"). 

Esta (a primeira história da Giselda que publicámos no blogue) tinha, além disso,  o mérito de revelar uma outra faceta da sua personalidade: além de enfermeira paraquedista valente, destemida e competente, e de saber contar uma boa história, a Giselda era(é) uma grande camarada, sensível e solidária, e uma grande portuguesa... 

Sabíamos que era a primeira de outras histórias passadas no TO da Guiné, "terra de paixão e de solidariedade, terra vermelha, inferno verde, labirinto de bolanhas, mangal, rios e braços de mar, céus de chumbo, que nunca mais ela, o Miguel, eu e todos nós poderíamos esquecer... De resto, a Giselda e o Miguel voltaram lá em 1995, eu em 2o08, e muitos de nós também uma ou até mais vzes.

E finalizava com o seguinte comentário;

"Não podias estar impunemente 28 meses na Guiné, nos anos de brasa de 1972/74, naquela terra e naquela guerra, e chegares agora ao quilómetro 62 da tua vida e dizer: 'Não, por favor, não mais Guiné!... Nem já sei onde fica !'). 

"Morcões, abram alas, vai entrar uma camarada, uma grande senhora!"

____________


(**) Este excerto foi reproduzido no poste de 28 de fevereiro de 2009> Guiné 63/74 - P3952: As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-quedistas (3): No fim do mundo (Giselda Pessoa)

Faz também das várias histórias da Giselda, no citado livro, "Nòs, enfermeiras paraquedistas" (2014, pp. 318-319).

4 comentários:

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas
Felicito o blog por mais um texto sobre as enfermeiras-para-quedistas especialmente a Giselda que também surge no forte do Cacheu. É uma pena que os "salazaristas" colonialistas e lacaios do imperialismo" não consigam reaver os vestígios da sua passagem pela Guiné...
Mas é assim...

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Queridas senhoras enfermeiras paraquedistas, boas amigas e camaradas Giselda, Arminda, Rosa (não tenho o email da Aura)

Não importa que um deus menor tenha ordenado a vossa extinção, há 40 anos atrás...Ou que a tropa vos tenha maltratado... Uma vez enfermeiras pqdt, enfermeiras pqdt para a vida...

Ninguém ficará com ciúmes com este título antológico aplicado a vocês... Se pensarem nas vidas que ajudaram a salvar (nos 3 TO), não é nenhuma "boutade" dizer-que, no vosso caso, Nunca tantos ficaram a dever tanto a tão poucas...

Vocês foram 46, e agora bem menos... Há saberes que se perderam irremediavelmente com a extinção do corpo de enfermeiras paraquedistas... Saber-ser, saber-fazer, saber-estar...Na guerra, nos cuidados de saúde aos feridos militares e civis,no hospital,. no quartel, na base, na tabanca, na cidade...No vosso livro coletivo (que faz inveja a outros "corpos" que não conseguiram fazer nada parecido, por exemplo, os médicos, os capelães...), vêm ao de cima muitas dessas competências cognitivas, técnicas, relacionais, humanas, psicossociais... imprescindíveis a uma profissional de saúde, na paz e na guerra,,,

Vocês ainda "não fecharam o livro", e até aos 100 (!) ainda irão surgir, bem "espremidinhas", outras histórias, memórias, "cenas"... Penso que faltam sobretudo histórias "sobre" vocês...Daí o duplo desafio desta série, que tem um título que pode parecer provocatório...

Andamos todos a "rapar" os baús...Mas a questão não é tanto a falta de material como a "mudança de perspetiva"...Os acontecimentos, os factos, as situações, os lugares, etc. não têm uma única e definitiva leitura...Por isso, "não deitem nada fora", por enquanto...Tudo pode ser "reciclado"...

Será que vamos conseguir material para uma boa dúzia de postes ? O blogue precisa, e vocês merecem a nossa gratidão...

Boa continuação do mês de janeiro de 2025... Sobretudo, saudinha. Luís

Tabanca Grande Luís Graça disse...

A Giselda no meio dos "gigantones" do Império... Porque é que se gastava dinheiro com estas "representações do poder" ?...Parece que ninguém quer aquele "lixo" (nem lá nem cá)...E trazê-lo de volta deve custar uma pipa de massa...

António J. P. Costa disse...

Uma "pipa de massa"? Se os bocados do "lixo" estão ali devem poder ser transportados para Bissau e daí para Lisboa um cargueiro não necessita ser muito grande... digo eu, claro.