segunda-feira, 16 de setembro de 2019

Guiné 61/74 - P20151: Controvérsias (139): o atentado terrorista de 1/11/1965, em Farim e a versão da PIDE sobre o "dinheiro sujo"... os alegados 14 contos a pagar pelo crime eram, na época, uma pequena fortuna, era quanto o Júlio Pereira, gerente da sucursal da Ultramarina, pagaria a um camponês de Farim por 14 toneladas de mancarra (!)



Não chegaram a ser pagas as 140 notas de 100 pesos que alegadamente o Júlio [Lopes] Pereira, gerente da sucursal da casa Ultramarina, terá prometido ao renegado milícia Issufo Mané para cometer o hediondo crime de 1 de novembro de 1965... E se tudo não passou de uma falsa confissão, arrancada pela PIDE sob tortura ?  14 contos, na época, na Guiné, era uma pequena fortuna, o equivalente á produção de mancarra... num campo de 23 hectares, 46 campos de futebol...

Infogravura: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2019)






Citação:

(1965), Sem Título, CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_35160 (2019-9-12)
Casa Comum
Instituição: Fundação Mário Soares
Assunto: Dificuldades na fronteira Norte (Senegal) apresentadas pelo Responsável Lourenço Gomes.
Remetente: Lourenço Gomes
Destinatário: Luís Cabral
Data: Quarta, 3 de Março de 1965
Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Relatórios IV 1963-1965.
Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral
Tipo Documental: Correspondencia

(Reproduzido com a devida vénia...)


1. Voltamos a publicar esta carta, datilografada, a duas páginas,  com data de 3 de março de 1965, dirigida por Lourenço Gomes, representante do PAIGC, em Samine, Casamansa, Senegal, ao Luís Cabral, da Direção do Partido, em Conacri (*)... 

Através dela, podemos ficar com uma ideia, bastante clara, das grandes dificuldades, nomeadamente financeiras,  por que passavam os responsáveis e os militantes do PAIGC a viver no Senegal... 

Lourenço Gomes é o responsável de "toda a fronteira norte", dede 1964, está sozinho, cansado, esgotado, sem meios para resolver todos os problemas que lhe surgem: não tem dinheiro para pagar os "fiados" na farmácia local, não tem medicamentos nem material médico-cirúrgico para socorrer os feridos que vêm da frente Norte, não tem dinheiro para meter gasolina no carro e levar 10 camaradas até Dacar, de acordo com instruções recebidas superiormente.... 

Lourenço Gomes admite mesmo a hipótese de, inclusive, pedir a substituição no cargo por  se sentir impotente para continuar a desempenhar a sua missão, que, no fundo, é a do "bombeiro" que é chamado para apagar todos os fogos... Compara a sua situação, desesperante, com a da fronteira sul, onde há pelo menos 3 responsáveis de zona: em Koundara, em Gaoual, em Boké...

Enfim, a carta é mais um dos seus  "desabafos",  dirigido à pessoa do Luís Cabral, mas ao mesmo tempo é uma crítica velada ao Aristides Pereira e à sua incapacidade para compreender e minimizar as dificuldades por que ele, Lourenço Gomes, estava a passar. O dinheiro, desde dezembro de 1964, chegava tarde e a conta gotas à delegação do PAIGC em Samine...

Face ao teor desta carta,  o mínimo que se pode dizer é que o PAIGC, na época, no 1º trimestre de 1965, dois anos após o início  da  "luta armada", tinha grandes "dificuldades de tesouraria" (, para além de graves problemas de logística na área da assistência médico-hospitalar)... 

Diríamos mesmo, em linguagem de caserna, que não tinha dinheiro para cantar um cego (ou, por outras palavras, e com mais propriedade, para mandar cantar um "didjiu").

2. Pode por isso pôr-se em causa alguns detalhes (importantes) da versão que a PIDE de Farim mandou para Lisboa, através de mensagem rádio (e de que existe cópia no Arquivo Oliveira Salazar, 1908-1974 - Arquivo Nacional Torre do Tombo) (**), a propósito do "atentado terrorista" de 1 de novembro de 1965:

(...) "No dia 1 de Novembro de 1965, cerca das 20 horas, [foi] lançado um engenho explosivo para o meio dos africanos que se encontravam num batuque em Farim. A explosão teria provocado 63 mortos e feridos, na sua maioria mulheres e crianças.

"Foi detida meia centena de pessoas. Confissões obtidas levaram à detenção de um tal Issufo Mané, que declarou pretender atingir militares (?). Para o fazer, teria recebido 14 contos de Júlio Lopes Pereira, o qual, por seu lado, actuara por indicação do chefe da Alfândega de Farim, Nelson Lima Miranda. E este teria vindo a declarar que a bomba fora lançada a mando da direcção do PAIGC (AOS/CO/UL- 50-A, Informações da PIDE, 1965-1966, 86 subdivisões, pasta 2, fls. 636, 637, 638, 641 e 642)."
[Citado por Dalila Cabrita Mateus] (**)


A versão que consta da história do BART 733,(***)  é ligeiramente diferente no que toca, nomeadamente, à proveniência do "dinheiro sujo":

(...)" O engenho foi fabricado com o fim de ser lançado num batuque ou ajuntamento festivo por um nativo que prestava serviço na Companhia de Milícias [nº 5] [, o soldado Issufe Mané], e que se prontificou a fazer tal trabalho a troco de 14.000$00.

"Foram apreendidos pela PIDE 18500$00, destinados ao PAIGC, donde sairiam os 14000$00 para o autor do lançamento que não [os] chegou a receber porque após o incidente [sic] foram as prisões dos indivíduos suspeitos." (...)


2. Quatorze contos é  equivalente hoje, de acordc com o conversor da Pordata,  a 5.485,20 € (ou tratando-se de escudos da Guiné, 4936,68 €, dada a diferença cambial real de 10%, na época,  entre o escudo da metrópole e o "peso" local)...

Donde terão vindo, então, os tais 14 contos (!) que alegadamente o Júlio Pereira teria recebido, diretamente de Conacri, para subornar o soldado milícia da Companhia de Milícia nº 5, o Issufe Mané ? Dos cofres do PAIGC ou, eventualmente, de coleta feita entre os militantes e simpatizantes do PAIGC de Farim ou até do próprio bolso do "autor moral do atentado" ?...


Em qualquer dos casos, temos de reconhecer que 14 contos era, na época (1965), uma pequena fortuna...Será que o agente da PIDE de Farim tinha a noção do ridículo ? Será que o homem conhecia a realidade da economia local, os preços do mercado, e todas essas coisas elementares que qualquer "agente das secretas" tem a obrigação de conhecer ?

Em 1965, 14 contos era quanto o Júlio Pereira, gerente da sucursal da Sociedade Comercial Ultramarina, do BNU, pagaria a um camponês de Farim por 14 toneladas (!) de mancarra, ou sejam, 14 mil quilos, 140 sacos de 100 quilos, a 1 escudo, 1 peso, por quilo! (***)

Em 1965, a Guiné exportou 15,2 mil toneladas de mancarra, a 4,23 contos por tonelada (contra 40,0 mil em 1961, a 3,17 contos por tonelada)... o que dá uma ideia da margem de lucro dos intermediários (comerciantes locais, casas comerciais, exportadores), a par do dramático decréscimo da produção e da produtividade na primeira metade da década de 1960, na sequência do início e agravamento da guerra...

Em meados da década de 1960, a área cultivada pelos produtores de mancarra atingia os 100 mil hectares, ou seja, um 1/4 do total da área cultivada da província, comprometendo a segurança alimentar da população!... A produtividade, em contrapartida,  era muito baixa: 600 kg / ha (2 mil kg /ha em casos excecionais)(****) 


O camponês de Farim para ganhar 14 contos, de rendimento bruto, precisava de cultivar mais de 23 hectares de mancarra!... O milícia Issufe Mané, se tivesse chegado a receber os "trinta dinheiros" da sua safadeza, ou sejam, os 14 contos, teria ficado rico!... 

14 contos era o valor que um soldado meu, da CCAÇ 12, recebia,  em dois anos de guerra, entre meados de 1969 e meados de 1971, no meu tempo: um soldado de 2ª classe, do recrutamento local, ganhava, de pré, 600 escudos (pesos), por mês... 

Independentemente do apuramento da verdade sobre os factos ocorridos nesse trágico dia 1 de novembro de 1965, e sobre a autoria moral, política e material do atentado, a "narrativa" da PIDE e do comando do BART 733 continua a merecer-nos todas as reservas (*****)... 

Oxalá, Inshallah, Enxalé!... que apareçam outros testemunhos, credíveis, sobre o que o se passou nesses dias de terror e contraterror em Farim,  bem como sobre o antes e o depois...Sabemos que houve mais prisões na Região nesse mês de novembro de 1965, não só em Farim, como em Bigene e Cuntima (aqui, o comerciante César de Ramos Fonseca, por exemplo, foi detido e entregue, em Farim, pela CART 732) ... Estes acontecimentos (, incluindo as prisões em massa,) marcaram indelevelmente a história da vila de Farim e das suas gentes...  (LG)

PS - Pela exploração do Arquivo Amílcar Cabral (ou do que resta dele), disponível "on line", no portal Casa Comum, desenvolvido em bora hora pela Fundação Mário Soares, não há "indícios" que apontem para a filiação, como militante do PAIGC, do Júlio Lopes Pereira, genro de um dos maiores "colonos" da Guiné, o Benjamim Correia... Nem do Nelson Lima Miranda, antigo utente da Casa dos Estudantes do Império...  Eles pertenciam à "pequena burguesia" do território da Guiné, na sua maioria com aspirações e simpatias "nacionalistas", ligados ao comércio e às principais casas comerciais... donde, de resto, vieram alguns dos dirigentes, mais políticos do que operacionais, do PAIGC: Luís Cabral, Aristides Pereira, Elisée Turpin... Muitos destes homens (e mulheres) não eram militantes do PAIGC, eram considerados "reviralistas e comunizantes"...
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Notas do editor:

(*) Vd. poste 
de 23 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19224: (D)o outro lado do combate (38): Carta de Lourenço Gomes, datada de Samine, 3 de março de 1965, dirigida a Luís Cabral, expondo a dramática situação da farmácia do PAIGC (Jorge Araújo)

Vd. também poste de 25 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19232: PAIGC - Quem foi quem (11): Lourenço Gomes, era uma espécie de "bombeiro" para situações difíceis ... A seguir à independência era um homem temido, ligado ao aparelho de segurança do Estado (Cherno Baldé, Bissau)

(**) Vd. poste de 18 de agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2060: Bibliografia de uma guerra (14): o testemunho de Pedro Pinto Pereira. "Memórias do Colonialismo e da Guerra", de Dalila Cabrita Mateus (Virgínio Briote)

(***) Vd. poste de 10 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20140: Controvérsias (135): as duas noites de terror, em Farim, as de 1 e 2 de novembro de 1965, para as vítímas (mais de uma centena) do atentado terrorista, e para os indivíduos (mais de sessenta, o grosso da elite económica local) detidos e interrogados pela tropa pela PIDE, por "suspeita de cumplicidade"...

(****) 31 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15309: Historiografia da presença portuguesa em África (64): Cem pesos era "manga de patacão" para o camponês guineense, produtor de mancarra... Era por quanto venderia um saco de 100 kg ao comerciante intermediário... Em finais de 1965 o governo de Lisboa garante a compra pela metrópole da totalidade da produção exportável da mancarra guineense e fixa o preço por quilo em 3$60 FOB (Free On Board)

(*****) Último poste da série > 15 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20149: Controvérsias (138): Ainda o atentado terrorista de 1 de Novembro 1965, em Morcunda ou Morocunda, Farim: "pessoal bandido não gostava de fulas e mandingas", era o que se ouvia dizer na época... Vi a "cara amassada" do Júiio Pereira... Infelizmente queimaram-me, em Bissau, o rolo de fotografias que tirei, onde estavam os suspeitos, detidos num campo vedado a arame farpado (António Bastos, testemunha dos acontecimentos)

Guiné 61/74 - P20150: Notas de leitura (1218): “O Massacre Português de Wiriamu, Moçambique, 1972", por Mustafah Dhada; Tinta-da-China, 2016 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Janeiro de 2017:

Queridos amigos,
Quem pretenda conhecer os rumos da historiografia atual, os modos de investigar e comunicar ao grande público algo que permanece enevoado e numa teia de contradições, este livro é de leitura obrigatória. Nenhum de nós desconhece o que se passou na manhã de 16 de Dezembro de 1972, num pequeno local do Tete, tem vindo a ser referido em artigos, reportagens, filmes e romances. A 6.ª Companhia de Comandos recebeu ordens de "limpar" aquele local, e o morticínio atingiu quatro povoações vizinhas ao longo do rio Zambeze, onde o território de Moçambique se estende para o Zimbabué, a Zâmbia e o Malawi. O historiador pega nos dados conhecidos e desconhecidos e desce ao local, conversa com os sobreviventes de diferente ordem: as vítimas, os missionários, os dirigentes políticos nacionalistas, os militares portugueses. O resultado é um documento prodigioso, que pode ser exemplo para outras vias da historiografia do período colonial. De leitura compulsiva, este massacre há de permanecer como um problema de consciência a aguardar apaziguamento, com a explicação e pedido de perdão.

Um abraço do
Mário


O massacre português de Wiriamu: uma extraordinária investigação

Beja Santos

Mustafah Dhada é um historiador moçambicano doutorado em Oxford e professor na Universidade da Califórnia. A historiografia da Guiné deve-lhe um importantíssimo trabalho, infelizmente nunca traduzido em língua portuguesa, Warriores at Work: How Guinea was really set free (Niwot: University of Colorado Press, 1993).

“O Massacre Português de Wiriamu, Moçambique, 1972", por Mustafah Dhada, Tinta-da-China, 2016, é uma peça da melhor filigrana dos métodos historiográficos atuais: mostrar o que é dado como consabido, pôr a nu omissões e contradições, gerar envolvimento levando os protagonistas ao local dos acontecimentos, contextualizar o que motivou o massacre e quais as suas consequências, do particular ao geral.

Na manhã de 16 de Dezembro de 1972, tropas coloniais portuguesas reuniram os habitantes da pequena aldeia de Wiriamu, perto de Tete, em Moçambique, na Praça Central e ordenaram-lhes que batessem adeus e que cantassem para se despedirem da vida. Em seguida, militares da 6.ª Companhia de Comandos abriram fogo e lançaram granadas. Incitados pelo brado “matem-nos todos”, os militares levaram a mortandade a quatro povoações vizinhas ao longo do rio Zambeze, onde o território de Moçambique se estende para o Zimbabué (Rodésia, à data dos acontecimentos), a Zâmbia e o Malawi – uma região designada pelos missionários católicos como ‘a terra esquecida por Deus’. No final do dia, perto de 400 aldeões tinha sido mortos e os seus corpos eram lentamente consumidos pelas chamas em piras funerárias pelos soldados com o capim que cobria as palhotas. Peter Pringle, um jornalista inglês que procurou apurar a verdade ao tempo, e que foi expulso pelas autoridades coloniais, descreve estes factos no prefácio da obra.

Quem conseguiu escapar relatou os acontecimentos aos missionários locais, a informação chegou a Espanha e ao Reino Unido. Sensivelmente meio ano mais tarde, a 10 de Julho de 1973, em vésperas da visita de Marcelo Caetano a Londres, o jornal inglês The London Times denunciava na primeira página o massacre. As autoridades portuguesas repudiaram a notícia, chegando mesmo a negar a própria existência do lugar. Seria por via deste artigo que Mustafah Dhada, então um jovem moçambicano em Londres, teria contacto com os acontecimentos que marcariam a sua vida académica. Ao longo da sua carreira de investigador, Dhada foi publicando diversos artigos sobre esta matéria, obteve depois uma bolsa que lhe permitiu trabalho no terreno, e foi assim que ele consolidou uma investigação de décadas.

A grande surpresa, observa Peter Pringle, é que cerca de 40 anos depois do massacre, muita bruma e desconhecimento continuada a rodear a verdade daquilo que se passou, di-lo claramente: “Ao longo dos anos – em artigos, livros, revistas académicas, dois romances e um documentário, diversos autores procuraram reconstituir o que de facto aconteceu. Todavia, não tem sido fácil recompor a história de Wiriamu. Os relatos são escassos. Documentos oficiais importantes perderam-se, foram deliberadamente destruídos ou nunca existiram. Os arquivos do movimento de libertação, a FRELIMO, são incompletos. O contacto com testemunhas foi e continua a ser problemático".

O que torna este documento uma obra ímpar, de leitura obrigatória, é a metodologia e o primor da escrita, com um pendor para a reportagem (que a tem) e uma análise rigorosa no trabalho do terreno, tudo estruturado como deve ser: quem era quem na luta nacionalista e como se processava a guerra, o leitor não iniciado ficará a aperceber-se de que a história da FRELIMO incluiu rancores, assassinatos e turbulência ideológica interna; apercebemo-nos da crescente importância de Tete na evolução da guerra e como a ameaça era pressentida pelas autoridades coloniais e militares, ali se viveu, como em muitos outros confrontos, o papel dramático das autoridades locais metidas entre dois focos, como escreve Dhada: “Wiriamu e o seu régulo estavam condicionados pelos imperativos da sobrevivência e da defesa do interesse colectivo. Não lhes restava outra alternativa senão permitir o acesso da FRELIMO aos seus desfiladeiros para transporte de armas, e autorizá-las a recrutar homens na região do triângulo para ingressarem nas suas fileiras”; é relevado o papel da igreja de Tete, também ela obrigada a respeitar a autoridade portuguesa e a dar cuidados aos seus fiéis, Dhada ilustra atos de violência anteriores e outros que se seguiram a Wiriamu e qual o comportamentos dos missionários; Dhada devolve humanidade a Wiriamu, conta a sua história, mas antes, mostra-nos o que logo constou da informação e se tornou público sobre o massacre e como aos poucos as próprias autoridades portuguesas tiveram que explicar que tinha havido excessos, mas nunca dizendo quais, na Operação Marosca; são páginas muito belas as que Dhada escreve sobre o triângulo de Wiriamu, será porventura a voz do sangue que o leva a narrativa tão primorosa que mete riachos, rios e charcos e mesmo feitiçaria, como era a vida a aldeia, como este microcosmo funcionou até que tudo se extinguiu em cinzas; temos depois a anatomia do massacre, a chegada dos Comandos comandados por Antonino Melo, é um texto horripilante onde até um sentimento de compaixão comparece:  
“Em Wiriamu, as execuções correram de forma expedita. Enquanto alguns militares incendiavam palhotas cheias de pessoas, Antonino Melo encaminhava, pessoalmente, outros habitantes para a palhota dos Tenente Valete, uma das maiores da povoação. Foi uma tarefa fácil, pois muita gente já se encontrava ali devido às festividades. Em determinado momento, Antonino Melo sentiu um puxão na perna. Baixou a cabeça e os seus olhos cruzaram-se com os dela. Uma menina com menos de dez anos agarrava-se a ele com força e recusava-se a avançar. Não conseguiu libertar-se. Melo ordenou, então, aos seus homens, que retirassem a mãe da criança do interior da palhota e disse a ambas para fugir dali. 23 anos mais tarde, ao ser informada que Antonino Melo seria entrevistado no âmbito do projecto, a menina, então uma mulher adulta, pediu que lhe fosse transmitido o seu agradecimento por lhe ter salvado a vida”.

A conclusão da obra é um monumento de síntese, por ali desfilam a lógica colonial, os constrangimentos da Igreja e os seus conflitos com o poder político e militar, a importância daquele local, o branqueamento que se pretendeu depois do massacre, o que era a vida e a identidade daquelas gentes de Wiriamu. Do lado português, permanece o silêncio. E assim termina o documento histórico: “A única resposta que oiço é o som ensurdecedor de um silêncio que me gela o sangue. De facto, diante de massacres como este, quem precisa de uma consciência?”.

É um livro magnífico, e até me apetece perdoar a Mustafah Dhada o incompreensível dislate de dizer que Amílcar Lopes Cabral era um engenheiro agrónomo natural de Cabo Verde.

Mustafah Dhada
Foto: Jornal Público, com a devida vénia

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Nota do editor

Último poste da série de 13 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20145: Notas de leitura (1217): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (23) (Mário Beja Santos)

domingo, 15 de setembro de 2019

Guiné 61/74 - P20149: Controvérsias (138): Ainda o atentado terrorista de 1 de Novembro 1965, em Morcunda ou Morocunda, Farim: "pessoal bandido não gostava de fulas e mandingas", era o que se ouvia dizer na época... Vi a "cara amassada" do Júlio Pereira... Infelizmente queimaram-me, em Bissau, o rolo de fotografias que tirei, onde estavam os suspeitos, detidos num campo vedado a arame farpado (António Bastos, testemunha dos acontecimentos)


Guiné- Bissau > Região de Oio > Farim > Março de 2008 > Cádi ou Cati, uma sobrevivente dos trágicos acontecimentos de 1 de novembro de 1965. O António Paulo Bastos conheceu-a,  na Missão Católica, na altura da sua 3ª viagem à Guiné-Bissau.

Foto (e legenda): © António Paulo Bastos (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Mensagem do nosso camarada António [Paulo] Bastos (ex-1.º cabo, nº 371/64, do Pel Caç Ind 953, Cacheu, Bissau, Farim, Canjambari e Jumbembem, 1964/66; esteve adido ao BCAV 790 e ao BART 733):

Data: sábado, 14/09/2019 à(s) 12:04
Assunto: 1 de Novembro 1965.

Bom dia, Luís e camaradas da Tabanca Grande:

Luís, mais uma vez vou falar sobre esse dia pois eu estava em Farim  [, nesse fatídico dia 1 de novembro de 1965, pelas 21:30, estava eu de passagem por Farim esperando transporte para Canjambari], quando se deu o rebentamento... Não estava na Morcunda [ou Morocunda] mas estava à porta da caserna do Pelotão de Morteiros, claro peguei logo na arma e esperei o pior (um ataque de  morteiros do Oio).(*)

Logo no outro dia,  fui a Morcunda ver onde rebentou a granada, ainda se via sangue e muitas coisas pessoais pelo chão.

Também ouvia os familíares [das vítima] dizerem que "pessoal bandido não gostava de Fulas e Mandingas".

Também em 2008, quando estive novamente em Farim, ao falar com o Gibril Candé e com a Kati, onde lhe tirei as fotos, foram unânime em dizer que foi o Júlio [Pereira] da Ultramarina [, o responsável pelo atentado]. (**)

Também fui à1ª Companhia [, a CART 730, que estava em Nema, Farim], a   ver os presos que já lá estavam onde vi o Júlio [Pereira] com a cara toda amassada e outros mais.

Tenho pena de,  em Bissau,   me terem queimado as fotos que eu tirei onde estavam os presos no campo vedado a arame [farpado]

Também li há dias o que o jornal 'O Democrata' dizia e não estou de acordo que tivesse sido a PIDE (***), que mandou lançar a granada, se bem que eles muito competentes de fazer isso e muito mais. 


Um abraço

A. Paulo do Pelotão Caçadores 953. (***)
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Notas do editor:

(*) Vd. postes de:


1 de novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7205: Efemérides (54): O fatídico dia 1 de Novembro de 1965 (António Bastos)

(**) Último poste da série > 12 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20144: Controvérsias (137): Craveiro Lopes em Bolama, em visita de Estado... Era presidente da câmara municipal o Júlio [Lopes] Pereira, que passa, em dez anos, de cidadão respeitável a proscrito social... (Recorte de imprensa: "Diário Popular", Lisboa, 6 de maio de 1955)

Vd. também postes anteriores:

11 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20142: Controvérsias (136): Não consta que o Amílcar Cabral, o "pai da Pátria", tenha reivindicado a autoria (moral e política) do "atentado terrorista" de 1 de novembro de 1965, em Morocunda, Farim, e muito menos denunciado ou condenado esse ato monstruoso... Pelo contrário, até lhe convinha, para memória futura, que as criancinhas de Farim continuassem a repetir, em coro, estes anos todos, na escola, que esse ato foi obra maquiavélica e tenebrosa dos "colonialistas portugueses"...

10 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20140: Controvérsias (135): as duas noites de terror, em Farim, as de 1 e 2 de novembro de 1965, para as vítímas (mais de uma centena) do atentado terrorista, e para os indivíduos (mais de sessenta, o grosso da elite económica local) detidos e interrogados pela tropa pela PIDE, por "suspeita de cumplicidade"...

9 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20135: Controvérsias (134): os trágicos acontecimentos de Morocunda, Farim, em 1 de novembro de 1965: a memória das vítimas e o risco de falsificação da história... Excertos de reportagem do jornal "O Democrata", Bissau, 13/11/2014

7 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20130: Controvérsias (133): Os trágicos acontecimentos de Morocunda, Farim, de 1 de novembro de 1965, um brutal ato de terrorismo, cuja responsabilidade material e moral nunca foi apurada por entidade independente: causou sobretudo vítímas civis, que estavam num batuque: 27 mortos e 70 feridos graves
(***) Vd. poste de 18 de agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2060: Bibliografia de uma guerra (14) : o testemunho de Pedro Pinto Pereira. "Memórias do Colonialismo e da Guerra", de Dalila Cabrita Mateus (Virgínio Briote)

(...) Que assistira ao fabrico de uma bomba. Quando eles (PIDE) é que tinham deitado uma bomba em Farim, onde mataram muita gente,

(...) (quem lançou a bomba?) Foi a PIDE que mandou, tenho a certeza disso. Lançou a bomba para depois dizer que nós até matávamos africanos. Ali não havia quartéis, só havia casas comerciais, onde era fácil lançar bombas e fugir. Porque é que não lançavam as bombas nos quiosques, frequentados pelos militares portugueses? E iam deitar onde só estava a população? Queriam arranjar pretexto para fazer prisões. Havia, então, uma festa numa tabanca e morreram mais de cem pessoas. Isto passou-se no dia 1 de Novembro de 1965. (...)

(...) Nota da historiadora Dalila Cabrita Mateus: 


Confirmado o incidente, a PIDE, em mensagem por rádio existente nos arquivos de Salazar [, Arquivo Oliveira Salazar, 1908-1974, Torre do Tombo],  afirma que, no dia 1 de Novembro de 1965, cerca das 20 horas, fora lançado um engenho explosivo para o meio dos africanos que se encontravam num batuque em Farim. A explosão teria provocado 63 mortos e feridos, na sua maioria mulheres e crianças.

Foi detida meia centena de pessoas. Confissões obtidas levaram à detenção de um tal Issufo Mané, que declarou pretender atingir militares (?). Para o fazer, teria recebido 14 contos de Júlio Lopes Pereira, o qual, por seu lado, actuara por indicação do chefe da Alfândega de Farim, Nelson Lima Miranda. E este teria vindo a declarar que a bomba fora lançada a mando da direcção do PAIGC.

(AOS/CO/UL- 50-A, Informações da PIDE, 1965-1966, 86 subdivisões, pasta 2, fls. 636, 637, 638, 641 e 642).

Guiné 61/74 - P20148: Parabéns a você (1683): Manuel José Ribeiro Agostinho, ex-Soldado Radiotelegrafista - CCS/QG/CTIG (Guiné, 1968/70)

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Nota do editor

Último poste da série de 11 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20141: Parabéns a você (1682): Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796 (Guiné, 1970/72) e José Parente Dacosta, ex-1.º Cabo Op Cripto da CCAÇ 1477 (Guiné, 1965/67)

sábado, 14 de setembro de 2019

Guiné 61/74 - P20147: Os nossos seres, saberes e lazeres (354): Casa da Cerca: a mais bela vista de Lisboa, na outra margem do Tejo (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Março de 2019:

Queridos amigos,
A Casa da Cerca é um centro de arte, é um espaço permanente de exposições, tem um primoroso jardim botânico e um desfrute de panorâmicas sem concorrência. Pela imagem, aqui se tenta mostrar o que a vista alcança, um gigantesco ecrã apontado para uma Lisboa esbranquiçada e pujante de património construído. Mas se o visitante quiser contrastar tem um Almada Velho para visitar, reconstruções não faltam, há um velho forte que agora serve de restaurante. E pode descer placidamente pelo lado de Cacilhas e entrar naquele mundo que se chamou a Lisnave, sempre a beijar o Tejo e Lisboa na linha de água, por todo o estuário, não há passeio nem contemplação de Lisboa como estes.

Um abraço do
Mário


Casa da Cerca: a mais bela vista de Lisboa, na outra margem do Tejo (2)

Beja Santos

Todo o espaço da Casa da Cerca serve para expor, incluindo o Salão Nobre, a Capela, os jardins. O viandante veio atraído por um evento especial relacionado com os 25 anos desta casa do desenho, o regresso de Amadeo Souza-Cardoso. Mas era inevitável bisbilhotar por outros sítios, foi à exposição dedicada a 140 anos de ilustração. Quem aqui vier pode deparar-se com mostras do acervo, e que acervo! Artistas de primeiríssimo plano como Alberto Carneiro, Graça Pereira Coutinho, João Vieira, Joaquim Rodrigo, Júlio Pomar, Júlio Resende, Paula Rego, Pedro Chorão, Sá Nogueira ou Sofia Areal podem ser vistos, fazem parte da cerca de três centenas de obras de arte, é este o significativo conjunto de desenhos, mas onde também se integram obras de pintura, escultura, fotografia e gravura. A Casa da Cerca é também o seu jardim botânico e queríamos agora fruir com o leitor a Lisboa que daqui se avista e passear pelo Chão das Artes.







O Jardim Botânico – o Chão das Artes – apareceu em junho de 2001 conjuntamente com uma exposição de estalo, a Natureza Mestra das Artes, de que resultou um catálogo importante e belo, uma das publicações ícone desta casa do desenho. Aqui se mostram plantas como material vivo, e o serviço educativo tem aqui o melhor barro para moldar, mostrando às gentes de todas as idades os componentes vegetais que são a matéria-prima com que se fabricam os materiais utilizados na prática artística.



Já houve um dragoeiro com cerca de duzentos anos, aqui faleceu. Em 2011, foi plantado um novo dragoeiro, evocando-se o anterior. O Chão das Artes possui uma coleção de mais de uma centena de espécies que vão sendo mantidas e valorizadas. Este espantoso jardim botânico tem estufa, tem o jardim dos pigmentos, o pomar das gomas, o jardim dos pintores, o jardim das fibras e a mata. É uma estrutura que permite albergar algumas plantas na estufa que não podem estar no exterior, mostrar plantas de onde se extraem pigmentos ou corantes que se utilizam para fazer tintas, ali estão as plantas que dão goma com caraterísticas semelhantes à goma-arábica, há as plantas cujas sementes são produtoras de óleos utilizados na pintura a óleo, e temos também a área destinada às plantas produtoras de fibras. A mata aqui significa a zona onde se encontram árvores e arbustos de grande porte de onde se extraem madeiras para fazer suportes das pinturas ou escultura e resinas para fazer vernizes.



Que dizer mais? Olhe, meta-se ao caminho, o viandante gosta de tomar o cacilheiro, percorrer o velho Ginjal, ao fundo toma um elevador e sobe para o Almada Velho. Aqui começa a aventura, vista fora de Lisboa para Lisboa como esta não há outra, e há a casa do desenho, uma sempre surpresa de arte contemporânea. Ninguém sai daqui defraudado, afianço eu.
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Nota do editor

Último poste da série de 7 de setembro de 2019> Guiné 61/74 - P20128: Os nossos seres, saberes e lazeres (353): Casa da Cerca: a mais bela vista de Lisboa, na outra margem do Tejo (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P20146: Memória dos lugares (394): Farim, uma cidade cristalizada no tempo (Joana Benzinho, fundadora e presidente da ONGD "Afectos com Letras")

1. Com a devida autorização da autora, e devida vénia ao editor:

Joana Benzinho > 16 de abril de 2018 > Bird Magazine > Farim:  já ouviram falar?

[Joana Benzinho: 

(i) Natural de Pombal, é licenciada em Direito pela Universidade de Coimbra, Diplomada em Direito Europeu pelo Institut d'Études Européens - Université Libre de Bruxelles e Diploma da Academia Diplomática Europa e pelo Institut Européen des Relations Internationales; 

(ii) é assessora Parlamentar no Parlamento Europeu desde 1999; 

(iii) é fundadora e presidente da ONGD Afectos com Letras, criada em 2009; 

(iv) professora de informática de emigrantes portugueses na Bélgica em regime de voluntariado desde 2004; 

(v) escritora (coautora de "A Papaia Mágica", 2011), tem página no Facebook, é uma grande amiga da Guiné-Bissau e das suas gentes]

 

De Bissau até Farim são cerca de 115 Km, divididos entre uma estrada razoável até Mansoa e uma estrada óptima daqui até Farim. Na verdade os últimos 45 km são percorridos numa estrada bem asfaltada, com marcações ao longo de todo o percurso, com bermas e até passadeiras, o que torna a viagem muito agradável e com tempo para apreciar a bonita paisagem envolvente.

Depois de passar uma povoação com o estranho nome de K3 (resquícios da presença militar do tempo colonial),  a estrada termina abruptamente na margem do Rio Cacheu. 

Não há ponte. Há uma jangada que transporta um carro e passageiros quando não avaria. E há pirogas que levam passageiros equipados com colete salva-vidas, pois há por ali naufrágios de má memória que impõem cuidados redobrados. Ah, e já agora por curiosidade, também alguns crocodilos. Mas para evitar encontros de risco, o colete tem pouca ou nenhuma utilidade. Apenas se deve ter cautela e contar com o factor sorte.

No dia em que ali estive a última vez a nossa 'pick-up' também passou para a outra margem, entrando e saindo da jangada por uma íngreme rampa de cimento, acompanhados de alguns passageiros carregados com legumes, frutas e peixe.

À primeira vista, Farim é uma cidade abandonada. Um burro, puxado por uma criança que nos acena, passa para ir buscar carga chegada no barco e nós detemo-nos a ver a antiga igreja colonial e a estátua ali em frente, evocativa dos 500 anos da morte do Infante D Henrique.

A antiga piscina olímpica, também ali junto do porto, não passa de uma memória do que deve ter sido um lugar de lazer e cheio de beleza. Hoje tem um pouco de água barrenta no fundo, resto das chuvas da véspera onde brincam animadamente umas crianças. 

Depois de passar a antiga pista de aviação, onde nasceram casas como cogumelos em terreno baldio, encontramos o largo dos mártires do terrorismo, a lembrar o bombardeamento não reivindicado de 1965 que vitimou dezenas de mulheres e crianças que dançavam animadas durante a celebração do “Djamdadon”, uma das manifestações culturais da 
etnia Mandinga ali predominante.

Farim é um conjunto de ruas ainda extenso, com casario de arquitectura colonial a bordar as principais artérias que levam até ao largo onde se realiza o mercado. Ali há de tudo, mas chama a atenção sobretudo o sal, vendido pelas mulheres que o produzem nas margens do rio Cacheu. A brancura do sal em grandes alguidares contrasta com a beleza das mulheres africanas, ali sentadas na expectativa da chegada de um cliente a quem vender o sal com medidas de latinhas outrora portadoras de alimentos de conserva, o que nos oferece um quadro digno de uma paragem para registar fotograficamente de uma das actividades mais características de Farim.

Neste largo há um poço onde as mulheres se vão abastecer da água necessária aos afazeres do dia a dia e um cantinho à sombra onde os homens se dedicam a jogar damas. Enquanto jogam, o rádio a pilhas debita em altos berros as notícias (quase sempre desanimadoras) sobre a situação económica e política do país, seguidas pelos comunicados diversos feitos pelas autoridades, por quem procura bens desaparecidos ou por quem garante resolver todos os problemas amorosos, financeiros ou de saúde que possam perturbar o bem estar dos ouvintes. 

É esta cidade de Farim, cristalizada num tempo,  sem data,  que deixo para trás quando regresso ao porto, por uma outra estrada ladeada de casas abandonadas e paro no único sítio disponível para nos dar de comer naquele dia. Entre umas cervejas bem fresquinhas, lá comemos uma travessa dos melhores camarões que provei até hoje (que nos saíram mais baratos que uma cerveja em Portugal) e uma galinha cafriela de chorar por mais.

Texto e fotos:  © Joana Benzinho (2018). Todos os direitos reservados [Edição / fixação de texto: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné] 
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Nota do editor

Último poste da série 15 DE AGOSTO DE 2019 > Guiné 61/74 - P20061: Memória dos lugares (392): Ainda os memoriais de Buruntuma e Camajabá (Abel Santos, ex-Soldado At Art da CART 1742)

sexta-feira, 13 de setembro de 2019

Guiné 61/74 - P20145: Notas de leitura (1217): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (23) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Maio de 2019:

Queridos amigos,
Fica-se com a convicção de que o bardo foi profundamente tocado pela sorte dos seus camaradas que experimentaram toda a casta de dificuldades naqueles 71 dias do Como. Reserva-nos ainda mais estrofes, deixará a contabilidade em dia antes de regressar ao continente. Aqui se destaca um linguajar propagandístico do PAIGC, uma torrente demencial de mentiras, propagou centenas de mortos, forças portuguesas a fugir, em debandada, nem uma só palavra sobre as enrascadas de Nino, as suas muitas baixas, foi um delírio propagandístico que ainda, mesmo episodicamente, vejo escrito. E aqui se volta a prestar homenagem a Armor Pires Mota, o BCAV 490 andara por Mansabá e vai sediar-se em Farim, há muito ainda para contar, ao homenageado, aqui se destacam alguns parágrafos da sua obra-prima "Estranha Noiva de Guerra".

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (23)

Beja Santos

“Para Curcô reforçar
Hermenegildo e Ribeira.
Granadas de morteiro rebentaram
ao pé de Jacinto Pereira.

Um grande ataque se dava
um dia já à noitinha.
O pelotão do amigo Farinha
muito fogo atirava,
e granadas de morteiro jogava
algumas de incendiar.
O 467, a falar,
homens em socorro pedia
para seguirem no outro dia
para Curcô reforçar.

O pelotão que calhou
foi o de Manuel Sobral,
a 1 de Março, às 5 e tal,
para o mato ele avançou.
O sr. Alf. Saraiva os acompanhou
com os seus homens em fileira
houve um ataque de uma maneira,
que o fogo não aguentaram
e juntos a todos recuaram
Hermenegildo e Ribeira.

Nestes arredores patrulhou
o pelotão do sr. Alf. Segura
que mostrando a sua bravura
um letreiro no mato deixou:
os bandidos desafiou
e eles pouco demoraram.
Logo nessa noite atacaram
e a coisa esteve bem torta,
a um metro de José Horta
granadas de morteiro rebentaram.

Quando o ataque principiou,
foi logo com as granadas.
Em seguida houve rajadas
que o pessoal desorientou.
O Fernando Paulino pensou
em salvar-se, de qualquer maneira,
e jogou-se ao rio mais o Teixeira
onde perigo não havia.
E no abrigo Joaquim Maria
ao pé de Jacinto Pereira.”

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Neste aceso de avanços e contactos brutais na batalha do Como, ocorre bater à porta do contraditório, ver o tratamento que Basil Davidson, com os préstimos de Amílcar Cabral, deu aos acontecimentos do Como. O jornalista britânico nunca escondeu que estava ali em missão propagandística, a dar vencimento às proezas independentistas a desbaratar colonialistas. Afirma perentoriamente que em 1 de junho de 1963 a ilha do Como estava libertada depois de ter sido bombardeada e atacada pelas forças coloniais.
Vejamos o que ele escreve:
“As tropas portuguesas foram desbaratadas no porto de Cachil pelas forças nacionalistas sob o comando de Agostinho de Sá. Este foi ferido, mas as tropas inimigas foram forçadas a retirar-se e refugiar-se em Bolama”.

Davidson recolheu do próprio Cabral um relato circunstanciado dos factos desta batalha do Como e diz que se limita aqui a fazer um simples esboço de uma batalha que para o PAIGC teve importância histórica:
“Como foi a primeira porção de território nacional a ser libertada pelas nossas forças, a reconquista de Como tornou-se para os portugueses, nesses primeiros dias de 1964, uma questão de necessidade básica, e mesmo vital, para a sua estratégia militar e política. Isto porque, se os portugueses queriam controlar eficazmente as zonas que libertámos no Sul, Como constituía uma plataforma estratégica indispensável; e ainda por causa das consequências políticas que para eles poderiam advir da reconquista da ilha, já que o povo de Como é bem conhecido em todo o país pela sua entrega feroz à nossa luta e pelo apoio leal que sempre deu ao nosso Partido.
Usando todos os meios militares à sua disposição, com um efectivo total de 3000 homens bem equipados, incluindo 2000 soldados e oficiais escolhidos transferidos de Angola, os portugueses lançaram a sua ofensiva sobre o Como em Janeiro de 1964 com a firme decisão de arrancar a ilha das nossas mãos. Oficiais do Estado-Maior foram transferidos de Lisboa para Bissau para daí seguirem mais de perto as operações.

Depois de uma batalha que durou 75 dias, as nossas forças empurraram o inimigo para a linha de costa, infligindo-lhe pesadas baixas – foi a pior derrota de sempre em toda a história do colonialismo português. Calculamos as baixas do inimigo em cerca de 650 homens. Desertores portugueses, incluindo alguns que tomaram parte nessa batalha, viriam a dizer-nos que pelo menos 900 colegas seus tinham sido mortos nessa batalha ou teriam morrido depois em consequência de ferimentos ali recebidos.
A batalha do Como foi um teste para os portugueses, mas foi-o ainda mais para nós. Na verdade, ajudou-nos a formar um juízo mais rigoroso acerca das nossas próprias forças. Aprendemos ali a verdadeira capacidade dos nossos combatentes e do nosso povo quando confrontado com as situações mais difíceis; apercebemo-nos do moral e por conseguinte da fraqueza do nosso inimigo; verificámos o alto grau de consciência política e a feroz determinação da população civil das zonas libertadas – agora definitivamente libertadas – não voltarem a cair sobre a dominação portuguesa”.

Ao que se sabe, jamais em tempo algum a mentira foi tão descarada, acrescendo que, conforme observa Carlos Matos Gomes e Aniceto Afonso, rapidamente a ocupação do Como passou para nível secundário, o PAIGC conquistou posições na região Sul estrategicamente mais influentes, Como tornava-se um símbolo, uma bandeira. E para as forças portuguesas aprendia-se que um objetivo de guerrilha carece de uma resposta de contraguerrilha, deu-se como desproporcionado o efetivo e o tempo que demorou a ocupação da ilha. Em breve, Salazar iria tomar uma medida radical, substituiu Vasco Rodrigues e Louro de Sousa, militares em permanente contencioso, por Arnaldo Schulz, foi logo em maio de 1964.

Aqui se inicia uma transição, o bardo ainda tem umas estrofes para contar o que se passou no Como, mas é bom não esquecer que vai haver mudança de itinerário, o batalhão irá sediar-se em Farim, ver-se-á envolvido em muita atividade operacional. É justo aqui trazermos à colação quem fez páginas de diário na ilha de Como e muitos anos mais tarde, em meados da década de 1990, dará à estampa uma obra-prima do romance com o título “Estranha Noiva de Guerra”, falamos obviamente de Armor Pires Mota.
Oiçamos o que ele nos diz sobre essa atividade que prossegue a que viveram no Como:
“Muito antes de Cai, ainda a companhia completa, o resmalhar do capim começou a acordar os bichos, as aves. Sobretudo, os macacos. Isso inquietava. Feria o cérebro. Quando, aqui e ali, as palmeiras novas entrechocavam os seus ramos, havia um estremecimento súbito, um medo geral. Os menos afoitos aguçavam o ouvido. Seria mentira até se não se dissesse que se pressentia um silencioso ranger de dentes e de pragas escorrendo do território inconquistável. Muitos dos nossos começavam a acariciar as patilhas da G3. Ou o coração áspero das granadas. Arrepiados de dúvidas e talvez tocados de maus presságios, seguíamos, atentos e pressurosos, na árdua tarefa que nos coubera. (…) Às 22 horas estoirou uma granada do lado sul, prova de que o IN se acercava da posição que era vulnerável. O silêncio era a única voz a gritar alto naquela escuridão aventesma. Só quem, um dia, andou de canhota no mato. Todos apalpavam as armas, as granadas, quase sempre o coração, às vezes a alma.

Esfregavam os olhos até doer. Dormir era um risco. Ninguém queria entrar na eternidade de olhos fechados, por um tiro no coração, esborrachado por uma granada. (…) As balas, assobiando, constituíam uma perigosa muralha de aço, difícil de transpor. A luta não deixava ninguém de fora. Depois, do outro lado, os gritos começavam a dizer que o sangue havia rebentado como um vulcão em chamas. Era uma onda quente inundando o capim, metendo medo ao anúncio da madrugada. O IN tentava, a todo o transe, evitar a aproximação da tropa do santuário de Malimorés. Ainda ouvi o alferes Costa a gritar: vamos a eles! A seguir devo ter perdido os sentidos, porque não me lembrava de mais nada”.

Vale a pena insistir que este romance é de uma enorme expressão metafórica, trata-se de uma via-sacra, o herói é José Joaquim Bravo Elias, ali bem perto de si morre um extremoso camarada (“Júlio Perdiz tinha na cabeça um arrepio intranquilo de sangue e nenhum relincho era capaz de acordá-lo”), vai começar uma viagem delirante, Bravo Elias arrasta o corpo do camarada Perdiz, experimentará todas as provações, assaltarão a sua memória as mais insólitas e aparentemente despropositadas recordações, haverá uma noiva de guerra, encontros insólitos, haverá uma flagelação cataclísmica sobre Mansabá, quem vinha da via-sacra presenceia um mundo de destroços.
Um belo romance, mas Armor Pires Mota vai-nos contar ainda mais coisas depois da batalha do Como.

(continua)

Página do jornal do BCAV 490, gentilmente cedida pelo confrade Carlos Silva, um investigador infatigável a quem devo muitas atenções.
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Notas do editor

Poste anterior de 6 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20127: Notas de leitura (1215): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (22) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 9 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20137: Notas de leitura (1216): “Por uma reinvenção da governabilidade e do equilíbrio do poder na Guiné-Bissau”, por Luís Barbosa Vicente; Edições Corubal, 2014 (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 12 de setembro de 2019

Guiné 61/74 - P20144: Controvérsias (137): Craveiro Lopes em Bolama, em visita de Estado... Era presidente da câmara municipal o Júlio [Lopes] Pereira, que passa, em dez anos, de cidadão respeitável a proscrito social... (Recorte de imprensa: "Diário Popular", Lisboa, 6 de maio de 1955)















Notícia do "Diário Popular", de 6 de maio de 1955, relativa à viagem do Chefe de Estado,  general Craveiro Lopes, à Guiné, com passagem por Bissau e Bolama e depois visita ao interior. Em Bolama, era presidente da Câmara o Júlio Lopes Pereira, colono e comerciante em Bolama, condecorado em 1947, ao tempo do governador Sarmento Rodrigues,  com o grau de Cavaleiro da Ordem do Mérito - Classe de Mérito Industrial. (Decreto de concessão publicado em D.G. de 29 de abril de 1947). Já nos anos 30 estava radicado em Bolama.


1. Presumimos que seja o mesmo Júlio [Lopes] Pereira, morto em novembro de 1965, em Farim... Foi acusado pela PIDE e pelas autoridades militares de Farim (comando do BART 733) de ser o "autor moral" do atentado terrorista de 1 de novembro de 1965, em Farim.

A tratar-se da mesma pessoa, o Júlio [Lopes] Pereira,  radicado em Bolama,  desde os anos  30 e depois em Farim (nos anos 60), seria o pai da jornalista Ana Emília Pereira (,"Milocas" Pereira, para os amigos), jornalista e docente universitária da Guiné-Bissau, a viver em Luanda desde 2004 e entretanto desaparecida, "misteriosamente", em 2012.

A tratar-se da mesma pessoa, verifica-se terá passado de cidadão respeitável a "proscrito social", tendo sido morto às mãos da PIDE em Farim, na sequência do "atentado terrorista" de 1 de novembro de 1965. cuja autoria nunca foi reivindicada.(*)

As circunstâncias da morte do Júlio [Lopes] Pereira, de Farim, já aqui foi relatada por Carlos Domingos Gomes, "Cadogo Pai" (n. 1929), seu amigo (**):

(...) "Em 1964, requeri terreno onde se encontram as minhas actuais instalações e iniciei as obras. Então o número de contactos aumentou. Concentrávamo-nos frente às minhas obras, com o perigo a aumentar passamos a organizar jantares e mais festas. O grupo engrossou, com Júlio Pereira (que vinha de Farim), Armando Lobo de Pina, Domingos Maria Deybs, João Vaz, Elisée Turpin, Pedro Pinto Ferreira, Duarte Vieira, Aguinaldo Paquete, eu, Carlos Domingos Gomes, etc.

Estes encontros organizavam-se sempre que o Júlio Pereira vinha de Farim para nos trazer as notícias da evolução da luta, que já estava muito avançada. Tudo estava sob perigo, sob vigilância da PIDE.

(...) Como uma bomba soou-nos a notícia da prisão de Júlio Pereira em Farim, na sequência de uma granada atirada a um ajuntamenmto numa festa de tambor em Farim. Foi sovado que nem um animal e obrigado numa cela a lutar com um companheiro até à morte.

Eu era vereador da Câmara Municipal de Bissau, com o velho companheiro Benjamim Correio, Dr. Armando Pereira e Lauride Bela. Ninguém me fazia acreditar que seria preso, dada a forma isolada como actuava durante a distribuição de arroz. Atendia tudo e todos, até às pessoas que desmaiavam oferecia arroz, punha no meu carro e levava-as a suas casas, mas sempre de cara amarada (sic), porque sabia que a minha actividade estava sendo vigiada.


(...) Com a morte de Júlio Pereira, a raiva que gerou,  atingiu-nos a todos, Benjamim Correia que era meu colega, também vereador da Câmara [de Bissau], todos muito vigiados, colocou-me os anseio da filha, Luisa Pereira, esposa do  Júlio Pereira, de pedir o corpo do marido. 

Dirigi.me ao gerente da casa onde trabalhava, a Ultramarina, de nome Figueiredo, a transmitir-lhe a mensagem de Benjamim Correia e da filha. Telefonou para o director da PIDE, e este para me perguntar quem nos informou da morte. Situação que aumentou ainda mais as suspeitas da minha atuação, isto já no decorrer dos anos 1965/66. Esta onda passou." (...)


Guiné-Bissau > Região de Bafatá >  Saltinho > Ponte General Craveiro Lopes > Lápide, em bronze, evocativa da "visita, durante a construção" do então Chefe do Estado Português, general da FAP Francisco Higino Craveiro Lopes, acompanhado do Ministro do Ultramar, Capitão de Mar e Guerra Sarmento Rodrigues, em 8 de Maio de 1955. Era Governador Geral da Província Portuguesa da Guiné (tinha deixado de ser colónia em 1951, tal como os outros territórios ultramarinos...) o Capitão de Fragata Diogo de Melo e Alvim... Craveiro Lopes nasceu (1894) e morreu (1964), aos 70 anos.  Foi presidente da República entre 1951 e 1958 (substituído então pelo Almirante Américo Tomás). Não morria de amores por Salazar.

Como se pode ler na página do Museu da Presidência da República:

(...)  Após a eleição de Américo Tomás para a Presidência, em 1958, Craveiro Lopes é, em Novembro desse ano, promovido a marechal.

Apesar da promoção, torna-se progressivamente crítico do regime. Logo em 1959, alguns militares que lhe são próximos, participam activamente no "golpe da Sé", movimento militar revolucionário, promovido por oficiais ligados a Humberto Delgado, desmantelado pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE). Esta mesma polícia não deixará de o manter sob apertada vigilância, controlando todos os seus movimentos até ao final da sua vida. É com total envolvimento que o vamos encontrar ligado à chamada "Abrilada" de 1961 ("golpe de Botelho Moniz"). Craveiro Lopes é um dos militares presentes no plenário dos comandantes militares, na Cova da Moura, convocado por Botelho Moniz. O plano delineado previa que Craveiro Lopes voltasse a ocupar a chefia do Estado, e que Marcelo Caetano pudesse vir a tornar-se chefe do Governo. Considerando a situação irremediavelmente perdida, e perante a desistência dos outros implicados na conspiração, o marechal é um dos poucos que defende a desobediência e o confronto militar com as forças fiéis ao regime.

(...) O seu ressentimento em relação a Salazar e a certas figuras do regime será (...),  até ao fim da sua vida, profundo e irremediável. (...) As suas últimas intervenções com peso político dão-se em 196[2]: o prefácio que aceita fazer ao opúsculo da autoria de Manuel José Homem de Mello "Portugal.  o Ultramar e o Futuro", no qual defende a necessidade de se encontrar uma "solução verdadeiramente nacional" e promover uma "livre discussão", para o que uma maior liberdade de imprensa constituía factor fundamental; a entrevista que concede, meses depois, ao Diário de Lisboa, publicada na edição de 10 de Agosto, onde leva as suas críticas mais longe, defendendo a livre discussão dos principais problemas do país, "a evolução gradual do regime", a abolição da censura" e a "liberdade de expressão e discussão", apelando ainda à "coragem" e ao "bom senso", no âmbito da política ultramarina, a fim de que se reconheçam "as realidades da hora presente". (...)

Foto: © Albano M. Costa (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 11 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20142: Controvérsias (136): Não consta que o Amílcar Cabral, o "pai da Pátria", tenha reivindicado a autoria (moral e política) do "atentado terrorista" de 1 de novembro de 1965, em Morocunda, Farim, e muito menos denunciado ou condenado esse ato monstruoso... Pelo contrário, até lhe convinha, para memória futura, que as criancinhas de Farim continuassem a repetir, em coro, estes anos todos, na escola, que esse ato foi obra maquiavélica e tenebrosa dos "colonialistas portugueses"...

(**) Vd. poste de  10 de agosto de  2010 > Guiné 63/74 - P6843: Memórias de um Combatente da Liberdade da Pátria, Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai (5): Júlio Pereira, preso, torturado e morto na prisão pela PIDE, suspeito de estar por detrás dos graves acontecimentos de Farim, em 1/11/1965

quarta-feira, 11 de setembro de 2019

Guiné 61/74 - P20143: Historiografia da presença portuguesa em África (176): O jornal Bolamense, fonte de informação e cultura (1956-1963) (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Dezembro de 2018:

Queridos amigos,
Teixeira da Mota era um investigador estrénuo, imparável, teve uma escola magnífica, a do Centro de Estudos da Guiné, ali deixou obra imbatível. Frequentava alfarrabistas e leilões de livros, investigava a fundo no Arquivo Histórico Ultramarino, foi bem-sucedido nessas andanças, encontrou peças preciosas.
Neste artigo do Bolamense dedicou-se a referir um opúsculo pouco conhecido onde se relatava o martírio de dois franciscanos na Guiné, em 1742 e 1743. Pelo que o leitor vai ter oportunidade de conhecer, é um documento comovente, ao nível da fé que estes missionários possuíam, na maior intensidade, e daí a aceitação que conferiam às estruturas de que padeceram até à morte. Aqui se relata o martírio de 22 de fevereiro de 1742, nos Bijagós.

Um abraço do
Mário


O jornal Bolamense, fonte de informação e cultura (1956-1963) (2)

Beja Santos

O primeiro número deste jornal publicado em Bolama data de 1 de agosto de 1956, trazia uma consigna: “Servimos Bolama, os governos da Província e toda a família guineense”. O jornal irá desaparecer em 1963, do que se consultou os editores não deram quaisquer explicações. Há dois aspetos surpreendentes, no cômputo destas edições: a tentativa inglória de reerguer a importância de Bolama, dela falando a torto e a direito, dedicando-lhe farto noticiário, sem descurar um aspeto etnográfico geral, mostrando imagens das diferentes etnias e realizações por toda a colónia; e procurando dados culturais que ajudassem a entender a presença portuguesa, na administração, na ocupação e até na missionação. Da leitura de todos os números, pareceu de manifesto interesse republicar um artigo de Teixeira da Mota intitulado “A morte de dois franciscanos setecentistas, na Guiné”.
Vejamos o essencial do trabalho de um dos mais prestigiados historiadores portugueses nas coisas da Guiné:
“Por feliz acaso veio-me parar às mãos um curioso folheto setecentista onde são narrados os acontecimentos que originaram a morte de dois padres da Província da Soledade às mãos de gentios.
Numa altura em que ainda não havia – ou rareavam – jornais, era através de folhetos deste género que se divulgavam muitos sucessos. Existe uma grande quantidade deles, principalmente do século XVIII. Estão neste caso dois de 1753 relatando a viagem da fragata ‘Nossa Senhora da Estrela’ a Bissau e acontecimentos ligados à reedificação da Fortaleza de São José e ainda outro descrevendo o trágico naufrágio na foz do Casamansa da corveta ‘São Sebastião e Almas’, do qual resultou a morte ou aprisionamento pelos Felupes de vários missionários, incluindo o Bispo Frei João de Faro.
O opúsculo de que nos ocupamos e os factos dele referidos não são indicados pelos que modernamente têm versado a história da Guiné. Talvez venha alguma coisa na 2.º Parte da Crónica da Província da Soledade, cuja descoberta anunciou em 1945 o Padre Dias Diniz e continua inédita. Segue-se esta reportagem de há mais de 200 anos, dos dois lastimosos casos sucedidos na Guiné em 22 de fevereiro de 1742 e em 26 de abril de 1743 com dois religiosos missionários da Santa Província da Soledade.

Primeiro caso. Embarcado o Padre Frei João de Fonte-Arcada, Presidente do Hospício da Ilha de Bissau, em canoa dele, para o fim do bem das almas, saiu desta ilha com vento tão próspero e favorável que parecia evidente sinal da sua feliz viagem. Em 22, vendo-se os moços da canoa defronte Canhop, viram que pelo rio saíam duas canoas de gentios Bijagós, em direitura a buscá-los pelo ódio que têm aos cristãos. Requerendo com piedade os cristãos aos gentios que se retirassem, eles lhes disseram e responderam que queriam água, sendo que procuravam em lugar dela sangue; os moços da canoa expressaram que se não chegassem para ela. E vendo-se que os bárbaros faziam pouco caso da nossa advertência, começaram logo a implorar o Divino auxílio. O que se verificou, porque disparando os gentios uma arma fez o seu tiro despojo da tirania e simulacro ruína da morte a um moço que na canoa tinha a incumbência de governar o leme. Vendo-se o religioso nesta aflição, porque uma das canoas contrárias estava à popa a clamar e a requerer da parte de Deus desistissem do intento por ser contra a Divina Majestade, que eles ignoravam; eles não fizeram caso, porque logo se viu um escravo chamado Mabiá ferido com uma bala, a qual não fez efeito por não achar capacidade suficiente o emprego. E também o dito Padre passado pelo peito até às costas por uma azagaia, a qual um deles lhe tinha empregado. À veemência da dor e à profusão e abundância de sangue caiu o Padre, fixados os olhos no Céu e a contemplação em Deus pedindo-lhe que perdoasse àqueles inimigos por não saberem o que faziam. Este sucesso fúnebre avivou nos corações dos escravos tão repetidas tristezas e mágoas que para as fazerem públicas eram os olhos testemunhos do pesar e as lágrimas do sentimento. Tiraram-lhe do corpo a azagaia, e para que a sua vista não multiplicasse maiores penas, o lançaram ao mar, onde em cristalino túmulo urna transparente espera a ressurreição universal. E entrando todos os gentios na canoa às azagaiadas mataram outro escravo chamado António Vieira. E atando os mais de pés e mãos só deixaram a dois para remarem, e ao Mabiá para governar o leme. E foram caminhando todos com aqueles inocentes para a Ponta Ilha em que assistem os Bijagós, e fazendo os gentios as suas costumadas cerimónias com tão desentoadas vozes, desmarcados alaridos e medonhas acções ao som de vários tambores e muitos tiros que fariam afugentar ao mais curioso de ver, com a que eles em tal caso chamam festa. Logo com discurso bárbaro prenderam novamente ao moço Agostinho pelo pescoço a uma corrente de ferro, e atado com cordão nos pés e mãos o arrastaram pelo espaço de muito tempo pelas ruas, dando-lhe múltiplas pancadas e infinitos tormentos, que para acabar a vida bastava qualquer.

Deixaram a maior execução da sua ira para outro dia. Amanheceu este, se alegre para os gentios, infausto para o corpo do Agostinho que vendo as muitas dores que padecia lho penalizavam, na certeza porém de que lhe aproveitarem a sua alma, querendo ao que parece pedir à morte tréguas, para pedir perdão de suas culpas, se soltou da ligadura com que estava preso, e do modo que pôde começou a caminhar para as margens do mar, pedindo a Deus misericórdia por intercepção de Maria Santíssima e Santos a quem se encomendava. Porém, como a debilidade que padecia o não ajudava para o intento, teve tempo a ligeireza dos bárbaros para o apanharem e começando estes a darem princípio a tão diabólica tragédia dando-lhe os mesmos ou maiores tormentos, sofrendo todos com a maior paciência e edificação dos mais cristãos, o puseram em tão miserável estado que se lhe viam patentes as entranhas, depois de um gentio lhe der separado o corpo com um alfange um dos braços. Querer explicar as dores que padeceria este aflito é impossível, basta para fazer penetrante esta lembrança a consideração dos castigos. E aos mais cristãos, que ainda deixaram com vida, cuidaram logo de os resgatar, pelo síndico, os religiosos do dito hospício de Bissau.”

(continua)

Almirante Teixeira da Mota 

Interior da Câmara Municipal de Bolama
Fotografia de Francisco Nogueira, retirada do livro “Bijagós, Património Arquitetónico”, Tinta-da-China, 2016, com a devida vénia.
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Nota do editor

Último poste da série de 4 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20121: Historiografia da presença portuguesa em África (174): O jornal Bolamense, fonte de informação e cultura (1956-1963) (1) (Mário Beja Santos)