terça-feira, 25 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23738: (Ex)citações (418): Os Consulados da Guiné, a Preparação Militar e a tarimba dos "velhos" (Victor Costa, ex-Fur Mil, At Inf, CCAÇ 4541/72, Safim, 1974)

1. Mensagem do nosso camarada Victor Costa, ex-Fur Mil At Inf, CCAÇ 4541/72 (Safim, 1974), com data de 23 de Outubro de 2022:

Amigos e camaradas da Guiné
Nem sempre a minha actividade me dá o tempo necessário para escrever sobre os diversos temas aqui abordados. Esta mensagem está relacionada com o meu comentário de 10 de Julho de 2022, sobre as Directivas do Gen. Bettencourt Rodrigues e o MFA, espero que o debate sobre este tema não esteja fechado.

Guardo na memória uma das minhas primeiras patrulhas de reconhecimento feita num local do rio Mansoa próximo da travessia de João Landim durante a noite com o objectivo de verificar se havia movimento do IN.



Os Consulados da Guiné, a Preparação Militar e a tarimba dos "velhos"

Partimos ao anoitecer no fim de Março de 1974, a fim de realizar uma patrulha de reconhecimento e verificar se havia movimento nas proximidades da travessia do rio. As nossas armas eram apenas as G3 e carregadores. O condutor do Unimog levou-nos até ao fim duma picada e aí nos deixou.

Ele voltou para o Quartel e nós iniciámos a patrulha pela mata até chegar a uma bolanha, conheço bem este tipo de terrenos, cresci junto e exerço a actividade de Aquacultura Marinha no Estuário do Rio Mondego.

Sirvo-me da proteção duma maracha coberta de vegetação meio-seca, (pequenos muros de terra), que corriam na direção do Rio, estávamos na época seca e o terreno encontra-se seco e duro, eu ia à frente da secção a visibilidade era boa e a progressão decorria sem dificuldade, mandei aumentar a distância entre nós e paramos algumas vezes durante o percurso para escutar sons que viessem do rio.

Ao chegar ao aluvião brilhante constatei que tinha chegado à praia (sapal) na zona de influência das marés, estava baixa-mar e era bem visível a água turva do rio e a praia, não avancei mais. O nosso peso podia dificultar muito os nossos movimentos se o aluvião não fosse compacto, por isso continuamos a nossa progressão pelo terreno seco ao longo da margem, até ao nosso objectivo.

Procurei um local seguro e ali ficamos umas horas protegidos e envoltos pela vegetação, a vigiar a praia e as águas do rio procurando não fazer movimentos. Era uma noite de luar e a visibilidade era boa. Tinham já passado umas horas e não vimos quaisquer movimentações de pessoas, decidi iniciar o regresso, para ir ao encontro do Unimog.

Depois de sairmos da bolanha voltamos a entrar na mata, vi um mangueiro e uma pequena clareira e reconheci que já tínhamos passado ali no início da missão, estávamos perto do ponto de reunião. O mangueiro pareceu-me um bom local, mandei o pessoal aproximar-se do tronco da árvore e aguardar.

O Soldado Silva tinha à data mais de 26 anos e era o mais velho da Secção, era um militar experiente, chamou-me à parte e perguntou-me se iríamos continuar naquele local e como eu confirmei, comentou: - Olhe que não me parece um sítio bom, se aparece um turra com um RPG e faz pontaria ao mangueiro, pode lixar-nos! - E com o dedo indicador apontou para a malta junto ao grosso tronco do mangueiro e continuou, olhe que nós estamos no fim da Comissão, o nosso último morto foi no dia 7 de Janeiro deste ano e eu quero regressar a casa.

Bati na real, estava a receber uma lição dum soldado e ainda mais, nunca tinha ouvido falar nem conhecia o RPG, não pensei duas vezes, o mais sensato era ouvir o que o "velho" dizia e seguir o seu conselho, ia arriscar para quê? Assim foi, continuamos dentro da mata, fizemos o reconhecimento do local fomos aguardar próximo do ponto de reunião, para escutar o som da chegada do Unimog, que chegou quase ao romper do dia.

Como era possível nunca ter ouvido falar de RPG nem me ter passado pela cabeça aquela forma de utilização. Aquilo para os "velhos" era rotina, uma coisa simples e banal, para mim foi aprender e começar a pedir a sua opinião. Assim se formou um grupo coeso, tudo o que eles precisavam eu procurava resolver e tudo o que eu pedia era feito, minha integração foi tão simples, que passado umas seis semanas a CCaç 4541/72 elegeu-me para a delegação do MFA.

As bolanhas podem ser cultivadas e nós devíamos conhecer e ter presente que a guerra obrigou algumas populações ao abandono das culturas de muitos destes terrenos, em alguns locais desenvolveu-se um sentimento hostil, a maioria das NT nem ligava a isto e por isso uma simples travessia podia pôr-nos numa posição de desvantagem perante o IN.

Existe uma fotografia demonstrativa, no Blogue, do que parece ser um pelotão de homens com água pela cintura a atravessar uma bolanha rodeados de plantas aquáticas, que me parece no mínimo insensato, mas é também um desafio ao heroísmo (tangente à loucura) que se enquadra no livro "homens, espadas e colhões", que Rainer Daehnhardt descreveu sobre a coragem dos nossos antepassados.

A instrução de tiro instintivo é muito importante desde que os instruendos tenham aptidão para isso. Dominar uma arma e o tiro instintivo torna-nos mais confiantes e seguros, mas não o conseguimos sem treinar bastante e gastar muitas munições, o tiro instintivo na guerra não é o suficiente mas ajuda muito, eu dominava essa técnica.

Eu não conhecia as Directivas do Com-Chefe Bettencourt Rodrigues e por isso ver escrito preto no branco "Um cartucho por homem serve para detectar um mau atirador", conhecer a realidade dos factos e não ver uma única palavra escrita sobre a má alimentação, os seiscentos escudos por mês que as praças recebiam, a insuficiente preparação militar das NT, desde praças, sargentos e oficiais milicianos, o livro do combatente - patrulhas - o desconhecimento sobre o terreno da Guiné e a sua ideia que a carne para canhão continuava disponível para tudo, incluindo resistir até à exaustão e deixar cair a Guiné, mas nunca negociar com o PAIGC, foi uma desilusão ler estas Directivas e a sua visão da Guerra.

Não podemos no entanto esquecer que este problema era do conhecimento dos militares que compunham o estado embrionário do MFA, também nunca foi uma prioridade para o MFA. A seguir ao 25 de Abril, havia uma vontade da tropa regressar e quanto mais depressa melhor, o TCoronel Almeida Bruno deslocou-se a Bissau em representação do MFA no dia 7 de Maio de 1974 para promover a reestruturação e apelar à preservação da disciplina e da hierarquia das FA como consta da 1.ª pág. do BI do MFA n.º 1 na Guiné.

Essas decisões foram reforçadas pela Circular n.º 1703 da 2.ª Rep do EME e do Com-Chefe das FA da Guiné de 28 de Maio de 1974, também publicada aqui no Blogue, com as negociações de paz a decorrerem, a disciplina e a hierarquia eram mais importantes do que nunca, só um exército forte e coeso pode fazer uma boa negociação.

Sabendo disto alguns oficiais do MFA preferiram fazer política, Otelo Saraiva de Carvalho admitiu as fragilidades do seu pensamento político ao declarar em (os dias loucos do PREC, pág. 324 José P. Castanheira) "Faltou-me estrutura política que me podia ter possibilitado, desde o início ser o líder da Revolução, se tivesse cultura livresca, podia ser o Fidel Castro da Europa" e quantos membros do MFA quiseram ser os líderes da revolução? Não sabemos, o que sabemos é que foram todos para a Academia para seguir uma carreira militar, mas alguns mudaram de opinião, quiseram ser também revolucionários e nunca tiveram a coragem de assumir que estiveram perto lançar o povo numa guerra civil. Ainda bem que não estive sob as suas ordens, porque tinha que sujeitar-me a ver mais um livro publicado cheio de boas intenções e com a sua opinião sobre a sua verdade dos factos.

Tinha apenas 22 anos, mas percebi perfeitamente o que se passava em Bissau. Apenas um pequeno número de elementos do MFA tomava as decisões, mesmo assim sujeitas à direção do "comité central" de Lisboa, a maioria eram figurantes como eu , o que aconteceu às NT africanas, não devia ter acontecido e o MFA é o único responsável por não saber estar à altura da situação.

Eu nunca precisei do RDM para ser respeitado e exercer a disciplina, mas devo dizer àqueles que à data estavam a 4.000 km de distância que gostavam de ler o RDM e tresler uns Boletins e sabiam de tudo, que a única vez que obriguei um Superior a cumprir com aquilo a que ele estava obrigado, foi precisamente por causa de documentos do MFA e apenas precisei de levantar o braço, acenar um papel com a mão direita e o aviso e, passadas 48 horas, os documentos estavam na minha mão e o problema resolvido.

Em anexo:
Duas fotografias do Rio Mansoa e arredores de João Landim.
Cópia da capa e contracapa do livro de Instrução do Combatente-Patrulhas.
Cópia da capa do livro "Os dias loucos do PREC"- Ad. Gomes e José P. Castanheira.
Cópia da capa e contra capa do livro de Rainer Daehnhardt.
Cópia do papel que exibi na mão direita a um superior.
Cultura de amendoim
Travessia em João Landim
Capa e contra-capa do livro de Instrução do Combatente
Capa do livro "Os dias loucos do PREC"- Adelino Gomes e José Pedro Castanheira
Capa e contra-capa do livro de Rainer Daehnhardt
Papel que exibi na mão direita a um superior

Um abraço,
Victor Costa
Ex-Fur Mil At Inf

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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23732: (Ex)citações (417): A propósito de Amadu Bailo Djaló (1940-2015): mestiçagem, mercenariato, fanado, hospitalidade africana, viagem a Boké... (Cherno Baldé)

Guiné 61/74 - P23737: Os nossos seres, saberes e lazeres (535): Trabalhos de pintura da autoria de Jaime Machado, ex-Alf Mil Cav, CMDT do Pel Rec Daimler 2046 (6)



1. Publicamos hoje mais cinco trabalhos de pintura de autoria do nosso camarada Jaime Machado, ex-Alf Mil Cav, CMDT do Pel Rec Daimler 2046 (Bambadinca, 1968/70), enviados ao nosso blogue em 19 de Outubro de 2022,  que estamos a mostrar na série "Os nossos seres, saberes e lazeres".



Trabalhos em acrílico sobre papel 30x42
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Notas do editor:

Poste anterior de 18 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23718: Os nossos seres, saberes e lazeres (533): Trabalhos de pintura da autoria de Jaime Machado, ex-Alf Mil Cav, CMDT do Pel Rec Daimler 2046 (5)

Último poste da série de 22 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23729: Os nossos seres, saberes e lazeres (534): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (73): Voltar à minha querida Bruxelas, depois da pandemia - 11 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23736: Casos: a verdade sobre... (31): Pansau Na Isna, o "herói do Como" (1938 - 1970), entre o mito e a realidade - Parte II: Visto do lado de lá

Guiné > Ilha do Como > 1964 > Op Tridente (de 14 de Janeiro a 24 de Março de 1964) > LDM desembarcando as NT. Foi a maior ou uma das maiores operações realizadas no TO da Guiné, durante toda a guerra (1963/74). Segundo o Mário Dias, as baixas de um lado e doutro foram as seguinte: das NT, 8 Mortos, 15 Feridos; do PAIGC: 76 Mortos (confirmados), 29 Feridos, 9 Prisioneiros... 

Erradamente, ao que parece, demos a seguinte informação no poste P2406, de 4 de janeiro de 2008 (*): "Na batalha do Como, morreu um dos primeiros heróis do PAIGC, o comandante Pansau Na Isna, cuja história poucos jovens guineenses de hoje devem conhecer, apesar de ter dado o nome a uma das principais avenidas de Bissau". 

Foto (e legenda): © Mário Dias (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Guiné > PAIGC > A Libertação do Komo. In: O Nosso Primeiro Livro de Leitura, p. 31. Departamento Secretariado, Informação, Cultura e Formação de Quadros do Comité Central do PAIGC, 1966 (1). 

Foto: © A. Marques Lopes  / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007) 


Infografia: © Mário Dias / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2005)

4. Quem foi Pansau Na Isna?  Sabemos pouco da sua vida, é um dos heróis nacionais da Guiné-Bissau, que tem nome de avenida no centro histórico da velha Bissau colonial. 

A Av Pansau Na Isna (antiga Av Alm Américo Tomás) é, a par da Av Domingos Ramos (antiga Av Governador Carvalho Viegas), uma das paralelas à Av Amílcar Cabral (a antiga Avenida da República). Os seus restos mortais repousam no Mausoléu Amílcar Cabral e dos Antigos Combatentes da Liberdade da Pátria, na Fortaleza de Amura.

Já vimos algumas versões sobre quem foi este homem, que para os guineenses é sobretudo o "herói do Como" (tinha 26 anos quando comandou os 300 guerrilheiros que os portugueses enfrentaram no decurso da Op Tridente). Para os portugueses (ou os "tugas") que o combateram, tende a ser visto como um valente combatente balanta e sobretudo como uma figura  "excêntrica", do qual se sabia pouco, no nosso tempo (anos 60/70),  oscilando "entre o mito e a realidade" (**).

Vejamos agora o que se diz "do outro lado de lá"... É a versão (no mínimo, romantizada),  de alguém, da mesma etnia, balanta, que na década de 80 do século passado, primeiro com 10 anos e depois com 16, já adolescente, ouviu e registou, na sua memória, as conversas tidas com o seu tio, N'tchaagn, antigo companheiro de Pansau Na Isna, tendo com ele resistido à ofensiva desencadeada pelas NT (Op Tridente, 14 de janeiro / 24 de março de 1964). 

Saibamos também ouvir as "histórias do outro lado", o que nem sempre é fácil, entre antigos combatentes...  Nem todos, de um lado e do outro, souberam "fazer as paees"... Mas, por favor, leia-se ou releia-se, a seguir,  o nosso querido amigo Mário Dias (***) que, esse, também lá esteve, na ilha do Como, tal como o tio N'tchaagn... 

E faço minhas as palavras deste srgt 'comando' reformado,  um histórico da nossa Tabanca Grande, um homem sábio e um grande amante daquela "terra verde rubra" (onde viveu na sua juventude e onde combateu), justamente a propósito do balanço final da Op Tridente (***):

(...) "Finalmente, uma palavra de apreço a quantos, de ambos os lados, se esforçaram e sacrificaram superando todas as dificuldades e... sentida homenagem aos que tombaram. A todos. De ambos os lados." (...)

 
Blogue "Intelectuais Balantas na Diáspora" > 20 de janeiro de 2018 > Homenagem a Herói Kpänsau Na Ysna,  conhecido como Pansau Na Isna  > Artigo de opinião do dr. M'bana N'tchiga

[Seleção de excertos / resumo / condensação / adaptação / revisão / fixação de texto / negritos / itálicos: da responsabilidade do editor do nosso blogue, para efeitos de publicação neste poste... 

Os itálicos   correspondem ao texto, adaptado,  do autor, M'bana N'tchiga ou Na Tchiga, nascido por volta de 1970; os itálicos a negrito são  citação de excertos do  discurso direto atribuído ao tio do autor, antigo guerrilheiro, combatente na Ilha do Como, N'tchaagn; chama-se a atenção para a extrema dificuldade de, para os lusófonos, grafar corretamente os vocábulos da língua balanta (ou brasa), a começar por topónimos e antropónimos; o artigo em causa está, além disso, escrito em mau português... 

Não sabemos onde o autor se licenciou, mas não deve ter sido em Portugal, talvez no Brasil (a avaliar pela construção das frases, pelo uso de termos como "flagrar" ou "codinome", etc.); de qualquer achamos interessante o seu depoimento sobre Pansau Na Isna, mesmo que ele não o tenha conhecido: estava a nascer, em 1970, quando o seu herói Pansau Na Isna morreu, ao que parece em Nhacra... Mas, pelo menos, teve o mérito de  passar ao papel as memórias do seu tio, o que é raríssimo  na Guiné-Bissau, entre os antigos combatentes, que estiveram de um lado ou do outro da barricada... 

Se ele o dr. M'bana N'tchiga nos ler, queremos que saiba que lhe estamos gratos por ter realizado essa tarefa ou missão... 

Com a devida vénia, vamos então reproduzir aqui uma "condensação" do seu artigo, esperando que ela seja amigável para todos e que, no essencial, não traia o sentido das palavras do autor... LG]


Kpänsau Na Ysna (na língua brasa ou balanta) (****), mais conhecido por Pansau Na Isna, nasceu em 1938 e morreu em combate em 1970, aos 32 anos, em Nhacra. 

Era oriundo de uma família balanta (brasa), do sul da Guiné. Era um homem alto, de pescoço saliente e cabeleira farta. Destacou-se pela sua audácia e coragem na batalha do Como (em crioulo,  Köm), com apenas 26 anos. Era o comandante da Baraka Garandi, o quartel-general das tropas do PAIGC, cujos abrigos ficavam a 7 km da praia.

Como quase todos os nomes Braasa, Kpänsau, também tem significado...  
Na língua balanta (brasa), Kpänsau quer dizer literalmente morança ou tabanca acabou, desmoronou-se... Em sentido figurado, pode significar o fim ou aniquilação da geração, do clã, da comunidade...

O "Na" equivale à preposição preposição "de", "do", "da"... E neste caso indica, não a filiação, mas a pertença ao clã, à morança, à tabança (Ysna). 

Os Braasa raramente carregam apelidos dos pais junto aos seus nomes. Daí que se deve entender a horizontalidade e a democracia deste grupo. O filho é do clã e não do pai...

Aos dez anos, em 1980, o autor, M'bana N'tchiga,  ouviu, hipnotizado,  o seu tio, N'tchaagn, antigo guerrilheiro e companheiro do Pansau Na Isna na Ilha do Como, durante a Op Tridente (que decorreu 
de 14 de janeiro a 24 de março de 1964).

 Com sotaque Braasa,  ele disse: 

− Köm... Köm e Kation... Como você não sabe ainda, mas Köm é um dos setores de Kation, ou seja, Catió. De porto de Köm até aos nossos esconderijos distavam 7 km apenas.

Durante os combates, alguns portugueses descreveram-na como a ilha maldita. Para outros, era a ilha que deixava os cabelos de qualquer um em pé.

  De Kation até à ilha eu não sei, mas imagino que seja uma distância de 15, 20, no máximo 30 km. E, como os portugueses  estavam aquartelados em Catió, não podiam  tolerar a presença de terroristas, o termo  com que se referiam a nós, os  de PAIGC, naquela época. Daí o seu interesse em nos expulsar do Como,  definitivamente,  para legitimar e assegurar a sua hegemonia.

E o autor acrescenta, da sua lavra, que um comerciante português, de seu nome Brandão, tinha na ilha um comércio florescente, praticamente sem concorrência. Não havia libaneses na ilha. Noutras partes da Guiné, eram eles, os libaneses, que dominavam o comércio.

 E tio N’tchaagn fez uma pausa  e tomou um gole de seu vinho de cíbi (palma):
 
− O comandante Kpänsau Na Ysna sabia disso. Pois além da gente  que nos informava sobre a manobra e a intenção de tugas na ilha, ele próprio, Kpänsau, era um homem inteligente, um estratega de guerra, um guerreiro nato, corajoso como poucos que conheci. E intransigente, quando a questão era defender a nossa posição. Não gostava de perder. Eu, N’tchaagn, nunca conheci igual. Cada um dos nossos comandantes tem as suas características próprias de comandar, mas Kpänsau continua a ser uma  lenda na minha mente até hoje. 

Pansau Na Isna não estaria na ilha do Como aquando do início  da Op Tridente. 

− Estava em missão fora da ilha. Não sei muito bem, estava lá para os lados de M’brüi (Caboxanque), Tchüm-Kpáss (Cadique) ou Yembrém (Jemberém)...

Ao saber que a ilha do Como ia ser atacada pelo exército português, apressou o seu regresso, andando na maioria das vezes à noite e  atravessando Tchüm-Kpáss (Cadique), Flágck-N’ñandy (Ilhéu de N’fandá), Kybíl, Katün, atravessando pântanos e bolanhas, até chegar ao interior do Como.

A guerra já tinha começado antes, no dia 14 de janeiro de 1964. Era uma  terça-feira. Dois outros comandantes, Guádn Na Ndamy e  Biotchá  Na M’batcha [seguramente não Biohctá, deve ser gralha] já estavam na ilha.  

Pansau Na Isna  misteriosamente caiu enfermo. As pernas incharam e não conseguiu andar durante duas semanas".  Mas ninguém podia saber, muito menos os tugas... 

 Só Biotchá Na M’batcha e mais outros comandantes, sabiam que o lendário (sic) estava doente. Perguntaram-lhe se não seria melhor evacuá-lo para fora do Como  por estar doente. Logo esbraceejou, e com voz determinante disse: 'N’keia yânta. Bitën luza. Bbürtikìz tën luza. Köm ka wínbu'. (Não saio daqui. Têm que ir embora. Os Portugueses é que têm que ir embora. O Como é nosso)....

Mas, prossegue o tio falando para o sobrinho:  

− Não foi  só o Kpänsau  quem fez tudo. Para além dele,  foram o  Guádn Na Ndamy e Biotchá Na M’bátcha. Bravos camaradas que estavam sempre por perto,  obedecendo ou contestando o que convinha ou não, pronunciado por Kpänsau. Contudo, as decisões partiam sempre dele, como comandante em chefe. Ao entardecer, com o  crepúsculo,  chamava Biotchá Na M’batcha para tomar vinho de palma e aliviar a tensão do dia trabalhoso, analisar a ação que já tinha sido desencadeada até então e preparar o amanhã. 

O  tio N’tchaagn parou e me pediu para levar vinho de cíbi ao seu primo na varanda da outra casa ao lado. Fui e voltei rápido. Já tinha feito os  16 anos quando esta história reaparece para mim através dele. Mas o combatente N’tchaagn, como contador de histórias nato, lembrava-se  com detalhe dos episódios da batalha que Kpänsau dirigiu. Continuando, disse: 

− O exército português batizou a guerra contra o Köm de 'Operação Tridente'. Nas suas imaginações recuperaria não só Köm, mas, também, Katugn, Cayar (...) e, se instalaram também em Kônghan. (...) Estrategicamente instalaram no porto de Köm, Katchil, N’komny, Kônghan (onde se instalou general português que dirigiu a operação). Mas, nada que intimidasse o lendário, pois os portugueses desconheciam ou ainda subestimavam o poderio da força e do grau de organização de Kpänsau Na Yisna com seus homens, que já se encontravam bem instalados. Sobretudo ao nível dá tática móvel que ele sabia usar muito bem.

Passava já das 23 horas da noite e tio N’tchaagn já  ansado e tomado por força da embriaguez pediu para parar (...) E parámos. Fui dormir, empurrei a porta e a minha mãe perguntou: 'Você ainda não está a dormir, M’bana?'...  Não respondi,  com medo de ela me dar um par de açoites,  enfiei-me, silencioso, no quarto.

Passaram-se dois dias, após o que o tio N’tchaagn me pede para lhe relatar o que eu havia ouvido por ele sobre Kpänsau. Eu repeti tudo. O que ele aprovou e disse: 

− Ótimo, bom menino, guarde bem para ninguém te falsear com outra história que não seja essa. 

E prosseguiu. 

 Kpänsau organizou os seus homens em dois grupos diferentes. Em primeiro lugar,  um grupo armado de guerrilheiros em área territorial fixa. Esse grupo encarregava-se de defender o espaço aéreo de Köm, instalando a defesa antiaérea e hospitais debaixo do chão. O grupo detinha armamentos sofisticados que os tugas não imaginavam que tivesse. 

Ao todo, nós homens de Kpänsau, éramos 300 guerrilheiros armados contra 800 ou mais da força dos tugas. Eram forças desproporcionadas e, claro, com vantagem para os tugas. Uma vez que, para além de 800 homens, os tugas tinham armas em quantidade e em qualidade superior às que tínhamos. Tinham ainda aviões, navios e outras embarcações menores para se deslocarem à vontade. Eram facilidades que nós não tínhamos. Nós já tínhamos armas que começavam a igualar-se  a algumas das deles. Mas a distância entre nós e as armas que ficavam na fronteira de Conakry era imensa. Transportá-las até nós era uma enorme dificuldade. O único transporte que havia eram as pessoas dispostas ou obrigadas a ir a pé para buscar armas e munições na fronteira com Guiné-Conakry.

A viagem para ir buscar munições durava 4 a 5 dias. Isto é, se o grupo não se se encontrasse com os tugas no caminho. O percurso era saindo de Köm: WedëKaya ou Kantônaz, Ndin-Welgglè, Kandjóla, Kan, Kangnha-Ley, Katché, Kambíl, N’gháfu, N’thâne, Banta-Silla, N’dala-Yèll, Sambassa, Linga-Yèll, N’tchintchedaré, Yeng até fronteira de Conakry.

Essa distância em linha reta era de 160 a 200 km, aproximadamente. Mas a pé  tinham que dar muitas voltas, imagino que fossem 200 a 230 km. Imagina,  M’bana, percorrer essa distância com munições pesadas, à cabeça?! Às vezes com fome, apenas bebendo açúcar cubano misturada com água.

Não posso ser injusto em relação ao Kidèlé Na Arítchn, não o mencionando. Devo falar dele  um pouco,  para ti, nessa história das munições... Quando as munições chegavam ao porto, para serem introduzidos na ilha, era mais difícil de que a própria luta. Tuga estava ao longo de todo o perímetro da ilha. E vigiando o tempo todo para ver como é que iríamos receber reforços. Literalmente não havia ninguém que se atrevesse a desafiar os tugas atravessando o mar para o Köm. É aí que surge um único, chamado Kidèlé Na Arítchn que enche de munições uma B’sahë Në Braasa (canoa Brasa/Balanta) e põe-se a remar atravessando um mar perigoso vigiado dia e noite pela tropa inimigas.

Assim Kidèlé Na Arítchn abasteceu-nos de  munições,  atravessando o mar várias vezes sem que os  tugas alguma vez o apanhassem em flagrante. A pergunta que não tem resposta até hoje, é:  Como é que ele nunca se encontrou com os tugas? Será que podemos acreditar em milagres..? Coincidência ou não, não é à toa que os seus pais lhe puseram esse nome de Kidèlé (que na língua brasa quer dizer literalmente... Milagre). Aconteceu um verdadeiro milagre no abastecimento, feito por esse homem, aos guerrilheiros da ilha. 

Pkänsau sabia da força do inimigo e soube admitir a sua fragilidade antes de encarar a guerra. Mas soube também desafiar os tugas provocando-os para, com isso, causar o desgaste físico, de munições e de seus aparatos bélicos. Até mesmo contra  umas simples silhuetas de soldados falsos montados na escuridão da noite os tugas gastavam munições. 

Conseguiu colocar muitos combatentes inimigos fora de combate com apenas dois e ou três guerrilheiros. (...) Era capaz de enganar os fuzileiros dos tugas, "obrigando-os" a desembarcar no lodo que dificultava a sua progressão. Ou a seguir num caminho estreito na mata densa através de alarmes falsos. E quando os tugas caíam nessa armadilha era a altura de nós, os homens de Kpänsau, tirarmos vantagem (...) Daí a expressão: “tuga ka pudi anda na lama.” (Tugas não sabem andar no lodo). (...)

Kpänsau conhecia os espaços que nos eram favoráveis. Por isso não admitia que a marinha portuguesa chegasse por perto e controlasse esses locais. Atraíamos os tugas sempre para o lado de lodo, mangue, ourique e para clareira, seguido de mato fechado onde os homens de Kpänsau estavam fortemente armados. A sua firme postura na luta de Köm encorajou até as mulheres a disparem contra barcos portugueses que se atreviam a subir nos rios, floresta adentro.

O céu da ilha estava coberto de fumaça devida  aos disparos de canhões a partir de Kayar, Kônghan e Kambontõ contra nós em Köm. E, por terra,  homens, mulheres, jovens, crianças e, claro, 300 guerrilheiros liderados por lendário Pänsau Na Ysna não arredavam pé de onde estavam. 

A população de Köm sofreu. As mães com crianças de colo, a amamentar,  sofreram e perderam a vida com seus bebés que,  quando choravam, a resposta da força portuguesa, sem pena não se fazia esperar: , metralhavam, disparavam morteiro ou bombas de napalm contra o local de onde vinha o choro da criança,  matando populações civis indiscriminadamente. 

 O povo de Köm viveu situação desumana durante  75 dias. 'Djigân' (bicho de pé) e as lêndeas de piolhos infestaram pés e cabelos de pessoas. Muitos abandonaram a ilha, desmoralizados, chamando a Kpänsau  'Balanta teimoso', que não vai vencer a guerra contra brancos. 

Chegavam relatos dizendo que Amílcar Cabral pedira que Kpänsau e nós, guerrilheiros em Köm, abandonássemos a guerra para poupar massacre que tropas colonial praticavam contra populações civis, mas Kpänsau intransigente meneou a cabeça, dizendo: 'Wisaguë Kanã' (Não acredito nisso). Ignorou essa ordem e prosseguiu o seu trabalho. Certo de que a vitória estava próxima. 

Como se não bastasse, M’bana, um dos nossos soldados recebeu informação triste, no dia 19 de fevereiro, quarta-feira, de 1964, de que os tugas estavam a queimar o arroz dos Brasa,  deliberadamente,  como forma de impedir a persistência dos guerrilheiros de PAIGC na luta. Pois sabiam que nós Brasa (Balanta), além de constituirmos mais de 90% da guerrilha do PAIGC,  éram0s produtores de arroz e que os nossos excedentes alimentavam os guerrilheiros. 

O que eu, N’tchaagn,  esbravecei com lamento: 'Hack N’ghala, biotë bìg impanpan ni Bifilá, Biafadá kinë a binalú... bë thëd malu ni Braasa tida. hack, Bëbábm match bu. Weñan miin yá ki Braasa a bi ka hera0. (Meu Deus; ignoraram impanpan [?]  de Fulas, Biafadas de Quínara e de Tombali..., só queimam arroz dos Brasa. Então, tuga nos detesta..? Já está claro que declararam guerra a nós, Brasa!) 

Isto era o que dizia N’tchaagn, horrorizado, ao lembrar aquele episódio. 

No dia 20 de março, numa sexta-feira, de 1964, quatro dias antes de terminar a guerra, recebemos mais informações, de que agora tugas estavam a matar bois e vacas em Katün, a tiro, deliberadamente, sem levar a carne. Era a  destruição pura e simples,  com a intenção clara provocar mais danos ao nosso povo. 

Sempre as vacas e os bois de Braasa serviram de carne para eles ao longo da guerra. Sempre que invadiam terras Brasas pilhavam, saqueavam,  matavam e escolhiam  as melhores cabeças, de entre bois e vacas,  para comer nos seus quartéis. Agora que estavam a perder a guerra,  estavam a  matar sem levar. N’tchaagn contava para mim, horrorizado.

  Nunca foram às tabancas desses grupos étnicos para queimar os cereais deles. Por representarem pouco valor em termos de abastecimento aos guerrilheiros do PAIGC. Mas num só dia, M’bana, antes de tu mesmo nasceres, o exército português queimou,  nesse ano de 1964,  o arroz das tabancas de Kablôn, M’brüi, N’ñaaé Thúe/Tchuguê, Kátche, Kângha-lei, Kibumbän, Kambyl, N’thäny, SaráckDjaty, Saráck-Cull, Sambassa, Botche-Thãntä, N’dala-Yièll... Ou sejam, 14 aldeias dos Brasas sofreram perdas do seu arroz. Por serem realmente tabancas que abrigavam armazéns de povo e que produziam arroz em larga escala para abastecer o PAIGC

Isso chegou aos ouvidos de Kpänsau que ficou em silêncio, por uns segundos,  perante o informante. Para depois responder; 'Wìì biotte Bin hera ki bo? Wil wólo kei bo tchóhg-na sifá kë sif-bu. Be mada thedá, bë kite thët, wetè kher ka herë kantë be-fida buidn ya bitën lusa ka botchi-bu'. (Por que não vêm combater-nos?... Nada vai nos fazer desistir do nosso trabalho. Que queimem arroz da nossa população, mas a guerra vai prosseguir até que entendam que tem que sair da nossa terra.) 

Os abusos que as tropas coloniais cometiam, matando  civis,  doía muito a Kpänsau. Mas ele sabia que era guerra psicológica que os homens de Salazar estavam fazendo para intimidá-lo e levá-lo a  abandonar as armas. 

Kpänsau não se abateu e manteve-se firme na luta para libertar esse povo. Deslocava-se  pessoalmente à  linha de frente para ver cada desatamento e como é que as coisas estavam a acontecer.  Não era um comandante para dar ordens e ficar no seu QG. Ao chegar à linha de frente, via alguns famintos sem comer durante dias que apenas misturavam açúcar cubano com água e bebiam para continuar entrincheirados. Encorajava-os com palavras tais como: ' Herá, botche-bo win' (Lutemos, a terra é nossa!) 

O dia começava, para Kpänsau,  a partir das 05h00 / 6h00. Nesse horário, toda a movimentação para mais um dia sangrento começava  a ser cronometrada. Instalado na Baraka Garandi (comando central de PAIGC, seu quartel-general) elaborava e decretava ordens para uma missão quase impossível. 

Em matéria de crenças, Kpänsau era animista. Na sua fé religiosa, reuniu anciãos, anciãs, sacerdotes e sacerdotisas na Baraka Garandi para pedir proteção e vitória. No centro de adoração (Baloba, guardiã da ilha de Köm) separou anciãos e sacerdotes das anciãs e sacerdotisas. Sem se misturar, os  sacerdotes faziam sacrifícios e consultavam a Baloba, a guardiã. A sacerdotisa-mãe, ladeada pela sua gente, murmurava palavras inaudíveis pedindo proteção para o  comandante Kpänsau e  os  guerrilheiros que estavam combatendo os tugas ferozmente. 

As árvores,  M’bana, testemunharam durante 75 dias tudo que estava a acontecer e que hoje te conto. Assim foram estes dias, de  14 de janeiro (terça-feira) a 24 de março (terça-feira) do ano de 1964 na ilha de Köm.

PS - O autor, M'bana N'tchiga (sobre o qual não temos mais qualquer informação adicional) quis sobretudo fazer uma homenagem a um herói guineense, Pansau Na Isna, e por tabela ao seu próprio tio e aos demais combatentes do PAIGC que lutram no Como. Mas faz uma prevenção, reveladora da sua boa fé e honestidade intelectual: "Com todo o respeito aos meus leitores, eu não sou dono da verdade"... Sujeita-se, pois, ao contraditório. 

E diz isto nomeadamente em relação à questão de se saber qual foi o papel do 'Nino' Vieira na batalha do Como. Contrariando outras versões, ele defende o ponto de vista de que o 'Nino' Vieira não participou na batalha do Como, pela simples razão de que estaria em Conacri, e ao que parece "doente". O seu tio confirmou-lhe que nunca viu o 'Nino' Vieira em nenhum dos combates que se desenrolaram ao longo de 75 dias. Sabia-se (ou constava) que ele estava em Conacri, e talvez em tratamento por doença.

A ser verdade (que o 'Nino' Vieira não pôs os pês na Ilha do Como, durante a Op Tridente) pode ser apócrifa a mensagem que lhe é atribuida, e que, segundo o Màrio Dias, estava "em poder de um prisioneiro por nós capturado":

(...) “Hoje faz 48 dias que os nossos camaradas estão enfrentando corajosamente as forças inimigas. Camaradas, tenham paciência, porque não tenho outra safa senão o vosso auxílio… As tropas estão a aumentar cada vez mais as suas forças… camaradas, não tenho mais nada a dizer-vos, somente posso dizer-vos que de um dia para o outro vamos ficar sem a população e sem os nossos guerrilheiros. Já estamos a contar com as baixas de 23 camaradas… do vosso camarada, Marga - Nino “ (...).

segunda-feira, 24 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23735: Efemérides (373): Há exactamente 54 anos que embarquei para a Guiné (23.10.68 – 23.10.2022) (Carlos Pinheiro, ex-1.º Cabo TRMS Op MSG, Centro de Mensagens do STM/QG/CTIG)

1. Mensagem do nosso camarada Carlos Pinheiro (ex-1.º Cabo TRMS Op MSG, Centro de Mensagens do STM/QG/CTIG, 1968/70), com data de 23 de Outubro de 2022, dia em que se completam 54 anos que embarcou para a Guiné no navio Uíge:


Há exactamente 54 anos que embarquei para a Guiné

23.10.68 – 23.10.2022

Tudo começou muito antes

A Inspecção Militar a que todos os mancebos eram sujeitos, era o princípio da vida militar e era feita na sede do concelho de residência dos referidos, no ano em que se faziam vinte anos. Eu, porque tinha nascido e morado sempre em Alcanena, foi na minha terra que fui inspeccionado juntamente com os outros quarenta e nove. Logo de manhã fomos para o Salão Nobre do edifício da Câmara Municipal, portas fechadas e janelas corridas, mandaram-nos despir e deram-nos um papel onde um soldado apontou o nosso peso e a nossa altura. Todos nus, com um papel na mão.

No Gabinete do Presidente da Câmara estavam os médicos militares que nos inspeccionavam, um a um, muito à pressa e lá nos davam a notícia que estávamos “apurados” para todo o serviço militar. É certo que um ficou “esperado”, porque era baixo e gordo e outros dois ficaram “livres” sem se saber porquê.

Quando nos íamos vestindo, o tal soldado que nos tinha pesado e medido vendia-nos uma fita verde e vermelha, com um alfinete, para colocarmos na lapela do casaco, a dizer que estávamos apurados. Os que ficavam livres, tinham direito a uma fita branca.

Nesse dia, apesar de tudo foi dia de festa. Houve jantarada do grupo e depois baile até de madrugada. Era assim.

Depois foi só aguardar que os editais nos chamassem para a vida militar. A minha sorte mandou-me para a Escola Prática de Cavalaria em Santarém, no dia 10 de Outubro de 1967. Era uma segunda-feira e tudo era novo para aqueles trezentos e sessenta recrutas do Curso de Sargentos Milicianos. A maioria, onde eu estava incluído, só entrou depois do almoço e depois de ter sido dado mais um toque no cabelo, e lá entrámos. Logo de seguida fomos receber o fardamento, deram-nos um número – eu era o 2060/67 – indicaram-nos a caserna e o nosso número lá estava numa cama. Nada de enganar.

Aprendemos, assim, a formar para o jantar. O refeitório era do outro lado da parada, no primeiro andar. E lá jantámos tendo-nos sido dito que às nove horas tínhamos uma palestra no mesmo refeitório para aprendermos o que era a tropa. Claro que ninguém faltou. Todos presentes para aprender onde estávamos metidos. O porta-voz foi o Comandante do meu Esquadrão, o Tenente Sentieiro que em palavras simples nos elucidou perfeitamente onde estávamos e o que o futuro nos reservava. Dessa palestra há passagens que ficaram na memória e que hoje aqui merecem ser recordadas. Por exemplo: “Essa coisa onde estão a deitar a cinza dos cigarros e as beatas, agora é um cinzeiro, mas amanhã de manhã é uma chávena de vista alegre para beberem o café com leite e à hora do almoço é um copo de cristal por onde vão beber o vinho ou a água”. Afinal aquilo era só um púcaro de alumínio… Outra dessa noite com alguma piada, mas sem graça nenhuma, foi quando o orador nos disse que só poderíamos sair para a rua quando soubéssemos todos os postos da hierarquia militar e bem assim os que mereciam ser cumprimentados militarmente – com continência – para evitar que fossemos bater pala ao porteiro do Hotel Abidis que tinha uma farda que parecia um marechal. E assim foi.

No outro dia foi o princípio. Aprendemos a marchar, aprendemos a rebolar nas barreiras, a saltar ao galho, a fazer a ponte interrompida, saltar a vala, rastejar, subir ao pórtico e lá fazermos alguma manobras, saltar das camionetas a não sei quantos à hora, devidamente enrolados, e sempre a marchar.

As barreiras, antes da recruta acabar, foram proibidas. Não por causa de alguns braços partidos e outros pequenos ferimentos, mas porque as fardas estavam a desfazer-se.

O tiro era treinado, de dia e de noite, na Carreira de Tiro fora do quartel com todo o tipo de arma desde a pistola até às várias metralhadoras pesadas.

As instruções nocturnas eram normalmente às terças e quintas-feiras e duravam até depois da uma da manhã, quando não era até mais tarde. Íamos para as Ómnias, lá para as margens do Tejo, para o Monte do Zé Morto, para o caminho de Rio Maior e na semana de campo fomos para lá da Chamusca, sempre a pé e com a carga toda às costas, incluindo a Mauser e o Capacete na cabeça. Nessa semana nem uma tenda pôde ser montada, apesar de irmos carregados com todos os apetrechos. Parece que o “inimigo” estaria ali por perto. Ordens são ordens. Esta semana de campo foi depois da tragédia das cheias, inundações e morte de centenas de pessoas na zona de Vila Franca, Alenquer, Loures e Odivelas. Só para nos centrarmos no tempo.

Depois de tudo isto, lá chegou o dia do Juramento de Bandeira e logo a seguir ficámos a saber que a maioria do pessoal, daqueles dois Esquadrões de Instrução, tinha chumbado e passado para o Contingente Geral. Dos trezentos e sessenta, foram só duzentos e um que chumbaram. E mais tarde, já na Guiné, é que vim a saber de fonte segura a razão de tanto chumbo. Foi o Comandante daquele Grupo de Esquadrões de Santarém, que também estava na Guiné e, infelizmente, lá morreu no acidente do helicóptero que caiu e onde iam também alguns Deputados da Assembleia Nacional que estavam de visita à Guiné que morreram também, que me disse que tinha havido um erro na classificação das pautas de tiro, que dependiam da Direcção da Arma de Infantaria a quem podiam pedir a revisão das mesmas. Mas como éramos de Cavalaria, ficou assim.

Não vale a pena continuar a falar, agora da especialidade, nem do resto do tempo até ao embarque. Mas passei pelo RTM no Porto onde tirei a especialidade, fui depois para o BT, na Graça, em Lisboa, a seguir para o QG em Tomar, depois de mobilizado voltei ao BT, e logo de seguida fui para o 15 em Tomar, que foi a minha Unidade Mobilizadora e na véspera do embarque fui passar a noite aquele hotel estrelado que era o Depósito Geral de Adidos.

É verdade. Parece que foi ontem e já lá vão CINQUENTA anos desde o dia do embarque para a Guiné, mas está tudo bem guardado na memória.

Depois de uma noite muito mal dormida nos Adidos, na Calçada da Ajuda, logo de manhã lá estava ataviado a preceito para embarcar para a guerra.

Dois dias antes, ainda no RI 15 em Tomar, a minha Unidade Mobilizadora, soube que ia para o BCaç 1911 que nunca vi e que parece que veio no barco onde fui, apanhei uma boleia com um senhor da minha terra que lá foi buscar o filho, para também embarcar para a guerra, salvo erro era para Angola. Lá fomos os três no Volkswagen 1300 do senhor, a caminho dos Adidos em Lisboa. Almoçámos, já não me lembro onde, e lá chegámos à capital do Império e aos Adidos.

Entrámos os dois pela porta de armas, cada um foi para o seu sítio, mas no dia seguinte deixei de o ver. Afinal ficou cá. Não chegou a embarcar. Tinha as suas mazelas certamente.

No dia do embarque, no dia 23 de Outubro de 1968, como disse, logo de manhã lá estava fardado como deve ser, de saco às costas com os meus pertences. Foi só esperar que as camionetas começassem a chegar para levar toda aquela malta de rendição individual para o cais de Alcântara. Éramos cerca de sessenta, tudo de cabeça baixa, sem saber para onde ia.

Quando chegamos ao Cais, o grosso dos expedicionários já estava devidamente formado; era o Batalhão de Caçadores 2856, também do RI 15 de Tomar, constituído por quatro Companhias, mais um Pelotão de Polícia Militar que ia para Cabo Verde e ainda outras Unidade mais pequenas, género Pelotões de Canhão Sem Recuo, Pelotões de Apoio Directo, etc.

Nós ficámos livres da formatura e, certamente por isso, fomos dos primeiros a embarcar. Ao cimo das escadas lá estavam as senhoras do MNF – Movimento Nacional Feminino a darem um maço de cigarros "Porto", um isqueiro e uns aerogramas a cada um. Também por lá se viam uns senhores de chapéu e de sobretudo, que alguns mais vividos diziam serem da PIDE.

O Uíge atracado à espera, com a tropa formada, depois de um General ter passado revista às forças ao som de uma Banda Militar, depois dos discursos da ordem, lá começaram a embarcar, sempre com a Banda a tocar marchas militares.

Os nossos familiares estavam do outro lado das barreiras e muitos nas varandas da Gare, com os lenços brancos nas mãos e as lágrimas nos olhos.

Os lenços brancos a acenar eram mais do que muitos. Da minha parte lá estavam os meus pais e os meus tios que moravam em Lisboa. Sabia mais ou menos onde eles estavam posicionados porque tínhamos combinado antecipadamente. A amurada do barco do lado do Cais estava repleta de militares o que provocava um relativo adornar do navio.

Entretanto, cerca do meio-dia, as máquinas do navio começam a fazer mais barulho e a silvar. Vêem-se já os rebocadores que o há-de ajudar a largar e a ganhar o rumo da Barra do Tejo. Foram momentos difíceis de descrever. Adivinhávamos facilmente que os familiares no Cais choravam. Alguns até gritavam e ouvia-se bem apesar da distância ser cada vez maior. Mas ouvia-se.
Navio Uíge em Bissau
Foto: Torcato Mendonça

A bordo também havia lágrimas em muitos olhos. O barco ganha rumo, a ponte "Salazar", era assim que se chamava a que hoje se chama "25 de Abril", começa a ficar cada vez mais perto, até que passámos por baixo dela. Dali até à Barra e depois ao mar alto parece que foi um momento.

Mal ou bem lá fomos encaminhados para os nossos aposentos, para largarmos o nosso saco e para tomarmos conhecimento dos nossos beliches. A esmagadora maioria, onde eu estava incluído, viajou nos porões que noutras viagens transportavam tudo e mais alguma coisa. O cheiro era horroroso. As camas eram mesmo tipo beliche, mas em madeira de pinho, com colchões de palha e uma manta da tropa em cima. A estrutura das mesmas, porque em madeira, estava já cheia de dedicatórias de toda a ordem que se possa imaginar, fruto de outras viagens de idas e de regressos.

Já no mar alto fomos para a primeira refeição, o almoço, numa sala grande, a sala de jantar do barco, e a comida era aquela que nos quiseram dar, porque os orçamentos naquela altura já eram apertados, mas ninguém se queixou.

Depois foram cinco dias a ver-se só mar e céu, tudo azul, e de vez em quando uns peixes voadores a acompanhar o Uígee por vezes até golfinhos como que a desejarem-nos boa viagem. Raras vezes avistámos outros barcos, mas sempre ao longe. Passámos relativamente perto das Canárias. Disseram-nos que, como aquilo era um Transporte de Tropas, estávamos a ser a ser acompanhados por um submarino. Já era a psicossocial a funcionar.

No convés havia uma espécie de um bar onde se vendia cerveja e Coca-Cola, sendo esta uma novidade autêntica uma vez que na Metrópole a mesma ainda era proibida. A cerveja era holandesa. Eram garrafas de meio litro, verdes, que nós nunca tínhamos visto. Claro que com estes estimulantes a viagem e o tempo parece que custavam muito menos a passar.

Nos porões, logo no primeiro dia, foram montadas bancas para a batota, neste caso a lerpa, e os profissionais dessa jogatina lá assentaram arraiais e foram depenando os mais desprevenidos, que era a esmagadora maioria.

E assim chegámos a Bissau no dia 28, ao final do dia, tendo o barco ficado ao largo e o pessoal desembarcado para barcaças que de imediato tinham rodeado o navio por todos os lados.

A todos os companheiros, camaradas e amigos que vão sobrevivendo e que há 53 anos viajaram comigo no Uíge, um grande abraço e votos de muita saúde.

Carlos Pinheiro
23 de Outubro de 2022

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Nota do editor

Último poste da série de 12 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23611: Efemérides (372): No dia 21 de Abril 2021 fez 58 anos que os 1.º e 2.º Pelotões da CCAÇ 414 estiveram em sérios apuros na Ilha do Como (Manuel Barros Castro, ex-Fur Mil Enf)

Guiné 61/74 - P23734: Notas de leitura (1510): "O Negro Sem Alma", romance de Fausto Duarte, 1935 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Março de 2020:

Queridos amigos,
Este romance de Fausto Duarte não é uma grande lança em África, mas tem atributos e méritos que importa reconhecer, no âmbito da literatura colonial guineense. Nos alvores da década de 1930 emerge na administração colonial guineense um funcionalismo preocupado com a missão civilizadora, aposta no desenvolvimento agrícola, é dado como certo e seguro que as potencialidades agrícolas da Guiné são inesgotáveis, é preciso introduzir maquinaria moderna e novas técnicas agrícolas. Fausto Duarte escolhe o Tombali para nos falar dos usos e costumes de Mandingas, Nalus e Balantas, o fanado, o contrato de casamento, a submissão ao Irã, o espírito a que se sujeitam a vida dos indígenas. Fausto Duarte caprichava por escrever de modo a que o leitor fosse frequentemente ao dicionário, um tanto como outro mestre das letras portugueses que muito o apreciava, Aquilino Ribeiro. Este romance tem algumas águas-fortes inesquecíveis e que um dia farão parte de uma antologia que recolha parágrafos indeléveis, irrefragáveis. Veja-se no texto que se segue como ele descreve o portentoso fenómeno do bagabaga.

Um abraço do
Mário


O Negro sem Alma, romance de Fausto Duarte (1)

Mário Beja Santos

Fausto Duarte (1903-1953), é uma das figuras mais representativas da literatura colonial guineense. Fausto Castilho Duarte era natural da Praia, Ilha de Santiago. Estudou em Lisboa, onde fez exame final do curso de Topografia, em 1928, foi logo trabalhar para a Guiné e nos dois anos seguintes participou na delimitação das fronteiras da Guiné. Em 1934, publicou "Auá", primeiro prémio da literatura colonial desse ano, reconheceram-lhe os seus dotes literários escritores como Aquilino Ribeiro e Vitorino Nemésio. Foi depois Secretário da Câmara Municipal de Bolama, de 1946 a 1953 participou ativamente na redação do Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, é desse período que se lhe deve a coordenação dos anuários da Guiné de 1946 e 1948, obras de leitura incontornável.

Indubitavelmente, este romance datado de 1935, não é a melhor obra literária de Fausto Duarte, a trama é débil e a arquitetura do romance revela tremendas insuficiências. Mas tem muitos trunfos a seu favor, Fausto Duarte tem aqui a sua grande oportunidade de revelar um inequívoco deslumbramento pela Guiné, a sua flora, os seus exotismos, expor a sua observação de forte pendor etnográfico, etnológico e antropológico. Algures, na região do Tombali, no Posto de Caianque (nome imaginário), Henrique de Castro, o seu chefe, é revelado na sua sensualidade latente, irá sentir forte atração por Amenienta, uma das filhas de Bubacar Djaló, um homem grande ficará felicíssimo por vender a sua bela filha por umas centenas de escudos e quatro vacas, mais uns panos e umas folhas de tabaco. Fausto Duarte tinha seguros conhecimentos da literatura naturalista, era literariamente rebuscado, mesmo quando respiga observações de contido erotismo, há algo de uma escrita à moda antiga, assim: “Uma outra mandinga atravessou o largo terreiro com o cesto à cabeça. O chefe de Posto observou detidamente os pormenores do seu talhe donairoso. As ancas ambravam sob o pano curto. Mas os olhos fixaram-se de preferência nos tornozelos. A grossura das pernas aumentando gradualmente espicaçou-lhe a curiosidade. Henrique de Castro tinha a paixão dos artelhos que, para ele, mais do que nenhuma outra parte do corpo falavam a linguagem eloquente de certos prazeres”. Henrique nunca mostrará a prumo a sua personalidade, a revelação de carateres é uma das pobrezas do romance. Mas as insinuações eróticas irrompem, mal contidas, a propósito deste homem sozinho de quem iremos saber muito pouco: “Estava quase nua. Ensartara nos quadris contas variegadas de vidro presas a uma faixa de pano que lhe cobria o sexo, protegendo a prega interglútea. Henrique afastou-se para observar mais à vontade. As pernas eram uma maravilha de perfeição. Todo o corpo, correto, de linhas esculturais, assentava sobre a graça dos pés onde nasciam tornozelos flexíveis, insinuantes na pureza da combinação de todos os músculos”. Fausto Duarte utiliza regularmente idiomas africanos, o Tombali ele descreve em predominantemente as etnias Mandinga, Balanta e Nalu. Aparece um menino de nome Salu que em breve irá fazer o fanado e nele morrerá, o autor fará discretamente uma crítica a estas tradições brutais. A religiosidade perpassa por toda a obra, mesmo a mescla do islamismo com o animismo, mas acima de tudo é o poder do espírito do Irã e a resignação ou submissão do africano que mais se destaca.

Vamos sendo informados do espírito administrativo da época, é o caso dos arrolamentos feitos pelo chefe de Posto, transmitidos à autoridade seguinte, o administrador de circunscrição. Somos igualmente informados da atividade dos comerciantes do mato. Jacinto, um cabo-verdiano, desabafa com o chefe do Posto:
“Já lá vão os bons tempos em que os indígenas tinham dinheiro porque o amendoim, o coconote, a goma e a borracha eram bem pagos. Chegavam às lojas com grandes cestas, entregavam o produto e escolhiam os panos, pediam tabaco e bons terçados. O comércio fazia-se por escambo. Balanças? Para quê? Dizíamos um peso qualquer e eles não discutiam. Depois os tempos mudaram. Mais tarde, quando traziam os produtos vinham acompanhados dos doutores.
- Doutores? Interrogou Henrique, surpreendido.
- Sim, afirmou Jacinto. Doutores são os rapazes que viveram na cidade, falam o crioulo de Cabo Verde, conhecem as balanças e os pesos, discutem connosco e acompanhavam os indígenas que traziam mercadorias. E, hoje, sr. Henrique, dispensaram os tais doutores pois aprenderam também a negociar sozinhos”
.

Esta observação de Fausto Duarte é da maior utilidade, revela a chegada de intermediários que estarão em ligação com os grandes exportadores, tipo Casa Gouveia.

Henrique procura desesperadamente saciar os seus apetites sexuais, tudo acaba em fracasso. E então Fausto Duarte esboça um quadro da vida africana ao alvorecer, fala-nos na neblina húmida, nas chuvas torrenciais, na água que invade as bolanhas, na trovoada que provoca espanto e pavor, nas onças, no bramido do vento, a vida quotidiana dos indígenas, nos seus cultivos. Henrique é apresentado como homem do seu tempo, tem uma certa missão civilizadora, cabe-lhe criar condições para que haja desenvolvimento agrícola, no final do romance vamos encontrá-lo a montar uma charrua que mandara vir de Lisboa. “Dedicara-se de corpo e alma à ideia de bem servir agenciando meios para melhorar as condições de vida dos indígenas. A teimosia dos Nalus e a indolência dos Mandingas não lhe embotavam o fio da imaginação sempre pronta a tornar o Posto de Caianque o modelo de organização administrativa. Orientava pessoalmente os trabalhos de campo, adestrava o gado, e com a palavra fácil e bons exemplos insinuava-se no ânimo dos negros que o adoravam”. Mas a selvajaria também campeia, Jacinto entregará a Henrique uma mão decepada, ele diz ser de um balanta que procurara assaltar a loja, e vai apostrofando a ladroagem dos Balantas.

Segue-se uma descrição da natureza do Tombali, é uma linguagem pictórica, ardente, admirativa: a vegetação arbórea espontânea, as matas impenetráveis, ao alto as aves, na mata os animais lutam, a onça devora a gazela, os símios acrobáticos saltam de arvoredo em arvoredo, as cobras devoram as aves incautas. Fausto Duarte dá-nos um belo retrato da bagabaga:
“Espalhadas aqui e ali erguem-se pequenas pirâmides de terra avermelhada: são as termiteiras, construções indestrutíveis de insetos que só trabalham na sombra. Levantam muralhas consolidadas pela saliva, que tudo aglutina, para se defenderem dos ardis que povoam o mato. Os obreiros fogem da luz que entra com suavidade pelos alvéolos, mas lá dentro, no mistério tumular, envolto por uma escuridão duradoura, há labirintos engenhosamente fabricados, dédalos que vão ter à câmara inviolável da rainha.
A termiteira lembra uma pirâmide egípcia em miniatura. Uma é habitação de vivos, outra jazigo de mortos, mas ambas são fantasias da arquitetura ciclópica; ambas objetivam encarcerar a sombra e fazer dela o manto de um rei cujo corpo mumificado zomba dos séculos, ou de uma rainha – inseto extravagante – que governa com despotismo, porque perpetua a espécie, porque o seu abdómen é um constante viveiro; ambas são orgias de pedra trabalhadas por gerações inteiras, tumuli prodigiosos que aguçam a curiosidade”
.

(continua)

Catió, capital do Tombali, em data recente
____________

Nota do editor

Último poste da série de 21 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23726: Notas de leitura (1509): "Para Além do Amor", por Nelson Cerveira, edição do autor com apoios de autarquias e instituições da Anadia; 2022 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23733: Louvores e condecorações (13): O Batalhão de Caçadores Paraquedistas (BCP 12), condecorado em 10 de abril de 1968, com a Medalha de Cruz de Guerra de 1.ª classe


BCP 12, composto pelas CCP 121, 122 e 123. Imagem da página do Facebook do nosso camarada Victor Tavares [ex-1º cabo paraquedista, CCP 121/ BCP 12, BA 12,  Bissalanca, 1972/74; tem mais de 45 referências no nosso blogue ]:


Decreto 48328, de 10 de Abril

Corpo emitente: Presidência do Conselho - Secretaria de Estado da Aeronáutica
Fonte: Diário do Governo n.º 86/1968, Série I de 1968-04-10.
Data: 1968-04-10
  
Sumário. Condecora o Batalhão de Caçadores Pára-Quedistas n.º 12 com a Medalha de Cruz de Guerra de 1.ª classe.

Texto do documento > Decreto 48328

O Batalhão de Caçadores Paraquedistas n.º 12, aquartelado na Guiné, apesar da sua recente constituição, rapidamente se impôs como uma unidade de elite, agressiva, corajosa e audaz, com um notável espírito de corpo e apurada técnica na contrassubversão. 

A intensa atividade operacional que vem desenvolvendo é verdadeiramente notável, traduzindo-se em inúmeras operações, desde operações com larga duração, como, por exemplo, a «Operação Marabunta», em que durante cerca de um mês atuou permanentemente fora dos seus aquartelamentos,  e que foi um exemplo de tenacidade, espírito de sacrifício e apurada técnica, até a rápidos golpes de mão, em que com duros contactos infligiu pesadas perdas em material e pessoal ao inimigo, como, por exemplo, na «Operação Trovão», em que capturou cerca de 5 t de material de guerra, e a «Operação Ciclone II», em que aniquilou completamente um bigrupo inimigo, eliminando cerca de 40 dos seus elementos e aprisionando os restantes 19, todos armados.

Recentemente o Batalhão de Caçadores Paraquedistas n.º 12 atuou com brilhantes resultados em zonas onde já há largo tempo não havia acções da nossa parte, tendo-se especialmente distinguido no Cantanhez, no Como e no Quitafine.

A par das suas ações de força de intervenção, tem ainda sabido captar simpatias entre a população civil, exercendo uma notável ação psicológica junto dela, com resultados muito vantajosos para a luta contra a subversão que ali se trava.

Por tudo o que fica exposto, o Batalhão tem-se destacado, através dos seus oficiais, sargentos e praças, que formam um grupo equilibrado e homogéneo, exemplo da tropa de intervenção como uma verdadeira unidade de elite, contribuindo, de maneira decisiva, para a viragem da situação no Sul da província, honrando assim as forças paraquedistas e tendo da sua atuação na província, considerada brilhante e altamente honrosa, resultando prestígio para a Força Aérea e admiração e reconhecimento das outras forças armadas, pelo que merece ser apontado como exemplo.

Usando da faculdade conferida pelo n.º 3.º do artigo 109.º da Constituição, o Governo decreta e eu promulgo o seguinte:

Artigo único. 

É condecorado o Batalhão de Caçadores Paraquedistas n.º 12 com a Medalha de Cruz de Guerra de 1.ª classe, por satisfazer às condições referidas no artigo 13.º do Decreto 35667, de 28 de Maio de 1946.

Publique-se e cumpra-se como nele se contém. 

Paços do Governo da República, 10 de Abril de 1968. - AMÉRICO DEUS RODRIGUES THOMAZ - António de Oliveira Salazar - Manuel Gomes de Araújo - Joaquim Moreira da Silva Cunha - Fernando Alberto de Oliveira.

Para ser publicado no Boletim Oficial da Guiné. - J. da Silva Cunha.

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Nota do editor:

domingo, 23 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23732: (Ex)citações (417): A propósito de Amadu Bailo Djaló (1940-2015): mestiçagem, mercenariato, fanado, hospitalidade africana, viagem a Boké... (Cherno Baldé)

1. Comentários do Chermo Baldé, nosso colaborador permanente, assessor para as questões etnolinguísticas, e que vive em Bissau, ao poste P23723  (*):

(i) O Amadú Djaló se identifica e se assume como Fula (Futa-Fula), na realidade é um mestiço, fruto do casamento de um Fula de apelido Djaló com uma mulher Maninka de apelido Condé/Kondé (ramo mandinga da região da alta Guiné, "haute Guinée"), mas espalhados um pouco por outras regiões da Guinée, sobretudo pela baixa Guinée na região de Boké e também pelo Sul da Guiné-Bissau. 

Na verdade, quase todos os Fulas (Futa-Fulas),  originários da Guinée-Conakry, são mestiços e com grandes capacidades de integração noutras esferas culturais, o que faz deles, historicamente, excelentes servidores do que se pode classificar como mercenariato militar na região da Senegâmbia. 

Assim, formavam a grande maioria da temida elite guerreira e de cavalaria do Abdul Indjai com o Cão. Teixeira Pinto que devastou o Centro e o Norte do país entre 1912/1915, serviram como Polícias e Sipaios da administração colonial e em alguns casos conseguiram até a nomeação para cargos régios e, salvo raríssimas excepções, todos os Fulas que se distinguiram nas fileiras da luta da libertação com o PAIGC, saíram deste grupo com origens na Guiné-Conakry (Corca Só, Umaro Djaló, Abdulai Barry, Mamadu Alfa Djaló, entre outros).

A explicação para esse facto não é tão simples, mas dever-se-á, fundamentalmente, pela liberdade de acção que detinham, por não estarem muito ligados e dependentes das autoridades tradicionais por onde passam, pela desenvoltura de não serem nem tipicamente camponeses nem criadores de gado, pela facilidade de integração e liberdade de movimento e por um especial gosto das aventuras de alto risco como o serviço militar e/ou paramilitar que lhes restava como opção nos seus percursos de aventura humana, para além do comércio ambulante que era a sua profissão por excelência.

Como diz o Luís Graça, a quase (des)ventura do Amadú por terras de Boké é de natureza a desmentir o alardiado mito da hospitalidade e solidariedade africanas. Mas, em tudo há excepções, e o Amadu Djaló, por ignorância e falta de experiência deixou-se cair numa cilada de desconfiança pela sua presença repentina num meio hostil e de gente, certamente, traumatizada por situações passadas. No mato e em situações idênticas só escapam da natural desconfiança certas personalidades como os Mouros (Marabus), os Djidius (músicos tradicionais) ou Djilas (vendedores ambulantes). Não esquecer que, ingenuamente, ele foi transportado por um branco, provavelmente, não identificado, logo potencialmente suspeito.

Quanto ao nome de "Mari Velo", se a minha compreensão estiver certa deve significar "O homem da bicicleta",  traduzido da língua fula. "Mari" é a conjugação na terceira pessoa do verbo ter e "Velo" é bicleta ou velocípede cooptado da língua francesa, pois que, mesmo vivendo na Guiné dita portuguesa, os originários da Guinée, continuam sob a influência da língua francesa que, aos olhos dos nativos, determina um certo estatuto social de classe, de conhecimento e, logo, de prestígio. Mas, a palavra "Mari" também pode significar "Marido" que é fula, mas também, pode ser uma cooptação da língua francesa.

O longo percurso de 9 dias de Bafatá a Boké, deveu-se certamente, ao facto de que era uma viagem de negócio e o percurso não foi o mais curto possível, pois devem ter seguido a via de Gabu-Fulamori para entrar no território vizinho e seguir até perto de Conakry, descendo depois a Bofa e por fim ao Boké. Se tivessem seguido pela via do Sul através do Forèa (Contabane) o trajecto seria em menos de 3 dias de marcha.

Com um abraço amigo,
Cherno Baldé
22 de outubro de 2022 às 13:46 



Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940- Lisboa, 2015)

(ii) A mestiçagem entre grupos etnico-culturais é um fenómeno antigo e de longa duração na África Ocidental. Os grandes grupos (mandinga e fula) cresceram numericamente graças a sua capacidade de integração social, de dominação e de transformação pela assimilação cultural de outras áreas geográficas, povos e culturas, processo iniciado desde o século XII/XIII.

Com o início do processo da colonização por forças externas, também apareceu a necessidade do aprofundamento das divisões étnicas, através de contradições, às vezes, artificiais,  de forma a enfraquecer os africanos e perpetuar a dominação.

Sobre o fanado, descrito por Amadú Djaló, posso dizer que é uma experiência única e indescritível. Foi o meu primeiro trauma psicológico e sócio-cultural de que nunca me recuperei completamente. Após o corte cirúrgico, ficamos entregues a bicharada, sem assistência nem qualquer tratamento, a melhor solução que encontramos, a partir da primeira semana, foi enterrar o sexo dorido e inflamado nas areias quentes das estradas a fim de desenfectar, tratamento que era repetido todos os dias quando o sol se encontrava no zénite.

Num dia que nos trouxeram mais perto da aldeia, e ao ouvir a voz da minha irmã mais nova no exterior da barraca, as lágrimas escaparam-se dos meus olhos por causa das saudades e por um triz não desatei aos berros, pois fora a primeira vez que fizera mais de um mês longe da família e nas mãos de desconhecidos que tudo faziam para nos frustar em nome da educação. 

Fazia parte da preparação dos mais novos para a vida futura. Na altura tivemos a visita do enfermeiro auxiliar da companhia estacionada em Fajonquito (em 1970, penso que seria a CCAÇ 2435 comandada pelo Cap Carvalho, pouco antes de ser substituída). Mas a utilização do mercúrio preto numa ferida fresca e numa parte tão sensível do corpo ainda piorou a nossa precária e débil situação. Não se esquece. (**)

Abraços,
Cherno AB 
22 de outubro de 2022 às 20:56

Guiné 61/74 - P23731: (In)citações (225): As questões éticas nos cuidados de saúde (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

© ADÃO CRUZ



AS QUESTÕES ÉTICAS NOS CUIDADOS DE SAÚDE

adão cruz

Com este título, AS QUESTÕES ÉTICAS NOS CUIDADOS DE SAÚDE, recebi em tempos um texto enviado pelo Conselho Nacional de Ética e Deontologia Médicas, solicitando a discussão do documento, a fim de que ele pudesse constituir um instrumento útil de reflexão.

Na altura, li e reli o texto com toda a atenção. Reconheço e aprovo os valores fundamentais que constituem o seu núcleo, mas não me parece que ele tenha uma significativa repercussão na consciência de médicos e de outros agentes de saúde. Como parte da população pertencente aos mais diversos sectores profissionais e sociais, uma boa parte de nós, médicos e outro pessoal de saúde, não tem a formação exigida para exercer uma verdadeira Ética em Saúde. Uma grande falha no ensino da medicina, capaz de comprometer seriamente o ensino da vida. A ética nasce e desenvolve-se dentro de cada um de nós à medida que a vamos aprendendo, apreendendo e vivenciando. Por isso, não me parece fácil haver uma reflexão séria sobre a nobreza dos ideais médicos, de forma a poder entender-se que “O médico que aceite o encargo ou tenha o dever de atender um doente obriga-se, por esse facto, à prestação dos melhores cuidados ao seu alcance, agindo com correcção e delicadeza, no exclusivo intuito de promover ou restituir saúde, suavizar os sofrimentos e prolongar a vida, no pleno respeito pela dignidade do Ser Humano”.

Isto não é um mandamento do código da estrada, nem uma alínea do articulado de qualquer lei. Este Artigo 26.º do Código de Deontologia Médica implica, antes de tudo, que o médico e outros profissionais de saúde tenham bem estruturado na sua natureza e na sua formação um rigoroso respeito por eles próprios, e reconheçam a sua dignidade como pedra fundamental da vida e da profissão. De outra forma, todos os códigos são letra morta e só servem para enfeitar. Dito por outras palavras, todo o ser humano deveria ser global e estruturalmente bem formado, mas especialmente quando lhe é destinada a nobre e digna missão de lutar pela vida dos outros. Uma boa parte da humanidade, ao invés de humanizar as leis, infelizmente vai-as subvertendo no dia a dia, ao tecer a corda cada vez mais forte com que enforca cada vez melhor os mais fracos. A este fenómeno podem não ser alheios os profissionais de saúde e a medicina, quer no que diz respeito à competência, quer no que diz respeito ao empenhamento, à verdade e à honestidade dos meios e processos inerentes a toda a sua vida clínica.

Considero e sempre considerei a Ciência o verdadeiro caminho do conhecimento. Mas a ciência pode ser e é muitas vezes uma eufemística boa fada da humanidade, criada para apoio dos fracos, passando rapidamente a suporte dos poderosos. Com todo o potencial que a envolve, é fácil atraiçoar os projectos humanitários e o seu histórico bom-senso, quando em vez de construtiva se torna factor degradante da vida humana. Mas o perigo não está na ciência. Está na perversão da ciência perante os apetites dos poderes. E também pode estar, infelizmente, na perversão da sua filha mais dilecta, mais séria e mais virgem, a Ciência Médica. De nada servem palavras e comportamentos formais e enformados, inertes, nascidos da adaptação e do conformismo, despidos da inquietação, do revolver da inteligência, do poder do pensamento e do questionamento da consciência.

Na minha maneira de ver, ser médico obriga a um especial dimensionamento da existência à escala da vida, da vida à escala da saúde, da saúde à escala da Justiça, da Justiça à escala do mundo. A visão universal da vida aponta para o núcleo activo das interacções multifactoriais da existência, o qual exige a presença de uma política humana que torne possível uma ciência humana, base indispensável do progresso e da justiça. Podem chamar utopia a tudo isto. Mas o remexer do que em nós existe de sério, o soprar do pó que cobre as nossas consciências e o desenraizar das nossas hipocrisias mostram-nos que, sem utopias, todo o ser humano se torna mais permeável à desumanização e à irracionalidade. E todos os que pensam e lutam sabem que “a utopia é a injúria ordinária que os medíocres atiram a todos os ideais”.

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Nota do editor

Último poste da série de 6 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23679: (In)citações (224): Um copinho de Filosofia (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)