1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Janeiro de 2020:
Queridos amigos,
Trata-se sobretudo de muita reclamação, sentenças não faltam, veja-se uma delas, entre muitas: "A decadência política é a fonte perene de todos os nossos males; é a ela que se deve a imobilidade das nossas indústrias e da nossa instrução, a estagnação das nossas colónias e o adormecimento das nossas energias como povo". Não lhe falta azedume e comentário cruel falando de Bolama e de Bissau, isto sem pôr em causa a autenticidade dos seus comentários. Intercala com observações quase luxuriosas, uma sensualidade mal contida, encontra mulheres formosas, é como as estivesse a despir de alto a baixo.
Um abraço do
Mário
Impressões de viagem quando a Guiné já era província, com fronteiras definidas (4)
Mário Beja Santos
O livro de viagens intitula-se "Madeira, Cabo Verde e Guiné", o seu autor é João Augusto Martins, veremos mais adiante que foi alguém influente na definição das fronteiras da colónia, a edição foi da Livraria de António Maria Pereira, 1891. É um testemunho único o que nos deixa alguém que andou a fixar fronteiras na Guiné, depois da Convenção Luso-Francesa. É extremamente crítico, se por um lado o vemos fascinado pelo feitiço africano, vai desvelando as mazelas do nosso comportamento colonial.
Vamos hoje despedir-nos deste autor de memórias que deambulou pela ilha da Madeira, escreveu abundantemente sobre Cabo Verde e dedicou 35 páginas em 270 à Guiné, ele que conhecia a colónia por lá ter andado anos atrás, a colaborara na equipa que demarcou as fronteiras. Parte de Cabo Verde muito temeroso, ou pelo menos quer que o leitor possa sentir que ele viaja para meio hostil: “Partimos da Praia para a Guiné, antevendo através do prisma da distância um país pantanoso e selvagem, povoado de perigos e minado pelas febres, onde, segundo as informações, as bexigas ostentam horrores e as biliosas faziam honras de receção, resignados e tranquilos nessa serenidade que precede sempre as grandes resoluções, mas na convicção arreigada de que se nos salvassem das azagaias dos Bijagós e dos gládios dos Mandingas não resistiríamos decerto às iras antropófagas dos Felupes, nem à desagradável impressão dos que se sentem assar nas grelhas de um meio-dia, sobre o braseiro incandescente de um sol sem brisas”.
Procede constantemente a contrapontos, do género: “Se Bissau é imundo, sombrio e miasmático, Bolama, pelo contrário, é alegre, desafogada e sadia”.
É useiro e vezeiro nas recriminações, não entende o descuido da Saúde Pública na colónia, não se cansa de dizer que a administração colonial é indolente e incompetente, e comenta, corrosivo:
“Esta província tida e mantida na nossa elaboração nacional como um depósito para onde despreocupadamente se esvazia desde há muito o lodo e as imundícies colhidas nas dragagens da nossa rotina legislativa, sob a forma militar de incorrigíveis e de devassos deportados civis, não sabemos se com o fim de lhe adubar a selvajaria, se com o fim de lhe ministrar fermentos enérgicos à dissolução; a Guiné, constituindo-se em província independente, plagiou desde logo a toilette pretensiosa da sua vizinha Cabo Verde, enfeitando-se de todas as complicações burocráticas, fazendo construir na sua capital por um risco único, destituído de toda a elegância e de qualquer vislumbre artístico, desde a igreja ao hospital. E sem pensar sequer nos preceitos mais rudimentares das construções dos climas quentes; sem se preocupar um instante das exigências mais banais para estabelecimentos daquela ordem, edificou a ferro e tijolo um edifício pesado, desprotegido de sombras, sem quartos de banho, sem casa de autópsias, sem casa mortuária, sem meios de esgoto, nem canalização de águas, e continuou a sustentar ao mesmo título esse pardieiro a derrocar-se, onde se agasalham em Bissau os desgraçados doentes que preferem morrer à sombra, mesmo em risco de desabamentos prováveis”.
Irá despedir-se do leitor no fim desta viagem à Guiné com diferentes sentenças, acima de tudo considera que a política portuguesa precisa de rever de alto a baixo o seu modo de estar e de se relacionar com o Império Colonial, começa logo a fustigar o que se passa no país e depois vai a África:
“Somos um país agrícola e a agricultura agoniza; somos um país meridional, e não temos artes, e não temos indústrias; as nossas possessões têm a administração mais complicada, mais ridícula e mais atrofiante que se possa imaginar.
Não é pela legislação nem pelas peças oficiais que se pode avaliar do seu estado; a legislação é ludibriada e as peças oficiais muitas vezes sofismam, invertem e desfiguram a verdade; não é com frases que se civilizam povos, não é com indignações que se resolvem problemas práticos, nem com protestos platónicos que se liquidam afrontas sofridas.
Segui o exemplo de Mariano de Carvalho, vinde observar com os vossos olhos o que a vossa incúria, a vossa credibilidade do vosso favoritismo têm arquitectado durante administrações sucessivas, e talvez então, sentido a vergonha pelo estado em que chegámos em África, indignados contra a corrupção e as baixezas dos afilhados que para aqui são exportados, acheis no conhecimento das coisas e dos factos, elementos com que remediar os males, redimir as faltas e precaver o futuro.
O grande inimigo que temos a recear não é a brutalidade inglesa com toda a sua sofreguidão, nem os couraçados monstros com todos os seus canhões. É a decadência a que chegaram as nossas coisas, é o desprestígio a que baixou a nossa autoridade, é o descrédito que vão sofrendo os nossos brios.
Precisamos reformar os costumes, reconstituir a política, substituir esses gabinetes deslocados de semestre em semestre, sempre esculpidos das mesmas figuras dominantes e sempre prosseguindo no problema estéril de forjar deputados para as maiorias e prebendas avultadas para os discípulos amados. Precisamos de iniciar uma orientação ultramarina sem outro ideal que não seja a Pátria, nem outro estímulo que não seja o dever; fazer convergir sobre as colónias a atenção dos homens mais dominantes. Os governadores, os juízes, o pessoal médico, todas as autoridades superiores, escolhei-as por um critério de especialização justificada, apreciando-os pelo justo valor dos serviços prestados. Combater na alta burocracia do Ultramar o enfatuamento cómico. Precisamos fazer tudo isso, se não queremos que as nações poderosas se vão apoderando impunemente do que nos pertence; se não queremos que a própria civilização, um dia, em nome do supremo direito da colectividade, tenha de nos expropriar por utilidade pública, da herança que não sabemos aproveitar… e não deixamos aproveitar aos outros”.
____________
Nota do editor
Último poste da série de 16 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21363: Historiografia da presença portuguesa em África (231): "Madeira, Cabo Verde e Guiné", de João Augusto Martins; edição da Livraria de António Maria Pereira, 1891 (3) (Mário Beja Santos)