quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21845: Historiografia da presença portuguesa em África (250): A descoberta da Guiné, polémica violenta: Vitorino Magalhães Godinho versus Avelino Teixeira da Mota (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Junho de 2020:

Queridos amigos,
Em torno das Comemorações do V Centenário do Descobrimento da Guiné, em 1946, a historiografia deu um importante salto com o estudo publicado por Teixeira da Mota desmontando ingenuidades e fantasias.
Aquele que terá sido o mais influente historiador português do século XX, Vitorino Magalhães Godinho, veio a público para o aplaudir e zurzir com inusitada violência. Foi polémica que não ficou nos anéis, até por serem dois historiadores que faziam da probidade ofício não fizeram como os medíocres, nestas coisas e noutras entram na hostilidade persecutória. Aqui se usam, para dar contexto, referências de um estudioso Teixeira da Mota, o oficial da Armada Carlos Valentim e a introdução de Vitorino Magalhães Godinho, que contextualiza admiravelmente os saltos gigantescos que deu a historiografia dos Descobrimentos depois de séculos de mitologia e ignorância das fontes.

Um abraço do
Mário


A descoberta da Guiné, polémica violenta:
Vitorino Magalhães Godinho versus Avelino Teixeira da Mota (1)


Mário Beja Santos

Escrito em 1946, ano das Comemorações do V Centenário da Descoberta da Guiné, o ensaio altamente contundente do historiador Magalhães Godinho a propósito do trabalho ainda não completamente publicado no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa e assinado por Teixeira da Mota, foi mais uma das peças de grande importância na renovada historiografia portuguesa do período dos Descobrimentos henriquinos. Segundo Carlos Valentim, oficial da Armada que publicou a bibliografia de Teixeira da Mota, "O Trabalho de Uma Vida", Edições Culturais da Marinha, 2007, há quatro obras relevantes de Teixeira da Mota que contribuíram para essa renovação historiográfica: "A Descoberta da Guiné", com a data de 1946; "A Arte de Navegar no Mediterrâneo nos Séculos XIII-XVII e a criação da Navegação Astronómica no Atlântico e Índico, em 1957"; "A Viagem de Bartolomeu Dias e as Ideias Geopolíticas de D. João II", em 1958; "A Escola de Sagres", em 1960. Teixeira da Mota fez parte do escasso número de historiadores que contribuiu para imprimir ciência no estudo dos Descobrimentos Portugueses, pondo termo a fantasias, mitologias bacocas, puras conjeturas. Não foi o primeiro, mas pertenceu ao naipe engrossado por Jaime e Armando Cortesão, Damião Peres, Duarte Leite e Vitorino Magalhães Godinho.
Vitorino Magalhães Godinho

A descoberta da Guiné correspondeu à primeira comemoração depois da II Guerra Mundial. Numa nota de caráter pessoal expedida por Teixeira da Mota para o Governador da Guiné, e que esteve inédita até 1972, ano em que se publicou o seu importante "Mar, Além Mar", edição da Junta de Investigações do Ultramar, ele faz questão de desmontar um sem-número de fantasias acerca das expedições henriquinas e desvela da impossibilidade de Nuno Tristão ter chegado a território da então Guiné Portuguesa, a sua morte teria ocorrido no rio Gâmbia. Um estudioso, mas pouco dotado para a investigação rigorosa, o Pe. Dias Dinis, defendia intransigentemente as comemorações do centenário guineense naquele ano de 1946, socorria-se como fonte principal da "Crónica dos Feitos da Guiné", de Zurara, da Ásia de João de Barros e de alguns estudos de Armando Cortesão. Este padre missionário criticava os trabalhos de Duarte Leite e Damião Peres que contestavam fortemente a tese que atribuía a Nuno Tristão o descobrimento da Guiné em 1446. E Carlos Valentim observa: “Duarte Leite valia-se da cartografia e dissecava as fontes, uma a uma, utilizando a análise crítica como fulcro da sua metodologia. As conclusões eram dramáticas. De repente, todo o edifício de propaganda do Estado Novo ficava em perigo de ruir, por se ter verificado um anacronismo na descoberta da Guiné Portuguesa. Seria possível festejar acontecimentos com duvidosa cronologia?”. O ensaio de espírito completamente inovador de Teixeira da Mota introduzia esclarecimentos ainda hoje incontestados. A este trabalho iremos posteriormente fazer a competente referência.

Avelino Teixeira da Mota
Em jeito de síntese, Teixeira da Mota analisa os elementos de caráter náutico-geográfico, na linha das propostas de Jaime Cortesão e corteja-os com a cartografia e toma sempre como referência os elementos etnográficos. Devolve-se de novo a palavra a Carlos Valentim: “No espaço de um século, a Guiné Portuguesa encontra-se no centro de fatores que desencadeiam o progresso historiográfico, em duas situações muito idênticas, em dois momentos muito próprios, onde se mistura política e memória, ideologia e identidade. Primeiro, em 1841, com o Visconde de Santarém, o fundador dos estudos de cartografia antiga, que edita a Crónica da Guiné, de Zurara, descoberto em 1837, na Biblioteca Nacional de França. O segundo momento de inovação, situando-se novamente a Guiné no centro do debate historiográfico, surge um século depois, com Teixeira da Mota, numa época de forte combate ideológico e político”. E vamos à polémica de Magalhães Godinho. Ele enceta o seu trabalho observando a pobreza de fontes históricas sobre os Descobrimentos henriquinos, na generalidade construções tardias. E numa lenta caminhada, começaram as revelações, primeiro o Visconde de Carreira e o Visconde de Santarém que publicaram em 1841 a Crónica da Guiné, de Zurara; em 1845-47, Schmeller dava a conhecer a narrativa das viagens redigida por Martin von Behaim sobre conversas com o navegador Diogo Gomes. Diferentes autores ingleses interessaram-se pelos Descobrimentos, mas limitando-se quase a contar por palavras suas o que parecia ser verdade axiomática. Surgiu depois o Esmeraldo de Duarte Pacheco; em 1924, Jaime Cortesão apresentava um estudo sobre a política de sigilo nos Descobrimentos, fantasiou hipóteses, aventando que as fontes escritas ocultavam grande parte da obra de D. Henrique. O cartógrafo Armando Cortesão publicou em 1931 a cronologia das viagens até 1462 fazendo identificações do rio Grande com o Geba, por exemplo. Aquilo que eram certezas, com base nestes trabalhos recentes, merecia um novo olhar. A figura-chave será Duarte Leite, que criticará as hipóteses de Jaime Cortesão sobre a política de sigilo e sacudiu de cima a baixo a obra de Zurara. Como escreve Vitorino Magalhães Godinho: “Zurara, até aí unanimemente considerado fiel e bem informado cronista das navegações, é reduzido à sua verdadeira craveira de literato de saber restrito e de segunda mão, de pouco cuidadoso relator, de homem com fraca curiosidade geográfica e náutica; a sua crónica deixa de ser indiscutível evangelho, para nela se notarem erros, contradições e outros defeitos”. Segue-se Damião Peres, o próprio Magalhães Godinho e Teixeira da Mota.

Godinho ridiculariza os esforços para consagrar Nuno Tristão como o primeiro a chegar à Guiné Portuguesa. Elogia Teixeira da Mota e o seu trabalho: “Foi-lhe de grande proveito o conhecimento direto do litoral e das gentes da Guiné, bem como a possibilidade de obter informações complementares de outros conhecedores das línguas indígenas e da região. Conseguiu Teixeira da Mota confirmar algumas das conclusões da investigação anterior e corrigir outras (…) Note-se que o autor não discute qualquer questão de cronologia, aceita, como Peres e nós fizemos, a estabelecida por Armando Cortesão e Duarte Leite. Seguiu Teixeira da Mota o modelo por nós lançado em Documentos sobre a Expansão. A longa e minuciosa discussão do problema por Teixeira da Mota confirma La Roncière e Duarte Leite: Nuno Tristão não ultrapassou a Gâmbia para o Sul, a sua morte não ocorreu no rio Geba, muito menos no rio de Nuno”. E adita os argumentos expendidos por Teixeira da Mota, de irrefutável clarividência. Fala-se da viagem de Álvaro Fernandes, também em 1446, havia acordo que o navegador visitou o rio Casamansa, tendo chegado à enseada que começa no Cabo Roxo. Mais adiante, falando da viagem de Valarte e de Fernando Afonso em 1447, Godinho apoia a hipótese da captura de Valarte no rio Gâmbia, estabelece-se aqui uma discussão de pormenor sobre os reis na região de Cabo Verde (não esquecer que estamos a falar de território continental), e apoia igualmente dados expendidos por Teixeira da Mota acerca da localização da povoação dos Bambaras. Termina os seus comentários elogiosos e inflete para uma tremenda zurzidela de Teixeira da Mota, vale a pena ver com cuidado a argumentação expendida, é por vezes de uma violência extraordinária a adjetivação usada. E talvez o ponto mais importante seja registar que após toda esta sessão de bengaladas, a admiração mútua jamais esmoreceu. É assim entre gente que cuida com estrénuo rigor a verdade dos factos.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 27 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21815: Historiografia da presença portuguesa em África (249): Da Senegâmbia à Serra Leoa, pela mão de Suzanne Daveau (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P21844: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-fur mil arm pes inf, CCAV 3851, 1972/74) - Parte I: Caldas da Rainha (A chegada às portas da tropa: um fardo pesado); Tavira (Amor, ódio e... trampa)



Guiné > Região de Tombali > CCAV 8351 (Cumbijã, 1972/74) > Nhacobá > s/d > Furriéis Azambuja Martins e [Joaquim]Costa

Foto (e legenda): © Vasco da Gama (2009). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de Joaquim Costa, ex-fur mil arm pes inf, CCAV 8351, "Tigres do Cumbijã"  (Cumbijã, 1972/74), membro nº 826 da Tabanca Grande, engenheiro técnico reformado, natural de Vila Nova de Famalicão, residente em Gondomar (*):



Date: segunda, 1/02/2021 à(s) 15:50
Subject: O meu primeiro poste

Meu caro Luís, camaradas e amigos, protegidos por este enorme "Poilão", que é este (nosso ) Blogue de Luís Graça & Camaradas da Guiné (*):

Com a devida permissão, dada pelo Luís, para me encostar a todos vós debaixo deste magnífico poilão, aqui estou, pronto para acrescentar mais uma pequena gota neste oceano de gente "grande" e boa, que por força inexorável da lei da vida vai minguando dia após dia.

Já agora, permitam que me faça acompanhar pelo meu irmão Manuel (infelizmente já falecido), mobilizado para Guiné no início dos anos 60 e também do meu filho Tiago, engenheiro civil, que esteve dois anos na zona do Cacheu na construção de uma ponte sobre o rio com o mesmo nome mais precisamente em S. Vicente (ponte Europa, mais conhecida por Ponte de S. Vicente).

O meu filho e mais 4 colegas da empresa viveram momentos dramáticos enquanto jantavam num restaurante (A Padeira) junto ao local onde foi assassinado Nino Vieira (na altura presidente da da Guiné-Bissau) sentido muito perto o cantar contínuo das Kalachnikov e o rebentar das granadas dos RPG. Foi uma fuga (sem pagar a conta) com a tensão nos limites conduzidos por um trabalhador local, subornando todas as barreiras de militares até chegar aos estaleiros da empresa em S. Vicente. Ou seja: nada mudou desde o meu tempo de Guiné…

O Camarada da nossa tabanca, Hélder Sousa, que amavelmente fez um comentário na minha apresentação (*), que muito agradeço, já fez aqui referência a uma página de internete construída pelo Engenheiro Geógrafo Pedro Moço, amigo e colega de trabalho do meu filho, que conta ao pormenor toda a história da construção da ponte. Dada a qualidade da mesma, sugiro que a revisitem (**).

A seu tempo utilizarei um poste sobre a construção desta ponte.

Aproveito também para agradecer o comentário do meu vizinho, Gil Moutinho, e proprietário do excelente restaurante, Choupal dos Melros, onde já várias vezes jantei muito bem e comemorei com amigos os meus anos.

Embora as nossas casas não distem mais de 500 metros, só o Blogue nos deu a conhecer. Já tive a oportunidade de ver parte do Museu da Tabanca dos Melros, ainda no início, num jantar onde perguntei por ti mas nesse dia não estavas. Obrigado pelo convite e obviamente que responderei à chamada.

Um abraço ao autarca e amigo de Mampatá [, o António Carvalho, o Carvalho de Mampatá], que muitas vezes me convidou para os almoços da Tabanca, creio que de Matosinhos, mas que por vários motivos não pude aceitar.

Aos dois um grande abraço

Como já referi na minha apresentação (*), fiz parte da companhia de intervenção, a CCAV 8351 (Os Tigres do Cumbijã), formada no Regimento de Cavalaria n.º 3 de Estremoz, com comissão na Guiné em Aldeia Formosa e, mais particularmente, e proficuamente, em Cumbijã.

Com a minha passagem à aposentação, na tentativa de me manter ativo, para além de ler parte dos livros amontoadas e da bricolage, comecei a rabiscar um conjunto de histórias, do meu tempo de infância e da vida militar.

Tendo em conta os interesses e objeto do blogue, vou partilhar convosco (se os editores do blogue assim lhe reconhecerem qualidade bastante para aqui ser editado), para já, as minhas vivências desde o dia conturbado da chegada às Caldas da Rainha até ao regresso sui generis da Guiné.

Grande parte da história da companhia já aqui foi superiormente dada a conhecer a todos vós pelo ex capitão da companhia Vasco da Gama (a quem aproveito para mandar um abraço – não cotoveladas,  como agora é uso – assim como aos meus camaradas e amigos da companhia).

A minha narrativa sobre os acontecimentos, embora os factos sejam os mesmos, será obviamente diferente já que as vivi, naturalmente, de forma diferente.

Meu caro Luís, envio para ti este meu primeiro poste, contudo, se outra forma ou meio estiver instituído, agradecia que me desses a conhecer,

Bem hajam e saúde para todos.


2. Comecemos então pelo princípio: Caldas da Rainha e Tavira [, seguindo o índice do livro, em preparação, "Paz e Guerra: de pequeno ao furriel Pequenina"]


Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte I
 

[9] Caldas da Rainha: A chegada às portas da tropa – um fardo pesado

Depois de ter ido às sortes e não me ter safado, o meu irmão Manuel, o primeiro a ir para a tropa na família com uma mobilização atribulada para a Guiné (1) (o segundo foi o João com comissão em Angola) (2), passou o tempo a dar-me conselhos sobre como me devia comportar nas lides dos quartéis, não obstante o tempo da chamada para a incorporação ainda vir longe.

Com a chegada da guia de marcha para as Caldas da Rainha os conselhos passaram a ser diários: "Respeita os graduados, o cabelo sempre curto, as botas sempre bem engraxadas, atenção aos amarelos... E a mais importante: nunca te ofereças como voluntário para nada". (Mais tarde constatei que este último conselho me livrou de algumas tarefas complicadas, nomeadamente descascar batatas toda a noite ou despejar fossas.)

Chegado o dia da partida, já devidamente preparado pelo Manel para enfrentar a vida militar, de mala feita e já fechada, chega à minha beira, o meu "padrinho de guerra", com 4 garrafas de vinho verde branco da casta Alvarinho e diz-me: "Abre lá o saco e leva estas quatro garrafinhas de vinho verde que te vão aligeirar a dureza da instrução".... "Como assim?",  digo eu. "Isto é assim", diz ele: "Logo no primeiro dia, com algum recato, ofereces 2 garrafinhas ao alferes e uma a cada cabo miliciano: funcionou comigo, contigo também não vai falhar!"...

O que logo me passou pela cabeça é que nunca teria a coragem de fazer tal coisa, para além de achar aquilo um absurdo, mas vi-o tão entusiasmado que pensei: "Ok, levo o material e encontrarei alguns momentos para confraternizar com os novos amigos de armas".

O meu "padrinho de guerra" foi comigo até ao comboio e ajudou-me a aconchegar a mala de modo a proteger as quatro "granadas".

Em Campanhã, arrastei a mala para fora do comboio e apercebo-me de um razoável grupo de mancebos com o cabelo rapado e com o mesmo ar assustado como o meu. Ao entrar para o novo comboio tive de pedir ajuda e logo surgiram as primeiras "bocas": "Já levas aí material de guerra?".. "São só quatro granadas" disse eu.

Em Alfarelos, onde a linha do Oeste desagua na linha do Norte, a estação ficou completamente inundada de mancebos vindos do Norte e do Centro do país,  mais parecendo um grande grupo de jovens em Interrail

A tarefa mais complicada foi carregar a mala da estação até ao quartel, mas com a ajuda dos amigos da ocasião lá se venceu o caminho.

Chegados à porta do quartel, deparo-me com uma enorme fila de pessoal para entrar. Pelos vistos, e para mal dos meus pecados, havia soldados a revistar minuciosamente todas as malas. Comecei a ver a minha vida a andar para trás. A primeira coisa que me ocorreu foi livrar-me daquele material perigoso, mas com tanta gente ao meu lado tal não era possível, pelo que tentei trazer a roupa toda para a parte de cima da mala tentando camuflar as "botijas" e seja o que Deus quiser.

Chegada a minha vez, com as mãos a tremer e já a transpirar, não obstante o frio que se fazia sentir, o nosso "pronto" começa a fazer a sua minuciosa revista, ficando estupefacto quando se depara com as quatro "granadas". 

Manda-me entrar para a guarita e com um ar sério vai dizendo que estou metido num grande sarilho: é crime levar bebidas alcoólicas para a caserna. Manda-me aguardar um pouco afirmando com algum dramatismo: "Vou chamar o nosso cabo já que só ele pode tratar deste caso". 

Chamou o cabo, mostrando um semblante de quem está a tentar salvar alguém da forca e disse-lhe: "Vê lá o que podes fazer pelo rapaz, não queremos que vá, logo no primeiro dia, dormir na cadeia do quartel!"... 

O nosso cabo olha para mim, fita as garrafas enquanto palita os dentes com a língua e "bota" a sua sentença: 

 "Se o oficial dia encontra aqui estas garrafas estamos todos tramados. Vou ficar com o seu nome, tentar esconder este material e, se tudo correr bem, está safo, se isto for descoberto está com um grande problema". 

A minha chegada às portas da tropa não podia ter começado melhor! Mais parecia a chegada às portas da guerra do Raul Solnado. Já me estava a sentir a pão e água na prisão do quartel!

Com as pernas a cederem e cheio de suores frios lá disse ao homem com a voz embargada: "Obrigado nosso cabo, ficar-lhe-ei eternamente agradecido"... mas receando o pior.

Passados uns dias (vividos com alguma ansiedade pelo desfecho do incidente das garrafas) tenho em cima da minha cama, depois de um dia duro de instrução, uma caixa com as quatro garrafas vazias e com a seguinte mensagem: 

"Podes ficar descansado. Assunto encerrado. Aqui estão as quatro 'granadas' já sem espoleta" (espoleta é um mecanismo que provoca a explosão da granada sem a qual a mesma é praticamente inofensiva)... "Sempre às ordens. Aguardamos, impacientes, a nova remessa"…
 
 _________

Notas do autor:

(1) Chegou a Bissau com uma grande pneumonia contraída durante a viagem, tendo quase de seguida regressado ao continente, com passagem à reserva, sem nunca ter visto Bissau.

(2) A sua comissão em Angola, como Furriel Miliciano, foram 2 anos de férias, numa zona junto a Luanda, onde nunca se sentiu a guerra e onde comprou carro e alugou casa…

No regresso embarcou ele (juntamente com a sua companhia) e o seu carro, um Ford Taunos, uma grande e espetacular "limousine" à americana dos anos 50 (a circular ainda hoje nas ruas de Havana), que fez parar a aldeia à sua chegada vencendo os caminhos, só frequentados até então por carros de bois, para chegar a casa...



Tavira > CISMI > Julho de 1968 > A chegada ao quartel da Atalaia dos novos instruendos do 1º Ciclo do CSM, vindos de todo o país. Fila do pessoal para receber fardamento, Foto do Fernando Hipólito, gentilmente cedida ao César Dias e ao nosso blogue.

Esta cena podia passar-se também à porta do RI 5, nas Caldas da Rainha. Esta rapaziada, chamada pela Pátria para cumprir o serviço militar obrigatório (, em tempo de guerra...), em finais da década de 1960 já tem um outro "look", a começar pelo vestuário... Tem outras habilitações literárias, outra  postura...

Presume-se que as belas cabeleiras, à moda dos "Beatles", já tinham ficado ingloriamente no chão do barbearia lá da terra ou de Tavira... Muitos fotam tosquiados à máquina zero, suprema humilhação para um jovem da época!... Não, já não é a mesma malta que parte, de caqui amarelo e mauser, para defender as Índias & as Angolas, uns anos antes ... O velho Portugal onde tínhamos nascido, estava a mudar, lenta mas inexoravelmente. E a nossa geração já não estava disposta a suportar os mesmos sacrifícios dos seus pais.

Foto (e legenda). © Fernando Hipólito (2014). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: logue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



[10] Tavira: com amor, ódio… e trampa


Já na altura, a tropa estava muito à frente! – eram distribuídas as especialidades de uma forma cientificamente infalível, através de testes ditos psicotécnicos que na altura, creio eu, só o exército utilizava.

Era recorrente ouvirmos que escriturários iam para mecânicos, mecânicos para escriturários, enfermeiros para transmissões e técnicos de rádio para enfermeiros...

Dado este rigor científico, tinha a expectativa, dada a frequência do 3.º ano em engenharia eletromecânica (Curso de Eletrotecnia e máquinas), que me sairia em sortes, no mínimo, a especialidade de transmissões!

Enfim: Armas Pesadas!... e "ala" para Tavira.

Só mais tarde, depois de uma análise mais fina aos psicotécnicos e ao constatar que a maioria dos meus camaradas do pelotão de armas pesadas tinham, alguma, formação em engenharia mecânica e eram todos "roda 26", (todos com pouco mais que metro e meio de altura), compreendi a justeza e o valor científico dos mesmos. Montar e desmontar os canhões sem recuo e as metralhadoras pesadas só alguém com alguns conhecimentos de mecânica.

Já a "roda 26" era muito importante (como é que eu não pensei nisso?) para se poder operar dentro do espaldão, de pé,  continuando protegidos já que não atingíamos a altura dos bidões de proteção! A tropa estava mesmo muito à frente!

Gostei, e gosto, muito da cidade, das praias, das igrejas, das gentes, das esplanadas, das chaminés. Detestei a instrução de "mata cavalo", não pela dureza, nem pelo rigor da disciplina militar, mas pela brutalidade gratuita de alguns graduados já com várias comissões no então ultramar.

Gostei do espírito de grupo e camaradagem do pessoal daquela incorporação.

Estes 3 meses em Tavira escancararam-me a porta para o novo mundo, já ligeiramente entreaberta no ano do curso antes da incorporação (tinha o "Canto e as Armas" de Manuel Alegre e uma cassete com os Vampiros e o Menino do Bairro Negro do Zeca Afonso e já me sentia um revolucionário!), fazendo de mim um cidadão mais informado e consequentemente (e conscientemente) mais disponível para abraçar causas, que no contexto da altura só podiam ser as da liberdade.

Foi uma verdadeira escola de vida. Não pela instrução, contraproducente, mas pela densidade cultural e política de alguns dos intervenientes nas tertúlias e reuniões, supostamente, clandestinas.

Discutia-se e questionava-se a guerra, a ditadura, o embrutecimento da instrução militar, as péssimas condições das casernas e a péssima alimentação e também... futebol (aqui as divergências eram claras)… e as lindas algarvias (aqui havia mais consenso), etc.

Nesses três meses fizeram-se dois levantamentos de rancho (decididas em reuniões clandestinas restritas e com a informação a circular de boca em boca). Nenhum instruendo cedeu. A todos estes acontecimentos não é alheio o facto de fazerem parte desta incorporação dois filhos de altos dirigentes do MDP/CDE, que obviamente eram os líderes e promotores das tertúlias e reuniões clandestinas e de quem perdemos o rasto dias antes do fim da especialidade...

Na altura o então capitão Raúl Folques (militar altamente prestigiado) comandava, se a memória não me falha, uma das companhias de atiradores. A sua presença impunha respeito (na altura mais medo). Militar irascível, mas com comportamentos fora dos cânones militares ao terminar um levantamento de rancho, dando voz aos instruendos, deitando para o lixo toda uma refeição e ter mandado preparar uma nova, de qualidade aceitável, voltando, contudo, tudo ao normal nas refeições seguintes.

Toda a instrução era estúpida, contraproducente e desajustada tendo em vista o objetivo principal que era a criação de um corpo de militares preparados física, psíquica e tecnicamente para uma guerra de guerrilha num ambiente hostil e completamente desconhecido.

O objetivo principal da instrução foi sempre e só a humilhação pessoal:

  • Rastejar do quartel até ao local de instrução, com paragens para ler o RDM (Regulamento de Disciplina Militar) com um pé do instrutor em cima das nossas costas;
  • "Chafurdar" nas salinas abandonadas, de águas podres, pelo simples prazer de humilhar;
  • Fazer a entrega da correspondência, em formatura na parada, fazendo comentários brejeiros e mesmo obscenos sobre o que seria o conteúdos das mesmas enxovalhando todo aquele que recebia uma carta perfumada ou com "coraçõezinhos"...

Chegou-se ao ponto de se abrir uma carta (com muitos coraçõezinhos) e ler o conteúdo da mesma para todo o pelotão. Tal só aconteceu uma vez dado a ameaça, levada muito a sério, que se voltasse a fazer o mesmo o autor levaria um tiro.

Bastou uma semana passada em Tavira para compreender porque toda a gente chamava Hotel das Caldas ao quartel das Caldas da Rainha...

Tendo em conta as experiências do dia a dia e as histórias contadas por militares que por ali tinham passado, a semana mais temida era a da "nomadização". Éramos lançados, em pequenos grupos, na serra do Caldeirão, com ração de combate apenas para um dia, com um conjunto de pontos onde éramos obrigados a passar, regressando ao pondo de partido, no 4.º dia, onde éramos recolhidos.

Contra todas as expectativas foram os melhores dias que passei em Tavira. Tinha eu a ideia que estando nós no Algarve, supostamente uma das regiões mais desenvolvidas do país por força do turismo, ali já massificado, e o contacto com grande número de estrangeiros, que todo o conforto aqui seria possível.

Eu que vinha duma pequena aldeia do Minho, fiquei boquiaberto com o isolamento daqueles pequenos povoados, dispersos, sem luz elétrica, sem vias de comunicação, só trilhos por onde passavam, com dificuldade, animais.

A nossa chegada a estes locais era como a chegada de extras terrestres. Fomos recebidos por estas gentes como família e como familiares comemos à sua mesa. Nos quatro dias sempre jantamos à mesa, em casas diferentes, e dormimos: uma noite num curral dos animais, outra num silo e a terceira noite numa destilação de aguardente de medronho onde acordamos completamente tontos (embriagados) dado a quantidade de vapores etílicos no ar.

Numa das casas uma mulher, já nos seus 60 anos, confidenciou-nos que não obstante ser Algarvia, ainda não tinha visto o mar.

Contudo havia uma pequena escola primária, com meia dúzia de crianças, onde falamos com a professora, ainda jovem, com o namorado na tropa nas Caldas da Rainha, pelo que, não só, mas também, pensando nele, fez questão de partilhar connosco o seu lanche que os habitantes todos os dias lhe preparavam.

Durante a agradável conversa, com os alunos maravilhados com o generoso intervalo, contou-nos a sua aventura diária para chegar à escola. Utilizava 3 meios de transporte: autocarro, bicicleta e um burro nos últimos metros mais acidentados. Despedimo-nos com votos para que o seu namorado jamais viesse parar a Tavira...

Mas, o momento marcante da instrução (para além do tradicional mergulho nas velhas salinas de água podre, a semana de campo e a semana de nomadização) era o dia do fogo real, feito para a ilha de Tavira.

Com a especialidade de armas pesadas tínhamos de manobrar, de olhos fechados, as seguintes armas:

  • canhões sem recuo (cujo disparo tinha de ser feito com o cotovelo, com as mãos a tapar os ouvidos e a boca bem aberta para não darmos cabo dos tímpanos);
  • morteiro 120,
  • metralhadoras pesadas Browning e Breda.

Tudo isto a disparar para a ilha de Tavira metia medo ao susto. E assim foi...

O responsável pela carreira de tiro era um Tenente que tinha chegado recentemente da Guiné (um dos homens mais temidos no quartel a par do capitão Folques), completamente "cacimbado".

No meu pelotão tinhamos um excelente rapaz, grande melómano (moldou os meus gostos musicais que perduram até hoje), que de todo, não atinava com esta "coisa" da tropa. Começado o "fogachame" em simultâneo para a ilha de Tavira com a Breda, a Browning,  o morteiro 120 e o canhão sem recuo (o fogo de artifício das festas da Senhora da Agonia, comparado com isto é uma brincadeira de criança), logo o nosso melómano começou a fugir aos gritos impressionado com todo aquele aparato, convencido que o mundo estava a desabar.

O Tenente obriga-o deitar-se no chão e diz-lhe: "Se levantares a cabeça, um milímetro que seja, és um homem morto"... E começa a disparar com a Breda por cima do rapaz

A todos nós, que estávamos a assistir aquilo, não nos cabia um feijão no "dito", não obstante constatarmos que, pese embora o "cacimbo" da Guiné, o homem apontava as rajadas para uma altura de segurança, nunca pondo em perigo a vida do nosso camarada.

Terminado o filme de terror, fomos a correr ver como estava o nosso homem: branco, branco. Levantamo-lo, com todo o cuidado, e foi então que começamos a sentir um cheiro insuportável e algo a escorrer pelas botas a sair das calças do melómano... e assim passou de melómano a "merdalómano" (um mal nunca vem só…)

Nota: Nessa noite a caserna parecia a "aldeia da roupa branca (neste caso verde)" com toda a gente a estender as suas calças a secar penduradas na cabeceira da cama, ao qual me associei, contudo não tenho memória que tivesse chovido nesse dia!...

(Continua...)

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Notas do editor:

Guiné 61/74 - P21843: A Nossa Marinha (1): LDM 203 e LDM 302 (Manuel Lema Santos / Luís Graça)



Guiné > s/l > c. setembro de 1964  >  LDM (Lancha de Desembarque Média) 203... que devia  estar a  fazer serviço entre Bissau e Catió, abastecemdo as NT no sul.

Foto (e legenda): © Rui Ferreira (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Nunca andei numa LDM, só nas LDG... No Rio Geba, "ó para lá e ó para cá", ou seja, no início da comissão, em 2 de junho de 1969, rio Geba acima, até ao Xime, e depois no fim da comissão, em março de 1971, de regresso a Bissau, rio Geba abaixo...  Penso que foi na mesma  LDG, a "Bombarda" (105, mais tarde, "rebatizada"  201).

Mas não é das LDG [, Lanchas de Desembarque Grandes]  que quero falar hoje, mas sim  das LDM, das Lanchas de Desembarque Médias, onde nunca andei. 

Uma foto da LDM 203, acabada de se publicar no nosso blogue (*), despertou-me a curiosidade sobre estas unidades da nossa Marinha, de que sei pouco ou quase nada,

E a quem recorrer ? Naturalmente, ao blogue "Reserva Nacional", do nosso amigo e camarada Manuel Lema Santos, que o criou e mantem desde 2016, com grande paixão, competência e dedicação... 

Sem desprimor para outras páginas sobre a nossa Marinha, esta é uma verdadeira enciclopédia, de consulta obrigatória,  sobre a nossa armada, nomeadamente do tempo da guerra do ultramar / guerra colonial.


Lisboa > Monumento aos Combatentes
do Ultramar > 10 de junho de 2019 
(antes da era da pandemia Covid-19) 
> Manuel Lema Santos e Luís Graça.

Foto: LG (2019)



Aconselho, por isso, os nossos leitores a consultar o poste de 7 de abril de 2020 > 

O Manuel Lema Santos (que tem cerca 
de 6 dezenas de referências no nosso blogue) foi nosso camarada no TO 
da Guiné ( 1.º tenente da Reserva Naval,
 ex-imediato da NRP Orion (1966/68), 

Escreveu o Manuel Lema Santos:

(...) "Da classe 200, foram cinco 
as LDM - Lanchas de Desembarque Médias fabricadas. Estas unidades, 
construídas nos Estados Unidos da América  foram modernizadas nos estaleiros navais 
da Argibay  [, em Alverca]. (...)

"Em 13 de Janeiro de 1964 foram aumentadas ao efectivo dos navios da Armada as LDM 201, LDM 203, LDM 204 e LDM 205" (...)

Depois de efectuass as necessárias "provas e testes", estas unidades navais "foram transportadas para a Guiné em navios mercantes, onde permaneceram sempre enquanto operacionais até serem abatidas ao efectivo" (, no princípio da década de 1970, e mais concretamente, no caso da LDM 203, em junho de 1971).


Das suas caracterísricas técnicas destaque-se o seguinte, de acordo com o Manuel Lema Santos:

(i) Deslocamento máximo: 50 toneladas;
(ii) Comprimento (fora a fora): 15, 28 metros;
(iii) Calado máximo  (distância da quilha do navio à linha de flutuação): 1,22 metros
(iv) Velocidade máxima: 9,2 nós ou milhas marírimas (c. 17 km)
(v) Autonomia: 460 milhas (c. 850 km)
(vi) Armamento: 1 metralhadora Oerlikon Mk II 20 mm + 2 metralhadores MG 42, de 7,62 mm
(vii) Lotação: 6 praças
(viii) Capacidade de transporte: 1 destacamento de fuzileiros (80 homens) ou 20 toneladas de carga ou 1 camião de 6 toneladas ou 2 jipes

Diz ainda o nosso camarada Manuel Lema Santos:

(...) "Muitos oficiais da Reserva Naval desempenharam missões de comando que integraram aquelas unidades navais em múltiplas missões operacionais de fiscalização, escolta, embarque e transporte de fuzileiros, militares de outros ramos, população em geral, nos comboios logísticos com material, equipamentos e abastecimentos.

"Com uma guarnição de 6 homens, comandadas por um Cabo de Manobra, foram, em conjunto com todas as outras classes de LDM presentes na Guiné, um importante suporte da estrutura operacional e logística da Marinha." (,..)

"Que se enalteça a competência, coragem, esforço e dedicação das suas guarnições, no bom êxito conseguido das inúmeras e arriscadas missões que lhes foram atribuídas, algumas delas pagas com o sacrifício da própria vida." (...)

2. E aqui, acrescento eu,  nunca é demais evocar e relembrar a epopeia da LDM 302,  a cuja tripulação pertenceu o marinheiro fogueiro Ludgero Henriques de Oliveira (1947-2011), natural da Lourinhã, condecorado com a Cruz de Guerra em 1968. 

Infelizmente, este meu conterrâneo, vizinho, amigo e condiscípulo, nascido no mesmo ano que eu, morreu prematuramente aos 64 anos, com o posto de sargento chefe reformado (*)

Escrevi há uns anos atrás (*):

(...) "A epopeia da LDM 302 e dos seus bravos marinheiros merece ser melhor conhecida de todos nós. Na altura do ataque de 19 de dezembro de 1968 bem como no de 10 de junho de 1968, o Ludgero fazia parte da sua guarnição como maquinista fogueiro. São factos que eu só agora vim a saber. E quero partilhá-los com os amigos e camaradas da Guiné, que acompanham o nosso blogue bem como com os meus conterrâneos e ainda a família do meu amigo, em especial o seu filho e os seus irmãos, bem como a mãe do seu filho, Maria Teresa Henriques, natural da Atalaia.

Que a terra te seja leve, meu amigo e camarada!... E que a gente da nossa terra saiba cultivar a tua memória e a memória dos nossos antepassados que têm o mar no seu ADN !" (...)

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Notas do editor:
 

terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 – P21842: (Ex)citações (381): Dos matagais da Guiné aos fados no Faia, Bairro Alto, em Lisboa. Assimetrias de um tempo sempre infinito (José Saúde)


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.

Dos matagais da Guiné aos fados no Faia, Bairro Alto, em Lisboa: Assimetrias de um tempo sempre infinito 

Exclamo pelo tempo passado, preenchido por imagens que as nossas infindáveis memórias nunca esquecerão, mesmo sabendo que o dobrar da próxima esquina force corpos já vergados pelo peso da idade, sendo, contudo, a curiosidade dos homens um condão indeterminadamente inflexível neste imenso planeta terrestre. 

Existem, porém, assimetrias onde a nossa juventude de outrora parecia alongar-se num tempo sempre infinito, mas, por outro lado, existia em nós a consciência de que afinal as nossas vidas têm um princípio, um meio e um fim. Claro que, obviamente, centralizo este texto inserido na vertente do meio, dado que o princípio fora naturalmente assumido feliz, creio, e o fim, sim esse fim, nunca o vamos adivinhar, ou a forma como acabará a nossa presença terrena. 


Camaradas, conhecemos os tempos de tropa, as mobilizações que caíam em catadupa sobre jovens militares, sendo o nosso caso a vivência de uma guerra na Guiné, mas os tempos atuais não se apresentam minimamente fáceis. Obedece a cautelas previamente aconselhadas. 

Em solo guineense lutámos contra um inimigo com rosto, ouviam-se e sentiam-se os distúrbios que as armas causavam naquele recanto africano “superlotado” por cerca de 40 mil soldados distribuídos pelos três ramos as Forças Armadas – Exército, Marinha e Força Aérea -. Hoje, pressagiamos esse repisar de um restolho imbuído em infindáveis incertezas, restando as imagens contidas nas nossas mentes, mas que lentamente se vão apagando. É a lei da vida. 

Acontece, que o tempo que nos sobram deixam antever cuidados redobrados. A covid-19 é uma pandemia universal e cujo inimigo é invisível. As nossas gerações somam irreversíveis conhecimentos de uma evolução descomunal do homem, ou da natureza na sua essência e assistimos a alterações quer do meio urbano, quer rural, que climático. O homem foi à lua, o universo expandiu-se velozmente, assistiu-se a mutuações constantes, o racional progrediu e chegámos a um mundo onde a tecnologia impera. 

O homem, sempre ganancioso, vê-se, agora, manietado à evolução de um inimigo que não escolhe a estirpe do seu portador. E é em momentos de solidão que viajo pelos recantos de uma memória, que permanece, por ora, crente das suas capacidades, e toca a desafiar um passado que jamais olvidaremos. 

Numa destas tardes recorri aos meus álbuns fotográficos e eis que me deparo com duas imagens que refletem, somente, uma amizade entre dois velhos camaradas da Guiné: Eu, Zé Saúde, e o Manel Pereira. 

O Manel foi furriel miliciano na CCAÇ 3547/BCAÇ 3884 (Contubuel 1972/1974), e cruzou, também, solo de Gabu, onde esteve com o seu grupo em Madina Mandiga, local onde se encontrava uma companhia do meu BART 6523, sendo, porém, verdade que o nosso encontro na Guiné nunca ocorreu. 

Após o 25 de Abril, Revolução dos Cravos, ambos concorremos para a Caixa de Previdência e Abono de Família dos Serviços Médicos Socias do Distrito de Lisboa, onde fomos admitidos. 

A nossa entrada para a Instituição ocorreu a 25 de junho de 1975 e lá fomos enviados para a mesma secção. Aí nasceu a nossa amizade. Uma amizade que se reforçou no tempo, sendo o meu Morris 1000 o meio de transporte numa Lisboa onde se podia passear mesmo a qualquer hora da noite. 


Numa das fotos que exponho foi a ouvir fados no Faia, Bairro Alto, Lisboa, onde está à esquerda a Lurdes, mulher do Manel Pereira, de fronte, a minha mulher, eu e o nosso amigo comum Freitas também acompanhado pela sua companheira. A outra foto foi o nosso reencontro em Monte Real no convívio anual promovida pelo nosso blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. 

Longe vão os tempos dos matagais da Guiné, dos tempos da guerra, da nossa juventude, de uma noite a ouvir os fados no velho Bairro Alto, de uma “Lisboa menina e moça” então calma, de ver os filhos nascer, do seu crescimento, vê-los adultos, educa-los, e de tudo o que a vida nos proporcionou, enfim, um amontoar de emoções que nos trouxe aos tempos atuais, onde o tal inimigo silencioso (covid-19) nos remete para um isolamento forçado em que a falta de um abraço, ou de um convívio, de um beijo, sobretudo aos netos, ou de um momento em que a amizade dogmatiza estímulos, tudo isto são agora componentes de um passado que nos fora, de grosso modo, tranquilizantes. Agora, prevalece a intranquilidade. 

Cuidem-se camaradas, porque os tempos que se aproximam não se apresentam nada fáceis. 


José Saúde e Manuel Oliveira Pereira

Um abraço, camaradas,

José Saúde

Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.

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Nota de M.R.: 

Vd. último poste desta série em: 

19 DE DEZEMBRO DE 2020 > Guiné 61/74 – P21659: (Ex)citações (380): Mensagens Natalícias de antigos combatentes. Realidades de guerra. (José Saúde)

Guiné 61/74 - P21841: Memória dos lugares (417): Ilha do Sal, Bissau, Prábis, Ponta do Inglês... Fotos do ex-fur mil Jorge Ferreira, CCAV 678 (Bissau, Fá Mandinga, Ponta do Inglês, Bambadinca, Xime,1964/66) (Rui Ferreira)



Foto nº 1 > Cabo Verde > Ilha do Sal >  Pessoal da CCAV 678 junto ao memoriAL DA à CCE 302. Divisa, "O suor poupa sangue".  Esta Companhia de Caçadores Especiais esteve aqui entre 25/4/1962 e 18/5/1964, altuira em que foi substituida pela CCAV 678. A foto,do álbum do Jorge Ferreira, a única referência é "Alferes Branco" (possivelmente o oficial de dia que está de pé ao centro).

A CCAV 678 desembarcou do T/T do Uíge, na Ilha do Sal, em 20/5/1964. E partiu para o CTIG,  três meses depois, no Contratorpedeiro Lima, em 17/7/1964.



Foto nº 2 > s/l > 16/5/1964 > "Lancha dos fuzileiros navais"... LDM (Lancha de Desembarque Média) 203... Nesta data só pode ter sido tirada na Ilha do Sal...A data deve estar errada: será setembro de 1964, e a LDM devia fazer serviço entre Bissau e Catió, abastecemdo as NT no sul.


Foto nº 3 > Bissau > Rio Geba > Setembro 1964 > "Tirada no barco, prestes a chegar a Bissau e depois de 11 dias de sofrimento e martírio na escolta ao barco de mantimentos [, a Catió]"


Foto nº 4 > Bissau > CCAV 678 > 21 de setembro de 1964 > "No quartel de Bissau, numa bicicleta que a minha secção apanhou aos terroristas"



 Foto nº 5 > Guiné >Bissau > CCAV 678 >  Prábis, na região de Biombo >  21/9/64 > "Na psico-social em Prábis"... O  meu pai é o segundo da fila de cima, da esquerda para a direita... 


Foto nº 6 > Xime > Ponta do Inglês > S/data  [1965] > Pôr do sol... "Ponta do Inglês. Foz do rio Corubal, com a mata à esquerda, onde era costume sermos atacados"


Fotos (e legendas): © Rui Ferreira (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Recorde-se que a CCAV 678 (*):

(i) em 25Set64 é colocada em Fá Mandinga, como subunidade de intervenção e reserva do BCaç 697 e destacando pelotões para Enxalé e Xitole, este de 25Set64 a 11Nov64, em reforço das guarnições locais;


(ii)  em 19Jan65, com a realização da operação Farol, ocupa a povoação de Ponta do Inglês, mantendo no entanto, um pelotão destacado em Enxalé;

(iii) em 16Abr65, é substituída em Ponta do Inglês por um pelotão da CCaç 508, e assume a responsabilidade do subsector de Bambadinca, onde vai rende a CCaç 508, mantendo-se na zona de acção do BCaç 697, em acumulação com a função de intervenção e reserva do sector e mantendo ainda o pelotão destacado em Enxalé;

(iv) em 2Ago65, desloca forças para Xime e Ponta do Inglês, a fim de substituir a CCaç 508 e ministra  treino operacional à CCaç 1439 naquela zona de acção;

(v) em 10Set65, por troca com a CCaç 1439, assume a responsabilidade do subsector de Xime, com pelotões destacados em Ponta do Inglês e Enxalé, este deslocado em 28Jan66 para Quirafo;

(vi) em 14Abr66, por troca com a CCav 1482, volta a assumir, temporariamente, a função de intervenção e reserva do sector, sendo substituída, em 26Abr66, pela CCaç 1551 e recolhendo a Bissau para o embarque de regresso.

 
2. Mensagem de Rui Ferreira, jornalista desportivo ("O Jogo"), portuense, filho do nosso camarada, já falecido, Jorge Nicociano Ferreira, que foi furriel milicviano na CCAV 678 (Bissau, Fá Mandinga, Ponta do Inglês, Bambadinca, Xime, 1964/ 66) (*)

Data - 1 de fevereiro de 2021, segunda, 1/02, 23:50
Assunto . Mais fotos da CCav 678

Caro Luís Graça, tal como prometido envio-lhe mais algumas fotos da CCav 678, da qual o meu pai, furriel Jorge Ferreira, fez parte. 

O furriel Eduardo  [Ablú] (**) poderá ajudar na identificação de camaradas e locais, já que algumas fotos não têm data, local ou descrição.

Espero que tudo esteja bem consigo e com a família nestes tempos difíceis. Um grande abraço.

PS - Foto nº 5  > 21/9/64 (O meu pai é o segundo da fila de cima, da esquerda para a direita)...Legenda: "Na psico social em Prabis". (***)

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 2 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21726: Facebook...ando (58): Fotos do meu pai, já falecido, Jorge Nicociano Ferreira, ex-fur mil at cav, CCAV 678 (Bissau, Fá Mandinga, Ponta do Inglês, Bambadinca, Xime, 1964/ 66) (Rui Ferreira)

(...) Caro Luís Graça, sou filho de um ex-combatente na Guiné e já acompanho o vosso blog há uns anos. O meu pai, Jorge Nicociano Ferreira, foi furriel na CCav 678 e. nomes como Xime, Xitole, Ponta do Inglês, Bambadinca, Bafatá, entre outros, estiveram sempre presentes na minha infância.

Recentemente encontrei fotos do meu pai e camaradas na Guiné, de uma paisagem na Ponta do Inglês, de uma avioneta que poderia ser a do intrépido Honório... Quase todas têm uma legenda e gostaria de as partilhar convosco. (...)


Vd. também poste de 5 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21736: Facebook...ando (59): Sobre a CCAV 678 a que pertenceu o fur mil Jorge Nicociano Ferreira, já falecido: (i) esteve menos de 3 meses na ilha do Sal, Cabo Verde; (ii) foi render a CCE 342 (?); (iii) em Bissau, e antes de partirem para a Zona Leste (Bambadinca), fizeram escoltas a barcos de reabastecimento às NT em Catió (Rui Ferreira / Eduardo dos Santos Roque Ablú)

Guiné 61/74 - P21840: No céu não há disto... Comes & bebes: sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande (18): Para uma ocasião especial... Para a Vilma, Paté de campagne (com todos); para mim, Ovas de salmão ou "Caviar vermelho"... Depois "Camarões al ajillo"... Tudo acompanhado com uma garrafa de champanhe geladinha (João Crisóstomo, Nova Iorque)

1.  Resposta, bem humorada de João Crisóstomo, reagindo a um mail nosso, de 20 de janeiro passado,com uma foto do prato lourinhanense de arraia seca 
 com batata raiz-de-cana (*)

[João Crisóstomo, nosso camarada da diáspora (EUA, Nova Iorque), ex-alf mil, CCAÇ 1439 (Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67), casado com a eslovena Vilma, e destacado ativista social, régulo da Tabanca da Diáspora Lusófona]

 
Date: quarta, 20/01/2021 à(s) 16:00
Subject:Batata raiz-de-cana
 
Meus bons amigos e camaradas:

Quando me mandam uma coisa destas,  o mínimo que eu lhes chamo é "seus malvados"... e  daí para cima!...

Como  vocês sabem que dificilmente podemos igualar, por vezes nem mesmo  sequer  "competir ",  então, tocam de me fazer água na  boca com petiscos destes...

Mas,  olhem, "seus malvados", todos: com muita malandrice também (e com  a mesma amizade e carinho,   que eu sei muito bem de onde isto vem e de boa árvore não sai mau fruto)  oiçam esta:

Esta manhã  levantei-me cedo (,como de costume, pois eu durmo pouco) e pus-me logo a ver a televisão: queria ter a certeza de que tudo estava a correr bem e que o trump  (com letra pequena) ia mesmo sair... E realmente tudo correu bem: vi finalmente o homenzarrão/homenzito, cujos volumes de  cabeça e corpo são indirectamente proporcionais aos seus miolos,  sair da Casa Branca, entrar no helicóptero (...). E  vi-o finalmente entrar, pela última vez, no "Airforce One",  o avião subiu e  lá se foi….

Sem querer infringuir a "política" do blogue, que nos impede de falar de... "política, deixem-me fazer vos  uma confissão:  ficámos tão aliviados (, a Vilma  que entretanto tinha acordado,  estava tão excitada como eu ),  que decidimos "celebrar" a nossa liberdade  (isto foi  antes de receber este vosso e-mail a fazer negaças). 

Ao meio dia, na hora do fim do trump (com letra pequena) e simultânea entrada do Presidente Biden, queria estar com uma garrafa de champanhe na mão.     

O que é que vamos fazer para o almoço?, perguntei eu.   A Vilma ficou espantada,  pois não sou de grandes escolhas e, salvo alguma ocasião especial em que meto a minha colherada,   qualquer coisa que ela faça  está  sempre certo. 

Deu-me então a escolher entre camarões e um bom Burger …  Vamos pois celebrar a entrada do Biden, simultânea   com a " ridículamente gloriosa" saída do trump (com letra pequena)....

Para começar,  para ela, "Paté de campagne" (com todos); e para mim "Ovas de salmão", mais conhecido como  "Caviar vermelho"... Depois "Camarões al ajillo"... 
Tudo acompanhadinho  com uma garrafa de champanhe que eu sabia estar no frigorífico.
   
E,  como vocês estão a comer essa famosa  arraia, grelos, batata raiz-de-cana  e não sei que mais, eu vou pensar em vocês, e desta vez sem inveja…
 
À Alice um beijinho nosso; e aos outros um abraço bem apertado...

João e Vilma, em Nova Iorque, quase na hora da libertação... e aleluias!   
___________

Nota do editor:
 
(*) Vd. poste de 25 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21808: No céu não há disto... Comes & bebes: sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande (17): Batata raiz-de-cana com 'arraia' seca (Luís Graça)

Guiné 61/74 - P21839: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (2): "Pira desenfiado"; "A praxe" e "Os Ray-Ban"


1. Recomeçamos hoje a publicação das Memórias do nosso camarada José João Domingos (ex-Fur Mil At Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516 (Colibuía, Ilondé e Canquelifá, 1973/74), interrompidas em 2015, e reenviadas ao Blogue em mensagem do dia 29 de Janeiro de 2021.
Trata-se de uma série de curtas estórias que culminam com a independência da Guiné.



4 - PIRA DESENFIADO

Saídos de Bolama, aportámos a Buba com destino a Aldeia Formosa (Quebo). A coluna partiu pela picada de ligação que estava em péssimo estado pois corria a época das chuvas. Após largas horas de caminho, chegámos a Mampatá onde demorámos pouco tempo para deixar o que era para lá ficar e também alguém que não era para ficar.

Evoluindo para Aldeia, que era relativamente perto, ninguém se apercebeu que faltava um soldado da CCS, cuja especialidade não recordo, mas cuja silhueta a esta distância me lembra um jovem alto, magro, sempre com um livro ou caderno debaixo do braço e um semblante ausente.
Após a chegada ao aquartelamento, onde habitava o BCAÇ 4513, alguém deu pela sua ausência e, após uma rápida inspeção ao pessoal, concluiu-se que teria ficado em Mampatá.

Pôs-se a hipótese de ir uma viatura buscá-lo a Mampatá mas, confesso, não me recordo se chegou a partir e o encontrou no caminho ou se, entretanto, ele teria chegado ao quartel pelos seus pés.
Nunca mais o vi e chegou-me aos ouvidos que teria sido evacuado para a Metrópole.

Esperteza? Talvez. Mas, do que não tenho dúvida é que bastava olhar para ele para se perceber que não devia estar ali.

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5 - A PRAXE

A primeira noite que passamos em Aldeia Formosa foi difícil em termos logísticos pois, além de estarmos a ração de combate, dormimos 11 furriéis num pequeno quarto deitados em colchões de ar,  que em poucas horas ficavam vazios, após uma cansativa viagem desde Bolama.

Cansados e famintos, deitámo-nos, vestidos, no nosso canto. Pouco passava das 23 horas apareceu um camarada do Batalhão residente, também furriel, com a finalidade de aplicar uma praxe aos periquitos que consistia, grosso modo, numa chuveirada. O pessoal, chateado, não achou piada à situação mas o cavalheiro argumentava que era tradição e o enfermeiro, chegado dias antes, já tinha sido submetido à tal praxe o qual, aliás, confirmou.

A coisa estava a azedar e, alguns berros depois, o dito cujo meteu a viola no saco e foi praxar para outro lado.

O que ele não percebeu é que a sorte dele e o azar do enfermeiro foi este ter chegado antes e sozinho.


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6 - OS RAY-BAN

Estava o BCAÇ 4516 estacionado na zona de Aldeia Formosa, em sobreposição com o BCAÇ 4513, quando foi convocado para uma operação de 4 dias, com o nome de código “Operação Pertinente”, juntamente com outras forças, com o objetivo de chegar ao Unal que era área frequentada pelo inimigo (IN).

A deslocação fez-se de véspera para Buba e, aí chegados, a ração de combate, dormimos pelos cantos nessa noite.

Dos locais onde passei Buba constituía para mim o ideal para fazer o serviço militar na Guiné: bons banhos e peixe fresco. Como invejava aqueles camaradas.

A meio da manhã iniciou-se a operação com a presença do oficial de operações do meu Batalhão, protegendo os olhos do sol por uns óculos Ray-Ban, dando palpites sobre a deslocação do pessoal que foi feita de viatura até ao ponto de entrada na mata.

Quando o pessoal se apercebeu de que o solista ficava a banhos em Buba, começou a “cuspir fininho” de dentro das viaturas e a coisa tornou-se desagradável mas o homem fez-se de desentendido.

Creio que foi por aí que ouvi (ou disse) pela primeira vez: “vai para o mato, malandro!”


Textos: © José João Domingos
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Nota do editor:

Poste anterior de 27 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14935: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (1): Bolama, chegada e primeiros contactos com a população

Guiné 61/74 - P21838: Blogpoesia (717): "Como eu gosto de África" (Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS / BCAÇ 2845)

1. Mensagem do nosso camarada Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS/BCAÇ 2845 (Teixeira Pinto, 1968/70) com data de 30 de Julho de 2020:

Bom dia Carlos Vinhal
Espero e faço votos que tudo esteja bem contigo e chefes de Tabanca, bem como a todos os tertulianos.
Envio mais um trabalho que passa a ser o primeiro do ano, mas com a certeza de que muitos mais tenho para te enviar.
Por ter andado muito ocupado com o trabalho que tenho vindo a fazer, não me tem sido possível enviar para a Tabanca coisas minhas.
No entanto não estou esquecido, embora desde Julho não tenha publicado nada sem contudo, não tenha deixado de visitar a Tabanca Grande.

Para todos vocês, um grande abraço e este lembrete: Tenham cuidado.
Albino Silva
01100467 do Canchungo

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Nota do editor

Último poste da série de 31 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21829: Blogpoesia (716): "As ideias não dormem no chão"; "A encomenda esperada"; "Ameaças" e "Desfizeram-se as brumas", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

Guiné 61/74 - P21837: Parabéns a você (1927): Germano Santos, ex-1.º Cabo Op Cripto da CCAÇ 3305/BCAÇ 3832 (Mansoa, 1970/73)

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Nota do editor

Último poste da série de 29 de Janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21821: Parabéns a você (1926): Luís Graça, ex-Fur Mil AP Inf da CCAÇ 2590/CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71) e Virgílio Teixeira, ex-Alf Mil SAM da CCS/BCAÇ 1933 (Nova Lamego e S. Domingos, 1967/69)

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21836: (De)Caras (170): Memórias que não largam (Francisco Palma, ex-Soldado Condutor Auto Rodas da CCAV 2748/BCAV 2922)


1. Mensagem do nosso camarada Francisco Palma (ex-Soldado Condutor Auto Rodas da CCAV 2748 / BCAV 2922, Canquelifá, 1970/72), com data de 29 de Janeiro de 2021:

HISTORIA DE UM CONDUTOR NA GUERRA NO LESTE DA GUINÉ

À chegada, em Agosto de 1970, foi-me entregue uma GMC, sem motor de arranque, sem travão de pé, meia volta de folga no volante e com a "terceira" a saltar fora. Assim andei até Janeiro de 1972, altura em que me entregaram um Unimog 411, (burro do mato) com 600 kms.

Cerca de um mês depois após a chegada, numa patrulha, os atascansos nas picadas foram tantos que levamos 7 horas para fazer 14 kms.
Numa usei sacos de areia para servir de arrebenta minas, eu e o Neves com outra GMC, disputávamos o lugar da frente da coluna e nunca nenhum se negou.

E acabei por accionar uma mina A/C, faltavam 3 semanas para acabar a comissão. Fracturei os dois pés, estando 9 meses internado em hospitais.



MEMORIAS QUE NÃO LARGAM

Guiné > Região de Gabu > Canquelifá > CCAV 2748 (1970/72) > O Unimog 411 ("burrinho do mato"), depois da explosão da mina A/C em 16 de Abril de 1972.[1]
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Notas do editor:

[1] - Vd poste de 4 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17934: (De)Caras (100): Canquelifá, 16 de abril de 1972: quem diria que eu escaparia desta? !... Ninguém, nem eu nem o meu burrinho do mato... (Francisco Palma, Sold Cond Auto da CCAV 2748, Canquelifá, 1970/72)

Último poste da série de 13 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21766: (De)Caras (135): Maria Ivone Reis, major enfermeira paraquedista reformada, faz hoje 92 anos e é uma referência para outras outras mulheres e para nós, seus camaradas: excertos de um seu depoimento, publicado em 2004 na Revista Crítica de Ciências Sociais - Parte II (e última)