Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sexta-feira, 31 de dezembro de 2021
Guiné 61/74 - P22859: Notas de leitura (1403): Léopold Sédar Senghor, o poeta da Negritude (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Novembro de 2018:
Queridos amigos,
Um achado num alfarrabista possibilitou-me conhecer uma antologia poética do então Presidente Senghor. Note-se que tudo o que aqui se releva é o homem e a sua poesia bem antes de ser iniciada a luta armada. Senghor era profundamente estimado pelos intelectuais franceses, reconheciam que a sua poesia era uma inovação em todo o lirismo escrito em francês. Não fizeram favor nenhum em torná-lo membro da Academia Francesa. Um poeta praticamente desconhecido entre nós e que procurou intervir desde a primeira hora numa solução pacífica de transição colonial para um país independente. Também temos esse dever de memória com o extraordinário poeta que foi Léopold Senghor.
Um abraço do
Mário
Léopold Sédar Senghor, o poeta da Negritude
Beja Santos
Em 1962, a conceituada Présence Africaine dava à estampa o estudo feito por Armand Guibert da poesia de Senghor, nascido numa região acima do Casamansa conhecida por La Petite Côte, recorde-se que esta região foi altamente frequentada, nomeadamente nos séculos XVI e XVII por judeus portugueses que aqui se implantaram, caso de Joal, aqui perto Senghor passou a sua infância. Já poeta consagrado, Senghor exprimia a sua satisfação por estes lugares não longe do oceano, cheios de coqueiros. Frequentou em jovem a missão católica de Joal, onde aprendeu as primeiras letras. Deixou La Petite Côte aos dezasseis anos para fazer os seus estudos em Dacar e em 1928 parte para Paris, nos bancos do Liceu Louis–le-Grand foi colega de Paul Guth, Georges Pompidou e Thierry Maulnier, entre outros. Aqui se vai robustecer o humanismo que lhe inculcará o ideal da libertação. Faz amizade com Aimé Césaire, nome influente no pan-africanismo. A sua poesia tem influências daquilo que ele vai designar como o conjunto dos valores culturais dos africanos negros. Entretanto, ganha os seus títulos universitários, regressa a Dacar, já tem em mente a independência futura do Senegal. É um adepto da não-violência, diz repetidamente que a liberdade cultural é a condição sine qua non da libertação política. A sua devoção é África mas mantém uma lealdade crítica à França, será combatente na II Guerra, feito prisioneiro em 1940. Depois da guerra será eleito deputado do Senegal à Assembleia Constituinte, como parlamentar fará inúmeras viagens, como a Estrasburgo, a Bruxelas, a Florença, a Lisboa e a Nova Iorque. Em 1955 e 1956 será Secretário de Estado na Presidência do Conselho.
O seu pensamento já está formado, Senghor é um homem livre de qualquer complexo de inferioridade, África deverá ser independente, acredita que vários países devem tentar a unidade. Em 1960 será proclamado Presidente da República do Senegal.
Para quem estuda a Guiné Portuguesa e a Guiné-Bissau, a política de Senghor merece atenção obrigatória: viu sempre com desconfiança o sonho expansionista de Sékou Touré, procurou a moderação, ofereceu-se para o diálogo para se obter uma transição pacífica de independência para a Guiné Portuguesa. Vigiou a presença do PAIGC no seu território, nos primeiros anos da luta armada, sentiu-se coagido a cortar relações com Portugal, não se furtou a conversações com o Governo de Lisboa, encontrou-se com Spínola, propôs o cessar-fogo e defendeu uma transição até dez anos, para que a administração guineense não ficasse em roda livre, os acontecimentos militares geraram um outro curso dos acontecimentos.
Mas é bom pegar na sua poesia anterior à luta armada, uma poesia animada pelo génio africano, o fascínio pelas máscaras na diversidade de cores; mas é igualmente uma poesia que se deixa impregnar por uma certa mansuetude, a caridade cristã, sem prejuízo da sua atenção por um mundo em convulsão desde a guerra civil de Espanha, a guerra da Etiópia, a sua poesia ganha uma enorme fraternidade com aquela África submetida, redige mesmo poemas com termos jalofos e que pudessem ser recitados acompanhados por korás. Aliás, no seu relatório ao I Congresso Internacional dos Escritores e Artistas Negros, ele destacou as línguas africanas como línguas essencialmente concretas, em que as palavras aparecem associadas a imagens, possuídas pelo valor do signo, falou em imagens analogias e imagens mesmo surrealistas.
A sua formação permitiu-lhe um conhecimento aprofundado da cultura greco-romana e mesmo das culturas mediterrânicas. Muitos dos seus poemas estão estreitamente associados às culturas do Mediterrânio Oriental, possuem um veio popular e não islamizado, muito próprio dos povos nómadas e pastores, mas há também claras referências aos trovadores muçulmanos e aos guerreiros.
No final da obra Armand Guibert conversa com Senghor, começa por o interpelar sobre a sua inspiração, a tónica dos elementos da Natureza, a magia e o fascínio das civilizações de cunho negro, a que Senghor responde que procura para o Senegal uma cultura nova, assente na negritude, sem detrimento das linhas da cultura francesa em que se formou. E não nega que a sua poesia possui um equilíbrio instável entre um passado anterior à colonização, o processo da aculturação e a tomada de consciência de que os africanos deviam seguir o seu próprio rumo. Observa mesmo que escolheu uma área geográfica muito confinada para os temas fundamentais da sua poesia, La Petite Côte, está marcado pelo sol, pelos instrumentos musicais como o korá, as flautas, os tambores, sente-se atraído pela rítmica da tragédia grega e dos trovadores medievais. E responde ao seu entrevistador dizendo que no Senegal a cultura é o fim último da política. Confessa que tinha interrompido a sua atividade poética porque estava a escrever um ensaio sobre a civilização negro-africana, considerava este trabalho a sua missão mais urgente para dar à política um fundamento cultural. Concluído esse ensaio, contava ainda escrever algumas elegias, e escrever mesmo para o teatro, um teatro simbólico e lírico na tradição negro-africana.
Eis um Senghor completamente desconhecido com a imagem que dele se faz ao tempo da luta armada na Guiné, tentou para o seu país uma via democrática, sujeitando a elevado controlo a existência dos partidos políticos.
Confessava-se adepto de um socialismo democrático, repudiou todos os quadros políticos marxistas que fizeram moda no seu tempo, naquele rincão africano.
Desaparecido da cena política em África, é tido hoje como o detentor de uma lírica inultrapassável na linha do encontro entre as culturas ocidentais e da África Negra.
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Nota do editor
Último poste da série de 27 DE DEZEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22849: Notas de leitura (1402): Memórias de um alferes, Leste da Guiné, 1967-1969: A CART 1690, uma das mais sinistradas, em toda a Guerra da Guiné (Mário Beja Santos)
Guiné 61/74 - P22858: Homenagem da Tabanca Grande ao Jorge Cabral (1944-2021), ex-alf mil at art, cmd, Pel Caç Nat 63 (Bambadinca, Fá e Missira, mai 1969 / ago 1971) - Parte I: "Alfero Cabral", uma genial criação literária, um "alter ego" do autor, usado como arma de irrisão contra o absurdo da guerra (Luís Graça)
Lisboa > Belém > 10 de junho de 2009, Dia de Portugal > Encontro Nacional de Combatentes, em Belém, junto ao Forte de Bom Sucesso > Vacas de Carvalho à direita da foto, Jorge Cabral deliciosamente "cercado" pelas camaradas da Polícia do Exército (PE).
Lisboa > XXVI Encontro Nacional de Homenagem aos Combatentes do Ultramar > Belém > 10 de junho de 2019 > Jorge Cabral e Juvenal Amado
Montemor-O-Novo > Ameira > Hotel da Ameira > I Encontro Nacional da Tabanca Grande > 14 de Outubro de 2006 > Um momento de fraternidade, pensa (e sente) o Jorge Cabral, em primeiro plano, tendo à sua direita o nosso baladeiro de Bambadinca (1969/71), e hoje fadista amador, o Zé Luís Vacas de Carvalho, comandante do Pel Rec Daimler 2206.
De pé, afinando as gargantas ou cantando ao desafio, outras duas grandes aves canoras: o Fernando Calado e o Manuel Lema Santos, o exército e a marinha de braço dado... O fotógrafo que estava de serviço apanhou o flagrante, era o David Guimarães, radiante, felicíssimo...
Agora que o Jorge Cabral partiu na "barca de Caronte" (**), este livro vamos guardá-lo com enorme saudade e relê-lo, talvez com outros olhos.
O prefácio que lhe escrevi ( "o charne discreto da humanidade ou a arma da irrisão contra o absurdo da guerra") (*) , continua atualíssimo e estou só a revê-lo aqui e ali.
“Cabral só há um, o de Missirá, e mais nenhum” continuará a ser o subtítulo, não explíicito deste livro, algo de saudavelmente provocador, mesmo que que não seja imediatamente percetível, para o leitor de hoje, a referência ao antropónimo Cabral e ao topónimo Missirá…
Missirá ficava na “portuguesíssima província” da Guiné, “muito longe do Vietname”, hoje República da Guiné-Bissau, país independente, de língua oficial portuguesa. E Cabral não era o Amílcar, o senhor engenheiro, de origemcabo-verdiano, mas nascido na Guiné, e líder de um movimento nacionalista que combatia os “tugas”, e considerado hoje o fundador do novo país lusófono que se chama Guiné-Bissau, mas o “alfero Cabral”, um personagem literário criado como um “alter ego” por Jorge Cabral…
Tal como muitos jovens da sua geração, o autor foi chamado para a tropa, ainda antes de acabar o seu curso de direito, e fez o caminho do calvário de muitos outros portugueses, milicianos ou do recrutamento geral (, sem esquecer os militares do quadro), acabando mobilizado para a então “guerra do ultramar”. (Estamos a falar do tempo em que o serviço militar era obrigatório e havia, desde 1961, uma guerra em três frentes, a milhares de quilómetros de casa.)
Alferes miliciano, “atirador de artilharia”, com passagem por Mafra e Vendas Novas, tinha nascido numa família de militares (, segundo creio), sob uma frondosa árvore genealógica que já dera à Pátria “muitos Cabrais e que tais” (, ironizava ele).
Não desertou como outros “meninos das Avenidas Novas”: foi comandar o Pelotão de Caçadores Nativos, nº 63, dividindo a sua comissão, entre 1969 e 1971, em dois destacamentos, Fá Mandinga e Missirá, no Leste da Guiné, região de Bafatá, Sector L1, Bambadinca. Foi, pois, meu vizinho e contemporâneo, e inclusive fizemos operações juntos.
No regresso à Pátria, foi advogado e docente universitário E, nomeadamente, dedicou uma vida à formação de técnicos superiores de serviço social, uma profissão largamente feminina (, ainda hoje).
E continuou a ser do “contra” mas… “sempre discreto”. Um dia, em dezembro de 2005, apresentou-se à Tabanca Grande, à “tertúlia” criada à volta do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, nestes termos singelos, muito reveladores da sua maneira de ser, estar e escrever:
“Através do blogue, recordo. E sinto. Vejo os rostos dos camaradas, oiço os sorrisos das crianças, e até, calcula, consigo admirar de novo os belos seios das bajudas. Peço permissão para pertencer à Tertúlia, oferecendo o ‘pícaro’ de alguns episódios que vivi.”Foi o início da série “Estórias cabralianas”, seguramente uma das mais populares que tivemos o privilégio de publicar no blogue, e que foi muito bem acolhida pela crítica literária de então… Cite-se, por exemplo, o nosso saudoso Torcato Mendonça (1944-2021):
“Só tu, meu caro Jorge, me embacias os óculos com o cloreto de sódio que me saíram dos olhos e molharam os ditos”…
E, de facto, ninguém melhor do que o “alfero Cabral” para nos fazer (sor)rir, ao descrever, em traço grosso, numa frase, numa linha, num parágrafo, numa legenda, uma situação-limite, uma fantasmagórica personagem de carne e osso, um hilariante ambiente de caserna, um garboso chefe militar da “tropa-macaca”, um episódio grotesco mas sempre humaníssimo da nossa (co) vivência na guerra, enfim, uma cena rocambolesca, pícara, brejeira, relativamente à nossa passagem pela Guiné “em defesa da soberania portuguesa”.
Eu, que fui seu contemporâneo e camarada de armas, passei depois a ser fã das suas “short stories”, os seus micro-contos, as “estórias cabralianas”, para mais sabendo que ninguém podia invejar o lugar de comandante deste tipo de destacamentos, isolados, na “linha de fronteira da guerra”, na terra de ninguém, guarnecido por pelotões de caçadores nativos, mais uns tantos “milícias” locais, com a família às costas, os cães e os tarecos, e mais meia dúzia de graduados e especialistas de origem metropolitano, à beira do abismo, esquecidos e abandonados...
Intrinsecamente do “contra” e “antimilitarista” (ou não tivesse sido ele também um “menino da Luz”, uma "rata" do Colégio Militar do ano de 1955), o criador das “estórias cabralianas” não tem qualquer propósito panfletário de denunciar a “guerra colonial”, pôr em causa a gloriosa tradição da “honra & glória” dos nossos africanistas, ou sequer de “ofender a instituição militar”, tão apenas o de manifestar a saudável loucura, própria dos seres humanos que são “condenados” ou “postos à prova” em situações-limite, face à morte, o sofrimento, as privações, o absurdo, o “non-sense”, a irrisão de uma guerra de fim de império... E aquela guerra, naquele espaço e tempo, tinha tudo isso.
Mas as “estórias cabralianas” são, também, um hino à idiossincrasia (lusitana e africana), à plasticidade comportamental dos nossos soldados, à enorme capacidade de resistência, de resiliência, de imaginação e de adaptação da nossa gente...
O Jorge Cabral que, quanto estudante universitário, leu o Ionesco e conhecia o teatro do absurdo, não coloca o seu “alter ego” na situação, confortável, do marionetista... Ele faz parte, de alma e coração, da peça, dos adereços, do cenário, do texto e do contexto… Ele expõe-se, como ninguém
Devo dizer que Jorge Cabral foi o mais “paisano” dos militares que eu conheci na Guiné. Em Fá Mandinga e depois em Missirá, e sempre que ia a Bambadinca, não se limitava a ser um heterodoxo “tuga”, representante da tropa, oficial miliciano, ator e crítico ao mesmo tempo. Era também homem grande, pai, patrão, régulo, chefe de tabanca, conselheiro, psicólogo, ‘amigo do turra’, poeta, socioantropólogo, feiticeiro, ‘cherno’ (catequista), ‘mauro’ (padre), ‘médico (com a difícil especialidade de ‘obstetra e ginecologista’, “consertador de catotas”), sexólogo, advogado e não sei que mais.
À força de ser propalada e levada pelo vento, de bolanha em bolanha, a histórica e temível frase “Cabral só há um, o de Missirá e mais nenhum” terá tido um efeito “contrassubversivo” e até “perturbador” nas “hostes do PAIGC”… Ao reivindicar ser ele "o único e legítimo Cabral", punha em xeque, o outro, o de Conacri, o "usurpador", que defendia os seus pergaminhos de Kalashnikov na mão…
Chegou por certo aos ouvidos do temível Corca Só, o chefe da 'barraca' de Madina / Belel, a sul do Morés, a tal ponto que no tempo do "alfero Cabral” não mais voltou a meter-se com a malta de Missirá…
Em Missirá, um destacamento mais exposto às morteiradas, canhoadas e roquetadas do IN (abreviatura de inimigo) do que Fá Mandinga, contava-se que o "alfero Cabral”, mais do que temido, passara a ser "respeitado" (e quiçá "venerado") pelos “camaradas do PAIGC”, desde o famoso dia em que foi atrás deles, na bolanha, a apaziguá-los e a tranquilizá-los: “Vocês não fujam, não tenham medo!!!... Sou o Cabral!!!”...
Eis, pois, um verdadeiro Lawrence, não das Arábias, mas do Cuor, das terras do Cuor, na Guiné!... Alguns dos seus amigos e companheiros de Bambadinca (aonde ele ia com frequência matar a sede) chegaram a recear que ele ficasse completamente ‘cafrealizado’ ou ‘apanhado do clima’.
O “alfero Cabral”, sua genial criação literária, nunca acentua o lado do “bestiário da guerra” que há no Homo Sapiens Sapiens, mas sim o da sua humaníssima, frágil, quase tocante, condição de primata, de primus inter pares na ordem zoológica do mundo... O único animal que, afinal, consegue esta dupla proeza: (i) ser capaz de rir-se de si próprio; e (ii) e mostrar, pelo outro, compaixão (no seu sentido etimológico cum + passio: sofrimento comum, comunidade de sentimentos, partilha da dor… e prazer).
O seu sentido de humor é muito próprio: nu, de tanga (uma toalha à volta cintura), e de G3 às costas, é uma figura impagável, que nos acompanha, de princípio ao fim, fazendo destas “short stories” pérolas literárias, que só podiam ser fruto de um espírito aberto, fraterno, pacifista, sadio, maroto, provocador, lúcido, irreverente, desconcertante, descomplexado.
A par da imensa tragédia que provocou (com perdas e danos, materiais e simbólicos, irreparáveis), a guerra da Guiné foi também palco (hilariante) de muitas peças do Teatro do Absurdo (envolvendo as NT, o IN, os nossos oficiais superiores, o “Caco Baldé”, os nossos camaradas, de diferentes cores e feitios, a população local e, claro, as "bajudas")...
Por outro lado, Jorge Cabral é um dos poucos que tem o engenho e a arte de nos conseguir falar (e, sobretudo, enternecer e comover), com um subtil toque de humor, de maneira descomplexada, das nossas relações com as mulheres locais, sem nunca cair na “ordinarice de caserna”…
Veja-se, por exemplo, essa fabulosa estória, da primeira vez que veio passar férias à Metrópole, em janeiro de 1970, a compra, num grande armazém de Lisboa (, takvez o Grandela), de trinta e oito sutiães de todos os tamanhos e cores, e que ele levou consigo, na bagagem, de regresso a Fá Mandinga, para oferecer às suas queridas bajudas. Mas não se pense, malevolamente, que ele tinha um harém: simplesmente organizou “a festa do corpinho, para a alegria das bajudas, que envergaram o seu primeiro sutiã”…
À laia de conclusão e incentivo para a leitura, acrescentarei este excerto de uma mensagem que em tempos lhe dirigi e que não perdeu nem acuidade nem atualidade, depois agora que ele partiu na barca de Caronte:
“Só tu, meu querido Jorge, consegues pôr a malta e o resto a tropa a fazer... o pino!...Tu és a subversão total, o iconoclasta, o bombista-suicida, o terrorista intelectual, o humorista-mor e outras figuras que tais, que em muito contribuíram para o fim do nosso longo, vasto e glorioso Império...
O teu humor é(era) subversivo, corrosivo, demolidor... Depois de te ler, um homem, um ‘tuga’, já não é mais o mesmo... Tu devias ir a tribunal militar, porque tu tiras a ‘tusa’... a qualquer combatente... Depois de te ler, quem é o combatente (até mesmo o de Alá!) que se sentirá com ‘tomates’ para ir combater na guerra, nas próximas ‘guerras santas’ que se avizinham?!”...
Luís Graça, editor do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (*)
[Na altura, em outubro de 2020, o Jorge Cabral manifestou-me o seu agrado e apreço pelo prefácio que lhe escrevi, mas, modesto como era, disse-me que não merecia tantos... adjetivos!]
Escreveu o seu filho, Pedro Almeida Cabral, em 28 do corrente, na sua página do Facebook:
Jorge Almeida Cabral, 1944-2021. Jorge Almeida Cabral
O meu querido e adorado pai faleceu hoje de manhã, em paz e ao meu lado, vítima de um cancro de pulmão raro e agressivo. Como sei que muitos o admiravam, deixarei, quando souber, os detalhes das cerimónias fúnebres.
Esta fotografia, de que gosto particularmente, é dele em Moscovo, no verão de 2019, a jantar comigo num restaurante da moda. Está com a típica expressão a dizer que eu sou maluco (uma das suas frases preferidas), acompanhado do seu inseparável cachimbo.
Notas do editor:
(*) Adapt. do prefácio de Luís Graça ao livro de Jorge Cabral, "Estórias Cabralianas", vol I. Lisboa: Ed José Almendra, 2020, 144 pp(**) Vd. postes de
28 de dezembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22852: In Memoriam (421): Jorge Pedro de Almeida Cabral (Lisboa, 1944- Cascais, 2021), ex-al mil at art, cmd Pel Caç Nat 63 (Fá e Missirá, 1969/71), advogado, professor de direito penal no Instituto Superior de Serviço Social de Lisboa, nosso colaborador permanente e autor da impagável série "Estórias cabralianas" (de que se publicaram cerca de uma centena de postes)Guiné 61/74 - P22857: Parabéns a você (2020): Adelaide Barata Carrêlo, Amiga Grã-Tabanqueira
Nota do editor
Último poste da série de 27 de Dezembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22848: Parabéns a você (2019): José Pedro Neves, ex-Fur Mil Op Esp da CCAÇ 4745/73 (Binta, Jugudul e Mansoa, 1973/74)
quinta-feira, 30 de dezembro de 2021
Guiné 61/74 - P22856: O meu sapatinho de Natal (23): Boas festas para o coletivo da Tabanca Grande, desde as "Arábias"...e ainda em tempo de pandemia de Covid-19: recordando os 50 anos da partida do BART 3873 para o CTIG, em 22/12/1971 (Jorge Araújo)
Foto 1 > Cais da Rocha > Lisboa > 22 de Dezembro de 1971, 4.ª feira > N/M Niassa zarpando rumo ao cais do Pidjiguiti (Bissau; Guiné) com mais um contingente de cerca de mil e quinhentos jovens milicianos entre os quais os do contingente da CART 3494 do BART 3873. [foto do álbum do António Bonito, fur mil da CART 3494], com a devida vénia.
Jorge Araújo: (i) ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494 / BART 3873 (Xime e Mansambo, 1972/1974); (ii) um homem das Arábias, doutorado pela Universidade de León (Espanha) (2009), em Ciências da Actividade Física e do Desporto; (iii) professor universitário, no ISMAT (Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes), Portimão, Grupo Lusófona; (iv) vive entre entre Almada e Abu Dhabi; (v) autor, entre outras, da série "(D)o outro lado do combate"; (vii) nosso coeditor, tem 300 referências no nosso blogue.
BOAS FESTAS
Ainda em tempo de pandemia “COVID-19”
Recordando a data da partida para o CTIG, em 22dez1971 - uma efeméride com 50 anos (1971/2021)
► CAMARADAS,
Nesta Quadra Natalícia de 2021, que pelo segundo ano consecutivo continua a ser vivida num contexto atípico devido à pandemia «Covid-19», agora sob o efeito da variante «ómicron», recupero uma outra, que na fita do tempo atingiu meio século, como foi a consoada de 1971, a primeira do contingente da Companhia de Artilharia 3494, comemorada em Alto Mar, ao terceiro dia de uma viagem de seis, a bordo do N/M Niassa, rumo ao Cais do Pidjiguiti, em Bissau.
Com efeito, para recordar essa efeméride com cinquenta anos (1971-2021), recorri a uma imagem que, entre muitas outras já aqui publicadas, acabou por mudar o rumo das nossas vivas, no caso dos milicianos da geração de “50” (1950) que, maioritariamente no ano de 1971, ingressaram nas Forças Armadas do País, ramo Exército, para cumprirem o serviço militar, em defesa da Pátria e do seu Império Colonial, no qual se incluia o conceito de “Missão Ultramarina”, a decorrer num tempo mínimo de vinte e quatro meses.
A sua chegada ao Cais do Pidjiguiti, em Bissau, ocorreu a 29 de Dezembro de 1971.
Foto 2 > Cais do Pidjiguiti > Bissau > 29 de Dezembro de 1971, 4.ª feira > N/M Niassa. Desembarque do contingente metropolitano da foto 1. [foto do álbum do António Bonito, fur mil da CART 3494], com a devida vénia.
Foto 3 > Abu Dhabi > Dezembro de 2021 > Interior do Centro Comercial “Galleria Mall” com ornamentações de Natal (com a devida vénia).
► Desde os Emirados Árabes Unidos, país onde actualmente resido, e que, por coincidência, comemorou também, este mês, uma efeméride com 50 anos (1971-2021), esta respeitante à aprovação da constituição da União dos Sete Emirados [EAU], escrita em 2 de Dezembro de 1971 pelos mandantes de Abu Dhabi e Dubai que, naquela ocasião, eram Emirados independentes, desejo um
Foto 4 > Abu Dhabi > Dezembro de 2021 > Uma das entradas
do Centro Comercial “Galleria Mall” com ornamentações de Natal (com a devida
vénia).
Com um forte abraço de amizade,
Jorge Araújo.
20Dez2021.
Último poste da série > 30 de dezembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22855: O meu sapatinho de Natal (22): "E...o tempo passa!" (José Belo, Key West, Florida, EUA)... Ou o tempo devora-nos, Zé ?! ... Como devorou os castrejos do Zambujal... (Luís Graça)
Guiné 61/74 - P22855: O meu sapatinho de Natal (22): "E...o tempo passa!" (José Belo, Key West, Florida, EUA)... Ou o tempo devora-nos, Zé ?! ... Como devorou os castrejos do Zambujal... (Luís Graça)
1. "E...o tempo passa!", diz o José Belo, que nos manda este "cartanito" com a paisagem fantasmagórica fixada pela objetiva de um fotógrafo presumivelmente lá da sua terra de adoção, Lapónia, Suécia...
Um abraço do J.Belo"....
2. E eu respondi-lhe, em meu nome, mas também da Tabanca Grande:
"Bolas, José!.. Já estamos em 2022!...O tempo devora-nos. Espero que tenhas tido uma festa de Natal "quentinha", rodeado daqueles que amas e que te amam, filhos, netos, amigos... Obrigado pelo teu "cartanito" de Key West...
Depois de um 'annus horribilis' de 2021, recebi uma bela 'prenda de Natal': estou na lista para ser operado, talvez já em janeiro... Com uma prótese no joelho, espero poder livrar-me (?) das 'canadianas' e ter mais autonomia para andar, passear e viajar... Vamos ver. Estou moderadamente otimista. (...)
E acrescentei mais o seguinte:
"Entretanto, há umas semanas atrás. a 3 de dezembro, em visita com uns amigos ao Museu Municipal de Torres Vedras, deparei-mec om uma grande foto do teu avô, Aurélio Ricardo Belo e o merecido (e devido) destaque ao seu papel pioneiro, juntamente com Leonel Trindade, na identificação e primeiras escavações do Castro do Zambujal. É ele que propõe, em 1944, a sua classificação como monumento nacional. Em 1993 foi ele que descobriu o povoado calcolítico do Penedo. Não resisto a enviar-te algumas fotos que fiz, mesmo penosamente, com canadianas...
Vai dando notícias. Tudo de bom para ti e família. Luis
PS - Penso que também já te enviei em tempos esta referência, uma nota biográfica do teu avô, Aurélio Ricardo Belo (Fundão, 1877- Lisboa, 1961) cuja memória é bem recordada em Torres Vedras, e que tu ainda conheceste na tua adolescência.
Torres Vedras > Museu Municipal Leonel Trindade > 3 de dezembro de 2021 > Exposição em permanência > "Histórias do Zambujal: 50 anos do Instituto Arqeuológico Alemão em Torres Vedras". Foto de L.G. (2021)
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Nota do editor:
Último poste da série > 27 de dezembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22850: O meu sapatinho de Natal (21): Merry Christmas! (João Crisóstomo, Nova Iorque)
Guiné 61/74 - P22854: In Memoriam: Jorge Cabral (1944-2021): Velório na igreja de São João Batista do Lumiar (no início do Paço do Lumiar), a partir das 17h00 de sábado, dia 1 de janeiro, e funeral às 15h30 do dia 2, no cemitério do Lumiar. Homenagem da Associação dos Profissionais de Serviço Social
1. Notícia divulgada hoje pela Margarida Pouseiro, na página do Facebook do nosso querido camarada Jorge Cabral (1944-2021) (*)
Com a devida permissão, o velório da nossa Alma Maior, professor, amigo e camarada, terá lugar na Igreja do Lumiar a partir das 17h00 de sábado, dia 1 de janeiro. A Cerimónia religiosa será também na Igreja do Lumiar às 15h00, no domingo, dia 2 de janeiro.
A alminha Marlene sugeriu que quem puder e quiser leve a capa como forma de o abraçar
Muitas palminhas ao sempre Nosso Jorge Almeida Cabral.
Nota do coeditor Carlos Vinhal:
Esta informação foi-nos confirmada pelo filho do nosso saudoso camarada. Velório, no sábado, dia 1 de janeiro, a partir das 17h00, na Igreja de São João Batista do Lumiar (no início do Paço do Lumiar). E depois no domingo, dia 2 de janeiro, a cerimónia religiosa será às 15h00, também na mesma Igreja.
2. A APSS - Associação dos Profissionais de Serviço Social prestou, na sua página do Facebook, a seguinte homenagem ao prof Jorge Cabral, em mensagm de 28 do corrente, que aqui reproduzimos com a devida vénia:
Hoje é dia de prestarmos homenagem a alguém que não só participou na formação de muitas e muitos assistentes sociais, como foi sempre um forte defensor da nossa categoria profissional, do seu papel na sociedade e um apoiante na luta pela regulação da profissão.O Professor Jorge Almeida Cabral permanecerá na memória de várias gerações de assistentes sociais como um docente que soube transmitir a importância do Direito na vida profissional, enquanto mecanismo de defesa dos Direitos dos Cidadãos.
Presente em todas as lutas empreendidas pela APSS, será sempre lembrado pelo seu humor, pela sua sagacidade e pelo seu respeito por tod@s nós. Por tudo o que nos deu, prestamos-lhe a nossa homenagem, expressamos a nossa gratidão.
À sua família, em especial ao seu filho, enviamos as nossas condolências e a certeza de que a sua memória perpetuará entre nós.
Nota do editor:
(*) Último poste da série > 28 de dezembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22852: In Memoriam (421): Jorge Pedro de Almeida Cabral (Lisboa, 1944- Cascais, 2021), ex-al mil at art, cmd Pel Caç Nat 63 (Fá e Missirá, 1969/71), advogado, professor de direito penal no Instituto Superior de Serviço Social de Lisboa, nosso colaborador permanente e autor da impagável série "Estórias cabralianas" (de que se publicaram cerca de uma centena de postes)
quarta-feira, 29 de dezembro de 2021
Guiné 61/74 - P22853: Historiografia da presença portuguesa em África (296): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (1) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Março de 2021:
Queridos amigos,
Este distintíssimo oficial da Armada, que combateu na Guiné, natural de Cabo Verde, elaborou uma extensa memória para a Real Academia das Ciências e sem dar por isso estava a lavrar os caboucos para uma aproximação à História da Guiné, o mínimo que se pode dizer é que foi um investigador pioneiro até a colónia ter fronteiras legitimadas. Não tem papas na língua, denuncia atropelos e corrupções. Na justa medida em que aqui se tem tratado com alguma largueza o primeira período da presença portuguesa, centrámos a observação com a chegada da Restauração, é bem patente a fatura de abandonos e incúrias, franceses e ingleses começaram a escolher posições e irão definir a geografia do Senegal e da Gâmbia, da Guiné Conacri e da Serra Leoa. O que se regista neste texto tem a ver com as tentativas de missionação e a garantia da nossa presença em Cacheu e zonas limítrofes bem como apoiar o comércio português em Bissau, também ele sujeito a severa concorrência. Não é admissível fazer-se historiografia da Guiné Portuguesa sem dar a palavra a Senna Barcelos, é dado assente.
Um abraço do
Mário
Um oficial da Armada que muito contribuiu para fazer a primeira História da Guiné (1)
Mário Beja Santos
São três volumes, sempre intitulados "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada, oficial distinto, condecorado com a Torre e Espada pelos seus feitos brilhantes no período de sufocação de sublevações em 1907-1908, no leste da Guiné. Todo este esforço de inventário é dedicado à memória de Gil Eanes e ele dá a justificação: “Gil Eanes não descobriu só o caminho marítimo para o Oriente; abriu as portas à navegação para todo o mundo. Das suas cinzas ninguém sabe onde repousam; recordação do seu nome nem no pobre casco de um navio português figura a par de Bartolomeu Dias, Vasco da Gama, Sá da Bandeira, Duque da Terceira e outros que não cometeram nunca actos de tanto heroísmo nem deram a Portugal tantas riquezas e páginas tão brilhantes na sua História”.
Começa o seu levantamento do período de 1460 a 1466. Abre deste modo: “A história destas ilhas não é para nós, filhos delas, um estudo indiferente, de mera curiosidade, em que toquemos ao de leve. Consultámos os principais cronistas, Fernão Lopes, Azurara, Rui de Pina, Damião de Góis, João de Barros, André de Resende e lemos com atenção as viagens do piloto veneziano Luís de Cadamosto; passámos pela vista os trabalhos de Lopes de Lima e de outros escritores modernos; com sossego vimos os arquivos das ilhas, Torre do Tombo e as bibliotecas públicas de Lisboa, Évora, Coimbra e particularmente a da Ajuda, as quais encerram preciosos manuscritos”.
É desassombrado, desmascara tropelias, corrupções, atos de maldade, até erradas decisões régias. Vê-se que escritores e investigadores que o seguiram o leram cuidadosamente, a ponto de vezes sem conta o repetirem. Como não vejo novidade de tudo quanto ele escreve até meados do século XVII, vamos tomar em conta alguns dados que ele apresenta com D. João IV e a Restauração. Não esconde que as lutas da Restauração afetaram profundamente a Guiné e Cabo Verde, basta pensar na proibição de comércio, a escassez de navios de Portugal para permutar fazendas com géneros coloniais. O Vaticano, indisposto com Portugal por causa de Castela, negou-se a confirmar bispos, foi assim durante toda a Guerra da Restauração. “D. João IV, prevendo as funestas consequências que haveria se o fervor religioso desaparecesse, especialmente na Guiné, onde os nossos domínios se estendiam à sombra da Cruz, ordenara a construção, na cidade da Ribeira Grande, de um convento e de um hospício na Guiné, cujas obras só ficaram concluídas depois da sua morte. Além disto ainda a despesa era aumentada com o transporte e alimentação dos religiosos, pagos com ordenado custeado pelos rendimentos da capitania. Reduzido à maior pobreza o erário desta, abusavam por necessidade, governadores e ouvidores, das ordens régias, proibindo o negócio com estrangeiros e até negociando alguns por sua conta e risco, vendendo-nos escravos para assim conseguirem meios de poderem viver desafogadamente (…) Os religiosos, passando à Guiné, iam primeiro a Cacheu e dali internavam-se pelo chão do gentio, convertendo este; para melhor podermos ajuizar dos trabalhos e martírios destes varões narremos o que nos conta frei André de Faro entre 1663 e 1664.
Deu começo à sua missão partindo do Cacheu para o porto de Guinguim, reino dos Banhuns, e uma vez na Praça do Rei D. Diogo lhe disse o fim por que viera à Guiné. Foi bem tratado pelo rei, e como nesse porto se estivesse fazendo uma igreja e próximo houvesse um china (feitiço ou ídolo dos pretos) pediu Frei André ao rei que o mandasse tirar dali, ao que ele anuiu. Em seu lugar armaram uma cruz, fizeram a procissão, e depois de um Te Deum Laudamus seguiram para Bissau, continuando na conversão dos Banhuns os religiosos que já ali estavam.
Em Bissau foram igualmente bem recebidos pelo rei. Havia já ali uma igreja e religiosos. Os frades pediram ao rei para se batizar, dizendo ele que a essa hora não podia responder, porém que não proibia a ninguém do seu reino que se fizesse cristão.
Passaram ao rio Nuno e foram à povoação onde vivia o rei D. Vicente, que já se tinha convertido ao Cristianismo. Aqui também já havia uma igreja, e conta Frei André que era grande o número de portugueses ali residentes e empregados no comércio de tintas, marfim e negros, e que se encontravam casas inglesas. Em peregrinação para a Serra Leoa encontrou Frei André um religioso espanhol, de quem se separou no rio, indo agasalhar-se na casa de um gentio ausente da aldeia; dentro da casa estavam os ídolos, que Frei André e um seu companheiro quebraram e deitaram ao fogo. Os gentios, sabedores disto, irritaram-se, e se não fora o soba cristão teriam pago com a vida essa imprudência, sujeitando-se apenas a serem expulsos (…) As necessidades e sofrimentos que deviam ter suportado os religiosos na missão de Cabo Verde e Guiné podem-se bem avaliar comparando-as com a miséria dos padres seculares das freguesias novas, criadas nas pequenas e estéreis ilhas de Maio, Boavista e S. Nicolau, que para se manterem à testa da freguesia lhes fora preciso aceitar esmolas dos habitantes, já de si pobres”.
O estado de abandono, a ausência de presença portuguesa convidava a concorrência estrangeira, como escreve Senna Barcelos: “Vimos a França de posse da Goreia sem para isso ter despendido um real com missões, e também a Inglaterra que mandava ocupar a Gâmbia quase às portas de Cacheu, onde a nossa influência já era grande. Fizemos despesas enormes com a construção de conventos e sustentação de religiosos, para os deixar viver na ociosidade, sem deles se aproveitar o que mais importava a Portugal: a nossa expansão na Guiné”.
Mais adiante o investigador fala-nos na evolução da situação em Cacheu: “Em 1686 houve um levantamento do povo de Cacheu contra o Capitão-Mor, José Gonçalves de Oliveira, prendendo-o e desterrando-o para Farim, por motivo de excessos cometidos. Foi nomeado então António de Barros Bezerra para tratar de compor a sedição, prender os criminosos, fazer a ocupação, ficando Cacheu independente de Cabo Verde enquanto os ânimos dos alevantados não sossegassem. O novo Capitão-Mor, Bezerra, mandou levantar um auto pelo juiz ordinário, do qual se provou terem sido autores dessa prisão uma tal Bibiana Vaz, ricaça de Cacheu, e que vivia no chão do gentio; e seu irmão António Vaz e sobrinho Francisco Vaz, que andavam indispostos com o capitão-mor por este não consentir que negociassem com inglês e mais estrangeiros. Ordenou-se ao novo governador de Cabo Verde que passasse à Guiné e sequestrasse os bens daqueles criminosos. Não pôde fazer sequestro algum, visto que a fortuna da Bibiana estava nas terras do gentio. Regressou a Santiago trazendo os dois criminosos presos. Durante a sua permanência em Cacheu ocupou-se da proibição do comércio com os estrangeiros e da fortaleza de Bolor. O Capitão-Mor Bezerra dizia em 4 de março de 1687 haver muito sossego em Cacheu, e ter fortificado esta Praça, porém que o comércio estava arruinado porque os ingleses e franceses causavam ali grandes danos com os navios que metiam naqueles portos, dizendo senhores de toda a costa até ao Cabo da Boa Esperança.
Relatou circunstanciadamente a pretensão que tiveram os franceses de construir uma fortaleza em Bissau para o que já tinham enviado três fragatas de guerra e os materiais precisos, assim como quatro pequenas embarcações, assenhoreando-se de todo o negócio dali, e que, se não houvesse cuidado, em breve seriam senhores de toda a Guiné; porém que ele tinha evitado essa construção por intermédio daquele gentio e que eles vendo frustrados os seus desejos, intentaram fazê-lo no ilhéu junto, o que ele não podia impedir por falta de recursos. Mostra que a importância de Cacheu proveio dos rios, e principalmente de Bissau, para onde vão os portugueses, que ali pretendem levantar uma fortaleza, levando as suas embarcações de pouca força, que não são de guerra, o que fará sucumbir Cacheu, que se ia despovoando com a fuga de muitos para o mato por não poderem comerciar com os estrangeiros”.
É um relato minucioso, dele vamos dar mais pormenores até chegarmos à parte terceira, já no reinado de D. José I.
(continua)
Nota do editor
Último poste da série de 22 DE DEZEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22830: Historiografia da presença portuguesa em África (295): Memória dos Felupes, artigo de José Joaquim Lopes de Lima, 1839 (2) (Mário Beja Santos)
terça-feira, 28 de dezembro de 2021
Guiné 61/74 - P22852: In Memoriam (421): Jorge Pedro de Almeida Cabral (Lisboa, 1944- Cascais, 2021), ex-al mil at art, cmd Pel Caç Nat 63 (Fá e Missirá, 1969/71), advogado, professor de direito penal no Instituto Superior de Serviço Social de Lisboa, nosso colaborador permanente e autor da impagável série "Estórias cabralianas" (de que se publicaram cerca de uma centena de postes)
1. Deixou-nos hoje, o Cabral (*). Aos 77 anos (**). Cansou-se de brincar às guerras, morreu na única guerra que ele verdadeiramente temia, o cancro do pulmão... "Estou a morrer, estou a morrer", dizia-nos ele a alguns de nós por estes dias, por estas semanas... Não o levávamos a sério, a princípio ... Um humorista não morre. O "alfero" Cabral, o nosso anti-herói, não podia morrer!
Estou em Vila Nova de Gaia, telefonou-me o Benjamim Durães a dar-me a funesta notícia... À hora do almoço... Sei que era uma morte anunciada, mas a família, e sobretudo os amigos, acabam sempre por ser surpreendidos, sobretudo quando se está mais longe, quando chega o "carteiro da morte".
(*) Último poste da série > 20 de dezembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22827: In Memoriam (420): Jaime Brandão, ex-Fur Mil Pil da FAP, falecido em 18 de Dezembro de 2021 - Adeus e até já, Jaime. Partiu hoje um dos maiores amigos que tive na minha vida! (Joaquim Mexia Alves, ex-Alf Mil Op Esp)
por Jorge Cabral
Vinte e seis ou Mil, conto pelos dedos
Os anos que vivi, eu não sonhei
Este tempo de angústia e de medos,
Que soletro e nunca sei.
Que Guerra é esta? Onde não estou!
Que rio aquele? Não cheira a Tejo!
Que combate? Combato, mas não sou.
E quando olho o espelho, não me vejo!
Aqui em Missirá, escravo e senhor
Invento-me. E guarda – prisioneiro
Bebo, fingindo em alegria, a Dor.
Hoje faço anos… e continuo inteiro.
Missirá, 6 de Nov. 1970 (...)
Guiné 61/74 - P22851: A nossa guerra em números (11): Pedro Marquês de Sousa estima um rácio de 10 feridos por cada morto... A Guiné teve, em números absolutos e relativos, mais feridos graves em combate e Angola por acidente
Guiné > Região de Bafatá > Sector L1 > Bambadinca > CCAÇ 12 (1969/71) > A solidariedade dos combatentes... Dois soldados, guineenses, do 3º Grupo de Combate, do Alf Mil At Inf Abel Rodrigues, amparam o 1º Cabo Carlos Alberto Alves Galvão, metropolitano (vive hoje na Covilhã, estando reformado da Direcção Geral das Contribuições e Impostos), comandante da 1ª secção, o homem que cometeu a proeza de ter sido ferido duas vezes no decurso da mesma operação (Op Boga Destemida, 9 de Fevereiro de 1970).
"Slide" do Fur Mil At Inf Arlindo T. Roda, comandante da 2ª secção, que nesses dias (8 e 9 de Fevereiro de 1970) levou para o mato a sua máquina fotográfica... (Não era vulgar levar-se uma máquina de fotografia, para o mato, em operações, numa região como esta em que a probabilidade de contacto com o IN era muito alta. Estou muito grato ao Roda, que já não vejo desde 1994, e que vive em Setúbal, por generosamente nos disponibilizar a sua fabulosa colecção de "slides", convertidos para o digital...)
Foto: © Arlindo T. Roda (2010). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Segundo Pedro Marquês de Sousa ("Os números da Guerra de África". Lisboa, Guerra & Paz Editores, 2021, pág. 144), dos cerca de 28 mil feridos graves evacuados durante a guerra (nos 3 teatros de operações), "resultaram cerca de 14 mil deficientes", dos quais "5120 com grau de deficiência superior a 60%"...
Além disso, desses 14324 feridos graves e deficientes, 1852 estão classificdos na categoria de "amputados" (12,9%), dos quais 480 em Angola, 540 na Guiné, 697 em Moçambique e 135 na instrução e serviço militar.
- Angola (31%)
- Mocambique (23%)
- Guiné (25%)
- Instrução / Serviço Militar (21%)
- Angola: 43,3 %
- Guiné; 21,8 %
- Moçambique: 34,9 %
- 41% em Angola
- 29% na Guiné
- 30% em Moçambique
(**) Último poste da série > 12 de dezembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22803: A nossa guerra em números (10): o Movimento Nacional Feminino tinha um orçamento ordinário de 10 mil contos (cerca de 2 milhões de euros, a preços de hoje) e uma gestão pouco profissionalizada, retirando-lhe credibilidade e apoios da sociedade civil