Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quinta-feira, 22 de junho de 2006
Guiné 63/74 - P895: Humor de caserna: 'Matchundadi di branco' e o sentido de humor da nossa caserna (Luís Graça)
Guiné-Bissau > Região de Tombali > Guileje > Antigo aquartelamento das NT > Uma planta chamada matchundadi di branco, na expressão local usada pelos antigos milícias... Simbolicamente, é a vida que triunfa sobre a morte, a amizade que renasce da luta, a serenidade da paz que se impõe à lógica da guerra...
Foto: © Pepito (2006)
A propósito da flor que brota, hoje, do chão do antigo aquartelamento de Guileje - que os antigos milícias locais chamam matchundadi di branco, segundo preciosa informação do Pepito -, os nossos tertulianos não se coibiram de dar largas ao seu proverbial sentido de humor, reforçado seguramente pelo seu duro tirocínio em terras da Guiné, sempre em perigos e guerras esforçados...
Aqui ficam algumas bocas de caserna:
(1) Pepito: Semanticamente falando, que o assunto é delicado, a palavra em crioulo matchundadi vem directamente da palavra matcho, que vem de macho e, mais vernaculamente, de caralho...
(2) Mário Dias: Matchundadi designa especialmente a qualidade própria dos homens no sentido de másculo, valente, varonil, robusto.
(3) Paulo Raposo: Olá, pessoal,estamos sempre a aprender. Assim, e para o futuro quando se toca a sentido dir-se-á: - Ena, com matchundadi! Tá!... Diga se ouve, escuto.
(4) Zé Teixeira: O problema é que para alguns de nós já é difícil pôr o matchundadi de pé,quanto mais em sentido!... Um abraço para toda a gente e boa disposição.
(5) A. Santos: Correcto e afirmativo!!!Eu, dei tanto trabalho ao matchundadi pensando que não se gastava e agora vejo que não é verdade, que chatice... À escuta.
(6) Pepito: Como diz o Mario Dias, na realidade matchundadi também pode ser interpretado como coragem. É um pouco como o que se passa com a palavra colhões que são o que são (ou que foram um dia...), mas que pode ter outro significado quando se diz: é um gajo de colhões.
Guiné 63/74 - P894: Fuzilados do Pel Caç Nat 53 (Paulo Santiago)
1. Mensagem do Paulo Santiago (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 53, 1970/72)
Camarada Luís:
Vi agora o P886 do João Parreira (1) onde vêm dois soldados fuzilados pertencentes ao Pel Çaç Nat 53. Não são do meu tempo. Deverão ter ido para o 53 após Agosto de 1972.
Do meu tempo sei do fuzilamento do Queta Mané, sold 82035466. É mais um nome a juntar à trágica lista.
Paulo Santiago
(ex Alf Mil do Pel Caç Nat 53)
2. Comentário de L.G.:
Paulo Santiago, será que nos cruzámos nalgumas operações ? Creio que estiveste em Bambadinca, entre 1970 e 1972...Quanto ao teu e-mail, muito obrigado. Queremos a verdade e só a verdade... Quanto a ti, já reparei que ainda não fizeste um pedido formal para entrar na nossa caserna... Espero que aceites o convite, já cá temos os comandantes de vários Pel Caç Nat... Cibersaudações. LG
______________
Nota de L.G.:
(1) Vd. post de 19 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P886: Terceiro e último grupo de ex-combatentes fuzilados (João Parreira)
Camarada Luís:
Vi agora o P886 do João Parreira (1) onde vêm dois soldados fuzilados pertencentes ao Pel Çaç Nat 53. Não são do meu tempo. Deverão ter ido para o 53 após Agosto de 1972.
Do meu tempo sei do fuzilamento do Queta Mané, sold 82035466. É mais um nome a juntar à trágica lista.
Paulo Santiago
(ex Alf Mil do Pel Caç Nat 53)
2. Comentário de L.G.:
Paulo Santiago, será que nos cruzámos nalgumas operações ? Creio que estiveste em Bambadinca, entre 1970 e 1972...Quanto ao teu e-mail, muito obrigado. Queremos a verdade e só a verdade... Quanto a ti, já reparei que ainda não fizeste um pedido formal para entrar na nossa caserna... Espero que aceites o convite, já cá temos os comandantes de vários Pel Caç Nat... Cibersaudações. LG
______________
Nota de L.G.:
(1) Vd. post de 19 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P886: Terceiro e último grupo de ex-combatentes fuzilados (João Parreira)
Guiné 63/74 - P893: 'Matchundadi di branco' e outras blogarias em crioulo (Mário Dias)
Texto do Mário Dias, ex-sargento comando (Brá, 1963/66), em resposta a uma provocação minha: "Obrigado ao Pepito, pela sua delicadeza (e competência) em matéria de tradução do crioulo para o português… Mas, já agora, também gostava de ouvir a opinião do outro meu assessor sociolinguístico, o Mário Dias… Agora digam-me lá se os nossos queridos nharros não tinham sentido de humor… A propósito, este termo (nharro) é actualmente ofensivo ? Usa-se ? Não poderá ter uma conotação racista, aliás como tuga ? Temos de ter cuidado com a língua… Mas aqui, na nossa caserna, cultiva-se o humor"…
Caro Luis e restantes tertulianos:
1. Antes de mais, congratulo-me com o aparecimento de novos militares na nossa caserna. Sem desprimor para os restantes, quero saudar o Beja Santos cujo Presépio de Chicri me encantou e comoveu até às lágrimas. A idade tem destas coisas: torna-nos um pouco piegas. Ou será outra coisa? Estou em crer que as barreiras sentimentais que a nós próprios impomos enquanto novos, devido à nossa condição de machos, se esboroam com a idade.
2. E essa condição de macho vem mesmo a calhar para melhor entendermos a tal matchundadi referida pelo Pepito.
Eu sempre disse ao Luis que o crioulo é uma língua cheia de subtilezas. O Pepito traduziu a matchundadi com o significado implícito no contexto da fotografia da tal flor ou seja: pénis dos brancos.
Porém, e pelo meu entendimento do língua crioula (o Pepito que me emende se estiver errado) matchundadi designa especialmente a qualidade própria dos homens no sentido de másculo, valente, varonil, robusto. Aliás, alguns dicionários de português já registam a palavra machundade nesse sentido, fazendo menção da sua origem na Guiné-Bissau.
Por outro lado, e dado que fisiologicamente o atributo que distingue os machos é o seu aparelho genital, tem esta palavra, subjectivamente, o significado de órgão genital masculino. (Cada um traduza a seu gosto: pénis, gaita, etc. etc.).
3. Quanto ao termo nharro, e dado que actualmente é utilizado com uma certa dose de ternura, de afeição, ninguém, julgo eu, se ofenderá. O mesmo se passa com o tuga que, sendo antigamente uma palavra intencionalmente humilhante, já se tornou de tal forma vulgar para referir os portugueses (culpa do mundial de futebol na Coreia em 2002) que ninguém se ofende. Creio que o sentido das palavras se altera com o rodar dos tempos.
Um abraço para todos.
Mário Dias
Caro Luis e restantes tertulianos:
1. Antes de mais, congratulo-me com o aparecimento de novos militares na nossa caserna. Sem desprimor para os restantes, quero saudar o Beja Santos cujo Presépio de Chicri me encantou e comoveu até às lágrimas. A idade tem destas coisas: torna-nos um pouco piegas. Ou será outra coisa? Estou em crer que as barreiras sentimentais que a nós próprios impomos enquanto novos, devido à nossa condição de machos, se esboroam com a idade.
2. E essa condição de macho vem mesmo a calhar para melhor entendermos a tal matchundadi referida pelo Pepito.
Eu sempre disse ao Luis que o crioulo é uma língua cheia de subtilezas. O Pepito traduziu a matchundadi com o significado implícito no contexto da fotografia da tal flor ou seja: pénis dos brancos.
Porém, e pelo meu entendimento do língua crioula (o Pepito que me emende se estiver errado) matchundadi designa especialmente a qualidade própria dos homens no sentido de másculo, valente, varonil, robusto. Aliás, alguns dicionários de português já registam a palavra machundade nesse sentido, fazendo menção da sua origem na Guiné-Bissau.
Por outro lado, e dado que fisiologicamente o atributo que distingue os machos é o seu aparelho genital, tem esta palavra, subjectivamente, o significado de órgão genital masculino. (Cada um traduza a seu gosto: pénis, gaita, etc. etc.).
3. Quanto ao termo nharro, e dado que actualmente é utilizado com uma certa dose de ternura, de afeição, ninguém, julgo eu, se ofenderá. O mesmo se passa com o tuga que, sendo antigamente uma palavra intencionalmente humilhante, já se tornou de tal forma vulgar para referir os portugueses (culpa do mundial de futebol na Coreia em 2002) que ninguém se ofende. Creio que o sentido das palavras se altera com o rodar dos tempos.
Um abraço para todos.
Mário Dias
quarta-feira, 21 de junho de 2006
Guiné 63/74 - P892: Memórias de Nova Lamego com o Pel Mort 4574/72 (A. Santos)
Guiné > Zona Leste > Gabu > Estandarte do Pel Mort 4574/72 (Nova Lamego, 1972/74)
Texto e fotos: António Santos (2006)
Camarada Luís,
Este é o 3º folhetim da minha história e de parte do pessoal do Pel Mort 4574/72 (1)
Desta vez junto mais umas fotos, a começar pelo nosso estandarte, já velhinho.
(1) Ainda em Bissau, em Brá, nos adidos, antes de rumar a Nova Lamego, já tinhamos ído ao shopping.
(2) Em Nova Lamego, no Cine Gabu, os caramelos são: da esquerda o G.G.G., eu e o Graça.
(3) A capela de Nova Lamego: pela mesma ordem, Graça, Cunha e eu.
(4) E a última por hoje, o café do Jacob, onde passei bons momentos, a ordem continua: eu, um amigo de Pirada, o Graça e um dos cabos criptos do BCAV 3854.
Um abração para ti, extensivo aos tertulianos.
A. Santos
Ex-Sol Trms
Pelotão de Morteiros 4574/72 (Nova Lamego, 1972/74)
_________
Notas de L.G.
(1) Vd. posts de:
8 de Maio de 2006
> Guiné 63/74 - DCCXXXIV: Nunca digas jamais (António Santos, Pel Mort 4574/72, Nova Lamego)
29 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCXI: Os cagaços de um periquito a caminho do Gabu (A. Santos, Pel Mort 4574/72)
Guiné 63/74 - P891: Recordando o Xime do Sousa de Castro (A.Santos)
Texto do António Santos (ex-Soldado de Transmissões, Nova Lamego, Zona Leste, Sector L3, , 1972 a 1974, incorporado no Pel Mort 4574/72, para render o Pel Mort 2267/70).
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Xime
Foto: © António Santos(2006)
Amigo Castro (1), as casernas eram todas parecidas, quando as fotografias fossem captadas de perto como foi o caso da minha que enviei para o blogue (2).
Já que te referes ao teu Xime, não resisto em juntar uma foto para veres se reconheces o teu quartel, mas em 24 Junho de 1974, que está por trás destes dois marmanjos...
Estou abrir uma excepção, pois a minha ideia é enviar as fotos cronologicamente em relacção ao que for escrevendo, porque quanto ao teu chão também tenho uma história para contar mas passou-se no dia 27 de Fevereiro de 1973 e ainda lá estava a tua CART [3494].
Quanto ao Américo Marques, como deves calcular não me recordo do nome, porque na minha fornada saíram à volta de 250 TRMS, mas se ele entrou no turno de 2 Janeiro de 1972 para o BCAÇ 5 então conhecemo-nos. Devo acrescentar, pelo que sei, mais de 50% desta recruta foi para a Guiné.
Ainda mais uma nota: na tua CART [3494] esteve um Cabo enfermeiro que, na época, quando foi para a tropa, morava no Areeiro-Lisboa, que era a minha zona de trabalho na altura.
Um abração
A. Santos
_________
Notas de L.G.
(1) O Sousa de Castro há dias tinha mandado a seguinte mensagem:
"Santos: Por momentos pensei que tivesses tirado a especialidade no Porto. Pois a foto que está publicada no blogue (2) é muito parecida com a caserna do Quartel de TRMS, de Arca D`Água, Porto.
"Para além disso, depois de ler o teu texto inserido no blogue, fiquei deveras impressionado com a descrição que fazes quando chegaste à Guiné: é exatamente aquilo que senti quando em 27 de Janeiro de 1972 pisei solo Guinéu...
"Só que eu fui para o Xime de avião, no Dakota, de Bissau para Bafatá e daí para o Xime com paragem em Bambadinca para mudança de viatura Unimog, onde me juntei à CART 3494, a minha compnhia.
"Se calhar conhecerás o Américo Marques que também foi TRMS Infantaria, tal como tu. É de Viana do Castelo, esteve em Cansissé - Nova Lamego (1972/74).
"O endereço de e-mail dele é: americom@envc.pt ou setras@iol.pt
"Sem mais de momento, grande abraço. Sousa de Castro"
Sousa de Castro (ex-1º cabo de transmissões da CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/74)
(2) Vd post de 29 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCXI: Os cagaços de um periquito a caminho do Gabu (A. Santos, Pel Mort 4574/72)
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Xime
Foto: © António Santos(2006)
Amigo Castro (1), as casernas eram todas parecidas, quando as fotografias fossem captadas de perto como foi o caso da minha que enviei para o blogue (2).
Já que te referes ao teu Xime, não resisto em juntar uma foto para veres se reconheces o teu quartel, mas em 24 Junho de 1974, que está por trás destes dois marmanjos...
Estou abrir uma excepção, pois a minha ideia é enviar as fotos cronologicamente em relacção ao que for escrevendo, porque quanto ao teu chão também tenho uma história para contar mas passou-se no dia 27 de Fevereiro de 1973 e ainda lá estava a tua CART [3494].
Quanto ao Américo Marques, como deves calcular não me recordo do nome, porque na minha fornada saíram à volta de 250 TRMS, mas se ele entrou no turno de 2 Janeiro de 1972 para o BCAÇ 5 então conhecemo-nos. Devo acrescentar, pelo que sei, mais de 50% desta recruta foi para a Guiné.
Ainda mais uma nota: na tua CART [3494] esteve um Cabo enfermeiro que, na época, quando foi para a tropa, morava no Areeiro-Lisboa, que era a minha zona de trabalho na altura.
Um abração
A. Santos
_________
Notas de L.G.
(1) O Sousa de Castro há dias tinha mandado a seguinte mensagem:
"Santos: Por momentos pensei que tivesses tirado a especialidade no Porto. Pois a foto que está publicada no blogue (2) é muito parecida com a caserna do Quartel de TRMS, de Arca D`Água, Porto.
"Para além disso, depois de ler o teu texto inserido no blogue, fiquei deveras impressionado com a descrição que fazes quando chegaste à Guiné: é exatamente aquilo que senti quando em 27 de Janeiro de 1972 pisei solo Guinéu...
"Só que eu fui para o Xime de avião, no Dakota, de Bissau para Bafatá e daí para o Xime com paragem em Bambadinca para mudança de viatura Unimog, onde me juntei à CART 3494, a minha compnhia.
"Se calhar conhecerás o Américo Marques que também foi TRMS Infantaria, tal como tu. É de Viana do Castelo, esteve em Cansissé - Nova Lamego (1972/74).
"O endereço de e-mail dele é: americom@envc.pt ou setras@iol.pt
"Sem mais de momento, grande abraço. Sousa de Castro"
Sousa de Castro (ex-1º cabo de transmissões da CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/74)
(2) Vd post de 29 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCXI: Os cagaços de um periquito a caminho do Gabu (A. Santos, Pel Mort 4574/72)
Guiné 63/74 - P890: Memórias de Mansabá (2): Uma mina no Bironque (Carlos Vinhal)
Guiné > Região do Oio > Mansabá > CART 2732 ( 1970/72) (1)
Foto: © Carlos Vinhal (2006)
Texto do Carlos Vinhal, ex-Fur Mil Art MA CART2732, Mansabá (1970/72)
Mina no Bironque ou um voluntário que apanhou um grande susto
O Furriel B era um camarada com quem eu gostava especialmente de conversar. Éramos os campeões a receber cartas das respectivas miúdas. Tanto a minha como a dele nos escreviam diariamente e assim quando vinha o Correio era ver qual de nós contava mais cartas e aerogramas.
O camarada B levava uma vida sedentária no quartel, porque pertencia ao Pelotão de Artilharia 21, sediado em Mansabá (2). Só actuava durante os ataques do IN ao aquartelamento ou quando por outro motivo qualquer era necessário fazer fogo de obus. Tinha por isso inveja da nossa actividade. Os nossos dias eram todos preenchidos em saídas para o mato, serviço de guarda ao aquartelamento, colunas auto, etc. De quatro em quatro dias havia o chamado dia de descanso que era aproveitado, por exemplo, para reforçar algum pelotão nalguma operação mais complicada no mato, reforçar colunas auto, fazer reparações no aquartelamento, etc.
Ao fim da tarde do dia 16 de Julho de 1971 o meu pelotão, que estava de piquete, ia fazer uma coluna auto ao K3 para levar correio à CCAÇ 2753. Aparentemente tratava-se de mais uma normalíssima coluna, que por se tratar de uma distância tão curta, se faria numa hora, ir e vir. O camarada B que estava cheio de tédio, ao ouvir dizer que se ia fazer aquela coluna, veio ter comigo, sabendo que eu não ia, para me pedir emprestada a minha G3 que era coisa que ele não tinha. Fiquei um pouco surpreso porque não fazia parte das suas funções participar em colunas auto. Ele sossegou-me dizendo que ia como voluntário, ao que eu retorqui que voluntário só para comer e é preciso que se goste da ementa. Muito a custo emprestei-lhe a minha companheira e desejei-lhe boa viagem. Por coincidência ele foi na nossa GMC que era uma viatura muito antiga com cabina fechada, pouco recomendável para a saúde como vamos ver mais à frente e da qual nenhum condutor gostava.
A coluna saiu e no quartel a vida continuou dentro do normal até que, passados alguns minutos, surgiu um pedido de socorro, via rádio, porque uma das viaturas tinha accionado uma mina anticarro no Bironque, provocando um ferido grave e alguns ligeiros. Palavra de honra que me lembrei logo do meu amigo B, mas afastei imediatamente os maus pensamentos para longe.
Saíram logo as equipas de socorro, tanto para acudir aos feridos como para rebocar a viatura acidentada. Ficámos na expectativa até à chegada dos feridos e, para surpresa minha, o mais grave era o Bicho, condutor da referida GMC. A sua viatura que fez explodir a mina com a roda da frente do lado dele e, porque tinha cabina fechada fez com que os seus ferimentos fossem muito graves. Teve uma compressão na coluna por ser impulsionado contra o tejadilho. Ficou também com as pernas muito maltratadas pelos pedaços de metal da viatura projectados pela explosão. Os restantes feridos, magoaram-se ao caírem ao chão na confusão gerada.
Perante o que via, perguntei pelo Furriel B, que apareceu pouco depois, muito pálido e a tremer. Mal me viu deu-me um abraço, lamentando não ter seguido os meus conselhos. Disse-me que não tinha sofrido qualquer ferimento por imensa sorte, embora fosse sentado ao lado do condutor. Não estava lá muito bem dos ouvidos, mas foi uma questão de tempo para a audição voltar ao normal. A minha arma, que ele levava ao colo, apanhou com um estilhaço que danificou o carregador. Eu nem queria acreditar no que via e quando mais tarde vi a GMC, mais incrível me pareceu a sorte do B.
Dei a pensar em mim que andei centenas de quilómetros nesta viatura, sempre sentado no guarda-lamas da frente, agarrado ao farol com as costas no sentido do andamento, para poder conversar com os meus camaradas enquanto nos deslocávamos. Se um dia, por azar, ela actuasse alguma mina comigo sentado eu naquele sítio, não sei onde e como estaria agora.
O B não sofreu nada, mas deve ter tido muitas insónias nos dias que se seguiram e deve ter recebido a maior lição da vida. A minha arma teve direito a um carregador novinho em folha...
Eu, nunca mais pude andar sentado no guarda-lamas da nossa velhinha GMC.
Carlos E. Vinhal
Ex-Fur Mil Art MA
CART 2732,
CTIG, 1970/72
___________
Notas de L.G.
(1) Vd. post de 18 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXI: Breve historial da CART 2732 (Mansabá, 1970/72) (Carlos Vinhal)
(2) Bironque ficava na estrada de Mansabá-Farim.
Guiné 63/74 - P889: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (11): Férias em Portugal
Guiné > 1969 > A jangada, de reserva, com sobreviventes da tragédia de Cheche, no Rio Corubal, na retirada de Madina do Boé (1)
Foto: © Paulo Raposo (2006)
XI parte do testemunho do Paulo Raposo (ex-Alf Mil Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas, da CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852 > Guiné, Zona Leste, Sector L1, Bambadinca, 1968/70 > Galomaro e Dulombi).
Extractos de: Raposo, P. E. L. (1997) - O meu testemunho e visão da guerra de África.[Montemor-o-Novo, Herdade da Ameira]. Documento policopiado. Dezembro de 1997. 31-35.
MINI FÉRIAS em BISSAU
Foi nesta altura (1) que meu pai me foi visitar à Guiné. Como tinha muito medo de andar de avião, seguiu de barco. Era um barco misto, de carga e passageiros, e por esse facto ainda parou em Cabo Verde. A muito custo consegui uma licença para, a pretexto de ir tratar de assuntos da companhia, estar uma semana em Bissau, com ele.
Tanto o Brigadeiro Nascimento como a sua mulher, a Sra. D. Beatriz, que foram uns pais para todos os rapazes de Oeiras, tinham em sua casa um quarto para lá ficarmos. Fizémos cerimónia e instalámo-nos no Grande Hotel. Nunca tinha estado a sós com o meu pai tanto tempo. Conversámos muito naqueles dias.
Durante esta semana fomos visitar no Palácio o Ten Cor Pedro Cardoso, Secretário Provincial. Recebeu-nos muito bem, era uma simpatia. O meu pai tinha relações de amizade com o pai dele. A saída o meu pai deixou um cartão de cumprimentos ao Sr. Governador. Meu pai muito gostava destas cortesias.
Guiné > Bissau > 1969 > O Paulo Raposo com o pai, de férias, no Grande Hotel
Foto: © Paulo Raposo (2006)
Como eu tive de regressar entretanto ao mato, e o avião para Lisboa era apenas duas vezes por semana, o meu pai ainda ficou no Grande Hotel mais dois dias sozinho. Valeram-lhe a amizade e a companhia do casal Ten Cor Pedrosa.
Como disse atrás, o meu pai tinha muito medo de andar de avião e, por isso, andei à procura de alguém conhecido que fosse no mesmo vôo e lhe fizesse companhia. Achei um rapaz amigo que também ia e, como na altura os lugares no avião não eram marcados, pedi a este amigo que lhe arranjasse um bom lugar no avião e o acompanhasse na viagem. Assim o fez.
NOVAMENTE NO MATO
De regresso ao mato, enviaram-nos para outra Tabanca, com a missão usual de a ordenar e armar em Auto Defesa. Já estávamos treinados mas nunca gostei deste trabalho. Esta Tabanca ficava numa zona de paz a sul de Bambadinca (2). Ao todo fiz este trabalho em quatro Tabancas.
Um belo dia vou à sede do Batalhão buscar mantimentos e cruzo-me com o comandante que me dirige esta pergunta:
- Você pode reforçar um aquartelamento, uma vez que a companhia que lá está vai fazer uma operação?
Eu respondo-lhe:
- Meu Comandante, mesmo que eu diga que não posso, o Senhor manda-me na mesma, portanto diga quando nos quer lá.
Poucos dias depois para lá fomos, o local ficava a sul da Tabanca aonde estávamos, na estrada que ia ter à mata de Fiofioli. A companhia foi fazer a sua operação e nós por lá estivemos a fazer de baby-sitter.
Terminado o serviço, regressámos e Nossa Senhora nos valeu novamente. Saímos do aquartelamento de madrugada e passados uns 200 metros, ao começarmos a descer um relevo da estrada, no cimo da subida à nossa frente, dá-se um grande rebentamento e surge um grande tiroteio.
Eu ia logo à frente, atrás dos picadores (picadores eram os rapazes que iam à frente com umas varas, com um ferro na ponta para picar o chão à procura de minas), e deito-me imediatamente para o chão. A árvore atrás de mim fica toda picada com tiros do inimigo. De repente noto que algo se passa de estranho, que havia outro tiroteio cruzado.
Então o que se passara? Vinha na estrada, em sentido inverso ao nosso, uma secção de milícias nativas. O inimigo tinha na estrada uma mina comandada e montara uma emboscada. Como eles chegaram primeiro à mina foram eles a apanhar com a metralha.
Resultado: 3 mortos e três feridos graves evacuados de heli Se tivéssemos sido nós a lá chegar primeiro, tinha apanhado eu e os picadores com aquela mina. Durante toda a tarde andei com o caixão daqueles rapazes noUnimog para os entregar às famílias. Ao fim do dia, por causa do calor, o sangue ainda não tinha coagulado.
Voltámos à nossa rotina das Tabancas em Auto Defesa, de que o Capitão [Jerónimo, da CCAÇ 2405] muito gostava. Deste modo tinha a companhia dispersa, e pensava que não nos chamavam para operações, a nível de companhia.
FÉRIAS
E chegou a altura das minhas férias. Eu recebia ao todo 6.600$, dos quais ficava na Guiné com 2.200$, e ainda me sobrava dinheiro pois não havia aonde gastar. Os restantes 4.400$ ficavam em Lisboa e o meu pai ia levantá-Ios à Estefânia. Nessa altura, o bilhete de ida e volta a Lisboa, na TAP custava 4.000$ (3).
Pedi dinheiro ao meu pai, fiz a marcação das passagens, no Sr. Palma, o representante da TAP, em Bissau. De Bafatá para Lisboa fui na TAG. Ainda na pista e antes de embarcarmos no Heron, diz-me um rapaz que também seguia para Bissau, que aquele avião embora de alta segurança e usado para transporte do Eisenhower durante a guerra, tinha grande turbulência, mesmo com céu limpo. Julguei que ele brincava. Disse-me depois que era da PIDE. Mas era verdade. De Bafatá para Bissau, aquele avião parecia um canguru.
Chegado a Bissau, instalei-me no Grande Hotel para no dia seguinte, de madrugada, apanhar o avião para Lisboa. Com a excitação das férias, nada dormi naquela noite. De madrugada, levantei-me e tomei um táxi para o aeroporto de Biassalanca.
Conforme disse atrás, a TAP só ia a Bissau duas vezes por semana. Quando ia, era o dia do São Boeing. Toda a gente que prestava serviço em Bissau ia ver o avião, para ver quem chegava e quem partia, e encher os olhos com as meninas da TAP.
Já sentadinhos no Boeing 727, voámos para Lisboa. O vôo durou 4 horas que nunca mais passavam. A alegria e a excitação eram tantas, que a bordo fechavam o bar. Vim a saber depois que isto era hábito especialmente nos vôos da Guiné.
Curiosamente, depois do bar ter fechado, nós que já estávamos um bocado apanhados pelo clima, continuávamos a tocar nas campainhas do avião, mas sem sucesso.
Nesta altura dirijo-me ao que eu julgava ser um comissário, e digo-lhe que não são formas de tratar o pessoal que estava no buraco. Era o co-piloto, o Ricardo Silva Pires, e caímos nos braços um do outro. Hoje é um prestigiado comandante da TAP. Eu vivi até aos meus 10 anos na Rua João Penha, em Lisboa, e ele vivia mesmo do outro lado da rua. Chegava-se a casa dele através de umas escadinhas, aonde julgo que hoje há um bar. Todos os dias o pai dele, que trabalhava na Papelaria Fernandes, nos levava para o Liceu Pedro Nunes.
Depois de dormitar um pouco para pôr em ordem o equilíbrio, chegámos por fim a Lisboa. Passada a alfândega, depois de termos escondido as garrafas de whisky, que custavam 75$ na Guiné (3), lá estava toda a família e os amigos. Naquele tempo era assim. Menciono apenas alguns, a família Albarraque, Cardoso de Oliveira, Campos Rodrigues e Palma Carlos.
Meu pai mostrou-me o relógio dele. Desde a sua estada na Guiné ainda não tinha mudado as horas do relógio. Ainda não se tinha desligado da sua estadia em Bissau. Foi uma grande alegria ir para casa, tomar banho,dormir na minha cama, comprar o jornal, que subira de preço, para 1$50, e poder sair à rua sem perigo. Foram quatro semanas estupendas passadas no mês de Maio.
A 5ª e última semana já não sabia ao mesmo. Comecei a contar os dias e novamente recomeçava a ansiedade. No princípio de Junho, à 1 da manhã, regressei no mesmo avião da TAP.
Durante estas férias morre a minha avó Ana, que vivia connosco. Parece que esteve à minha espera. Era uma Senhora muito especial, não sabia dizer mal de ninguém. Embora tivesse ficado privada de sair por efeito de uma trombose que tinha tido, tinha o quarto sempre repleto de visitas. Sempre foi assim toda a vida.
No aeroporto outra vez as despedidas, mas já não íamos para o desconhecido, já sabíamos o que nos esperava. De novo a família e os amigos de sempre a despedirem-se de nós. Vim depois a saber que depois de eu entrar para o avião, pois naquela altura assistia-se a tudo do varandim do 1º andar do aeroporto, o meu pai ficou agarrado a uma coluna, a chorar como uma criança.
A viagem de regresso nada tinha de alegre. Dormi até chegarmos a Cabo Verde, de madrugada, para uma escala do avião. Comandava o avião o comandante Simões, visita de sempre da família amiga Simões de Almeida e Palma Carlos, relações que já vinham do tempo dos meus avós.
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Notas de L.G.
(1) Vd. post anterior, de 7 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P853: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (10): A retirada de Madina do Boé
(2) Provavelmemnte tabancas do regulado do Corubal, situadas a leste da estrada Bambadinca-Mansambo-Xitole
(3) Vd. post de 1 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXII: Cem pesos, manga de patacão, pessoal! (2)
(...) Humberto Reis:Já não me lembro da maioria dos preços mas tenho uma ideia de que uma viagem na TAP em Março de 1970, Bissau-Lisboa-Bissau, me custou à volta de 6 contos e nós ganhávamos cerca de 5.
"O pré dos soldados era de 600 pesos os de 2ª, 900 pesos os de cá e os cabos 1200 pesos. Eu sei dessa diferença pois tinha no meu Gr Comb o Arménio (o vermelhinha) que foi como soldado, visto que levou cá uma porrada (foi apanhado numa rusga pela PM no Porto quando já estávamos no IAO em Santa Margarida) que lhe lixou a promoção (...).
"Sei bem, isso não me esqueceu, que o visque era mais barato que a cervejola: 2,50 simples contra 3,00 ou 3,50, além de que dava direito, o whisky, a gelo. As cervejas nunca estavam suficientemente geladas pois os frigoríficos da messe, a petróleo, não tinham poder de resposta para a quantidade de pedidos." (...)
Guiné 63/74 - P888: Antologia (44): O presépio de Chicri (Beja Santos)
Foto: © Mário Armas de Sousa (2005)
Texto do Beja Santos, novo membro da tertúlia dos Amigos & Camaradas da Guiné, publicada na revista artciencia.com, revista de arte, ciência e comunicação. Trata-se de "uma revista electrónica, trimestral, cujo objectivo é agregar e divulgar trabalhos de investigadores e autores, cujos interesses se situem na intersecção das áreas arte-ciência-comunicação. Os textos podem ser escritos em português, castelhano, italiano, inglês ou francês". O Beja Santos pertence ao respectivo conselho editorial e deu-nos autorização expressa para publicar este texto que nos honra, a todos nós, ex-combatentes. É mais um momento tocante da vida da nossa caserna virtual. É uma história com moral, sobre o valor da solidariedade humana, em tempo de guerra, cruel...
Estranhamente, o episódio aqui evocado não consta da actividade operacional do mês de Dezembro do BCAÇ 2852, a que o Pel Caç Nat 52, comandado pelo Alf Mil Beja Santos, estava adido: vd. História do BCAÇ 2852 (Guiné, 1968/70): Bambadinca: BCAÇ 2852. 1970. Cap II. 13-24. (Documento policopiado, classificado como reservado).
De qualquer modo, este episódio com o diligrama faz-me lembrar um outro já aqui evocado por mim e de que resultou a primeira vítima mortal na minha companhia, a CCAÇ 12 (1) (LG)
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artciência.com (ISSN 1646-3463) Ano I. Número Dois. Fevereiro-Abril 2006
O PRESÉPIO DE CHICRI
Beja Santos
Que bom teres vindo! Feitas as contas, faz hoje 36 anos que nos vimos pela última vez. Graças ao Abudu, descobrimos finalmente o teu primo Álvaro Semedo, e assim chegámos à tua casa na Brandoa. Senta-te. Se não te impressionares, gostava de te contar tudo o que se passou no dia em que todos te julgámos perdido.
A 19 de Dezembro de 1968, decidi que partiríamos a 22 para patrulhar Chicri. Só no fim de Novembro me apercebi da importância estratégica de Missirá e Finete. Os guerrilheiros de Madina do Cuor abasteciam-se atravessando o Geba em dois pontos: Perto de Samba Silate, ao lado de Bambadinca, no Sul, ou em Mero, a Oeste. Mais a Sul, junto ao Xime, o PAIGC transportava a sua artilharia pesada e as suas munições. Eles aterrorizavam-nos, nós tínhamos que pagar com a mesma moeda. Por isso, íamos a Chicri.
Não era a primeira vez que eu lá ia. Era uma terra próspera, abandonada, as madeiras da tabanca ainda espetadas no ar e, olhando ao longe, como num amplo anfiteatro, o Geba refulgia, serpenteando entre o Xime e Bambadinca. Um trilho fino atravessava a tabanca entre estacas calcinadas, restos de paredes de adobe, mais além ficava a construção monumental da destilaria do cabo-verdiano Simão. Chicri fora enorme, povoada por Mandingas e Futafulas.
Tu tinhas-me dito, semanas antes, quando íamos numa operação perto de Madina: "Chicri não parece um presépio?" Recordo-te isto agora porque em vésperas do patrulhamento tu pediste-me para ir a Bafatá comprar figurinhas de barro para o nosso presépio de quartel. Quando me fizeste a proposta, achei estranho. Éramos 150, dos quais só nove cristãos. Eu sabia que tu tinhas sido educado numa missão em Bissau, mas surpreendeu-me a ideia do presépio. E lá foste a Bafatá, com o Teixeira das transmissões e o Barbosa da cantina. O Teixeira vive agora em Darmstadt e o Barbosa, a última vez que falámos, tinha um estabelecimento em Aveiro.
Na madrugada do dia 22, a patrulha abandonou Missirá, deixaras o presépio armado na messe e seguias à frente com a tua arma temível, o dilagrama. Percorremos os lamaçais de Gã Gémeos, depois Ganturé e Mato Madeira. Não sei se te recordas mas não havia vestígios nenhuns de presença humana. Porém, em Maná, topámos com indícios de um trilho recentemente aberto, entre o alto capim que circundava a velha tabanca dos Balantas. Entrámos no trilho. De Maná seguimos para Mato Cão. Na foz do Gambiel, tivermos um percalço com um enxame de abelhas. Vejo como tu estás atento, sinto que te espantas por ter guardado tudo. Seguimos depois para Chicri. Estávamos numa zona de guerrilha. Tinham-se passado 15 horas a andar e a tropa estava derreada.
Regressámos a Missirá para descansar e saímos de novo, na madrugada de 23. Queria regressar a Chicri antes do amanhecer. Tal como na véspera, tu insististe em vir. Eu tinha 23 anos, era o alferes de Missirá e Finete, território encravado nos arrozais, na outra margem de Bambadinca e matas do Ôio. Tinha à minha responsabilidade centena e meia de soldados, e muitas centenas de civis. Guerrilha paga-se com contra-guerrilha, terror com terror. Era o que eu me preparava para fazer.
Tu, lembro-me muito bem, estavas sorridente, tinhas preparado o presépio a um canto da messe, ao lado do armário onde guardávamos os pratos e os talheres. A nossa consoada seria em Missirá. No dia de Natal, iríamos à capela de Bambadinca e almoçaríamos em Finete, com a família do régulo Malâ.
Portanto, eram sete da manhã da antevéspera de Natal quando, em Chicri, 30 homens com uma bazuca e dois morteiros entraram num terreno de combate. Sete horas com muita humidade e o dia a despontar. Havia uma poalha luminosa nos palmeirais. Os indícios avolumavam-se: Encontrámos vestígios de uma fogueira, restos de caju e peixe, uma patorra bem desenhada na areia. Marchávamos silenciosamente, na testa da coluna o picador, depois o guia, a seguir eu e o José Jamanca com o bornal das munições. O mato engolia-nos na sua galeria silenciosa. Lembro-me de ter pedido ao Jamanca para ir chamar o Teixeira e o Campino da bazuca. Tu vieste, também, e o Cibo Indjai, o picador que lia na terra como na palma das mãos e que me avisou que podíamos estar próximos de um acampamento de guerrilha. Deixou-se de fazer a picagem do terreno, progredíamos lentamente. As fardas ensopavam-se nos corpos. Um Sol brutal escoava-se pela ramaria. Quebá Soncó pediu-me o cantil. "Quebá, onde estamos?" Só responderam os seus olhos devorados pelo medo. Era um caminhar sonâmbulo, sem se ouvir o piar das aves, com o estômago revoltado. De relance, vi as horas. Tu pediste-me um cigarro. E, de repente, na curva da picada, guia, picador e Cibo atiram-se para o chão. A pouco mais de cinco metros, um homem fardado de caqui amarelo, um chapéu de cowboy preso por atilhos olha-me estuporado e tão confuso como eu. Num segundo, medimo-nos de alto a baixo. Depois, dois tiros num só eco.
Aquele homem que eu nunca vira levou a mão ao ombro direito, os dedos tintos de sangue. Eu continuei a disparar e ele caiu lentamente como um fardo, a meio da picada. Seguiu-se o tiroteio caótico, gritos, o estoiro das granadas, o desabar das folhas, dos ramos, as armas a cuspir fogo. Os guerrilheiros abandonavam o terreno.
Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > 1969 ou 1970 > Pessoal do 2º Grupo de Combate da CCAÇ 12 atravessando em coluna apeada a bolanha de Finete na margem direita do Rio Geba.
Foto: © Humberto Reis (2006).
Chegara o momento da caça ao homem. Nós avançámos, tu começaste a usar a tua arma temível. E quando eu estava a avaliar os estragos e a preparar o ataque, ouviu- se um urro medonho, e eu só me lembro de te ver numa rodilha de carne dilacerada, em rios de sangue. Soubemos logo o que aconteceu. Meteras um cartucho de bala real, prepararas a tua condenação. Ergui a tua cabeça e tu disseste-me baixinho: "Alferes, dá-me um tiro para acabar tudo". Afastei-te a espingarda, o Jolá rasgou-te o dólman, tirou-te os restos das botas. Tu estavas muito mal, o braço esquerdo todo rasgado, buracos no peito, estilhaços nas pernas, pensei que tinhas perdido os dois olhos, tal o mar de sangue. À nossa volta, na zona de combate, estava tudo juncado de comida, panos, esteiras, granadas, cartucheiras, tudo o que os guerrilheiros tiveram de abandonar para fugir rapidamente.
Isto passou-se exactamente há 36 anos. Chegou o momento da confidência mais dolorosa: ninguém quis pegar em ti. Não por estares a morrer, mas por seres cabo-verdiano. Nesse dia, eu confirmei na carne quanto pesa um ódio. Tu repetiste: "Não vale a pena, estou perdido. Atira-me na testa". Dizem que é um acorde viril do macho estropiado, pedir a morte quando jorram os intestinos ou se perdem as pernas numa mina. Então, pedi ao Teixeira e ao enfermeiro Sérgio para se porem à frente da coluna e começámos a retirar. O Jau e o Cibo puseram-te às minhas costas. Retirámos aos tombos, eu levava entre os dentes o teu braço esfacelado, e vamos percorrer os quilómetros mais dolorosos da minha vida até chegarmos ao anfiteatro de Chicri. Não sei quanto tempo durou esta viagem alucinante. Finalmente, depositei-te, cheio de ternura, no chão. O Teixeira tentou uma ligação, a ver se conseguia que um helicóptero te viesse buscar. Não se conseguiu a ligação. O Sol estava no zénite. Tomei a decisão de ir a Missirá buscar uma viatura e reforços, improvisou-se uma maca, retirei com seis homens enquanto o resto da coluna seguia para a curva de Ganturé. Nova corrida para o quartel de Missirá. Ainda parámos uns minutos no Gambiel para matarmos a sede. Depois, uma corrida de 10 quilómetros até avistarmos os cajueiros amigos e o arame farpado de Missirá.
Acorria gente de todos os lados. Fez-se um silêncio sepulcral quando me viram, a farda empapada em sangue. Dei ordens. Queria uma viatura, garrafões cheios de água, um colchão, medicamentos. Ao contrário das tragédias gregas, ninguém comentava nem perguntava. Surgiu Malã, sempre resignado, vidente, brumoso. Não foi preciso dizer nada. E partimos, à procura da curva de Ganturé e de um helicóptero bendito.
Tenho outra confissão a fazer-te. Olhando as minhas mãos cheias de sangue, entre a vontade de chegar ao pé de ti e de me atirar para o chão a dormir só me lembrava das figurinhas de barro de um presépio que tu não irias partilhar connosco. Fomos até Bambadinca, onde foste evacuado para o Hospital de Bissau. O médico do Batalhão deu-me poucas esperanças, tinhas perdido muito sangue e era muito grande o estado de choque.
Regressámos a Missirá depois de eu ter feito o relatório dos acontecimentos. Lembras-te do meu abrigo, não lembras? Aquelas centenas de discos e os livros espalhados por toda a parte? Ardeu tudo em Março de 69. Tu rias-te com as minhas óperas e com aquela música, lembras-te?
E assim chegou a noite fria do Natal, fria no meu coração. Perto da meia-noite, o Teixeira veio chamar-me. No nosso refeitório, a um canto, iluminava-se o presépio. Estávamos todos com um nó na garganta. E, então, contei a todos que o teu corpo estropiado iria renascer de tanto sangue inocente derramado.
Estou a falar-te muito devagar, para calar a emoção. Desculpa se estas memórias te ferem. Estamos no Natal, e ter-te aqui, à minha frente, 36 anos depois, é uma grande alegria. Eu sabia que tu ias recuperando, que ficaras cego e aleijado. Depois do 25 de Abril, deram-me notícias de que casaras mas ninguém sabia do teu paradeiro. Esta história de Chicri, eu não sabia o que fazer dela. Receei voltar a ver-te, já que não sabia o que te dizer. Agora, olhando-te de frente, sei que sobreviveste para lembrar aos homens da tua pátria e da minha que houve milhares de presépios de Chicri perdidos ou esquecidos. Mas tenho uma surpresa para ti: as figurinhas de barro que foste comprar a Bafatá estão aqui para as levares.
Como é bom tu teres vindo e trazeres-me o alívio de tantos quilómetros de sangue e sofrimento. Quando vocês bateram à porta, estava precisamente a ler estes versos:
Não seja esta noite, agora e sempre,
Igual às outras noites.
Não seja esta noite, agora e sempre,
Igual às outras noites:
Tumba de carne viva em ódio amortalhada,
Anunciando sangue e pranto e morte.
Não seja esta noite, agora e sempre,
Igual às outras noites.
É bonito, não é? Foram 36 anos de dor que tu vieste hoje apagar. Vamos celebrar, finalmente, um Natal tão adiado. Nunca ninguém poderá saber como é bom poderes estar ao pé de mim!
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Notas de L.G.
(1) Vd. post de 8 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXLVI: Setembro/69 (Parte I) - Op Pato Rufia ou o primeiro golpe de mão da CCAÇ 12
(2) Chicri: Vd. mapa de Bambadinca. Chicri ficava acima do Mato Cão.
terça-feira, 20 de junho de 2006
Guiné 63/74 - P887: Tabanca Grande (1): Pedro Lauret, ex-Imediato da LFG Orion e Mário Beja Santos, ex-Alf Mil CMDT do Pel Caç Nat 52
Pedro Lauret, antigo imediato da LFG Orion, à esquerda, ladeado por Ulisses Faria Pereira, ex-grumete electricista... Foto: Público, nº 5571, 26 de Junho de 2005 (com a devida vénia) (1).
1. Na nossa tertúlia, é assim: não é preciso grandes cerimónias para se entrar... Foi o que se passou com o comandante Pedro Lauret com quem fiz uma rápida troca de galhardetes... Quanto ao Ulisses, faço votos para que ele dê sinais de vida e nos dê a honra de se juntar a este já imenso grupo de amigos e camaradas da Guiné...
Pedro: Amor com amor se paga… Tem, à sua disposição, as cartas do sul da Guiné, à escala 1/50.000… Conhece o António Marques Lopes, coronel DFA ? É um dos mais antigos membros desta caserna virtual onde fazemos blogoterapia… e mantemos acesa a chama da revolta pelo silêncio (societal) à volta da guerra colonial que você denuncia no seu texto (acabei de publicá-lo) (2)…
O António faz parte da A25A, delegação do Porto… É autor de alguns dos mais notáveis textos (ou posts) que temos publicado no nosso blogue, desde 25 de Abril de 2005… Espero que você volte… Mas na caserna tratamo-nos todos por tu…
Resposta do nosso camarada da Marinha:
Caro Luís Graça, se passar na inspecção é com todo o gosto que me junto ao pessoal da caserna.
Um abraço.
Resposta na volta do correio, ao desafio do nosso novo marinheiro:
Pedro: Estás dispensado!... Vou pôr-te na nossa mailing list. Passa uma vista de olhos pelo regulamento da caserna...
Um ciber-abraço
O Pedro Lauret não perdeu tempo com salamaleques...
Luís, quero dar-te os parabéns pois o regulamento da caserna está muito bem feito. Subescrevo-o sem hesitação. Um abraço,
Pedro Lauret
2. O caso do nosso camarada Beja Santos foi ainda mais célere... Comecei com cerimónias e acabámos no tu-cá-tu-lá, voltando aos velhos tempos de Missirá, Finete, Mato Cão, Bambadinca...
Beja Santos, ex-alferes miliciano, comandante do Pel Caç Nat 52 (Missirá, 1968/70). Foto tirada em 26 de Novembro de 1994, em Fão, Esposende, num convíviuo de malta que passou por Bambadinca, entre 1968 e 1971.
Foto: © Humberto Reis (2006)
Caro Mário:
Recebi, gostei muito e vou divulgar de imediato pela tertúlia [a dramática e comovente história do teu soldado cabo-verdiano gravemente ferido pela explosão de um dilagrama]. Estive três dias fora, só ontem inseri uma das tuas coisas [a lenda do alferes Hermínio de Jesus]…
Mas uma vez que este teu último texto, o presépio de Chicri, já foi publicado em revista, será que posso inseri-lo no blogue ? Preciso da tua autorização e/ou da revista… Um abração. Luís
O Beja Santos respondeu-me de imediato: Tens o meu OK!
Amigos e camaradas: a nossa caserna fica hoje mais rica, com a entrada do Pedro Lauret e do Beja Santos... A entrada de cada novo amigo ou camarada é sempre um momento bonito... Há trinta e tal anos atrás, seria celebrado mais ruidosamente, com umas valentes rajadas de G3... Agora estamos mais calmos, mais sábios, menos folgosos, mais amigos do ambiente, mais respeitadores do erário público, quiçá mais pacifistas, seguramente mais velhos... Espero que eles se sintam em casa, nas suas sete quintas, no seu meio (aquático, terrestre, aéreo, cibernáutico...) e que continuem sobretudo com essa imensa vontade de partilhar connosco a sua excepcional experiência como homens e como operacionais...
Mário e Pedro: É também um privilégio contar convosco!... Vocês são mais dois pesos pesados da guerra que nos calhou em sorte... Conto convosco para nos ajudarmos, uns aos outros, a reconstituir o puzzle da nossa memória colectiva... Temos essa obrigação, perante nós próprios, o povo português, o povo guineense e a nossa história parcialmente comum...
__________
Notas de L.G.
(1) Vd. post de 15 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P878: Antologia (42): Os heróis desconhecidos de Gadamael (Parte I)
(2) Vd. post de 14 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P876: É revoltante o silêncio em torno da guerra colonial (Pedro Lauret, imediato do NRP Orion, 1971/73)
1. Na nossa tertúlia, é assim: não é preciso grandes cerimónias para se entrar... Foi o que se passou com o comandante Pedro Lauret com quem fiz uma rápida troca de galhardetes... Quanto ao Ulisses, faço votos para que ele dê sinais de vida e nos dê a honra de se juntar a este já imenso grupo de amigos e camaradas da Guiné...
Pedro: Amor com amor se paga… Tem, à sua disposição, as cartas do sul da Guiné, à escala 1/50.000… Conhece o António Marques Lopes, coronel DFA ? É um dos mais antigos membros desta caserna virtual onde fazemos blogoterapia… e mantemos acesa a chama da revolta pelo silêncio (societal) à volta da guerra colonial que você denuncia no seu texto (acabei de publicá-lo) (2)…
O António faz parte da A25A, delegação do Porto… É autor de alguns dos mais notáveis textos (ou posts) que temos publicado no nosso blogue, desde 25 de Abril de 2005… Espero que você volte… Mas na caserna tratamo-nos todos por tu…
Resposta do nosso camarada da Marinha:
Caro Luís Graça, se passar na inspecção é com todo o gosto que me junto ao pessoal da caserna.
Um abraço.
Resposta na volta do correio, ao desafio do nosso novo marinheiro:
Pedro: Estás dispensado!... Vou pôr-te na nossa mailing list. Passa uma vista de olhos pelo regulamento da caserna...
Um ciber-abraço
O Pedro Lauret não perdeu tempo com salamaleques...
Luís, quero dar-te os parabéns pois o regulamento da caserna está muito bem feito. Subescrevo-o sem hesitação. Um abraço,
Pedro Lauret
2. O caso do nosso camarada Beja Santos foi ainda mais célere... Comecei com cerimónias e acabámos no tu-cá-tu-lá, voltando aos velhos tempos de Missirá, Finete, Mato Cão, Bambadinca...
Beja Santos, ex-alferes miliciano, comandante do Pel Caç Nat 52 (Missirá, 1968/70). Foto tirada em 26 de Novembro de 1994, em Fão, Esposende, num convíviuo de malta que passou por Bambadinca, entre 1968 e 1971.
Foto: © Humberto Reis (2006)
Caro Mário:
Recebi, gostei muito e vou divulgar de imediato pela tertúlia [a dramática e comovente história do teu soldado cabo-verdiano gravemente ferido pela explosão de um dilagrama]. Estive três dias fora, só ontem inseri uma das tuas coisas [a lenda do alferes Hermínio de Jesus]…
Mas uma vez que este teu último texto, o presépio de Chicri, já foi publicado em revista, será que posso inseri-lo no blogue ? Preciso da tua autorização e/ou da revista… Um abração. Luís
O Beja Santos respondeu-me de imediato: Tens o meu OK!
Amigos e camaradas: a nossa caserna fica hoje mais rica, com a entrada do Pedro Lauret e do Beja Santos... A entrada de cada novo amigo ou camarada é sempre um momento bonito... Há trinta e tal anos atrás, seria celebrado mais ruidosamente, com umas valentes rajadas de G3... Agora estamos mais calmos, mais sábios, menos folgosos, mais amigos do ambiente, mais respeitadores do erário público, quiçá mais pacifistas, seguramente mais velhos... Espero que eles se sintam em casa, nas suas sete quintas, no seu meio (aquático, terrestre, aéreo, cibernáutico...) e que continuem sobretudo com essa imensa vontade de partilhar connosco a sua excepcional experiência como homens e como operacionais...
Mário e Pedro: É também um privilégio contar convosco!... Vocês são mais dois pesos pesados da guerra que nos calhou em sorte... Conto convosco para nos ajudarmos, uns aos outros, a reconstituir o puzzle da nossa memória colectiva... Temos essa obrigação, perante nós próprios, o povo português, o povo guineense e a nossa história parcialmente comum...
__________
Notas de L.G.
(1) Vd. post de 15 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P878: Antologia (42): Os heróis desconhecidos de Gadamael (Parte I)
(2) Vd. post de 14 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P876: É revoltante o silêncio em torno da guerra colonial (Pedro Lauret, imediato do NRP Orion, 1971/73)
segunda-feira, 19 de junho de 2006
Guiné 63/74 - P886: Terceiro e último grupo de ex-combatentes fuzilados (João Parreira)
Foto: © João Parreira (2005)
Texto, com data de 9 de Junho de 2006, enviado pelo João Parreira , ex-Furriel Miliciano, CART 730 (Bissorã) e Comandos (Brá), 1964/66 (1)
Caro Luís Graça,
Penosamente estou a abordar novamente o assunto que ultimamente tenho trazido a lume, ou seja dar a conhecer mais nomes de camaradas guineenses - que obtive de fonte que considero fidedigna - e que por razões que só eles sabiam, decidiram lutar ao nosso lado, com excepção de um civil, e que mais tarde, já em tempo de paz, pagaram com a vida, ao serem fuzilados (2).
Constata-se que foi praticado um variado leque de execuções, tal como soldados de infantaria e artilharia, milícias, comandos, fuzileiros, marinheiros, enfermeiros, condutores, e talvez mais. Todos eles tinham variadas patentes.
Não me compete fazer qualquer juízo ou comentário, nem se está certo ou errado, pois os actos ficam com quem os mandou praticar, no entanto não compreendo como foram escolhidos e qual foi o critério desses fuzilamentos.
Que mais teriam feito para merecer tal destino?
Por certo foram muitos mais os guineenses que lutaram a nosso lado e que por lá ficaram com as suas famílias, felizmente, digo eu, sem que nada lhes acontecesse.
No que concerne à tendência de cada um de nós, tertulianos ou não, é óbvio que o que estava errado para uns estava certo para outros e vice-versa. Ao fim e ao cabo dentro do ponto de vista de cada um, todos têm as suas razões.
No post nº DCCCVI (3) não completei a última frase, que agora julgo oportuno acabar, ou seja: "Brevemente irei enviar mais nomes de outros fuzilados já depois da guerra terminar, que não assassinos dos comandos"... Eu queria dzier: "... que não assassinos dos comandos, como alguns lhe chamaram".
Na véspera do 10 de Junho [de 2006], não posso deixar de frisar que estes militares também morreram por terem defendido a Pátria Portuguesa.
Outros militares executados:
Soldado de Infantaria Uri Jaló (Esquadrão/Bafatá)
Sold Inf Sello Jaló (Farim)
Sold Inf Mamadu Bobó Jaló (Farim)
Sold Inf Alfa Baldé (Pel Caç Nat 53)
Sold Inf Mama Samba Candé (Pel Caç Nat 53)
2º Sargento Fuzileiro Especial Domingos Ensá Djassi (Dest Fuz Esp nº 21)
2º Sarg Fuz Esp Luntam Indjai (Dest Fuz Esp nº 21)
2º Sarg Fuz Esp Braima Sani (Dest Fuz Esp nº 21)
2º Sarg Fuz Esp Califa Baldé (Dest Fuz Esp nº 21)
Marinheiro Mamadu Aliu Seidi (Dest Fuz Esp nº 21)
2º Sarg Fuz Esp Adulai Dabó (Dest Fuz Esp nº 22)
2º Sarg Fuz Esp Marçal Sambu (Dest Fuz Esp nº 22)
2º. Sarg Fuz Esp Mário Adjabá (Dest Fuz Esp nº 22)
Marinheiro Calido Baldé (Dest Fuz Esp nº 22)
Comandante de Milícia Calilo Dabó (Empada)
Cmdt Mil Bawali Tcham (Empada)
Cmdt Mil Aladje Seco Camará (Jabadá)
Cmdt Ansumane Mané (Gampará)
Cmdt Mil Sambaro Candé (Mansabá)
2º Cmdt Mil Mam Braima Seidi (Mansabá)
Soldado Milícia Mama Djam Jaló (Mansabá)
Sold Mil Mori Baldé (Mansabá)
Sold Mil Uri Baldé (Mansabá)
Sold Mil Aliu Baldé (Mansabá)
Sold Mil Braima Candé (Farim)
Sold Mil Saco Baldé (Cuntima)
1º Sargento comando Zeca Lopes (1ª. C.C.A./C.O.E.)
Furriel cmd Luis Assaul (2ª Companhia de Comandos Africanos)
Fur cmd Amarante Sadjá (2ª Comp Cmds Africanos)
Sold Inf Augusto Amen Sanhá (3ª Comp Comandos Africanos)
Sold Inf Constantino Aliu Sani (4º Curso Comandos)
Sold Bacarzinho (5º Curso Comandos)
Fur Grad Inf Salazar Saliu Queta (CCAÇ 5) (3)
1ºCabo Inf Mama Saliu Jaló (CCAÇ 5)
Sold Inf Demba Ganó (CCAÇ 11)
Sold Inf Malam Sani (CCAÇ 14)
Sold Inf Bará Dabó (CCAÇ 14)
Fur Grad Inf MalanTuré (CCAÇ 21) (5)
Civil Malam Cassapai (Administração de Catió, Catió)
E assim termino a triste missão que me impus a mim próprio.
Um abraço
João Parreira
____________
Notas de L.G.
(1) Vd post de 3 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74- CCCXXX: Velhos comandos de Brá: Parreira, o últimos dos três mosqueteiros
(2) Vd. posts anteriores, de:
23 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXXIV: Lista dos comandos africanos (1ª, 2ª e 3ª CCmds) executados pelo PAIGC (João Parreira)
31 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCXXII: Mais ex-combatentes fuzilados a seguir à independência (João Parreira)
(3) Vd. post de 27 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCVI: O colaboracionismo sempre teve uma paga (6) (João Parreira)
(4) Vd. post de 6 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCIX: Salazar Saliú Queta, degolado pelos homens do PAIGC em Canjadude (José Martins)
" (...) Em conversa com alguém que esteve lá contigo nos últimos dias - creio que o Capitão Miliciano Silva de Mendonça, de que já te enviei o contacto -, sei que pagaram aos africanos seis meses de pré e, como se o contrato de trabalho de muitos anos e muita lealdade tivesse terminado, disseram-lhes, em nome de quem nunca os conheceu e viveu junto deles, vão à vossa vida.
"Também em conversa tida com o Capitão Figueiredo Barros, soube que o Salazar Saliú Queta, Soldado Africano da Psico-social, foi sumariamente executado, por degolação, assim que o PAIGC tomou conta do aquartelamento. Este relato foi feito pelo Fernando Saliu Queta, filho do nosso nharro" (...).
(5) Mensagem posterior, de 21 de Junho, do João Parreira, a esclarecer o seguinte: "É que entrou em contacto comigo um camarada nosso que me disse que esteve com ele e nessa altura o Malan era 1º. cabo, e que por isso não podia ser o mesmo".
Guiné 63/74 - P885: Guileje, onde hoje floresce a 'matchundadi di branco' (Pepito)
Guinau-Bissau > Região de Tombali > Guileje > Antigo aquartelamento das NT > Uma planta chamada matchundadi di branco...
Foto: © Pepito (2006)
Mensagem do Pepito, da AD-Acção para o Desenvolvimento (Bissau):
Caro Luís
Como Guiledje é uma fonte inesgotável de conhecimentos, junto envio a foto de uma planta lindíssima que brota do chão do Quartel e a quem os antigos milícias africanos de Guiledje chamam sugestivamente de ...matchundadi di branco.
Comentário de L.G.:
(i) Obrigado, Pepito... É um deslumbramento!
(ii) A tua/nossa Guileje tem sido um caixinha de surpresas...
(iii) Já agora, para o teu serviço ser completo, diz-nos o que quer dizer, em crioulo, matchundadi... Traduz à letra, não queremos eufemismos...
O bom amigo do Pepito, meio encaralhado, lá me esclaraceu, logo a seguir:
Caro Luís
Semanticamente falando, que o assunto é delicado, a palavra em crioulo matchundadi vem directamente da palavra matcho, que vem de macho e que vem vernaculamente do caralho...
abraços
pepito
Comentário de L.G.:
Assim é que é: em bom vernáculo, do crioulo da Guiné, é que a gente se entende!... Matchundadi di branco, para os nossos queridos nharros, não é mais do que o caralho ou a piça do branco ! ... Quem disse que os guineenses não tinham sentido de humor ? Assim sendo, o título deste post devia ser Guileje, onde floersce o 'matchundadi di branco'...
Foto: © Pepito (2006)
Mensagem do Pepito, da AD-Acção para o Desenvolvimento (Bissau):
Caro Luís
Como Guiledje é uma fonte inesgotável de conhecimentos, junto envio a foto de uma planta lindíssima que brota do chão do Quartel e a quem os antigos milícias africanos de Guiledje chamam sugestivamente de ...matchundadi di branco.
Comentário de L.G.:
(i) Obrigado, Pepito... É um deslumbramento!
(ii) A tua/nossa Guileje tem sido um caixinha de surpresas...
(iii) Já agora, para o teu serviço ser completo, diz-nos o que quer dizer, em crioulo, matchundadi... Traduz à letra, não queremos eufemismos...
O bom amigo do Pepito, meio encaralhado, lá me esclaraceu, logo a seguir:
Caro Luís
Semanticamente falando, que o assunto é delicado, a palavra em crioulo matchundadi vem directamente da palavra matcho, que vem de macho e que vem vernaculamente do caralho...
abraços
pepito
Comentário de L.G.:
Assim é que é: em bom vernáculo, do crioulo da Guiné, é que a gente se entende!... Matchundadi di branco, para os nossos queridos nharros, não é mais do que o caralho ou a piça do branco ! ... Quem disse que os guineenses não tinham sentido de humor ? Assim sendo, o título deste post devia ser Guileje, onde floersce o 'matchundadi di branco'...
Guiné 63/74 - P884: Por onde parará o Cristo de Guileje? (Pepito)
Guiné > Guileje > s.d. > Imagem de Cristo inscrutada numa árvore. Fonte: Afonso e Gomes (2002) (1)
Mensagem do Pepito (AD - Acção para o Desenvolvimento, Bissau):
Caro Luís
Desde que me abalancei nesta Iniciativa de Guiledje me tenho deparado com uma dúvida que ainda não consegui esclarecer. No livro editado pelo Diário de Notícias "Guerra Colonial", da autoria de Aniceto Afonso e Carlos de Matos Gomes (1), vem referido com foto que junto envio, a existência do "Cristo de Guiledje".
Sucede que todas as pessoas a quem perguntei não me confirmam a existência desse Cristo incrustado na base de uma árvore. Será que algum tertuliano se lembra da sua existência?
abraços
pepito
___________
Nota de L.G.:
(1) AFONSO, Aniceto; GOMES, Carlos Matos - Guerra Colonial. Lisboa: Ed. Notícias 2002.
Mensagem do Pepito (AD - Acção para o Desenvolvimento, Bissau):
Caro Luís
Desde que me abalancei nesta Iniciativa de Guiledje me tenho deparado com uma dúvida que ainda não consegui esclarecer. No livro editado pelo Diário de Notícias "Guerra Colonial", da autoria de Aniceto Afonso e Carlos de Matos Gomes (1), vem referido com foto que junto envio, a existência do "Cristo de Guiledje".
Sucede que todas as pessoas a quem perguntei não me confirmam a existência desse Cristo incrustado na base de uma árvore. Será que algum tertuliano se lembra da sua existência?
abraços
pepito
___________
Nota de L.G.:
(1) AFONSO, Aniceto; GOMES, Carlos Matos - Guerra Colonial. Lisboa: Ed. Notícias 2002.
Guiné 63/74 - P883: Convívio de ex-cadetes da EPI, Mafra, 1 de Julho de 2006 (Paulo Raposo)
O Paulo Raposo volta pedir-me que divulgue a realização do encontro de ex-camaradas que passaram por Mafra, e de que ele é co-organizador, com o Rui Felício:
GRANDE ENCONTRO DA 2ª INCORPORAÇÃO DE 10 DE ABRIL DE 1967
Curso de Oficiais Milicianos
Escola Prática de Infantaria (EPI)
Mafra
1 de Julho de 2006
Programa
10.00 - Concentração junto da Porta de Armas
10.45 - Homenagem aos mortos
11.00 - Colocação de uma placa assinalando o encontro:
"Homenagem à EPI
Curso de Oficiais Milicianos 2ª Inc. 1967
10 de Abril de 1967
1 de Julho de 2006"
12.00 - Missa campal na Parada, em princípio presidida pelo Reverendíssimo Sr. D. Januário
12.45 - Fotografia dos presentes
13.00 - Almoço no refeitório do quartel
Preço do pessoa> 15 a 20 € (está dependente do número de participantes)
TRAZ A FAMÍLIA E PASSA PALAVRA A OUTROS EX-CADETES DESTA INCORPORAÇÃO.
TRAZ TAMBÉM UMA BOINA COM ARMAS DE INFANTARIA E O EMBLEMA DA ESCOLA
Organizadores: Rui Felício / Paulo Raposo (1)
.
Envia a tua inscrição para: abr1967epi@gmail.com
Contacto na EPI: 2º Comandante Ten Cor João Mendes
Tel > 261 815 055
Paulo Lage Raposo
____________
Nota de L.G.
(1) O Rui Felício e o Paulo Raposo fazem parte da nossa tertúlia e são ex-Alf Mil da CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852 > Guiné, Zona Leste, Sector L1, Bambadinca, 1968/70 > Galomaro e Dulombi).
domingo, 18 de junho de 2006
Guiné 63/74 - P882: Historiografia da presença portuguesa em África (1): Infali Soncó e a lenda do Alferes Hermínio (Beja Santos)
Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados
Foto: © Humberto Reis (2005) (com a colaboração do Braima Samá, professor local). Direitos reservados.
Por gentileza do autor, o nosso camarada Beja Santos, ex-alferes miliciano, comandante do
Pel Caç Nat 52 (Bambadinca e Missirá, 1968/70) (1)
A LENDA DO ALFERES HERMÍNIO DE JESUS
por Beja Santos
Para Bacari Soncó, Régulo do Cúor
A noite passada, sonhei que tinha voltado a Missirá, envolto pelo piar lúgubre dos jagudis e o restolhar dos porcos do mato. Meti-me à estrada a partir de Canturé, rápido alcancei Finete, de onde se avista o bruxulear de Bambadinca. Abudu Cassamá, de costas retalhadas por uma granada de fósforo, acompanhou-me pela bolanha enluarada. Como num sonho tudo é consentido, retiro de uma carta que trago no meu camuflado a fotografia do túmulo de Infali Soncó, reduzido a duas paredes de adobe carcomido por chuvas diluvianas e estios tórridos. Infali Soncó, Régulo do Cúor, derrotou Teixeira Pinto em 1917. É um herói mandinga, mas não foi ainda herói para a Guiné Bissau. No meu sonho ele está sepultado em Bambadinca, mas, de facto, ele jaz em Missirá.
Para procurar conhecer o sopro anímico que movia o guerreiro Infali, a noite passada percorri, em relâmpago os seus territórios, o seu império: a sul, definia-se pelas sinuosidades do Rio Geba ou Xaianga; a oeste, por Porto Gole; a norte, pelo Ôio e Mansomini; a oeste, pelo Jolado e Badora. Abro uma carta de um para cinquenta mil, dos Serviços Cartográficos do Exército, para ver o que cabe dentro do território do Cúor: nomes exóticos como Darsalame, Gã Joaquim, Paté Gidé, Flaque Dulo.
Lembro estes nomes e estremeço com a recordação de ter percorrido muitas destas ruínas do império destruído, naqueles anos da guerra, quando comandei em Missirá. Na guerra patrulhei, minei, queimei, vi gritar de dor nos rios Biassa, Gambiel e na orla do Geba, embusquei em Chicri, em São Belchior, sobretudo em Mato do Cão, onde me apavorei quando ouvi e vi as águas revoltas pelo macaréu.
Os guerrilheiros tinham os seus acampamentos em Madina, em Mansomini, em Quebá Jilã. As famílias Soncó e Mané, os descendentes de Infali, estão em Missirá e também em Finete (é aqui que conheci Bacari, hoje Régulo do Cúor). Porque o Cúor de Infali já não existe. O meu sonho prossegue. Vejo-me sentado numa raíz de poilão, junto do túmulo de Infali a perguntar ao vento: no fim desta guerra medonha, será que este Cúor se levantará, ainda terra de grumetes e ponteiros? O vento permanece impenetrável.
Deambulo aos solavancos e o meu sonho vai até Bambadinca, do cemitério à vila. Bato à porta de Dona Violete da Silva Aires, professora, cabo-verdiana de pele clara, que me aguarda numa sala ampla, ao pé de um piano a cair de podre, com uma boquilha na mão. Serve-me uma infusão, faz-se silêncio, Dona Violete olha em direcção ao Geba. É uma mulher que esconde a devastação do tempo com camadas absurdas de pó de arroz e traços grossos de rímel. O cabelo oxigenado sai-lhe de um lenço vistoso, de cores fosforescentes, amarrado em laços grotescos sobre o carrapito. Tudo nela é amolecimento, solidão, alguma sensualidade mal contida. Súbito, Dona Violete ganha energia e, sem pausas, segue-se a narrativa histórica dos Rios da Guiné, de Cabo Verde, uma espiral de violência, tráfego de escravos e conquista que se derrama dentro do meu sonho. Inevitavelmente, o Cúor entra no palco. Nele, o Geba é a região dos entrepostos; a estrada de Porto Gole-Enxalé avança para Geba e Bafatá, sulcando o terreno firme do Cúor, a serpentear o rio das mercadorias; e o Cúor é rico em madeiras perfumadas, tem um pau sangue único no mundo.
Sinto que o meu sonho está a terminar. A voz sumida da Dona Violete adverte: "Lembre-se, Sr. Alferes, estamos numa das regiões mais palustres da terra. Antes do combate à doença do sono e do tracoma, as grandes mortandades da malária, da lepra e do béribéri, situavam-se aqui. No fundo dos mangais, a vida só é possível à volta dos riachos e palmares. Já ouviu falar de um alferes português que no tempo de Infali morreu de amor? “.
Acordo, hoje é o segundo domingo de Janeiro de 1990, 20 anos depois regresso a Missirá na companhia de Maria Leal Monteiro e Francisco Médicis. De Bissau seguimos para Nhacra, onde as crianças acompanham a missa com batuque. A caminho de Porto Gole, o Geba é mercúrio ígneo. Paramos em Mato do Cão, que percorri todos os dias, entre Agosto de 1968 e Novembro de 1969. A ponta do cabo-verdiano está completamente destruída. Restam umas madeiras do ancoradouro e vou ver o Geba e o seu tarrafe. Subimos depois para Missirá, onde vou entrar e sair lavado em lágrimas. Após a recepção, Abudu Soncó, o filho mais novo do Régulo Malâ, apresenta-me Alage Soaré Soncó, o último filho sobrevivente de Infali. Será através dele que vou finalmente conhecer a lenda do Alferes Hermínio de Jesus.
Sentado à porta de uma tabanca, depois de termos bebido chá e comido papaia, Alage, de olhos brumosos, falou-me de Infali. Vou tomando nota do que ele diz, a partir de agora nada é ficção. A lenda do alferes português é o momento mais alto do génio militar e, simultaneamente, prenuncia o ocaso de Infali. A luta encarniçada entre Infali Soncó e as tropas portuguesas, na segunda campanha de Teixeira Pinto, em 1917, revela a sua bravura e igualmente a sua fina percepção política.
Infali terá nascido por volta de 1870, em Berrocolom no sector do Gabu, leste da Guiné. Com 19 anos, à frente de cem cavaleiros, conquista Cumpone, na região de Boké, Guiné Conakri. Tal feito grangeia-lhe a admiração dos mandingas e é convidado para Régulo de Cumpone. Infali encontrou forte rivalidade dos fulas, sobretudo do guerreiro Alfa Iaia, de Conakri, e logo fica à espreita de uma oportunidade para sair de Cumpone.
Essa oportunidade veio a acontecer em 1894, quando o seu tio Calonandim Mané, Régulo do Cossé, em Bafatá, e aliado dos portugueses, lhe pede para invadir o chão do Cúor, repito um imenso território entre a Porta do Cúor (hoje Porto Gole) e a região do Geba. O objectivo era depor o Régulo Sambel, Nhatam, que tinha a sua fortaleza em Sam-Sam (perto de Gã Gémios, totalmente desaparecida, como eu próprio confirmei). E daí partiam as hostilidades contra as embarcações portuguesas e cabo-verdianas que ele atacava com ferocidade no Rio Geba, entre Mato do Cão e Bambadinca.
Infali aceitou combater ao lado de Calonandim Mané, ambos cercaram Sam-Sam com mais de duzentos guerreiros armados de longas (canhangulos) e azagaias e Sambel Nhatam bateu em retirada. As autoridades portuguesas apercebem-se das vantagens de uma aliança com estes fogosos guerrilheiros mandingas. Logo o Governador Lito de Magalhães parte de Bolama (então a capital da Guiné) e convida Calonandim a aceitar o regulado do Cúor.
Alage Soncó contou-me que as festas deste novo régulo foram faustosas e compareceram os régulos de Mansoa e Mansabá. Calonandim reinou cerca de vinte anos e foi morto numa batalha perto de Enxalé, terra de balantas. Com a aprovação das autoridades de Bolama, Infali ascende ao trono e vinga exemplarmente Calonandim - correram rios de sangue entre Enxalé e a Porta do Cúor.
As autoridades portuguesas mostraram-se entusiasmadas com o perfil do castigador e as provas de fidelidade do aliado: Infali foi condecorado em Geba, em 1914.
Pergunto então a Alage Soncó porque se revoltou Infali contra os portugueses. Aqui ficam as explicações de Alage.
Em 1915, o Governador Fortes veio de Bolama (2) em visita de cortesia pelos regulados do leste da Guiné, fez-se acompanhar de comitiva militar , e entre os oficiais vinha o Alferes Hermínio de Jesus, um quase mancebo. Infali sai de Sam-Sam acompanhado pelos seus músicos para apresentar saudações de boas vindas. O Governador Fortes fica desorientado com o avanço da mole humana e a algazarra dos músicos. O Alferes Hermínio, desconhecedor do carácter hospitaleiro da fanfarra, manda disparar. Infali não se atemoriza com os tiros, interpretou-os como um acto de pura hostilidade e manda cercar os portugueses.
Protegido pela resistência do Alferes Hermínio, Fortes retira para Malandim e daqui para Samba Silate, perto do Xime. Infali captura o Alferes Hermínio, dois sargentos e catorze praças. Bolama interpreta estes reféns como sinal de rebelião contra Portugal. Infali não se deixa intimidar e actuou em duas direcções: cortou a navegação no Geba, paralisando toda a actividade económica entre Bambadinca e Bafatá; e, tendo comprado armas a comerciantes franceses do Casamansa, desafiou o Capitão Teixeira Pinto para as matas do Ôio. O Alferes Hermínio, entretanto, ficou a viver numa morança em Gâ Gémeos, perto da Aldeia do Cúor.
Um amigo de Infali Soncó, de nome Pedro Moreira, dono de uma destilaria entre Gâ Gémeos e Aldeia do Cúor, negociou com Infali a liberdade do oficial português. Veio, entretanto, um barco do Bolama para recuperar todos reféns, e um segundo tenente trouxe, em nome de Fortes, uma proposta de paz. Tinham-se passado cerca de vinte meses após o incidente com os músicos e a fuga do Governador Fortes.
Alage Soncó confessa então que as opiniões dos mandingas se dividiram quanto às razões da morte de Hermínio. Uns disseram que se apaixonara loucamente por Cumba Mané, filha de Inderissa Mané, comerciante de tabaco, panos e álcool em Canquelifá (3) e no rio Cheche. Havia mesmo quem dissesse que o casal era feliz e que Hermínio se dedicava à agricultura, aprendia crioulo, ourivesaria e as artes equestres. Outros, foram premptórios quanto à progressiva insanidade mental e isolamento do oficial, que se passeava sozinho pelo mato como um sonâmbulo. Ao gosto da época, o alferes suicida-se num palmar entre Caranquecunda e Missirá, deixando uma carta de despedida aos pais, pedindo-lhes perdão por não querer regressar, tal a paixão que sentia pelas terras da Guiné.
Nessa carta, reza a lenda, Hermínio referia-se ao Geba, aos pôr–do- sol em fogo que caiam repentinamente sobre a terra, à vida da tabanca, ao filho que ia nascer. Certo e seguro, o segundo tenente regressou a Bolama com um cadáver que era incómodo para todos. Aqui, Alage Soncó observa a fatalidade: a desdita do Alferes Hermínio marcava o início da queda política da Infali Soncó.
De facto, no fim da segunda campanha de Teixeira Pinto, Infali, que negociara a sua manutenção no poder após a derrota do contigente português nas matas do Ôio, desavençou-se com os régulos do Jolado e Cossé - os fulas abandonaram-no e Infali só dispunha do apoio dos mandingas e dos beafares. Bolama não perdeu a oportunidade para se desembaraçar do aliado instável. Infali é desterrado para Fulacunda (região de Quínara) onde morrerá em 1926. Um dos filhos de Infali, Bacari, é designado para régulo. É Bacari Soncó quem transfere a sede do regulado de Sam-Sam para Missirá, onde eu estou a recolher o depoimento de Alage Soaré Soncó.
Terei eu retido o essencial sobre a história do Alferes Hermínio? Alage pergunta-me de sopetão: “A família de Hermínio respeita a terra onde ele viveu e morreu?”. Digo que sim, como se Missirá não estivesse no meu sonho, e esta história tivesse alguma importância a não ser a de eu voltar a Missirá no segundo domingo de Janeiro de 1990, vinte anos após dela ter partido, a Missirá, que vi três vezes queimada e reconstruída, onde os meus mortos estão sepultados no cajueiro virado para Gambiel (4).
Está na hora de regressar. É difícil sair de Missirá, e, repito, tal como entrei saio lavado em lágrimas. Abudu Soncó entrega-me um livro que eu deixei em Missirá. Tem uma dedicatória e tem também um pensamento escrito numa máquina dactilográfica. O pensamento diz: “Se capturares o momento antes de maduro/As lágrimas de arrependimento certamente te fustigarão/Mas, uma vez que deixas escapar o maduro momento,/tu nunca poderás limpar as lágrimas de desespero”. William Blake. Acordo do meu sonho. Amanhã vou perguntar ao Abudu se Alage Soncó ainda é vivo. Tenho para ele uma resposta acerca dos familiares do Alferes Hermínio. Também eles gostavam de ir às terras do Cúor. A carta chegara a Lisboa. Hermínio morrera de amor por uma mulher e por um território. Muito ao gosto da época, afinal. (5)
__________
Notas de L.G.
(1) Vd . post anterior
(2) Bolama foi a primeira capital da província portuguesa da Guiné desde 1879 até 1941.
(3) Canquelifá: a nordeste de Nova Lamego
(4) Rio Gambiel, afluente do Rio Geba
(5) Em relação aos factos recolhidos oralmente pelo Beja Santos, parece haver algumas notórias discrepâncias, quando confrontrada a versão local com a historiografia portuguesa. Por exemplo, na Nova História Militar de Portugal (ed. lit. Manuel Themudo Barata e Nuno Severiano Teixeira), vol. 3 (Lisboa: Círculo de Leitores, 2003), pode-se ler a seguinte nota (p. 449):
"1908 - O governador Oliveira Muzanty, obtendo reforços da metrópole, organiza a maior expedição efectuada na Guiné até 1963, vencendo a resistência biafada, encabeçada por Unfali Soncó em Cuor e Canturé e restabelece as comunicações entre Bissau e Bafatá (5 a 24 de Abril)".
Carlos Bessa , autor do capítulo "Guiné. Das deitorias isoladasa ao 'enclave' unificado" (pp. 257-270), escreve o seguinte sobre o régulo Soncó:
"(,...) O régulo Unfali Soncó, aliado do régulo de Badora, Bonco Sanhá, com o assentimento de outros régulos fulas, pretendeu impedir a navegação no Geba, criando o risco de sufocar Bissau extinguindo-lhe o comércio. Contando com a aliança do régulo do Xime, Abdulai Kassalá, violento e impopular, e de Monjour, célebre régulo do Gabu, Muzanty fez frente a Soncó (...).
"Em 18 de Março [de 1908] desembarcou a expedição prometida pelo governo, com um efectivo de 358 oficiais e soldados portuguese. A resistência de Unfali Soncó ainda durava, e Muzanty organizou e assumiu o comando da maior expedição do exército regular ao interor da Guiné até 1963. Unfali Soncó, vencido em Cuor e Ganturé, entre 5 e 24 de Abril, viu-se abandonado. A resistência das tabancas biafadas foi pequena, e a navegação comercial entre Bissau e Bafatá restabelecida. Abdul Injai, aventureiro senegalês, distinguiu-se no apoio dado. Foi nomeado réglo do Cuor, efectuou avultadíssima cobrança do imposto e ele próprio enriqueceu" (pp. 266-267).
Na referência de Carlos Bessa ao "pacificador" da Guiné, Teixeira Pinto, e à sua "segunda campanha" (1913-1915), não surge o nome de Unfali (ou Infali) Soncó.
João Augusto de Oliveira Muzanty foi governador da Guiné entre 1906 e 1909. Não encontro nenhum Fortes nem nenhum Lito de Magalhães na lista dos governadores da Guiné. Muzanty é, juntamente com Teixeira Pinto, um dos grandes protaganistas da "pacificação" da Guiné, tendo em sua honra sido erigida uma estátua em Bafatá.
Guiné 63/74 - P881: Tabanca Grande: Uma saudação especial ao nosso camarada Beja Santos (Pel Caç Nat 52, Missirá, 1968/70)
Esposende > Fão > 26 de Novembro de 1994 > Convívio da CCAÇ 12, da CCS do BCAÇ 2852 e outras unidades destacadas em Bambadinca, entre 1968 e 1971... Na imagem, ao centro o Mário Beja Santos, ex-alferes miliciano que comandou o Pel Caç Nat 52 (Missirá, 1968/70), ladeado pelo Humberto reis (à direita) e o Tony Levezinho (de costas, à esquerda). Ao fundo, particularmente sorridente, vê-se o Arlindo Teixeira Roda. Estes três eram furriéis milicianos da CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71) (1) .
Foto: © Humberto Reis (2006)
Segundo as minhas próprias recordações e as do Humberto Reis, este foi o primeiro convívio colectivo que o pessoal de Bambadinca realizou, depois do regresso a casa. Foi organizado em Fão, Esposende, por iniciativa do ex-Alf Mil Carlão, da CCAÇ 12. Foi também o único em que participei, até à data. Entre os velhos camaradas de Bambadinca, reencontrei o Beja Santos. O convívio seguinte foi na herdade do J. Vacas de Carvalho aonde, creio, o Beja Santos também foi.
Há dias encontrei na Net um belíssimo texto do Beja Santos, aliás, do Dr. Mário Beja Santos, um figura pública conhecida (especialista, de renome internacional, em questões de direito do consumidor, assessor do Instituto do Consumidor, professor universitário, etc.). E isso foi um pretexto para o contactar e pedir-lhe autorização para publicar o texto no nosso blogue.
Aproveito para lembrar que, com o Pel Caç Nat 52, comandando pelo Beja Santos, fizemos (a CCAÇ 12, mais a CCAÇ 2636, mais 1 Esq. Morteiros do Pel Mort 2106 (e ainda - segundo creio - mais o Pel Caç Nat 54) talvez a mais dramática, temerária e penosa operação de que eu me lembre: Op Tigre Vadio (Março de 1970), na pensínsula de Madina/Belel, a norte do Rio Geba, no regulado do Cuor, na extremidade sul do famoso corredor do Morès...
De facto, todos os anos nos obrigavam (o comando de Bambadinca) a fazer uma visita à base do PAIGC de Madina/Belel... O Beja Santos foi lá pelo menos duas vezes... Jorge Cabral também lá foi, pelo menos uma vez, de helicóptero, com os paraquedistas... Um belo dia destes teremos que falar destas estórias fabulosas e dramáticas das nossas incursões a Madina/Belel... O Jorge Cabral também conhece muito bem o Beja Santos, de resto também ele foi rei e senhor de Missirá...
O texto, que eu vou reproduzir, a seguir, no nosso blogue (depois de obtida a competente autorização do autor), evoca duas figuras: por um lado, o herói mandinga Infali Soncó, régulo do Cuor, que terá derrotado o Teixeira Pinto em 1917; e por outro, um anti-herói, português, o alferes Hermínio de Jesus, aprisionado pelo Infali e que depois terá morrido de loucura e de amores por uma bela mandinga...
O texto, escrito por um homem de cultura como é o Beja Santos, e que já circulou internamente pela nossa tertúlia, por e-mail, evoca igualmente um das mais mais belas regiões da Guiné, justamente aquela que ele próprio, mas também eu próprio, o Jorge Cabral, o Humberto Reis, o Tony Levezinho, o Joaquim Fernandes, o Vacas de Carvalho, o Luís Moreira, o António Duarte, o Sousa Castro, o Carlos Marques dos Santos e outros tertulianos, tão bem conheceram e amaram... Chamo a atenção também para a evocação da figura da professora primária de Bambadinca, Dona Violete da Silva Alves (2)...
Falando há dias com o Beja Santos pelo telefone, pareceu-me que ele, embora sendo um homem atarefado, mostrou interesse pela existência da nossa tertúlia e sobretudo disposição para colaborar com mais textos da sua autoria. Autorizou-me expressamente a publicar a lenda do Alferes Hermínio de Jesus (2)… Fica aqui o meu agradecimento (público) pela sua atenção e o nosso voto para que se junte à centena de amigos & camaradas da Guiné que constituem já a nossa tertúlia…
Eis a mensagem que ele me mandou, por e-mail: "Prezado Luís Graça, gostei muito do seu telefonema e procurarei corresponder ao seu solicitado. Para já leva dois textos com todas as autorizações necessárias para os publicar. Estou asfixiado com o fim do ano lectivo. Mas terei muito gosto em continuar em conversar consigo nos próximos tempos. Abraços, Beja Santos".
Tine oportunidade de responder-lhe de imediato , por e-mail de 14 de Junho de 2006:
"Caro Beja Santos:
"1. Obrigado pelo gesto de camaradagem. Irei publicar, com muito gosto, os dois textos que mandou para a nossa tertúlia.
"2. Teremos oportunidade de ir matando saudades das terras do Cuor: Missirá, Finete, Mato Cão, Enxalé, Portogole... Eu também sou professor universitário, ambos sabemos o que é a azáfama do fim de ano lectivo... Tenho pena que as circunstâncias não nos tenham permitido, na Guiné, manter um contacto mais pessoal... Estive várias vezes em Missirá, usufruindo da sua hospitalidade e até dos seus bens culturais... Recordo-me que você era um melómano e que um dia perdeu toda a sua discoteca (incluindo a sinfomia do Novo Mundo, que era uma das suas preferidas, se a memória não me atraiçoa)" (...)
___________
Notas de L.G.
(1) Vd. post de 21 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXV: Composição da CCAÇ 12, por Grupo de Combate, incluindo os soldados africanos (posto, número, nome, função e etnia)
(2) Vd. post seguinte, com data de hoje.
Foto: © Humberto Reis (2006)
Segundo as minhas próprias recordações e as do Humberto Reis, este foi o primeiro convívio colectivo que o pessoal de Bambadinca realizou, depois do regresso a casa. Foi organizado em Fão, Esposende, por iniciativa do ex-Alf Mil Carlão, da CCAÇ 12. Foi também o único em que participei, até à data. Entre os velhos camaradas de Bambadinca, reencontrei o Beja Santos. O convívio seguinte foi na herdade do J. Vacas de Carvalho aonde, creio, o Beja Santos também foi.
Há dias encontrei na Net um belíssimo texto do Beja Santos, aliás, do Dr. Mário Beja Santos, um figura pública conhecida (especialista, de renome internacional, em questões de direito do consumidor, assessor do Instituto do Consumidor, professor universitário, etc.). E isso foi um pretexto para o contactar e pedir-lhe autorização para publicar o texto no nosso blogue.
Aproveito para lembrar que, com o Pel Caç Nat 52, comandando pelo Beja Santos, fizemos (a CCAÇ 12, mais a CCAÇ 2636, mais 1 Esq. Morteiros do Pel Mort 2106 (e ainda - segundo creio - mais o Pel Caç Nat 54) talvez a mais dramática, temerária e penosa operação de que eu me lembre: Op Tigre Vadio (Março de 1970), na pensínsula de Madina/Belel, a norte do Rio Geba, no regulado do Cuor, na extremidade sul do famoso corredor do Morès...
De facto, todos os anos nos obrigavam (o comando de Bambadinca) a fazer uma visita à base do PAIGC de Madina/Belel... O Beja Santos foi lá pelo menos duas vezes... Jorge Cabral também lá foi, pelo menos uma vez, de helicóptero, com os paraquedistas... Um belo dia destes teremos que falar destas estórias fabulosas e dramáticas das nossas incursões a Madina/Belel... O Jorge Cabral também conhece muito bem o Beja Santos, de resto também ele foi rei e senhor de Missirá...
O texto, que eu vou reproduzir, a seguir, no nosso blogue (depois de obtida a competente autorização do autor), evoca duas figuras: por um lado, o herói mandinga Infali Soncó, régulo do Cuor, que terá derrotado o Teixeira Pinto em 1917; e por outro, um anti-herói, português, o alferes Hermínio de Jesus, aprisionado pelo Infali e que depois terá morrido de loucura e de amores por uma bela mandinga...
O texto, escrito por um homem de cultura como é o Beja Santos, e que já circulou internamente pela nossa tertúlia, por e-mail, evoca igualmente um das mais mais belas regiões da Guiné, justamente aquela que ele próprio, mas também eu próprio, o Jorge Cabral, o Humberto Reis, o Tony Levezinho, o Joaquim Fernandes, o Vacas de Carvalho, o Luís Moreira, o António Duarte, o Sousa Castro, o Carlos Marques dos Santos e outros tertulianos, tão bem conheceram e amaram... Chamo a atenção também para a evocação da figura da professora primária de Bambadinca, Dona Violete da Silva Alves (2)...
Falando há dias com o Beja Santos pelo telefone, pareceu-me que ele, embora sendo um homem atarefado, mostrou interesse pela existência da nossa tertúlia e sobretudo disposição para colaborar com mais textos da sua autoria. Autorizou-me expressamente a publicar a lenda do Alferes Hermínio de Jesus (2)… Fica aqui o meu agradecimento (público) pela sua atenção e o nosso voto para que se junte à centena de amigos & camaradas da Guiné que constituem já a nossa tertúlia…
Eis a mensagem que ele me mandou, por e-mail: "Prezado Luís Graça, gostei muito do seu telefonema e procurarei corresponder ao seu solicitado. Para já leva dois textos com todas as autorizações necessárias para os publicar. Estou asfixiado com o fim do ano lectivo. Mas terei muito gosto em continuar em conversar consigo nos próximos tempos. Abraços, Beja Santos".
Tine oportunidade de responder-lhe de imediato , por e-mail de 14 de Junho de 2006:
"Caro Beja Santos:
"1. Obrigado pelo gesto de camaradagem. Irei publicar, com muito gosto, os dois textos que mandou para a nossa tertúlia.
"2. Teremos oportunidade de ir matando saudades das terras do Cuor: Missirá, Finete, Mato Cão, Enxalé, Portogole... Eu também sou professor universitário, ambos sabemos o que é a azáfama do fim de ano lectivo... Tenho pena que as circunstâncias não nos tenham permitido, na Guiné, manter um contacto mais pessoal... Estive várias vezes em Missirá, usufruindo da sua hospitalidade e até dos seus bens culturais... Recordo-me que você era um melómano e que um dia perdeu toda a sua discoteca (incluindo a sinfomia do Novo Mundo, que era uma das suas preferidas, se a memória não me atraiçoa)" (...)
___________
Notas de L.G.
(1) Vd. post de 21 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXV: Composição da CCAÇ 12, por Grupo de Combate, incluindo os soldados africanos (posto, número, nome, função e etnia)
(2) Vd. post seguinte, com data de hoje.
Guiné 63/74 - P880: Os nossos (des)encontros do 10 de Junho (João Tunes)
Mensagem do João Tunes, com data de 14 de Junho de 2006:
Caros amigos e camaradas tertulianos,
Um enorme peso na consciência que não consijo alijar, nem com juros de remorso, obriga-me a, também por dever de lealdade, partilhar convosco o meu penitente mea culpa. Aqui vai: Faltou-me coragem guerreira suficiente (ou seja, fui-me abaixo das canetas, eufemismo para designar um vaipe de cobardia) para partilhar a vossa estimada companhia na efeméride gloriosa do 10 de Junho lá na nossa Praça do Império.
Mas, embora esfarrapadas, não deixo de invocar dois arremedos de desculpas:
1ª) Já não sei onde me para o raio da boina. Quiçá, foram ratos turras que a roeram. Garantido é que não lhe sei do paradeiro. Às tantas, o mais certo, é nem sequer a ter guardado. Ou talvez ela se tenha ido na bruma do tempo por míngua de naftalina de saudade.
2ª) Temi ir e entusiasmar-me e, dando-mo no gosto, desatar a desfilar Avenida da Liberdade abaixo no próximo 1º de Dezembro em honra saudosa dos desfiles restauracionistas do tempo da Dona Vera Lagoa. Que alívio...!!!
Contando com a vossa compreensão, abraços para todos os estimados terulianos.
João Tunes
Caros amigos e camaradas tertulianos,
Um enorme peso na consciência que não consijo alijar, nem com juros de remorso, obriga-me a, também por dever de lealdade, partilhar convosco o meu penitente mea culpa. Aqui vai: Faltou-me coragem guerreira suficiente (ou seja, fui-me abaixo das canetas, eufemismo para designar um vaipe de cobardia) para partilhar a vossa estimada companhia na efeméride gloriosa do 10 de Junho lá na nossa Praça do Império.
Mas, embora esfarrapadas, não deixo de invocar dois arremedos de desculpas:
1ª) Já não sei onde me para o raio da boina. Quiçá, foram ratos turras que a roeram. Garantido é que não lhe sei do paradeiro. Às tantas, o mais certo, é nem sequer a ter guardado. Ou talvez ela se tenha ido na bruma do tempo por míngua de naftalina de saudade.
2ª) Temi ir e entusiasmar-me e, dando-mo no gosto, desatar a desfilar Avenida da Liberdade abaixo no próximo 1º de Dezembro em honra saudosa dos desfiles restauracionistas do tempo da Dona Vera Lagoa. Que alívio...!!!
Contando com a vossa compreensão, abraços para todos os estimados terulianos.
João Tunes
quinta-feira, 15 de junho de 2006
Guiné 63/74 - P879: Antologia (43): Os heróis desconhecidos de Gadamael (II Parte) (Luís Graça)
Guiné > Guileje > O ex-furriel miliciano de operações especiais Casimiro Carvalho, da Companhia Independente de Cavalaria 8350, que esteve naquele que ficou conhecido pelo corredor da morte, entre Guilege e Gadamael , entre Outubro de 1972 e Junho de 1973. Ele foi reconhecido como um dos heróis de Gadamael, não só pelos seus camaradas e pelos seus superiores imediatos (o Capitão Quintas, comandante da CCAV 8350, ferido em combate na batalha de Gadamael, bem como pelo capitão comando Ferreira da Silva, nomeado de urgência para chefiar o COP 5, e aqui evocado e entrevistado pelo jornalista do Público)... Mas esse facto nunca foi devidamente reconhecido pela hierarquia do Exército (LG)
Segunda e última parte do trabalho de investigação do jornalista Eduardo Dâmaso > (Público, 26 de Junho de 2005) (1)
Histórias reais recordadas 32 anos depois
(i) O soldado da Madeira que só morreu em Bissau
“Recordo um soldado da ilha da Madeira que foi recolhido na bolanha e o seu estado de saúde era tão grave, o seu corpo estava tão cravado de estilhaços, que eu só ia conseguindo tirar um a um da cara com uma pinça. Estava sujo de lama e o enfermeiro teve a ideia de o meter debaixo do chuveiro. Quando lhe tirava as calças, porém, é que verificou que lhe faltava parte da perna e da anca devido à deflagração de uma granada. O pobre soldado estava completamente sem sentidos, talvez, quem sabe, em estado de pré-coma. O éter utilizado na sua lavagem criou uma atmosfera tão inflamável que um dos camaradas nossos ao entrar na coberta a fumar deixou cair um pouco de cinza no balde onde depositávamos as compressas e o algodão, provocando uma explosão na coberta. O gerador foi abaixo criando uma situação de pânico. Nesse momento o soldado da Madeira levantou-se e tentou procurar um abrigo. Mais tarde, saiu do navio vivo, foi transportado para Cacine, acabando por morrer em Bissau... por falta de assistência, dizia-se por lá”.
(ii) Uma bala por cima do coração
“Para a noite estava reservado um dos episódios mais dramáticos. Deu entrada a bordo um guineense, guia das nossas tropas, que tinha alojada uma bala acima do coração. Este homem pesaria entre 110 e 120 quilos. Foi-lhe administrado o último balão de soro e o seu estado de saúde era muito preocupante. O comando entendeu evacuar o homem para que este não morresse a bordo. Para o retirar da coberta – o acesso era feito através de uma escotilha – eram necessários oito homens que o colocaram numa das lanchas. Esta embarcação navegou o que pôde no sentido das luzes do quartel mas depois foi necessário voltar a colocá-lo num zebro por causa da maré baixa. O zebro dirigiu-se a terra mas a partir de certa altura já não era possível navegar. O homem foi então transportado em maca por quatro elementos da tripulação, o cozinheiro, um artilheiro, o escriturário e o electricista, ou seja eu. O enfermeiro segurava o balão de soro. Quando saltámos do bote ficámos com água pela cintura mas o fundo parecia não ser muito mole. Todavia, quando retirámos a maca do bote, com o peso do ferido, pura e simplesmente não nos conseguimos mexer dali. Por duas horas travámos uma luta com um campo de lodo, afundados quase até ao pescoço com a maré a subir. Por fim, o enfermeiro, já exausto, larga o balão de soro em cima do ferido e nada para terra, junto ao quartel. O escriturário quase já não se via na água. Só ao fim de três horas foi possível passar um cabo a partir de terra e puxar a maca e os homens que a tinham transportado.”
(iii) Quando chegámos já não havia lugar para depositar os mortos
“Quando chegámos a terra exaustos o cenário era de dor: chorava-se, gritava-se, havia ataques de histerismo entre os soldados que ali e encontravam refugiados, aguardando a chegada dos companheiros que estavam perdidos nas bolanhas e que tinham sido recolhidos por nós. Chegados a terra o cheiro era nauseabundo uma vez que já não havia sítio para depositar os mortos. O destino era a capela e aí aguardavam as urnas. Os primeiros tinham sido ali colocados já havia cinco dias. Só regressámos ao Orion passadas umas horas. No convés do navio misturavam-se soldados e população também resgatada. A guarnição não se conseguia movimentar. Um verdadeiro inferno. Mais tarde, sei que quando embarquei no aeroporto de Bissalanca de regresso a Lisboa trazia na mala a convicção de que não mais iria regressar àquela terra. Que iria fazer como muitos outros e fugir para França. Passados trinta anos, não consegui”.
Histórias reais recordadas 32 anos depois
(i) O soldado da Madeira que só morreu em Bissau
“Recordo um soldado da ilha da Madeira que foi recolhido na bolanha e o seu estado de saúde era tão grave, o seu corpo estava tão cravado de estilhaços, que eu só ia conseguindo tirar um a um da cara com uma pinça. Estava sujo de lama e o enfermeiro teve a ideia de o meter debaixo do chuveiro. Quando lhe tirava as calças, porém, é que verificou que lhe faltava parte da perna e da anca devido à deflagração de uma granada. O pobre soldado estava completamente sem sentidos, talvez, quem sabe, em estado de pré-coma. O éter utilizado na sua lavagem criou uma atmosfera tão inflamável que um dos camaradas nossos ao entrar na coberta a fumar deixou cair um pouco de cinza no balde onde depositávamos as compressas e o algodão, provocando uma explosão na coberta. O gerador foi abaixo criando uma situação de pânico. Nesse momento o soldado da Madeira levantou-se e tentou procurar um abrigo. Mais tarde, saiu do navio vivo, foi transportado para Cacine, acabando por morrer em Bissau... por falta de assistência, dizia-se por lá”.
(ii) Uma bala por cima do coração
“Para a noite estava reservado um dos episódios mais dramáticos. Deu entrada a bordo um guineense, guia das nossas tropas, que tinha alojada uma bala acima do coração. Este homem pesaria entre 110 e 120 quilos. Foi-lhe administrado o último balão de soro e o seu estado de saúde era muito preocupante. O comando entendeu evacuar o homem para que este não morresse a bordo. Para o retirar da coberta – o acesso era feito através de uma escotilha – eram necessários oito homens que o colocaram numa das lanchas. Esta embarcação navegou o que pôde no sentido das luzes do quartel mas depois foi necessário voltar a colocá-lo num zebro por causa da maré baixa. O zebro dirigiu-se a terra mas a partir de certa altura já não era possível navegar. O homem foi então transportado em maca por quatro elementos da tripulação, o cozinheiro, um artilheiro, o escriturário e o electricista, ou seja eu. O enfermeiro segurava o balão de soro. Quando saltámos do bote ficámos com água pela cintura mas o fundo parecia não ser muito mole. Todavia, quando retirámos a maca do bote, com o peso do ferido, pura e simplesmente não nos conseguimos mexer dali. Por duas horas travámos uma luta com um campo de lodo, afundados quase até ao pescoço com a maré a subir. Por fim, o enfermeiro, já exausto, larga o balão de soro em cima do ferido e nada para terra, junto ao quartel. O escriturário quase já não se via na água. Só ao fim de três horas foi possível passar um cabo a partir de terra e puxar a maca e os homens que a tinham transportado.”
(iii) Quando chegámos já não havia lugar para depositar os mortos
“Quando chegámos a terra exaustos o cenário era de dor: chorava-se, gritava-se, havia ataques de histerismo entre os soldados que ali e encontravam refugiados, aguardando a chegada dos companheiros que estavam perdidos nas bolanhas e que tinham sido recolhidos por nós. Chegados a terra o cheiro era nauseabundo uma vez que já não havia sítio para depositar os mortos. O destino era a capela e aí aguardavam as urnas. Os primeiros tinham sido ali colocados já havia cinco dias. Só regressámos ao Orion passadas umas horas. No convés do navio misturavam-se soldados e população também resgatada. A guarnição não se conseguia movimentar. Um verdadeiro inferno. Mais tarde, sei que quando embarquei no aeroporto de Bissalanca de regresso a Lisboa trazia na mala a convicção de que não mais iria regressar àquela terra. Que iria fazer como muitos outros e fugir para França. Passados trinta anos, não consegui”.
Ninguém entregou a condecoração ao coronel
Uma investigação de Eduardo Dâmaso
O coronel Ferreira da Silva resistiu com um punhado de homens ao avanço do PAIGC sobre Gadamael. Sem artilharia, sem apoio aéreo, sem oficiais, sem médico, sem posto de rádio e com poucas munições. Foram louvados e o coronel chegou mesmo a ser condecorado por Carlos Fabião. Mas nunca recebeu a Cruz de Guerra.
Foi ao pôr do sol do dia 1 de Junho de 1973 que os três ou quatro soldados que sobravam da tropa comandada pelo recém-chegado capitão dos comandos Ferreira da Silva ficaram sem artilharia, sem apoio aéreo, sem oficiais, sem médico, sem posto de rádio e sem munições de morteiro ali por perto. Foi nesse dia que o hoje coronel reformado e advogado Ferreira da Silva conquistou uma das suas mais vivas memórias da guerra colonial e também uma condecoração, a Cruz de Guerra, que nunca chegou a receber.
Ferreira da Silva, que antes tinha estado em Angola, acabara de poisar em Gadamael no dia 31 de Maio depois de uma nomeação relâmpago para a chefia do Comando Operacional 5 (COP5). Iniciara a comissão na Guiné em Dezembro de 1971, nos Comandos Africanos, e alguns meses depois foi ferido com gravidade. Evacuado para Lisboa, onde convalesceu, regressou à Guiné a seu pedido em Janeiro de 1973 e foi colocado em Bolama a comandar uma companhia de instrução.
A 31 de Maio, pelo meio-dia, chega ao quartel de Gadamael que vivia sob as brasas do episódio da retirada do capitão Coutinho e Lima do quartel de Guileje, situado a cerca de oito quilómetros do primeiro. Ferreira da Silva só teve tempo para um breve contacto com os dois comandantes de companhia ali presentes. Por volta das 15.00 começaram as flagelações com mísseis, morteiros e canhões sem recuo. Nesse dia houve um morto e um ferido.
Chuva de 18 granadas de três em três minutos (2)
Pelo amanhecer do dia 1 de Junho começou o mais crítico de todos os dias da batalha de Gadamael. As granadas dos morteiros 120 eram disparadas a um ritmo de 18 de três em três minutos. Logo pelas dez da manhã uma granada acabou com o pelotão de artilharia. Três mortos e 11 feridos deixaram o pelotão inoperacional. Gadamael fica reduzido ao morteiro 81 que não tinha alcance suficiente. Momentos antes tinha aterrado no quartel um helicóptero que transportava o general Spínola mas este teve de ser empurrado para dentro do aparelho, que levantou voo de imediato. O silvo das granadas a sair foi ouvido no quartel e os rebentamentos ocorreram no ponto de aterragem do helicóptero.
Num quartel com poucos abrigos e um elevado número de militares ali concentrados, os mortos e feridos foram aumentando. Na contabilidade feita ao final do dia eram registados 8 mortos e 27 feridos. Aos poucos foram tentando fazer evacuações de feridos por barco mas o fogo intenso de cada vez que se dirigiam ao cais dificultava muito a acção. Ao princípio da tarde uma granada destruiu o posto de rádio e feriu os dois comandantes de companhia. "Após a evacuação dos capitães fiquei sem elementos de ligação pois não conhecia ninguém em virtude de ter chegado na véspera", afirma Ferreira da Silva.
Num cenário de desespero e com poucos abrigos, os soldados começaram a andar junto às valas de defesa até à aldeia que ficava próxima e não estava a ser atacada. Ferreira da Silva, atarefado com as evacuações só quando o furriel Carvalho, do morteiro 81, lhe foi dizer que já não tinha granadas e que só se encontravam três ou quatro militares na zona crítica é que se apercebeu que a defesa do quartel estava a reduzida a um punhado de homens.
A bravura do cabo Raposo
Quem deu algum ânimo aos poucos que estavam foi desde logo o 1º cabo escriturário Raposo, açoriano, que se voluntariou para fazer o arriscadíssimo trajecto até ao paiol. Enfiou-se numa Berliet e foi buscar munições debaixo de fogo intenso. Gadamael estava cercado, sem artilharia, sem apoio aéreo, sem capitães, sem médico, sem rádio, sem munições de morteiro 81, tinha por companhia apenas três ou quatro militares na linha da frente.
A bravura do cabo Raposo e do furriel Carvalho (3), porém, foi um encorajamento para todos. Com o morteiro 81 municiado pelas granadas trazidas na Berliet, com uma metralhadora que conseguiram montar e os tais três ou quatro militares passaram o resto da noite de 1 para 2 de Junho a lançar umas morteiradas e umas rajadas de metralhadora de tempos a tempos. Só no dia 2 de Junho é que se apercebeu que uma parte significativa dos militares que tinha fugido para a tabanca se tinha deslocado com a população para junto do rio Cacine.
Nos dias seguintes a situação melhorou mas só num dia houve seis mortos entre os paraquedistas (*) que entretanto tinham chegado. O comando foi assumido pelo oficial Manuel Monge, antigo chefe da Casa Militar de Mário Soares e hoje governador civil de Beja. Ferreira da Silva passou a adjunto de Monge, oficial mais graduado. "A 31 anos de distância saliento a acção dos paraquedistas, do furriel Carvalho e do cabo Raposo, do major Monge com quem partilhei, durante meses, aqueles momentos difíceis, mas que conseguimos ultrapassar", recorda o coronel que nunca recebeu a Cruz de Guerra.
Fonte: Público, edição nº 5571, de 26 de Junho de 2005.
____________
Notas de L.G.
(1) vd. post de hoje > Guiné 63/74 - P878: Antologia (42): Os heróis desconhecidos de Gadamael (Parte I)
Uma investigação de Eduardo Dâmaso
O coronel Ferreira da Silva resistiu com um punhado de homens ao avanço do PAIGC sobre Gadamael. Sem artilharia, sem apoio aéreo, sem oficiais, sem médico, sem posto de rádio e com poucas munições. Foram louvados e o coronel chegou mesmo a ser condecorado por Carlos Fabião. Mas nunca recebeu a Cruz de Guerra.
Foi ao pôr do sol do dia 1 de Junho de 1973 que os três ou quatro soldados que sobravam da tropa comandada pelo recém-chegado capitão dos comandos Ferreira da Silva ficaram sem artilharia, sem apoio aéreo, sem oficiais, sem médico, sem posto de rádio e sem munições de morteiro ali por perto. Foi nesse dia que o hoje coronel reformado e advogado Ferreira da Silva conquistou uma das suas mais vivas memórias da guerra colonial e também uma condecoração, a Cruz de Guerra, que nunca chegou a receber.
Ferreira da Silva, que antes tinha estado em Angola, acabara de poisar em Gadamael no dia 31 de Maio depois de uma nomeação relâmpago para a chefia do Comando Operacional 5 (COP5). Iniciara a comissão na Guiné em Dezembro de 1971, nos Comandos Africanos, e alguns meses depois foi ferido com gravidade. Evacuado para Lisboa, onde convalesceu, regressou à Guiné a seu pedido em Janeiro de 1973 e foi colocado em Bolama a comandar uma companhia de instrução.
A 31 de Maio, pelo meio-dia, chega ao quartel de Gadamael que vivia sob as brasas do episódio da retirada do capitão Coutinho e Lima do quartel de Guileje, situado a cerca de oito quilómetros do primeiro. Ferreira da Silva só teve tempo para um breve contacto com os dois comandantes de companhia ali presentes. Por volta das 15.00 começaram as flagelações com mísseis, morteiros e canhões sem recuo. Nesse dia houve um morto e um ferido.
Chuva de 18 granadas de três em três minutos (2)
Pelo amanhecer do dia 1 de Junho começou o mais crítico de todos os dias da batalha de Gadamael. As granadas dos morteiros 120 eram disparadas a um ritmo de 18 de três em três minutos. Logo pelas dez da manhã uma granada acabou com o pelotão de artilharia. Três mortos e 11 feridos deixaram o pelotão inoperacional. Gadamael fica reduzido ao morteiro 81 que não tinha alcance suficiente. Momentos antes tinha aterrado no quartel um helicóptero que transportava o general Spínola mas este teve de ser empurrado para dentro do aparelho, que levantou voo de imediato. O silvo das granadas a sair foi ouvido no quartel e os rebentamentos ocorreram no ponto de aterragem do helicóptero.
Num quartel com poucos abrigos e um elevado número de militares ali concentrados, os mortos e feridos foram aumentando. Na contabilidade feita ao final do dia eram registados 8 mortos e 27 feridos. Aos poucos foram tentando fazer evacuações de feridos por barco mas o fogo intenso de cada vez que se dirigiam ao cais dificultava muito a acção. Ao princípio da tarde uma granada destruiu o posto de rádio e feriu os dois comandantes de companhia. "Após a evacuação dos capitães fiquei sem elementos de ligação pois não conhecia ninguém em virtude de ter chegado na véspera", afirma Ferreira da Silva.
Num cenário de desespero e com poucos abrigos, os soldados começaram a andar junto às valas de defesa até à aldeia que ficava próxima e não estava a ser atacada. Ferreira da Silva, atarefado com as evacuações só quando o furriel Carvalho, do morteiro 81, lhe foi dizer que já não tinha granadas e que só se encontravam três ou quatro militares na zona crítica é que se apercebeu que a defesa do quartel estava a reduzida a um punhado de homens.
A bravura do cabo Raposo
Quem deu algum ânimo aos poucos que estavam foi desde logo o 1º cabo escriturário Raposo, açoriano, que se voluntariou para fazer o arriscadíssimo trajecto até ao paiol. Enfiou-se numa Berliet e foi buscar munições debaixo de fogo intenso. Gadamael estava cercado, sem artilharia, sem apoio aéreo, sem capitães, sem médico, sem rádio, sem munições de morteiro 81, tinha por companhia apenas três ou quatro militares na linha da frente.
A bravura do cabo Raposo e do furriel Carvalho (3), porém, foi um encorajamento para todos. Com o morteiro 81 municiado pelas granadas trazidas na Berliet, com uma metralhadora que conseguiram montar e os tais três ou quatro militares passaram o resto da noite de 1 para 2 de Junho a lançar umas morteiradas e umas rajadas de metralhadora de tempos a tempos. Só no dia 2 de Junho é que se apercebeu que uma parte significativa dos militares que tinha fugido para a tabanca se tinha deslocado com a população para junto do rio Cacine.
Nos dias seguintes a situação melhorou mas só num dia houve seis mortos entre os paraquedistas (*) que entretanto tinham chegado. O comando foi assumido pelo oficial Manuel Monge, antigo chefe da Casa Militar de Mário Soares e hoje governador civil de Beja. Ferreira da Silva passou a adjunto de Monge, oficial mais graduado. "A 31 anos de distância saliento a acção dos paraquedistas, do furriel Carvalho e do cabo Raposo, do major Monge com quem partilhei, durante meses, aqueles momentos difíceis, mas que conseguimos ultrapassar", recorda o coronel que nunca recebeu a Cruz de Guerra.
Fonte: Público, edição nº 5571, de 26 de Junho de 2005.
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Notas de L.G.
(1) vd. post de hoje > Guiné 63/74 - P878: Antologia (42): Os heróis desconhecidos de Gadamael (Parte I)
(2) Vd. post de 2 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXVIII: No corredor da morte (CCAV 8350, Guileje e Gadamael, 1972/73)
(3) Vd. post de 2 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - XCI: Antologia (6): A batalha de Guileje e Gadamael
(*) Mensagem de Vítor Tavares : "...para que fosse corrigido o relato de um texto relativo á suposta morte de Para-quedistas em Gadamael , que felizmente não aconteceu".
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