quinta-feira, 30 de novembro de 2006

Guiné 63/74 - P1328: Blogoterapia (8): É hora de pensar no nosso primeiro... blook (Leopoldo Amado)

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Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAÇ 726 > 1964/65 > Aspectos dos trabalhos de fortificação do aquartelamento e tabanca de Guileje. Foto do Teco, que chegou às mãos do Nuno Rubim, via Guedes, militares da CCAÇ 726...
É a hora de pensar no primeiro livro do nosso blogue - o nosso primeiro blook (1)- que mostre fotos como estas, os nossos camaradas que, em Guileje ou em Mansambo, trocavam a espingarda pela pá-e-pica; ou que ponha em letra de forma palavras que calam fundo, como as do Torcato; ou que divulgue documentos dos arquivos do PAIGC a que teve acesso o historiador Leopoldo Amado... A sugestão é do Leopoldo, secundando opiniões já aqui divulgadas por outros amigos e camaradas de tertúlia... Mas editor, precisa-se! (LG).

Foto: © Nuno Rubim (2006) . Direitos reservados


Mensagem do Leopoldo Amado, membro da nossa tertúlia, luso-guineense, doutorando em História pela Universidade de Lisboa (2).

Caro Torcato,

Mesmo não tendo participado nesta guerra, se me permitires, faço minhas as tuas palavras (3). Elas tocaram-me lá bem no fundo da alma, eu que ainda puto, da varanda dos Correios de Catió (4) e Fulacunda (5), assistia impávido, sem todavia perceber as razões, o vai-e-vem da tropa portuguesa. É uma pena que valores tão nobres, tão nobres e verdadeiros como a prosa que agora nos destes, sejam hoje desbaratados neste cantinho à beira-mar plantado.

Pois bem, concordo com a ideia de que já é hora de se pensar num primeiro volume e de ir pondo as coisas lá fora - quiçá, única maneira de se dar razão a Pedro Lauret e João Tunes (que muito estimo), assim como aos outros colegas da tertúlia.

Penso também que é hora de irmos pensando na possibilidade de realizarmos uma Assembleia constituitiva para se deliberar sobre a pertinência ou não de transformar esta Tertúlia numa ONG [Organização Não-Governamental], dotando-a de direito de interceder junto a organismos públicos e estatais, doadores, para financiar suas acções (conferências, colóquios, encontros períódicos), mas mais importante ainda, a sua acção editorial (livros, boletins, sites, etc)

Faz-me um favor, caro Torcato: pega novamente na tua pena brilhante e põe cá para fora a tua/nossa experiência, pois, apesar de ser africano, partilho igualmente dessa mística exaltante que assisti apenas marginalmente, mas que muito honra os homens de bom senso, de qualquer latitude ou credo.

Bem hajas.
Leopoldo Amado

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Notas de L.G.:

(1) Segundo a Wipédia, a enciclopédia da Net, livre, o primeior blook terá sido escrito por Tony Pierce in 2002, um bloguista de Hollywood, quando ele seleccionou e compilou uma série de posts de um dos seus muitos blogues, e editou-os sob a forma de livro a que chamou Blook. O termo é da autoria de um jornalista, Jeff Jarvis, que participou num concurso aberto do Tony Pierce.
Uma outra definição de book pode ser um livro que aparece, em primeiro lugar, num blogue, organizado por capítulos. Cada capítulo vai sendo inserido como um post. Tom Evslin popularizoueste tipo de blook ao lançar, em Setembro de 2005, hackoff.com, uma estória de assassínio que pode ser lida ou ouvida na Net, mediante subscrição... É um novo conceito de livro, só possível graças à Galáxia da Internet que veio destronar a Galáxia de Gutemberg...
(2) O nosso amigo Leopoldo, de vez em quuando, dá-nos o prazer da sua visita... Há diversos posts da sua autoria, já publicados no nosso blogue, e alguns de grande interesse para a história dos nossos dois povos... Para já vejam-se os posts, com notas autobiográficas, de:

7 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CLXXIX: Leopoldo Amado, guinense, historiador, novo membro da nossa tertúlia (Leopoldo Amado / Luís Graça)

(...) "Caro Luís Graça: Gostaria de louvá-lo vivamente pelo trabalho que vem desenvolvendo de há um tempo a esta parte sobre a guerra colonial: Guiné. Não o conheço pessoalmente, mas algo diz-me que que também é meu compatriota, ou seja, que é guineense de alguma forma, como aliás todos os guineenses.

"Sou historiador guineense, vivo em Lisboa e estou justamente a fechar uma tese sobre a guerra colonial versus guerra de libertação (o caso da Guiné), ou seja, a mesma realidade vista dos dois lados: do Exército português e Portugal, por um lado, e doutro, as FARP e o PAIGC" (...).

22 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCIV: Lamparam, o blogue do Leopoldo Amado

17 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXLXIX: os periquitos e a prostituta de Bolama (Leopoldo Amado)

4 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P840: Curriculum Vitae do nosso doutorando Leopoldo Amado

5 Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1250: Os amigos são mesmo para as ocasiões, Leopoldo Amado!


(3) Vd. post de 23 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1206: O passado não me pertence só a mim, é colectivo (Torcato Mendonça)

(...) "Chove lá fora, Luís Graça. O frio que sinto não é da chuva, nem do vento. É cá de dentro, um frio e um aperto, uma revolta que não a queria sentir. Mas sinto a revolta, a vontade de vingança, um sentimento diferente e há muito esquecido. Li o que o Mendes, da 38ª de Comandos, escreveu. Não é um relato onírico. Aconteceu mesmo. Ele fez aquela picada. O Pedro Lauret estava no rio. Guidaje a norte , Gileje e Gadamael a sul, são sítios de morte, de sofrimento na recordação. São bocados da nossa história recente, da nossa vida colectiva que muitos desconhecem. Pior, muitos querem apagar" (...)

(4) Vd. post de 4 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1245: Quarenta anos sobre Catió (João Tunes)

(5) Vd. post de 17 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1285: Bibliografia de uma guerra (14): Rumo a Fulacunda, um best seller, de Rui Alexandrino Ferreira (Luís Graça)

quarta-feira, 29 de novembro de 2006

Guiné 63/74 - P1327: Tabanca Grande (3): António Rosinha, ex-Fur Mil em Angola, em 1961; topógrafo da TECNIL, em Bissau, em 1979


Angola > 1961 > Desfile de tropas > O Rosinha, furriel miliciano aparece aqui em primeiro plano, assinalado com um X. Repare-se no tipo de armamento das NT: pistola-metralhadora FP, para os graduados; espingarda Mauser, para as praças...Farda: caqui amarelo...


Angola > 1962 > O Furriel Miliciano Rosinha

O Rosinha hoje. Como civil, trabalhou na Guiné-Bissau, na empresa TECNIL, como topógrafo, depois da independência.

Fotos: © António Rosinha (2006). Direitos reservados.

Texto do António Rosinha, com data de 6 de Novembro de 2006, que, depois de algum tempo para ponderação, acabou por aceitar o meu convite (1), bem como o do Vitor Junqueira (2) e do Amílcar Mendes, para se juntar à nossa tertúlia de Amigos & Camaradas da Guiné (3):

Estimados L. Graça, V. Junqueira e A. Mendes:

Vou decidir aceitar o vosso convite. Faço-o, mas sem jamais me considerar no mesmo patamar de qualquer outro tertuliano, que, digamos, é do Quadro... Considerar-me-ei um tertuliano do Dia Seguinte. Mas, ao aceitar, pretendo pagar as cotas por inteiro, isto é, assumir as responsabilidades de tertuliano que me possam ser imputadas.

Penso que o blogue está para se expandir imenso, e serei o primeiro a dar espaço a outros do quadro. Envio umas fotos da minha guerra que, a par da vida civil que passei em Angola, foi simplesmente um tempo inesquecível de vivência de trabalho e, tirando o ano de 1961, eu posso dizer de paz.

Só vim compreender essa paz quando em 1979 faço um contrato com a TECNIL, e vi que os IN se tinham concentrado à volta da Guiné, e era a maneira mais económica de atingir os objectivos. Envio umas fotos da minha actividade como topógrafo (lembro que não era muito aconselhável nesse tempo andar de máquina a tiracolo): era porto, aeroporto, junto a quarteés, poucos lugares me passaram ao lado, em trabalho. Logo que encontre, vou mandar foto pessoal daquele tempo, nem que seja dos passaportes. As fotos da Guiné não abundam. Termino com um abraço.

A frequência de participação sugere-me algumas dúvidas quanto ao tempo/espaço.

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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 21 Novembro 2006> Guiné 63/74 - P1303: Blogoterapia (2): Convite ao António Rosinha, antigo topógrafo da TECNIL (Luís Graça)

(2) E-mail do Vitor Junqueira enviado ao Rosinha, com data de 3 de Novembro de 2006:

Amigo Rosinha,

Aqui é mais uma vez o Vitor Junqueira que fala! E quero que me ouças com atenção.

Aderir a esta tertúlia e ao seu espírito, ou não, é uma decisão pessoal que não carece de quaisquer explicações. Diz-se aqui em Pombal que cada um é como cada qual, e cada qual é como a p... que o p.... !!!

Penso que me entendes. E vamos à questão.

Se aqueles, cujos pontos de vista sobre a guerra do ultramar afrontam a forma como passou a escrever-se a História depois do 25 de Abril de 1974, persistirem em fazer parte da maioria silenciosa, então... estamos feitos! Isso seria péssimo por duas grandes ordens de razões. A primeira tem a ver com um bicharoco que vive dentro de nós, a que alguns dão o nome de auto-estima. Também há quem lhe chame orgulho, dignidade, respeito por si próprio, sentido da honra, etc. O bichinho tem andado muito desanimado, ou porque não lhe prestamos atenção devida, ou porque temos permitido que outros lhe pisem a cauda.

E a segunda, é que ao coibir-nos de emitir a nossa própria visão sobre os factos, continuamos a deixar terreno livre, sempre aos mesmos, para aproveitarem todo o tempo de antena que lhes é oferecido.

E aqui, cairíamos noutro grande perigo. Que seria o de o blogue da cambada se tornar num monumento ao unanimismo. Uma coisa insuportável! E com uma esperança de vida pouco auspiciosa.

É claro que eu tenho muito respeito por aqueles que, tendo malhado com os ossos em África, há mais de três décadas, ainda hoje lambem as pungentes feridas da alma, que de lá trouxeram. Mas, se uma andorinha não faz a primavera, também não me parece razoável aceitar, de mão beijada, que os nossos camaradas hoje doentes, maltratados ou simplesmente desprezados pela Pátria, ressabiados com as contrariedades que a mobilização acarretou para as suas vidas, contundidos por sentimentos dolorosos de injustiças cometidas para com terceiros, possam representar o sentir e o pensar da generalidade dos ex-combatentes.

Estamos cheios até ao gorgomilo. Então, é preciso que cada um de nós, sem pudores bacocos nem auto-exaltações desmedidas, armados apenas com a verdade e honestidade e sem receio a críticas, deixe fluir essa torrente de emoções, passadas ou recentes, contraditórias sem dúvida. Que nos há-de libertar. Ou vai connosco para debaixo do torrão? E lá se iria o burro e as cangalhas...

Fim da história. Entendido?
Vá, junta-te, a nós.


(3) O Antonio Rosinha tinha-me dado anteriormente a seguinte resposta, em e-mail de 2 de Novembro de 2006:

Luís Graça, obrigado pelo convite, mas não vou poder aceitar, com muita pena minha, ser integrado numa tertúlia com a envergadura dessa, em termos históricos, humanos e até mesmo políticos, e que com a tua coragem deve continuar como até aqui...Vou indicar o principal motivo porque não devo pertencer ao vosso grupo: a qualidade desse espaço é tal que cada vez haverá mais ex-militares a escrever, e além de fazerem a verdadeira história descomprimem.

Porque muito do stress que existe é motivado também por se do ouvir em jornais mais repetições tipo Wiriamu, que até parece que foi a generalidade (...). Eu próprio tive um irmão que, depois de viver num certo ambiente politico (Arsenal do Alfeite), achava que eu, que estive lá, seria naturalmente um sanguinário...Quando o convenci que estava enganado, ficou de tal maneira revoltado que ele é que ficou com stress. (Não é força de expressão).(...)

Agora, sobre factos ou histórias de gente e lugares da Guine posso, sem compromisso da vossa parte, dar a colaboração que possa. Um abraço e coragem.

Guiné 63/74 - P1326: Questões politicamente (in)correctas (10): Mortos: os famosos e os anónimos (A. Mendes, 38ª CCmds)

Meus caros camaradas, mortos em combate, da 38ª Companhia de COMANDOS (e foram 13):

Esta carta já não vai para o SPM [Serviço Postal Militar]. Não valeria a pena enviá-la para lá, pois os comunicados de guerra deram a brutal notícia: vocês morreram em combate!

Recordo aqui, comovidamente, as horas que passámos juntos na Guiné, recordo todas as palavras que trocámos numa reconstrução dolorosa, olho as fotos que tirámos lado a lado. Tudo isto me é penoso nos dia de hoje, pois fiquei com amigos a menos na Terra. E o que é pior: amigos valorosos, amigos que não temiam o perigo, amigos que estavam no primeira linha, ali exactamente onde a guerra era mais dura, mais cruel, mais mal remunerada.

Vejo diante dos meus olhos turvados de saudade o vosso perfil com o rosto cheio de esperanças nos projectos a realizar na volta à terra natal.Vocês eram soldados que não temiam o perigo, que eram amados pelos vossos camaradas, superiores ou subalternos.Vocês tinham um fogo interior que arrastava montanhas; eram mais fortes que muitos fortes em peso de carne e ossatura.

Bebemos copos, fomos às bajudas , apanhámos bebedeiras, tirámos fotos que hoje olho com lágrimas nos olhos, até que recebi a estúpida e brutal notícia: senti então um grande vazio diante de mim; o meu mundo sentimental ficou mais reduzido, ficou mais pequeno e, imperceptívelmente, começei a rezar por esses amigos que derramaram o seu sangue generoso por uma terra onde combatiam por um ideal comum.

Esta carta, como disse, não vai para o SPM; escrevo-a e publico-a para que outros saibam que na Guiné se morria assim, numa luta impiedosa a que nós nunca voltámos a cara .Vocês foram um exemplo e são um exemplo.

Tenho os olhos embaciados. Tenho o coração amarfanhado.Tenho todo o meu íntimo em revolta . O dia de hoje veio triste. Há horas que me procuro, que faço por encontrar-me para poder responder ao vosso último adeus.

Que posso dizer-vos, a vocês, que repousam ao lado direito de Deus? Nada, mas mesmo nada. E, no entanto, estou amargurado. Apenas posso pedir-lhes que velem por nós, queridos amigos, Amanhã será um novo dia. Mas o meu mundo sentimental ficou mais reduzido. Em qualquer lado onde esteja, eu pensarei em vós, eu rezarei por vós.

Acreditem-me: na vossa morte eu senti a morte de amigos, de um exemplo de HOMENS. E até que nos possamos abraçar de novo, à mão direita de Deus, eu vos digo, com o coração esmagado pelo sofrimento: Esperem por mim!

Amilcar Mendes (19
Ex-1º Cabo Comando,
38ª CCmds,
Guiné (1972/74)

__________

Nota de L.G.:

(1) Vd. último post de A. Mendes > 18 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1291: Questões politicamente (in)correctas (9): Os Mortos Nunca Esquecidos (A. Mendes)

Guiné 63/74 - P1325: Memórias de Mansabá (7): O Comandante do COP6, Correia de Campos, e as Minas na Bolanha de Manhau (Carlos Vinhal)

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Guiné > Região do Oio > Mansabá > CART 2732 ( 1970/72) > Estrada Mansambá-Farim >O Carlos Vinhal e o Sousa à sua esquerda, segurando uma mina anticarro detectada a tempo e levantada.

Texto e foto: © Carlos Vinhal (2006), ex-Furriel Miliciano de Artilharia, com a especialidade de Minas e Armadilhas, CART 2732, Mansabá (1970/72).

Texto enviado a 3 de Novembro de 2006:


Minas na Bolanha de Manhau - 28 de Agosto de 1971

Como se tem falado, e bem, ultimamente do nosso Coronel de Cavalaria António Valadares Correia de Campos (1), vou contar um episódio onde eu e ele fomos intervenientes.

Em 10 de Agosto de 1971 chegou a Mansabá a CART 3417, companhia independente como a nossa, para fazer o seu IAO connosco. Faziam alguma instrução no quartel e, acções de patrulhamento e emboscadas no mato. A princípio integrados em pelotões da CART2732, em fase mais adiantada, sozinhos.


Correia de Campos, comandante do COP6

O comandante desta companhia era um capitão muito jovem, daqueles que a determinada altura começaram a proliferar pela Guiné em virtude do desgaste dos capitães mais velhos e com algumas comissões de serviço em teatro de guerra.

No dia 28 de Agosto de 1971, pela manhã, saíram para o mato acompanhados por alguns elementos do Pelotão de Milícias 253, para uma zona não muito distante, mais propriamente para a zona da Bolanha de Manhau, a leste de Mansabá.

Por volta das 13 horas dirigia-me eu à Messe para almoçar, quando o então comandante do COP6, Major Correia de Campos, encontrando-me na parada, me ordenou para eu avisar o oficial de piquete de que era preciso organizar imediatamente uma coluna auto para ir a Manhau e que o furriel de Minas e Armadilhas deveria ir também.


O capitão da CART 3417, vítima de uma mina A/P


O Major Correia de Campos acrescentou que o comandante da CART3417 tinha pisado uma mina antipessoal, precisando de evacuação urgente e que havia mais minas detectadas, pelo que era preciso neutralizá-las. Informei-o que era o meu pelotão que estava de piquete e que eu mesmo era o furriel de Minas e Armadilhas. Disse-lhe também que iria providenciar no sentido de que as suas ordens fossem cumpridas imediatamente.

Organizada a coluna, prontamente ele subiu para a viatura da frente. De pé, ao lado do condutor, com uniforme não camuflado e com os galões nos ombros, viajou até ao local para recolhermos o ferido e para eu me inteirar da quantidade de minas a neutralizar. O dia estava cinzento, caía uma chuva miudinha incessante e o percurso foi feito em picada por zonas de alto risco de contacto com o IN e de alta probabilidade de aparecimento de minas anticarro. Nem mesmo assim ele se protegeu da intempérie e das possíveis vistas do IN.

Chegados, deparámos com o capitão já assistido pelos enfermeiros da sua Companhia. Tinha já a perna garrotada e estava a soro. Vociferava contra a sua falta de sorte e estava visivelmente nervoso. O caso não era para menos. Era muito novo e tinha sido ferido logo na sua primeira comissão de serviço no Ultramar.

Como se pode depreender, o moral das tropas estava muito em baixo. Foram sujeitos à mais dura provação. O seu Comandante tinha sido, cedo de mais, vítima da guerra. Não estavam em condições de continuar a instrução daquele dia pelo que iriam regressar connosco.

Organizou-se a coluna de regresso ao quartel. O nosso Major e o sinistrado vieram na minha viatura. O percurso foi feito devagar para evitar solavancos exagerados.

O capitão recolheu à Enfermaria para ser devidamente tratado e esperar por um heli para o evacuar para o HM241. Eu fui aprontar o meu equipamento para voltar a Manhau a fim de rebentar as minas detectadas e trazer de volta os militares da 3417. A chuva continuava e a fome apertava, mas o dever obrigava.

Em Manhau rebentei três minas antipessoais e regressámos trazendo connosco o pessoal da 3417. Cerca das 15H00 pude comer qualquer coisa, requentada, só para não ficar em branco.


Uma coluna auto até ao HM241, em Bissau e, e regresso a Mansabá: um pesadelo de 200 quilómetros


Cerca das 17h00 veio a ordem do nosso Major Correia de Campos para evacuar o Comandante da CART 3417, em coluna auto, uma vez que a chuva não abrandava e os helicópteros não tinham condições para levantar.

O melhor que puderam, os enfermeiros acondicionaram o capitão numa das viaturas, para que a viagem de quase cem quilómetros até Bissau (!), debaixo de chuva intensa, se tornasse para o ferido o menos penosa possível. Só pedíamos a Deus que não tivéssemos nenhum contacto com o IN até Mansoa, porque então seria o bom e o bonito. Já bastava a chuva para complicar. O estado geral do sinistrado não era muito bom, porque já tinha passado bastante tempo desde a triste ocorrência. As horas de sofrimento físico e psicológico somavam-se.

Lá nos pusemos a caminho em marcha moderada, convencidos de que só iríamos até Mansoa. O normal seria as tropas dali continuarem até Bissau, mas não. Constatámos que não estava prevista nenhuma coluna a partir dali, pelo que com muita resignação, espírito de sacrifício e altruísmo, continuámos nós a viagem até ao HM241 onde chegámos cerca das 18H30. A viagem não se pôde fazer em velocidade elevada para não fazer sofrer ainda mais o ferido.

Voltámos tão rápido quanto possível, porque a noite já ia alta. A chuva que nos tinha acompanhado até Bissau, continuou até Mansabá.

Voltando ao senhor Coronel Correia de Campos, quem sou eu para enaltecer a sua figura? Sei apenas que era chamado para as situações mais complicadas no CTIG. A determinada altura deixou o comando do COP6 para assumir o comando noutra zona complicada da Guiné onde a sua presença era mais necessária.


Carlos Esteves Vinhal
Ex-Fur Mil Art Minas e Armadilhas
CART 2732
Mansabá, 1970/72 (2)

Leça da Palmeira
Matosinhos

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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 2 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1235: Coronel Correia de Campos: um homem de grande coragem em Sambuiá e Guidaje (A.Marques Lopes)

(2) Vd post de 18 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXI: Breve historial da CART 2732 (Mansabá, 1970/72) (Carlos Vinhal)

Guiné 63/74 - P1324: Blogoterapia (6): Ir a sortes... ir p'ra guerra (Zé Teixeira)

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Guiné > Região de Tombali > Aldeia Formosa (Quebo) > 1968 > o 1º Cabo Enfermeiro Teixeira junto a um obus 14 (ou 140 mm), "apontado para a fronteira" [com a República da Guiné-Conacri].

Foto: © José Teixeira (2005). Direitos reservados.


A sorte de ir para a guerra
por Zé Teixeira

Ir a sortes nos anos sessenta/setenta, era o abrir da porta que dava acesso a três anos de tropa na melhor das hipóteses, quando não eram quatro ou cinco, com uma passagem quase certa pela guerra colonial, com todos os riscos de uma guerra, para a qual, nós os mais jovens, não estávamos moralmente e psiquicamente preparados, apesar de toda uma doutrinação política.

Guerra lá longe, em tórridas e desconhecidas terras, contra povos autóctones, de estranhos costumes, conhecedores naturais do terreno que pisavam, com climas (dizia-se) altamente doentios, enfim, gentes armadas da vontade de se verem livres da tutela que Portugal teimava em manter, remando contra a corrente dos tempos. Vontade essa, bem alimentada pelas grandes, médias e até pequenas potências mundiais. Enfim, só alguns teimavam em manter-se cegos para não verem a realidade.

Começava no dia das sortes o drama que afectava o mancebo (candidato a cidadão) e toda a família. A religiosidade aculturada movia de imediato as mães a fazerem uma promessa de irem a pé a Fátima se o seu menino escapasse à guerra. Moviam-se os cordelinhos, quando era possível, onde entrava a presuntaria saborosa ou os contos de réis para os mais abastados, numa tentativa, tantas vezes frustada e frustrante, de evitar a mobilização.

A grande maioria não possuía condições para tais aventuras e submetia-se à sua sorte aguardando com esperança que o seu menino fosse um dos poucos a quem não coubesse a infelicidade de ser sorteado com o prémio da mobilização.

O tempo da recruta voava rápido. Vinha a especialidade, com a maioria a cair na malfadada especialidade de atirador – passaporte para carne para canhão.

Grande parte dos, agora, cidadãos da Pátria partia quase de imediato, porque a guerra não sabia (nem podia) esperar. Alguns ficavam um mês, dois... um ano.

Tempo de agonia que ia largando ao de leve o fumo da esperança de escapar, mas... quando menos se esperava, lá vinha o fatal convite.

Restavam uns poucos felizardos que escapavam, como que por milagre, mas desse não reza a história, como diria o Camões se lograsse viver o nosso tempo.



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Guiné > 1968 (?) > Um desdobrável de propaganda das NT. Imagem gentilmente cedida pelo Zé Teixeira.

Foto: © José Teixeira (2005). Direitos reservados.

O tempo de espera, sobretudo depois da especialidade, era dramático. Quanto mais passava, mais alimentava a esperança de escapar. Eu estava comodamente em casa a gozar o meu primeiro mês de licença a oito dias da saída da escola de enfermagem da incorporação seguinte. Sonhava já com um mês no quartel e outro de licença (a especialidade assim o permitia). Tinha recomeçado a estudar. A tropa ia ser canja !

Mais eis que chega o carteiro com o maldito papel da guia de marcha, não para Coimbra, mas para Abrantes!!! Abria-se nova página na minha vida. Página que levou dois anos a dobrar, que ainda não está totalmente escrita, tantas foram as marcas que deixou.

Dois meses de preparação na técnica guerrilheira e anti-terrorista(será correcto afirmar isto?) e psicológica, profundamente marcados por dúvidas e incertezas, pelos olhos inchados de uma mãe que teima em sorrir para esconder as lágrimas que lhe varrem o coração e depois o embarque para um mundo desconhecido, a Guíné - terra que pisei pela primeira vez em S. Vicente, no Cacheu.

Do antes ficaram alguns resquícios de poesia, forma subtil que encontrei para espantar os fantasmas. Do depois a história que fale.


MARCHA PARA A GUERRA

Estava no campo,
Regando o milho,
Seguindo o trilho
Da vida vivida,
Sempre a trabalhar.
Da tropa, de folga,
Bailava a esperança
De não ir ao Ultramar.

Ai que sorte a minha !
Ver os outros a marchar
E eu a ficar.

O Carteiro veio,
À porta bateu.
Um coração de mãe estremeceu.
Maldito papel,
Que na mão trazia.
O seu filho ia roubar.
Correu para o campo,
As lágrimas nos olhos.
A guerra veio-te chamar.

Ai que sorte a minha!
Ver os outros a ficar
E eu a marchar.

Meti na sacola
Um bocado de pão,
Estendi a mão.
Dei muitos abraços,
Parti a cantar.

Ai que sorte a minha
Ver os outros a ficar
e eu a marchar.


CARNE PARA CANHÃO

Lá no Quartel
Que em Abrantes ficava,
Comecei a aprender,
Como se matava.
De canhota ao ombro,
Ouvido apurado,
Grita o Capitão.
O Turra é como um ladrão,
Ele vem de qualquer lado.

A comida era boa,
Refeição abonada.
Parti para manobras,
Logo de madrugada.
Gritava bem alto,
Este é o meu fado.
Carne para canhão.
O Turra é como um ladrão
Ele vem de qualquer lado.

A noite chegava,
Serena e calma.
Triste como a noite,
Ficava a minha alma.
Gritava bem alto
Este é o meu fado.
O turra é como um ladrão
E vem de qualquer lado.


AMOR EM TEMPO DE GUERRA

Ver-te chegar à minha vida, amor.
É sofrer.
Por saber que para a guerra, eu vou.
Dizem que a Pátria me chama.
Já cá não estou para a semana.
Tu que nesta aventura quiseste entrar,
Acreditas no futuro ?
Estranha forma de amar.
Estranha forma de ser.
A razão do meu viver.
De lutar,
Para voltar, direito.
Escorreito.

Voltarei.
Gritei, na despedida, lembras-te ?
Quando o comboio apitava.
Um corpo morto, ele levava,
Ficava contigo o coração.
Sentado no degrau da Estação,
Enquanto me interrogava.
Que mundo vou conhecer ?
Que Pátria vou defender ?
Será que terei de matar
para viver
...E regressar
Direito.
Escorreito.

Estranha forma de ser.
O desafio aceitar.
Dois anos tu vais ficar,
Tu e eu a sofrer.
Ambos vamos sonhar.
Estranha forma de amar.
A razão do meu viver.
De lutar para voltar
Direito.
Escorreito.


À MINHA MÃE.

Minha mãe, eu vou para a guerra,
Não sei se vou matar.
Não sei se vou viver p'ra voltar.
Porque me ensinaste o amor.
Porque me ensinaste a semear
O bem.
A paz.
Se vou espalhar sofrimento, dor !
Minha mãe, eu vou para a guerra,
Atravessar mares, florestas,
Outros povos, outra terra.
Lutar.
Mas eu não quero matar.
Vem comigo.
Dá-me a mão
Aperta-me contra o coração
Diz-me que eles
Os donos da Pátria.
Não têm razão.

José Teixeira

terça-feira, 28 de novembro de 2006

Guiné 63/74 - P1323: Bibliografia de uma guerra (15): Os Mastins e o Disfarce, de Alvaro Guerra (Beja Santos)


Foto de Álvaro Guerra e Capa do livro Os Mastins, seguidos de O Disfarce, 3ª ed. Lisboa: O Jornal. 1986. A capa é da autoria de João Segurado.

Texto, enviado em 24 de Outubro de 2006, pelo Mário Beja Santos, ex-alferes miliciano, comandante do Pel Caç Nat 52 (Missirá e Bambadinca, 1968/70), e actualmente assessor principal do Instituto do Consumidor.

Caro Luís, caros tertulianos:

O blogue está a ganhar qualidade e densidade histórica, para júbilo de todos. Acho que chegou o momento de aprovarmos a admissão na nossa Família, a título honoris causa, do escritor Álvaro Guerra (1936-2002), e pelas seguintes razões.

Primeiro, o Álvaro Guerra combateu na Guiné, entre 1961 e 63. Ferido em combate, parte para França em 1964, onde estudou publicidade na École des Hautes Études de Sorbonne. A sua primeira obra literária intitula-se Os Mastins (1967), a que se segue Disfarce (1969), porventura a obra onde ele mais investiu, descrevendo os combates na guerra. Duas obras subsequentes aludem inequivocamente à experiência guineense: A Lebre (1970) e Memória (1971), que é uma colectânea de contos.

Segundo, como a sua literatura espelha, ele é um camarada da Guiné. Recorrendo a uma trama de ficção em que se joga em permanência o passado e o futuro, Álvaro Guerra é seguramente um dos primeiros grandes escritores que denunciou os horrores dos combates na selva e, reconhecido pela crítica, o maior de todos. Acresce que os seus romances históricos são uma permanente tensão de lutas (de classes, invasões napoleónicas, liberais e absolutistas e praticamente um século da história de Portugal em torno da triologia Café Central, Café República e Café 25 de Abril. Perfeccionista na escrita, diplomata emérito, jornalista respeitado, Álvaro Guerra foi um narrador espantoso de paixões, da violência incontrolada e até da tauromaquia, um pouco ao sabor dessa paixão ribatejana que ele tanto admirava.

No texto que se segue faço o louvor de Álvaro Guerra, pedindo a sua entrada por unanimidade nesta academia de camaradas da Guiné.

Abraços, Mário.

Ao Álvaro Guerra, porque lutando é começar (1)por Beja Santos

Mesmo que mais ninguém escrevesse sobre a guerra na Guiné, considerando aqui a escrita um voo picado sobre a crueldade, recorrendo à ficção e aos dotes da memória, o legado do Álvaro Guerra tem um valor inultrapassável, pesando no juízo de tal valor o facto de os seus escritos serem anteriores ao 25 de Abril. O Disfarce é retintamente autobiográfico. Estão ali registados os seus ferimentos, os tambores da guerra, o inferno da selva, o crepitar das metralhadoras, os momentos de fraternidade, o relâmpago das emboscadas e depois a vida em Paris com a memória sempre a latejar as dores que ficaram depois dos trópicos.

Apelando ao ingresso deste escritor de Vila Franca de Xira no nosso blogue, tornando-o companheiro de uma história em progressão, recordo algumas das suas páginas mais brilhantes, hoje traduzidas em várias línguas. Por exemplo: "O sol engolira as trevas num ápice e a manhã nublava-se de calor. No arrozal, à saída da aldeia, um casal de grus coroados adejava num bailado grotesco; evaporava-se rapidamente a água concentrada durante a noite nas folhas das árvores ainda brilhantes, cheirava a terra, o cheiro intenso e enjoativo daquela terra que ele espreitava por entre o calcar incerto das botas militares e a sombra esguia e movediça do seu corpo. Caminhavam em fila indiana. O prisioneiro levava as mãos atadas atrás das costas e o soldado que vinha a seguir dava-lhe pontapés, de vez em quando".

Mais adiante :"Uma aldeia queimada, havia um cheiro adocicado, enjoativo, quando se aproximaram do que fora Lenguel, aldeia balante, sinais de chamas recentes, devastação, e o povo escondido no mato. Tropeçou na carcaça calcinada de um boi cujos os ossos amarelados se desconjuntaram, no meio de cinzas e destroços, pilões lambidos pelo fogo, cabaças enegrecidas, restos de primitivas enxadas de madeira, os gigantescos potes com as grandes bocas negras como os rombos enormes nos seus ventres vazios, e as paredes em ruína das cubatas sem tecto. Extensa, a bolanha estendia-se diante da aldeia queimada, a bolanha empapada, escaldante, febril, onde o arroz apodrecia na ponta dos cales amarelos a tombarem para a água, cansados de esperar quem os viesse colher... Timidamente, mulheres com os filhos às costas, crianças nuas e meia dúzia de homens válidos surgiram do mato, rápidos olhares furtivos nos seus rostos sérios, e foram-se reunindo, muito juntos e silenciosos, no meio da aldeia devastada - era o povo de Lenguel diante das suas casas queimadas".

E por fim, o horror da emboscada, notavelmente descrita: "Caiu em cima deles a surpresa, uma chuva de ferro, estampidos e silvos de árvore vergastado e quedas e ramos partidos e pragas e explosões e o gargalhar fantasmagórico das rajadas matadoras e o homem ao lado dele com o sangue no ventre nãos mãos que disse 'Ai, mãe!' e morreu... Quando o combate acabou ou suposeram que tinha acabado, porque a lamúria dos feridos se tornara mais nítida na imobilidade e silêncio da trégua, uma voz escondida anunciou a morte do 38 que, somado ao cadáver de ventre e mãos sangrentas e fora o 71, perfazia dois números a riscar naquela danada matemática" (...).

A obra de Álvaro Guerra aparece impregnada da saudade da casa e das noites imemoriais do soldado de África que ele foi. O protagonista que ele criou anda ferido em Paris e o seu ajuste de contas com os demónios da memória é ferida por sarar. Ele disfarça mas não cura. Não chora mas a guerra de África mantém-no comovido. Bastaria o vigor desta escrita para ele ter lugar entre os camaradas da Guiné que somos e seremos (2).

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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 17 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1285: Bibliografia de uma guerra (14): Rumo a Fulacunda, um best seller, de Rui Alexandrino Ferreira (Luís Graça)

(2) Comentário de L.G.: Esta é uma tertúlia de vivos, não... o panteão nacional.

Louvo a iniciativa e a oportunidade do Beja Santos, ao evocar aqui a figura de um camarada de armas da Guiné, desconhecido ou pouco conhecido da maior parte dos nossos tertulianos... Mais do que uma recensão bibliográfica, é um acto de justiça: sem dúvida que o Álvaro Guerra é um dos nossos, e para mais é um grande escritor... Mais ainda: um escritor pioneiro, no que diz respeito à temática da guerra colonial... Mas, infelizmente, estando já desaparecido - tal como Salgueiro Maia e outros que já nos deixaram e que também escreveram livros - eu tenho pessoalmente alguma relutância em apropriar-me do seu nome, da sua vida e da sua obra...

Ao criar ao blogue, não previ nenhum quadro de honra para os amigos e camaradas da Guiné, mas podemos vir a criá-lo se for essa a vontade da maioria de nós... Sou capaz, todavia, de antever algumas dificuldades quanto à obtenção de consensos - já não falo na impossível unanimidade em matéria de opiniões - sobre as figuras que podem e devem nele figurar... por causa da honra (honoris causa) (4).

Eu sei que o Beja Santos fá-lo por um impulso de generosidade e de justiça. Mas eu não posso secundar a sua acção - aliás, já lho comuniquei e ele compreendeu e aceitou muito bem as minhas razões- , utilizando um argumento de autoridade...

A verdade, meu caro Mário, é que uma grande parte de nós nunca leu (ou ouviu falar sequer do de) o Álvaro Guerra... Se ele tivesse vivo, poderíamos convidá-lo a entrar na nossa tertúlia... Já não estando entre nós, acho abusivo ou até pretensioso... Acho sempre abusivo - para dizer hipócrita - a apropriação que se faz, neste país, dos nossos escritores e artistas que só são grandes e reconhecidos depois de mortos (Camões, Amadeo Sousa Cardoso, Fernando Pessoa ou, mais recentemente, Mário Cesariny...).

A melhor homenagem que podemos prestar ao nosso ilustre camarada Álvaro Guerra, ribatejano de Vila Franca de Xira, é ler os seus livros e falar deles, na nossa 'caserna virtual', e sermos dignos do seu exemplo Recordo o aqui as palavras que ele escreveu para o curto prefácio desta edição de O Jornal:

"Os textos que se seguem foram escritos quando escrever em Portugal era lutar pela liberdade contra a ditadura, pela livre expressão contra a censura, pela dignidade contra a humilhação(...).

"Se o bem mais precioso que um escritor, no seu trabalho, pode desejar é a liberdade de expressão, será oportuno reconhecer que esse é um bem no activo do que mudou em Portugal" (Álvaro Guerra) (4).

...Enfim, gostaria de ouvir a opinião dos amigos e camaradas da Guiné sobre este assunto.

(3) O que quer dizer honoris causa ?

(...) "Os graus académicos constituem o reconhecimento por parte da Universidade de que o graduado atingiu determinados patamares do conhecimento científico. Bacharelatos, licenciaturas, mestrados e doutoramentos são esses graus académicos. O doutoramento é o grau mais elevado da formação científico-académica, grau esse que normalmente se obtém após anos e anos de muito estudo e intensa investigação, anos de trabalho duro e de espírito de sacrifício.

"Qual o sentido então de um doutoramento honoris causa, de um doutoramento justificado pela honra e não directamente pelo estudo e saber científico? O sentido está em a universidade reconhecer desse modo que actos, obras e vida de uma pessoa atingem e ultrapassam o melhor que nela se consegue. A universidade associa-se à excelência que determinada pessoa alcançou na sua área de saber, na sua profissão, no serviço prestado à comunidade. Mesmo nos casos em que são cientistas os distinguidos com o doutoramento honoris causa, a universidade honra toda uma obra que em muito ultrapassa os limites das exigências académicas.

"Tive a fortuna de assistir em 18 de Setembro passado à cerimónia em que a Universidade de Harvard deu o doutoramento honoris causa ao Presidente Nelson Mandela. Era o lutador pela liberdade do seu povo, pela democracia e paz de uma nação, que aquela universidade americana honrava. Honrava a obra e a vida de um homem de oitenta anos, de que vinte e sete tinham sido passados na cadeia. Mas também a mesma universidade havia dado em 1996 um doutoramento honoris causa a uma mulher de 86 anos cuja vida fora passada a lavar roupa. Essa mulher, Oseola McCarthy, havia doado todo o dinheiro que acumulara ao longo da sua vida à Universidade do Missippi do Sul para a ajuda de estudantes negros necessitados.

"Um doutoramento testemunha um saber científico específico, mas um doutoramento honoris causa reconhece a sabedoria de uma obra" (...).

Fonte: António Fidalgo > Crónicas > Corte na Aldeia > Jornal do Fundão > 9 de Outubro de 1998 > Honoris Causa


(4) Alguns sítios na Net sobre o Álvaro Guerra:

In Memoriam Álvaro Guerra (1936-2002)

Público > Colecção Mil Folhas > Tiragem de 100 mil exemplares > Razões de Coração, de Álvaro Guerra

Citador > Leituras > No Jardim das Paixões Extintas [2002], de Álvaro Guerra

segunda-feira, 27 de novembro de 2006

Guiné 63/74 - P1322: Blogoterapia (5): Mamadu Djaló que firma no Catió (Joaquim Mexia Alves)

Luís:

Li agora o último post do Jorge Cabral (1) e à conta da música e do crioulo, lembrei-me da célebre frase que corria na Guiné, dita na rádio (qual rádio?), no programa de discos pedidos, e que era assim, mais coisa menos coisa:

- Para Mamadu Djaló qui firma no Catió, Gianni Morandi canta Cá sou degno di bó!!!

Lembremo-nos que era uma célebre música desse cantor italiano, Gianni Morandi [n. 1944], do ano de 1965, e que tinha por título Non sono degno di te [Não sou digno de ti].

Abraço do
Joaquim Mexia Alves

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Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 27 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P1319: Blogoterapia (4): A alegria de encontrar a minha gente de Fá Mandinga e Missirá (Jorge Cabral)

Guiné 63/74 - P1321: Humor de caserna (2): a minha vida militar, contada, dava um filme (Vitor Junqueira)


Na sequência do post anterior (1), volto a republicar - devidamente reformulado - o texto do Vitor Junqueira , inserido no Blogue-fora-nada, em 10 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXLVIII: Humor de caserna: 'A minha vida, contada, dava um filme' (Vitor Junqueira).




Guiné > Empada > CCAÇ 2381 > 1969 > Um exemplo do nosso humor de caserna: o 1º cabo enfermeiro Teixeira, apesar da sua intensa actividade operacional, estava sempre disponível para os outros e arranjava maneira de se divertir e divertir os seus camaradas. Aqui, caricaturando o festival da Eurovisão.

Foto: © José Teixeira (2006). Direitos reservados


1. O Vitor Junqueira (ex-alf mil da CCAÇ 2753 - Os Barões, Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá , 1970/72, hoje médico em Pombal), na altura, escreveu-me o seguinte:

Entre os meus papéis encontrei esta lista com os títulos dos filmes que passavam nos principais cinemas do país nos finais da década de 60. Alguém estabeleceu um elo de ligação, irónico, entre esses títulos e certos momentos importantes da vida de um combatente. Quero partilhar o achado convosco.Vitor Junqueira.

2. Comentário de L.G.:

Eu já tive ocasião de dizer ao Vitor que este documento era, de facto, um achado, uma maravilha, uma peça importante para compreender o nosso humor... de caserna!... De facto, quem disse que nós, os tugas, não tínhamos sentido de humor ? Eu acho que o humor, além de ser um sinal de inteligência, constitui também uma forma, muito nossa, portugesa, de ser e de estar que nos ajuda a enfrentar (e aguentar) as situações difíceis, em termos quer individuais quer colectivos... É rindo de nós próprios que afugentamos os maus agoiros, nos livramos dos tristes fados, lidamos com as crises e superamos as dificuldades...

Para um mancebo, a tropa sempre constituiu, entre nós, um verdadeiro ritual de passagem. Ir às sortes e ser apurado para a tropa, era um motivo de orgulho para um jovem, nomeadamente em tempo de paz. A tropa era uma escola de virtudes: virilidade, masculinidade, saúde, autocontrolo, coragem, lealdade, patriotismo, camaradagem...

Para os mancebos da nossa geração, a coisa piava mais fino: ser apurado para todo o serviço militar, implicava em 90 e tal por cento dos casos (tirando os filhos de algo, mais os cegos, os surdos e os mudos) ganhar um bilhete de ida (e nem sempre de volta) até ao Ultramar, ir parar a uma das três frentes da guerra colonial: Angola, Guiné, Moçambique... Em suma, mais dois anos (ou quase) de tropa...

O documento que o Vitor nos mandou é constituído por duas imagens, em formato.jpg, de uma lista, dactilografada, que tem por título A Vida de um Militar na Guiné Através do Cinema. A qualidade da digitalização não é boa, pelo que transcrevo as duas partes, corrigindo alguns erros de ortografia e/ou dactilografia, e procedendo à sua junção e, depois, à sua ordenação alfabética.

Uma das partes da lista é aqui inserida sob a forma de imagem, a título meramente ilustrativo. Esta lista, bem humorada, procura sobretudo fazer a equivalência, jocosa, entre as situações do dia-a-dia de um aquartelamento no mato e os títulos dos filmes que passavam na época nos nossos cinemas... Ainda me lembro de alguns!

Desconhece-se o autor da lista: provavelmente é trabalho colectivo. Possivelmente começou por alguém de transmissões, que tinha tempo e vagar para estas coisas... Talvez um cabo operador cripto, um especialista que não esconde a sua crítica à hierarquia e aos pequenos privilégios que davam as divisas e os galões... No mínimo, é um cinéfilo:

Clube de Sargentos = Casino Royal (possível referência à tendendência para a jogatana e a batota por parte de furriéis e sargentos);
Clube de Oficiais = Hotel Internacional (as instalações dos oficiais eram, sempre, apesar de tudo, melhores do que as barracas e os abrigos onde dormia o Zé Soldado);
Oficiais = Os insaciáveis;
Especialistas = Milionários sem vintém...

Também transparece aqui que a ideia de que ser Sargento de messe (= golpe de mestre à napolitana) era uma forma rápida... e socialmente aceite ou tolerada de aumentar o pé de meia durante a Comissão (que, para o Zé Soldado, era sinónimo de... Noites sem fim)!

O autor é também possivelmente alguém que esteve numa zona quente, junto à fronteira norte ou sul, já que o Turra é aqui identificado com o perigo que vem da fronteira (do Senegal ou da Guiné-Conacri)... O(s) autor(es) não deixa(m) de ser influenciado(s) pela teoria dominante de que a guerra do Ultramar era alimentada do exterior.

Curiosamente não há - como seria de esperar - grande referência à vida concreta dos operacionais no mato e aos perigos que os espreitavam: a emboscada, a mina, a canhoada, a morteirada, a roquetada, a costureirinha, o capim, os feridos, os mortes, o golpe de mão, etc. Há uma referência às Condecorações que, dadas a título póstumo, eram simbolizadas pela Cruz... de Ferro!

Não deixa também de ser interessante a representação da Enfermeira (paraquedista): o amor desceu em paraquedas... Durante a comissão toda, a Enfermeira-paraquedista era a única mulher branca que o Zé Soldado podia ver, ao vivo, de relativamente perto, embora de camuflado e de relance, em caso de evacuação de um ferido grave, quer no mato, quer no aquartelamento... Era, para muitos, uma visão quase celestial e sobretudo altamente erotizada...

Ainda me lembro a perturbação e a excitação que causava, entre os básicos de Bambadinca - nesta expressão, me incluo eu, mais as praças, os sargentos e os oficiais - , a chegada de um helicóptero com uma enfermeira-paraquedista... Em contrapartida, o Furriel enfermeiro da unidade (ou o Médico do batalhão) era associado a carniceiro e assassino...

No caso da CCAÇ 12, o pessoal era mais gentil, embora brincalhão e travesso, pelo que o nosso furriel enfermeiro Martins era simplesmente o Pastilhas - um profissional competentíssimo...mas o que ele sofreu connosco ! (um dia destes hei-de fazer-lhe aqui uma pequena homenagem).

Outra das obsessões do militar na Guiné era a contagem dos dias que faltavam para a chegada dos Periquitos e para o fim da comissão...E, por fim, inevitamente, a referência à ida às Tabancas (= sarilho de fraldas), o convívio com as Bajudas (= amor sem barreiras), o Tabaquinho e o copos (= amores clandestinos), o tempo de lazer e de prazer do Zé Soldado...

De qualquer modo, esta lista deve ser confrontada com a anteriormente publicada, e que nos chegou à mão através da viúva do soldado Rosa Gonçalves (1).


A vida de um militar na Guiné vista através do cinema:

Alojamento = Este é o meu mundo
Apresentações = Eu, eu... e os outros
Ataque ao quartel = A visita
Avião semanal = A esperança nunca morre

Bajudas = Amor sem barreiras
Bissau = Vida sem rumo

Castigos = Adeus ilusões
Chegada à Guiné = As duas faces do perigo
Chegada a Lisboa = Europa de noite
Clube de Especialistas = A grande vitória
Clube de Oficiais = Hotel Internacional
Clube de Sargentos = Casino Royal
Comissão = Noites sem fim
Companhia de Transportes = A ultrapassagem
Comunicações = Este difícil amor
Condecorações = A Cruz de Ferro

Dispensas = Uma réstea de azul

Enfermaria = As loucuras do dr. Jerry
Enfermeiras = O amor desceu em paraquedas
Enfermeiros = O assassino
Especialistas = Milionários sem vintém

Fim da comissão = Com a felicidade na alma
Formaturas = Eram duzentos irmãos

Grupo Operacional Aéreo = Os gloriosos malucos das máquinas [voadoras]

Ida ao mato = Um campista em puros
Ir de férias = O prémio

Justiça e disciplina = Arquivo K

Linha da Frente = Com jeito vai
Louvor = Não sou digno de ti

Médico = O homem da mala preta
Messe = Por favor não comam os malmequeres
Metereologia = E tudo o vento levou

Não ir de férias = Restos de um pecado

Oficiais = Os insaciáveis
Oficial de Dia = Sua Excelência, o Mordomo
Ordem de serviço = Os Dez Mandamentos

Partida de Lisboa = Passaporte para o desconhecido
Partida para Lisboa = África adeus
Passagem à disponibilidade = O adeus às armas
Primeira noite em Lisboa = Um homem e uma mulher
Praças = A família Trapp
Prisão = Longe da multidão

Recolher = Servidão humana

Saída à porta de armas = Duelo ao pôr do sol
Sargento de messes = Golpe de mestre à napolitana
Sargentos = Os profissionais
Secção de Fardamento = Pijama para dois
Secretaria dos TAP = Por favor não incomode
Substituto = O espião que veio do frio

TAP = O último recurso
Tabancas = Sarilho de fraldas
Transmissões = O perigo é a minha profissão
Turras = O perigo vem da fronteira
Vinho, tabaco, etc. = Amores clandestinos

Último dia da Guiné = O dia mais longo
___________

Nota de L.G.:

(1) Vd. post anterior, de 27 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1320: Humor de caserna (1): O soldado paga com sangue a fama do capitão (Maria Gonçalves, viúva de Rosa Gonçalves, CCAÇ 3566)

Guiné 63/74 - P1320: Humor de caserna (1): O soldado paga com sangue a fama do capitão (Maria Gonçalves, viúva de Rosa Gonçalves, CCAÇ 3566)


Emblema da CCAÇ 3566 e carta manuscrita de Maria Clarinda e Venâncio Gonçalves, viúva do nosso camarada António Joaquim Rosa Gonçalves, que pertenceu àquela, conhecida por Os Metralhas (Empada/Catió, 1972/74) (1).

1. Entre outras coisas, a viúva do Rosa Gonçalves - conhecido por Alentejano, entre os seus camaradas Metralhas - escreveu-me o seguinte, em carta enviada pelo correio:


(...) "Claro que não vejo inconveniente em fazer parte da vossa lista de amigos, será um prazer. Só mostra que a guerra onde vocês, ex-combatentes, estiveram envolvidos, deixou algo de muito bom, a amizade, [a qual] mesmo com o passar do tempo ainda perdura.

"Envio fotocópia de crachá dos Metralhas e de um papel que o meu marido trouxe da Guiné (uma determinação), o que mostra que, apesar de tudo, ainda havia tempo para brincar com coisas sérias... Como deve imaginar, guardo-o religiosamente.

"Como já tinha dito, o que faço em memória do meu marido, é uma forma de manter viva a sua memória, fazendo o que sei o que ele faria" (...)

[Alcácer do Sal,] 10-11-06

2. A nossa amiga Maria mandou-me também, no mesmo correio, um exemplar da Voz do Sado, com um depoimento sobre a guerra na Guiné. A fotocópia do papel do seu marido que ela guarda religiosamente, e que teve a gentileza de me mandar, não é mais do que uma lista de figuras de caserna a que estão associados títulos de filmes da época...

Era então uma forma de os nossos soldados criticarem a instituição militar, denunciando, caricaturando ou ridicularizando alguns dos aspectos mais sinistros, opressivos, cruéis e negativos da sua organização e funcionanamento, através do uso de trocadilhos com recurso a nomes de filmes comerciais (Carecada: E tudo o vento levou; Levantamento de rancho: a revolta dos escravos; Sargento da guarda: o Pai Tirano; Oficial de dia: Gringo não perdoa, etc.).

O emblema dos Metralhas é já, só por si, um tratado de humor castrense! Não sei como passou aos vários controlos da pesada hierarquia militar!

Reproduz-se a seguir a lista com alguns dos ditos de caserna, ditos esses que ao fim e ao cabo remontam a uma tradição popular, muito mais antiga que a guerra colonial... De facto, o nosso povo tem uma amarga experiência secular destas coisas, originando provérbios, de uma grande sabedoria, como:

- Bem parece a guerra a quem não vai nela;
- Da fome, da peste e da guerra... e do bispo da nossa terra, libera nos, Domine [livrai-nos, senhor];
- Em tempo de guerra, mentira é como terra;
- Nem todos os que vão à guerra são soldados;
- O bom soldado tira-o do arado;
- O soldado paga com sangue a fama do capitão...


Regimento de Infantaria nº 14 > Ordem de Serviço nº 5391

Determino e mando publicar:

Cabo Clarim – Trovador maldito
Cabo de Rancho – Ali-bá-bá e os 40 ladrões
Cabos chicos – Os miseráveis
Capelão – Cantiflas, o bom pastor
Carecada - E tudo o vento levou
Caserna – Casa dos infelizes
Comandante – O mais poderoso
Corte de fim de semana – O destino marca a hora

Depósito de géneros – Mercado negro
Desfile militar – Escândalo ao sol
Dia de pronto – O dia da vergonha
Dias de licença – O mundo maluco
Dias de instrução – Sangue, suor e lágrimas

Faxina ao refeitório – O dia mais longo
Fim de semana – Dias e dias no paraíso

Hospital militar – Cemitério dos vivos

Ida para o Ultramar – Que importa morrer
Ir para a Prisão – Os rebeldes

Levantamento de rancho – A revolta dos escravos

Médico de serviço – A morte veste-se branco
Messe de oficiais – Grande hotel
Messe de sargentos – Zona proibida
Meter o Chico – Pacto com o diabo
Mobilização – Passaporte para a eternidade

Oficial de dia – Gringo não perdoa

Passar à Peluda – A maior história de todos os tempos
Piquete – Todos morrem calçados
Plantão na caserna – Cabeça a prémio
Polícia militar – Espionagem maldita
Porta de armas – Cortina de ferro

Rancho melhorado - A grande mentira
Receber correio – De ilusões também se vive
Receber o pré – O dia da vergonha
Reforço ao quartel – Uma morte na escuridão

Sargento da guarda – O pai tirano
Secretaria – A caixa das surpresas
Soldados casados – Sarilhos de fraldas

Tirar o IAO – Aprender a matar
Toque de ordem – Música no coração
Toque de silêncio – Sinfonia incompleta

Uma noite deitado – Os assassinos atacam
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Nota de L.G.:

(1) Vd. posts de

19 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1087: Rosa Gonçalves, o alentejano (CCAÇ 3566, Os Metralhas, Empada, 1972) (Quim Pinheiro)

7 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1054: Agradecimento da viúva do Rosa Gonçalves (CCAÇ 3566, Os Metralhas, Empada/Catió, 1972/74)

Guiné 63/74 - P1319: Blogoterapia (4): A alegria de encontrar a minha gente de Fá Mandinga e Missirá (Jorge Cabral)

Mensagem do Jorge Cabral, ex-Alf Mil, Cmdt do Pel Caç Nat 63 (Bambadinca, Fá Mandinga e Missirá, 1969/71).

Amigo:

Renovo o meu agradecimento. Obrigado, Luís! Graças ao Blogue recuo no tempo, recupero lembranças e reconstituo alguma da minha juventude. Recuo, recupero e reconstituo, mas não me reconstruo. Assumo-me exactamente como fui, não me invento enquanto personagem, nem me atribuo papéis que nunca desempenhei.

Passaram muitos anos mas conservo intactas as opiniões que então formulei sobre quem conheci. Opiniões então fundamentadas, quer no contacto pessoal, quer nas informações prestadas por outros camaradas.

Continuo a ser um leitor compulsivo e adoro ficção, mas nunca por nunca, me permito confundir imaginação com realidade.

Como era eu, em Jovem?

Incorporado aos vinte e três anos, quando frequentava o 4º ano da Faculdade de Direito, dedicava-me porém mais às letras, tendo já publicado poemas e contos. Lia muito e seguia atentamente tudo o que parecia moderno ou diferente, desde o Noveau Roman [, o Novo Romance], principalmente de Robe-Grillet, à poesia concretista.

Amante do teatro do absurdo, idolatrava Yonesco, que vi representado em Lisboa por uma companhia belga. Ia muito ao cinema e delirava com Bergman.

Devia ser um snobe intelectual, insuportavelmente pretensioso, que até se julgava culto. Claro que a curto prazo entendi que a cultura não se mede pelos livros ou filmes, lidos e vistos, mas pela capacidade de compreensão do outro na plenitude da sua diferença.

Dessa forma procedi nos Destacamentos [, Fá e Missirá], e aprendi muito, com os africanos mas também com os furriéis, cabos e soldados metropolitanos.

Jovem universitário urbano, conheci outro Portugal. Com eles agora comento o Blogue, e revisito o nosso Missirá, onde infelizmente nunca ouvimos ópera, nem usufruímos de cozinheiros diplomados, que nos preparassem chá com torradas.

O nosso cozinheiro era um básico posto ali por castigo, que um dia desatou a chorar porque eu, farto da sua manifesta inaptidão, lhe ordenei para o almoço... piças fritas (sic).

Líamos todos intermináveis fotonovelas, e escutávamos uma melodia em crioulo, que repetia escadeirada, escadeirada (1), além da Desfolhada, e do Elvas oh! Elvas, Badajoz à vista. Do Zeca Afonso nada, sabiam lá eles quem era…

Partilhávamos madrinhas de guerra, e um dia hei-de contar a minha correspondência com uma, para a qual inventei um país, com leões, tigres, elefantes e ferozes pigmeus canibais…

São também eles que agora me exigem que fale do nosso Missirá, que foi real e existiu, da nossa amizade e das nossas estórias.

Será talvez só por eles, que tentarei continuar…

Abraço Grande
Jorge Cabral


P.S./1 – Junto estória (Hortelão e Talhante: A frustração do Amaral)

P.S./2 – Na semana passada vivi uma grande alegria. Fui ao Rossio comprar cola e encontrei gente de Fá Mandinga.

_________

Nota de L.G.:

(1) O Jorge deve querer referir-se ao Nho Antone Escaderode, talvez a mais conhecida das coladeiras, de autoria de Gregório Gonçalves, imortalizada por grandes cantores cabo-verdianos como Bana, Tubarões ou Cesária Évora... A sua música - irresistível mesmo para um pé-de-chumbo, como eu - está nos ouvidos de todos nós... O Nho Antone Escaderode está para a coladeira assim como a Sodade está para morna: são duas obras-primas da música de Cabo Verde... A letra já é mais complicado entendê-la e decorá-la, tirando o refrão que é simples... Aqui vai uma ajudinha:

Nho Antone Escaderode(Gregório Gonçalves)


Primera vez
Qu’m ba na Rebera Grande
‘M passa sabe
Fui dente dum reservado

(Refrão:)


Oh Nho Antone Escaderode
Escaderode, Escaderode,
Oh Nho Antone Escaderode
Escaderode, Escaderode,

Nós era três
Que t’ma un estamperode
Quande no sai
Nô ta que palpite descomandode

(Refrão:)

Oh Nho Antone Escaderode
Escaderode, Escaderode,
Oh Nho Antone Escaderode
Escaderode, Escaderode,

Cesária Évora > CD > Café Atlântico (1999)
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Tenho este CD, mas também é possível encontrar a letra, em crioulo (e a sua versão inglesa) na na página pessoal de... um italiano, apaixonado por Cabo Verde, Eraldo De Gioannini. A página tem justamente como título Cabo Verde > http://www.caboverde.com/... A página é em inglês... Um excerto musical de Nho Antone Escaderode (e de outras canções conhecidas, da Cesária Èvora e outros intérpretes) pode ser ouvido em:
A letra conta a história de um tipo - o senhor António - que a primeira vez que foi à vila e sede de concelho da Ribeira Grande, na Ilha de Santo Antão - justamente conhecida pelo seu grogue ou cachaça - foi beber un copos, num bar manhoso (reservado)... Eles eram três e o pobre do António quando saiu vinha todo... escaderode, que é como quem diz: apanhou uma valente piela...

domingo, 26 de novembro de 2006

Guiné 63/74 - P1318: Xime: uma descida aos infernos (2): Op Abencerragem Candente (Luís Graça, CCAÇ 12)

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Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Xime > 1972 > Obus 10,5 (ou 105 mm). No aquartelamento do Xime, existiam três obuses deste calibre e um morteiro 81 m/m. Eram estas as armas pesadas que existiam em 1972. As mesmas que existiam em 26 de Novembro de 1970.

Foto: © Sousa de Castro (2005). Direitos reservados.


Extractos da História da CCAÇ 12: Guiné 69/71. Bambadinca: Companhia de Caçadores nº 12. 1971. Cap. II, pp. 41 a 43 (Vd. abreviaturas em anexo).

Texto revisto e anotado por L.G. (1):


(17) Novembro/70: Violenta reacção do IN à penetração das NT em Ponta do Inglês durante a Op Abencerragem Candente

Embora se admitisse que o seu dispositivo no Sector L1 [correspondente ao triângulo Xime-Bambadinca-Xitole] tivesse sofrido importantes alterações, uma vez que se havia manifestado fracamente nos últimos meses, em especial no subsector do Xime, o IN não deixaria, no entanto, de reagir violentamente à penetração das NT em Ponta do Inglês no decurso da Op Abencerragem Candente, causando 6 mortos e 9 feridos [O aquartelemento da Ponta do Inglês, controlando a entrada no Rio Corubal, tinha sido abandonada por decisão do brigadeiro Spínola, logo no início do seu consulado, no último trimestre 1968].

Participaram nesta operação as seguintes forças, constituindo 3 Agrupamentos [num total estimado em cerca de 250 homens]:

(i) a CCAÇ 12 (sedeada em Bambadinca, ao serviço do BART 2917), a 3 Gr Comb (2° e 4º);

(ii) a CART 2715 (aquartelada no Xime), também a 3 Gr Comb;

e (iii) a CART 2714 (aquartelada em Mansambo), a 2 Gr Comb.

A missão era patrulhar a área definida pelo RGeba-Corubal-Buruntoni-Canhala a fim de:

(i) explorar eventuais vestígios IN;

(ii) deixar vestígios da passagem das NT e panfletos de acção psicológica;

e ainda (iii) contactar com a população desarmada, convidando-a a apresentar-se.

Os 3 Agrupamentos actuariam independentemente e por itinerários diferentes mas de modo a apoiar-se em caso de necessidade: Agr A (CART 2714), Agr B (CCAÇ 12) e Agr C (CART 2715).

No planeamento da operação, o Agr B faria a nomadização da região compreendida entre o RGundagué e a estrada (interdita) Xime-Ponta do Inglês, montando emboscadas durante a noite na área de Darsalame Baio e reunindo-se ao Agr C no nosso antigo aquartelamento da Ponta do Inglês, enquanto este bateria a região compreendida entre a referida estrada e o RCorubal, emboscando-se na área do Poindon.

Notícias de elevada classificação admitiam que o IN tivesse retirado do Sector 2 [também conhecido por região do Xitole e já na altura integrado na Frente Xitole / Bafatá ] dois bigrupos (Poindon e Baio) e um grupo de artilharia (Mangai).

De qualquer modo, depois da Op Boinas Destemidas [levada a efeito em Outubro de 1970 pela CCAÇ PARAS 123 na região de Ponta Varela, e da qual resultara a morte de sete guerrilheiros e a captura do respectivo armamento], o IN revelara-se apenas uma única vez (um grupo de 5 elementos tinha flagelado o Xime com armas ligeiras no mês anterior).

Desenrolar da acção:

A 25 [de Novembro de 1970], pelas 7h00, os Agr B e C saíram do Xime, no momento em que Mansambo era atacado com mort 82, LRockets e armas ligeiras por um grupo IN não estimado, atrasando a saída do Agr A.

Em Madina Colhido experimentaram-se os rádios, verificando-se que o do Agr B só ligava com Bambadinca e o do Agr C com o Xime, não havendo ligação entre eles [imprevidência, impreparação, incompetência, acrescednto eu] . Por outro lado, tentando-se também entrar em ligação com o PCV [posto de comando volante], esta não foi conseguida, uma vez que a frequência terra-ar que fora atribuída à operação não estava dentro das gamas de frequência da FA (!).

Em virtude disso, os 2 Agr foram obrigados a seguir juntos [grave erro!, direi hoje, pensando no comprimento de centenas de metros da coluna, em marcha, qual cobra sulcando o alto capim da savana arbustiva da região].

Depois de atingirem a Ponta Varela, contornaram a bolanha em direcção da antiga tabanca de Poindon, não tendo detectado entretanto vestígios recentes de presença IN nem de população. Ao escurecer, e quando as NT se preparavam para montar emboscadas, verificar-se-iam porém dois casos de intoxicação devido às conservas da ração de combate [!], pelo que tiveram de regressar ao Xime, aonde chegaram pelas 21h.

Entrando-se em contacto rádio com o comando de Bambadinca, a comunicar-se o sucedido e a pedir-se instruções, foram dadas ordens para os Agr B e C seguirem para a Ponta do Inglês pela respectiva estrada, ao raiar da madrugada do doutro dia [26 de Novembro], e aonde deveriam aguardar novas instruções [segundo erro, e este o mais grave!].

A 26, pelas 5.45 h da madrugada, iniciou-se de novo a marcha, tendo a progressão decorrido normalmente, e sem se notarem sinais de recente passagem nos trilhos do Baio e nas imediações do acampamento destruído durante a Op Boinas Destemidas em Xime 3C1-29.

Três horas depois, pelas 8.50h, já perto da Ponta do Inglês, o IN desencadearia uma violenta emboscada em L sobre a direita, precedida por um tiro isolado que foi confundido com um sinal de aviso duma eventual sentinela avançada, e que apanhou na zona de morte os 3 Gr Comb do Agr C [ CART 2715] e 1 Gr Comb (4º) do Agr B [CCAÇ 12].

Os primeiros tiros do IN, especialmente de LRockets, atingiram mortalmente o picador e guia do Agr B, Seco Camará, que ia na frente, e os quatro homens que o seguiam, incluindo um graduado [furriel miliciano Cunha], tendo ferido gravemente outro. Com rajadas sucessivas de LRockets e armas automáticas o IN, fixando as NT, lançou-se ao assalto sobre os primeiros homens, mortos ou gravemente feridos, conseguindo apanhar-lhes as armas, e só não os levando devido a pronta reacção das NT.

É de destacar aqui a acção heróica dos soldados Soares (CART 2715), que veio a ser mortalmente ferido, Sajuma (apontador de bazuca do 4º GR Comb/CCAÇ 12) que ficou ferido numa perna, e Ansumane (apontador de dilagrama, também do 4º Gr Comb/CCAÇ 12, ferido ligeiramente nas costas), que se lançaram ao contra-ataque, juntamente com outros camaradas e alguns graduados, a fim de quebrar o ímpeto do IN e de recolher os mortos e feridos.

O ataque durou cerca de 20 minutos, sendo a retirada do IN apoiada com tiros de mort 82 e canhão s/r (!) que incidiram sobre a estrada, e especialmente sobre os 2 últimos Gr Comb (1° e 2º) da CCAÇ 12, assim como rajadas enervantes de pistola-metralhadora, de posições que ainda não se haviam revelado, nomeadamente de cima das árvores.

Pelos elementos da frente foram ouvidos gritos de dor entre as fileiras do IN, tendo o rápido reconhecimento da zona confirmado que este deveria ter tido vários feridos e mortos prováveis [Esta parte do relatório era música, para não desmoralizar ainda mais as NT e sobretudo enganar o comando].

Em consequência da emboscada IN, uma das mais violentas de que há memória na região do Xime, pelo seu impacto sobre as NT, a CART 2715 [Xime] sofreu 5 mortos (l Furriel Mil) e 7 feridos, e a CCAÇ 12 teve 2 feridos (dos quais 1 grave, o Sold Sajuma Jaló), e 1 morto (o picador e guia permanente das NT Seco Camará, na altura ao serviço da CCS do BART 2917, e que do antecedente já tinha dado provas excepcionais de coragem e competência, tendo participado com a CCAC 12 em quase todas as operações a nível de Batalhão no Sector Ll).

Sob a protecçãodo helicanhão (que seguia para Mansambá no momento em que foi pedido o apoio aéreo), os 2 Agr regressaram ao Xime, com 2 Gr Comb do Agr B [1º e 2º da CCAÇ 12] a abrir caminho por entre a mata densa, 1 Gr Comb do Agr C [ 2715] a manter segurança à rectaguarda e os restantes empenhados no transporte dos feridos e mortos, tendo as heli-evacuações sido feitas numa clareira já perto de Madina Colhido e depois de percorridos mais de 5 Km, em condições extremamente penosas [No helicóptero vinha uma ou mais enfermeiras-paraquedistas].

Notícias posteriores [ não se indica a fonte...] admitiam que nesta emboscada o IN tivesse sofrido 6 mortos. Entretanto, desta reacção do IN contra a penetração das NT num dos seus redutos, concluiu-se que aquele foi excepcionalmente bem comandado porque:

(i) escolheu um local que por ser muito fechado dificultava a manobra;

(ii) utilizou pessoal em cima de árvores para ter uma melhor visão e comandamento sobre as NT;

(iii) tinha a retirada preparada com armas colectivas (morteiro, canhão s/r) que só se revelaram na quebra de contacto;

(iv) fez fogo de barragem, especialmente de LRockets, sobre o Gr Comb que seguia na vanguarda, permitindo lançar-se ao assalto.

O que o relatório do comandante da Operação, o segundo comandante do BART 2917, não faz (nem podia fazê-lo!...) era dar a mão à palmatória...


Durante este mês [de Novembro de 1970] a CCAÇ 12 continuou empenhada na segurança aos trabalhos de construção da estrada Bambadinca-Xime [a cargo da empresa TECNIL].

De 1 a 10 [de Novembro de 1970], o 2º Gr Comb esteve de reforço a Missirá juntamente com o Pel Caç 54, patrulhando e montando emboscadas na região de Sancorlã/Salà e margem do RCuio/RGambiel, com a missão de interceptar uma coluna de reabastecimento IN que, segundo notícias que não se vieram a confirmar, seguiria de Madina/Belel para a área de Bafatá.

Realizou-se ainda uma coluna logística até ao Saltinho.

Abreviaturas:

Agr = AgrupamentoBART = Batalhão de Artilharia
CART = Companhia de Artilharia
CCAÇ = Companhia de Caçadores
CCS = Companhia de Comando e Serviços
FA = Força AéreaGr Comb = Grupo de Combate
IN = Inimigo
LRockets = RPG, lança-granadas-foguetes
Mil = Miliciano
Mort = Morteiro
NT = Nossas Tropas
Op = Operação
Pel Caç Nat = Pelotão de Caçadores Nativos
PCV = Posto de comando volante (em geral, de avioneta Dornier)
R = Rio
s/r = (canhão) sem recuo
Sold = Soldado

__________

Nota de L.G.:

(1) Vd. post anterior, de 26 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1317: Xime: uma descida aos infernos (1): erros de comando pagam-se caros (Luís Graça)

Guiné 63/74 - P1317: Xime: uma descida aos infernos (1): erros de comando pagam-se caros (Luís Graça)


Portugal > Caldas da Rainha > 1968 > O futuro furriel miliciano Guimarães, de minas e armadilhas, está a tocar viola, rodeado de camaradas que, como ele, estavam a fazer a recruta no RI 5 das Caldas da Rainha. "Lá ao fundo, à direita e em último plano, uma carinha pequenina, é o Cunha".... Viria a morrer em combate, na região do Xime, na Op Abencerragem Candente, em 26 de Novembro de 1970; pertencia à CART 2715, unidade de quadrícula do Xime)

Foto: © David J. Guimarães (2005). Direitos reservados.


1. Na minha outra encarnação, quando eu fui o furriel miliciano Henriques, e estive na Guiné, entre Maio de 1969 e Março de 1971, no final da minha comissão, ainda em Bambadinca, escrevi a história da minha companhia, que era a CCAÇ 2590, ou melhor CCAÇ 12, uma companhia de nharros, que fazia parte da nova força africana com que Spínola sonhava ganhar... tempo (que não a guerra).

Devo dizer que o meu nome foi sugerido pelo meu Capitão - Capitão de Infantaria, do QP, Carlos Alberto Machado de Brito -, tendo como base a minha experiência, na vida civil, como jornalista... Devo acrescentar que tive acesso a todos os arquivos classificados da companhia, o que só foi possível com a cumplicidade de vários camaradas meus, de um dos sargentos (o Piça, o famoso Piça, minha senhora, para a servir! -, como ele, impecável e delicadamente, fazia questão de repetir, quando alguém do sexo oposto não percebia o seu apelido de família, tipicamente alentejano, e voltava a perguntar Como ?)... Com a cumplicidade até do meu próprio comandante, bom homem, que, embora assustado com o resultado final do trabalho que me encomendara, fechou os olhos à minha ousadia e até me deu um louvor...

Hoje eu estou em condições de compreener a sua delicada posição: devia estar já com os seus 37 ou 38 anos, com 3 comissões no ultramar (se não me engano) e à beira de ser promovido a major (em Janeiro de 1971, lembra-me o Humberto Reis).

Trinta e tal anos depois, em 1994, fui encontrá-lo, em Fão, Esposende, na casa de um dos nossos antigos alferes - o Carlão - no posto de coronel e confessei-lhe, candidamente, que tinha tomado a liberdade de distribuir, na época, uns tantos exemplares, clandestinos, aos tugas da companhia... De facto, ainda em Bambadinca, foram tiradas a stencil (recordam-se desta primitiva técnica de reprografia?) umas escassas dezenas de exemplares da história não autorizada da CCAÇ 12, antes de embarcarmos para a metrópole, em rendição individual (os nossos soldados africanos, esses, continuaram a servir a CCAÇ 12, muitos deles até ao final da guerra, aquartelados no Xime, desde 1973).

Tenho para com estes últimos um sentimento de gratidão e de reconhecimento, mesmo sabendo, na época, que eles estavam do lado errado da guerra e da história. Alguns, desgraçadamente, pagaram com a vida ou a liberdade o terem apostado no cavalo errado.

2. Vou republicar hoje, 26 de Novembro de 2006, o relatório da Op Abencerragem Cadente (que raio de nome esotérico!), desdobrando um texto que, de certo modo, dá o pontapé de saída a este blogue (ou mellhor, ao Blogue-Fora-Nada, que antecedeu o blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné) (1)...

Fá-lo homenageando os nossos camaradas que tombaram na Ponta do Inglês: o furriel miliciano Cunha, o soldado Soares e os outros camaradas - cujs nomes não recordo - da CART 2715 (aquartelada no Xime) que morreram na Operação Abencerragem Candente, na madrugada de 26 de Novembro de 1970 (dias depois da invasão de Conacri, a 22, por uma força comandada por Alpoim Galvão e na qual participaram os meus vizinhos da 1ª Companhia de Comandos Africanos, estacionados em Fá Mandinga).

Quando publiquei esse texto - em 25 de Abril de 2005 -, eu tinha alguma dificuldade em me curvar perante a memória do Seco Camará, mandinga do Xime, embora reconhecesse que ele fora um valoroso e competente guia e picador das nossas tropas, durante anos e anos a fio.

Como muitos outros pobres diabos, o Seco fora também um mercenário, um colaboracionista, um torcionário, um homem para os trabalhos sujos da guerra: ele próprio me confessou um dia, com aquela autoridade e candura africanas de homem grande, que nos anos da política de terra queimada, da repressão brutal às populações do Xime que simpatizavam com (ou apoiavam) a guerrilha (Samba Silate, Poindon, Nhabijões...) , ele próprio era encarregue pelo capitão tuga do Xime (sic), para matar, à paulada (sic), em pleno mato, os elementos suspeitos, capturados...

Tenho dificuldade em fazer recuar esses tempos, mas é bem possível que sejam anteriores ao tempo do Governador e Comandante-Chefe, General Arnaldo Schultz (1965-1968),o mesmo é dizer, que devem ser do tempo dos seus antecessores: 1959 - 1962 António Augusto Peixoto Correia (1959-1962) e Vasco António Martínez Rodrigues (1962-1965).

No regresso ao quartel, o capitão, manga de bom pessoal (sic), pagava-lhe um sumol (sic)... O coitado do Seco Camarà, peça insignificante da máquina de guerra colonial, foi ao mesmo tempo um tenebroso carrasco e uma pobre vítima, como muitos outros guinéus, e nomeadamente os pertencentes aos grupos étnicos islamizados...

O Seco Camará morreu ingloriamente em 26 de Novembro de 1970, nesta operação que eu aqui evoco e em que participei. Recordo-o, ainda hoje, com o seu inseparável cachimbo e o seu ar de cão rafeiro... Nunca saberei se alguma vez se sentiu (ou poderia sentir) português. Sei apenas que foi um bravo soldado - ou melhor, auxiliar dos militares portugueses - e eu não posso julgá-lo, sumariamente, com base nos meus valores ou princípios éticos. É claro que também não vou absolvê-lo com base no relativismo cultural: o facto de ser mandinga, descendente de um povo de guerreiros e conquistadores, não lhe davam quaisquer direitos, e muito menos o direito de vida ou de morte...

3. Alguém, da população do Xime - que me desculpe o nosso amigo José Carlos Mussá Biai, que nessa altuta teria 7 anos! -, nos terá traído nessa noite fatídica. A nós e ao Seco Camarà. Ou se calhar nem foi preciso isso: 250 homens em armas são uma multidão ruidosa, a entrar e a sair de um quartel... No mato, na antiga estrada Xime-Ponta do Inglês, são uma cobra gigantesca, de quilómetro e meio...

De qualquer modo, onde quer que o Seco Camrá esteja, no céu ou no inferno dos mandingas, paz à sua alma!

4. Pertencente na altura ao 4º Grupo de Combate da CCAÇ 12 (não tinha uma posição fixa, era uma espécie de suplente, já que era um atirador de... armas pesadas de infantaria, numa companhia de intervenção que não tinha... armas pesadas), fui um dos que resgatei o corpo do furriel miliciano Cunha (que era de Braga, se não me engano). Gostava muito dele, éramos amigos. Tinha passado a noite de 25 para 26 na conversa com ele entre dois copos, no Xime, a fazer horas para a trágica saída na madrugada seguinte.

O segundo comandante do BART 2917 (não vale a pena citar o seu nome, já que ainda pertence ao número dos vivos) obrigara-nos a seguir o mesmo trilho da véspera: escassas horas depois, o Cunha estava morto mais quatro tugas e o guia e picador Seco Camará.

O Cunha, o pequeno e valoroso Cunha, ainda com o seu ar de criança tímida, era o único dos seis que não estava desfeito pelos rockets. Tinha apenas um fiozinho de sangue na testa: o primeiro tiro fora, seguramente, para ele que ia à frente da secção, juntamente com o Seco Camarà. A imagem que tenho dele, era que estava a dormir, exausto, no capim, quando cheguei à sua beira. Ainda lhe dei uma bofetada e sacudi-o energicamente:
- Acorda, meu sacana!

Como garante o Guimarães (da CART 2716, do Xitole), o Cunha que fez a recruta com ele e foi mobilizado para a Guiné no mesmo Batalhão (BART 2917), "deve estar no céu porque era um homem bom".

5. Nunca mais consegui esquecer essa maldita operação, em que até mesmo os meus soldados fulas, que eram bravos soldados, tiveram medo… Foi a maior emboscada que eu sofri, e também a mais mortífera que apanhámos na região do Xime. Mas não dei um tiro. Nunca dei um tiro, na Guiné, a não ser a um desgraçado de um jagudi (abutre) a que nem sequer felizmente acertei…

Recordo esta estória, em homenagem também aos que morreram e aos que sobreviveram, em Portugal, na Guiné e noutros teatros de guerra, aos homens e mulheres que contribuiram, de mil e uma maneiras, para que hoje nós possamos - pelo menos aqui - estar a falar de liberdade, a recordar a guerra e a fazer a paz connosco próprios, a praticar a liberdade com a mesma naturalidade com que respiramos...

6. Na elaboração da história da minha companhia (ex-CCAÇ 2590 e, depois, CCAÇ 12) que é também a história militar do Sector L1 / Zona Leste da Guiné entre meados de 1969 e o 1º trimestre de 1971, segui, em muitos casos, o teor dos relatórios de operações que eram feitos pelos alferes milicianos (com destaque para o Moreira) ou pelo capitão, passado pelo crivo da minha própria experiência como operacional ou do relato dos meus camaradas, furriéis milicianos...

Dentro dos constrangimentos do tempo e do lugar, procurei ser objectivo, recusando tanto quanto possível a tentação da hagiografia que era corrente na história de outras companhias independentes ou de companhias integradas em batalhões: "Fomos os melhores, chegámos, vimos e vencemos!"...

Nesta, como noutras operações, há passagens muito discutíveis como aquela em que se sugere que o IN sofrera baixas prováveis... Há aqui um branqueamento da situação, o que era frequente entre nós: depois da violentíssima emboscada de que fomos vítimas, ninguém estava em condições, físicas e psicológicas, de fazer o reconhecimento do local e, muito menos, de ir em perseguição dos guerrilheiros...

Seis mortos e nove feridos exigem, no mínimo, a afectação de dois grupos e combate (60 homens) para o seu transporte... Esta falsificação da realidade ou, no mínimo, o seu branqueamento era frequente entre oficiais milicianos e do quadro: enganavam-se uns aos outros, enganavam Bafatá (onde estava o comando da zona leste, o COP 7, se não me engano), enganavam Bissau (o quartel-general) e enganavam Lisboa (sede do Governo, não democrático, do país), que por sua vez enganava o Zé Portuga!...

Tudo isso acabava por ter consequências pesadas, para o pessoal no terreno, que era obrigado a executar operações mal planeadas e, por vezes, ainda pior executadas e comandadas...

De facto, não se pode ganhar uma guerra, escamoteando ou ignorando informação! Pessoalmente, eu já sabia isso, desde os meus quinze ou dezasseis anos...A verdade, trágica, terrível e humilhante, é que o IN destroçou ou neutralizou seis grupos de combate (2 agrupamentos), matou seis elementos das NT, feriu outros nove e ainda por cima levou-lhes as armas!... E só não levou os corpos porque houve ainda um resto de coragem física, de solidariedade e de determinação (outros chamam-lhe heroísmo).

No relatório da operação ninguém quis dizer o que era óbvio: os erros de planeamento da operação, as imprevidências, a imprepração da nossa tropa fandanga, a total incompetência e a arrogância militarista do major (periquito) que comandou a operação, lá de cima, arrogante, a partir do seu PCV... Que Deus lhe perdoe...Eu, que não sou Deus, não tenho o poder de perdoar; em contrapartida, não consigo esquecer - por muito que me esforce - essa descida aos infernos do Xime.

As duras palavras que lhe disse, a quente, à noite, no regresso da operação, na parada de Bambadinca, não as vou repetir aqui... Como as pedras que são lançadas contra alguém, essas palavras não têm regresso...mas só fazem sentido no contexto, de grande tensão, física e emocional, que era próprio daquela guerra...

Ainda hoje não consigo perceber por que é que fomos obrigados a fazer aquela operação - três dias depois da invasão de Conacri! - e sobretudo por é que cometemos tantos erros infantis... Na guerra, os erros de comando pagam-se carros...

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Notas de L.G.:

(1)Vd. post de 25 Abril 2005 > Guiné 69/71 - VII: Memórias do inferno do Xime (Novembro de 1970)

Guiné 63/74 - P1316: A participação dos paraquedistas na Operação Ametista Real: assalto à base de Cumbamori, Senegal (Victor Tavares, CCP 121)



O ex-1º Cabo paraquedista Victor Tavares (BCP 12, CCP 121, Guiné 1972/74).

Fotos: © Victor Tavares (2006). Direitos reservados.

Texto do Vitor Tavares (1), com data de 15 de Novembro de 2006:


Operação Ametista Real - Assalto à Base de Cumbamori no Senegal

A 17 de Maio de 1973, a Companhia de Caçadores Paraquedistas 121 recebe ordem para se integrar na operação acima referida, tendo-lhe sido atribuída a missão de garantir a segurança de um corredor entre Ujeque e Guidaje, através do qual se processaria a retirada dos Comandos Africanos

Nesse mesmo dia, da parte da tarde, embarcamos em Bissau, em LDG, com destino a Ganturé [, na margem direita do Rio Cacheu, a sul de Bigene], aonde desembarcamos no início da tarde do dia seguinte, partindo de seguida em marcha apeada em direcção a Bigene.

Chegamos aí pelo meio da tarde. Logo de seguida partimos para executar as primeiras acções de patrulhamento e emboscadas, até ao final da tarde do dia 19, sem que o IN se tivesse revelado.

Neste mesmo dia, provenientes de Bissau, chegam as 3 Companhias de Comandos Africanos e o Grupo de Marcelino da Mata (2).

Entretanto as 3 Companhias de Comandos Africanos formam também os agrupamentos seguintes:

-Agrupamento BOMBOX, do Tenente Comando Zacarias Saiegh, comandado pelo Cap Comando Matos Gomes;

-Agrupamento CENTAURO, do Tenente Comando Jamanca, comandado pelo Cap Comando Raul Folques;

-Agrupamento ROMEU, do Tenente Comando Quiseco, comandando Cap Paraquedista António Ramos.

Neste último estavam integrados também o grupo de operações especiais COE, com 25 elementos, comandados pelo Alfero Marcelino da Mata, assim como o Major Comando Almeida Bruno [, hoje general,] que era o comandante desta operação.

Os agrupamentos iniciaram o deslocamento apeado para a operação às 24 horas com intervalo mais ou menos de uma hora entre eles. Pelas quatro da manhã, inicia o seu deslocamento a CCP 121, com destino ao corredor que pretendia manter.

Entretanto ainda com os Paraquedistas dentro da área aonde pernoitámos, as forças do PAIGC atacaram o destacamento de Bigene com uma precisão incrível (não falhavam uma granada), obrigando-nos a sair em marcha acelerada desta zona.

É meu entendimento que foi um erro este ataque ter sido feito pelas forças do PAIGC, uma vez que as nossas tropas já se encontravam na zona, pelo menos o agrupamento que saiu em primeiro lugar deve ter referenciado o local de onde a flagelação estava a ser feita. O dia clareava e a tensão aumentava. Os homens dos agrupamentos estavam já dentro do Senegal, ouvíamos de vez enquanto o roncar de viaturas não muito longe, e o tempo passava sem que se ouvissem tiros ou explosões.

A informação que tínhamos era que esta base de Cumbamori servia de base de apoio aos guerrilheiros que sitiavam Guidaje e que atacavam as colunas que tentavam reabastecer o mesmo, tendo aí concentrados grande quantidades de efectivos das suas melhores forças, assim como de armamento.

Era aqui nesta base que se encontrariam os comandantes deste sector, Chico Té e Manecas, dois dos melhores e mais temidos, a par de Nino Vieira, comandantes do PAIGC.

Pouco passava das 8 horas quando se começam a ouvir o barulho de dois aviões bombardeiros FIAT G-91, acabando estes por bombardear o objectivo, atingindo alguns paóis e provocando varias explosões. Inicia-se então, a partir desta altura, o assalto pelas nossas forças dos Comandos Africanos do agrupamento BOMBOX, e depois pelos restantes agrupamentos.

Estes, pouco depois dos primeiros rebentamentos, entraram ao assalto tendo pouco tempo passado entrado em combate directo com as forças IN que se prolongaram até cerca das 16 horas .

Os comandos, durante os contactos que tiveram e conforme iam avançando, iam destruindo arrecadações de material de guerra de toda a espécie, debaixo de fogo intenso e quase ininterrupto. Foi uma luta encarniçada.

Não quero deixar de referir que, enquanto nos encontravamos emboscados próximos de uma picada, passaram várias viaturas blindadas tipo Panhards.

Por volta das 18 horas regressámos ao destacamento de Bigene, onde nem chegamos a parar, seguindo para Ganturé.
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Notas de L.G.:

(1) Vd. posts anteriores do Victor Tavares:

25 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1212: Guidaje, de má memória para os paraquedistas (Victor Tavares, CCP 121) (1): A morte do Lourenço, do Victoriano e do Peixoto

9 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1260: Guidaje, de má memória para os paraquedistas (Victor Tavares, CCP 121) (2): o dia mais triste da minha vida


(2) Vd. post de 16 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CLXXV: Antologia (16): Op Ametista Real (Senegal, 1973) (João Almeida Bruno)