Fundação Mário Soares / Documentos Amílcar Cabral > Abril de 1972 > Região de Tombali > "Visita da Missão Especial da ONU a Cubucaré [, a sul do Rio Cacine,] distinguindo-se Fidelis Cabral de Almada e José Araújo. Com a inscrição manuscrita a lápis no verso: Recebida, com entusiasmo pela população, a missão especial chega ao local de um grande meeting popular, em Cubucaré". Guiné-Bissau, 2 a 8 de Abril de 1972."
1. Mensagem do nosso camarada Manuel Luís Lomba (ex-Fur Mil da CCAV 703/BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66) com data de 22 de Março de 2019, sendo publicada com o poste na série (In)citações (**):
A Guerra da Guiné:
A Comissão Especial da ONU e outros embustes…
A ONU, Organização das Nações Unidas, é uma entidade enformada por humanos, tanto pode praticar as melhores virtudes como cometer os erros mais comezinhos. E sendo as guerras actividades humanas e o homem a única espécie animal que mente, a verdade é a primeira vítima delas.
Postulante à Assembleia Geral da ONU do envio dessa Comissão Especial (*), Amílcar Cabral, num exercício de génio político, nem a acompanhou nem penetrou na fronteira da Guiné Portuguesa. Se o desafio corresse mal, haveria um culpado - o seu “marechal de campo” Nino Vieira. A superação do medo do risco dessa troika onusiana foi trabalho dos drs. Fidelis Almada e José Araújo, do Comité Executivo de Luta, formaram um grupo de 6 e desceram de Conacri para Boké-Kandiafara, fizeram-se ao caminho até à fronteira de jipe, fardados de “boinas azuis” e escoltados pelo grupo de experientes guerrilheiros comandados pelo decidido Abdulai Barri, passaram linha invisível da fronteira a pé, foram recebidos na margem do rio Balana pelo comandante Pedro Pires, que acabara de substituir o comandante Constantino Teixeira no cargo de Comissário Político da Frente Sul e de “controleiro” de Nino Vieira.
Havia dois anos que a tropa deixara de içar a bandeira de Portugal naquele troço do longo Corredor de Guileje. Amílcar Cabral embirrou com a posição e, na sua sobranceria de militar clássico, convencional, em 1970, o General António de Spínola negligenciara a valia táctica das posições de “impermeabilização” daquela fronteira, dando preferência à perseguição dos intrusos com operações “à general”, com forças terrestres, navais e aéreas, evacuando as suas guarnições (Ponte Balana, Gadembel, etc).
Na mata da margem desse pequeno rio Balana também os esperava Nino Vieira, o eficiente Chefe de Operações do PAIGC, correspondente ao posto de Comandante-Chefe, nos exércitos clássicos, que lhes deu orientações tácticas, traçou-lhes a rota orientada a leste, eles começaram a marcha na direcção de Daresalam, com dois bi-grupos em segurança avançada, comandados por Constantino Teixeira, e desandou apressado (Luís Cabral escreveu por sofrer de maleita nos pés), mas no desempenho do seu cargo do mais alto comando operacional das FARP (Forças Armadas Populares) e com a missão de despistar à tropa de Bissau a sua porta entrada, a sua progressão e na cobertura à sua estada, com manobras de flanco, enquanto o Comandante-Chefe General António de Spínola correspondia à intrusão desencadeava, a partir de Aldeia Formosa (Quebo) a Operação Muralha Quimérica, entre Unal e Gadembel, investindo agrupamentos de tropas especiais e do contingente geral - as Companhias de Pára-quedistas 121, 122 e 123, duas Companhias de Comandos Africanos, as Companhias de Caçadores, 19, 3399, 3477 e as imprescindíveis parelhas de aviões Fiat G-91, de ataque ao solo, cerca de 800 operacionais, brancos, pretos e mestiços. Atente-se na premonição da nomenclatura dessa operação. (***)
Lançados na procura da sua peugada e comandados pelos valorosos oficiais pára-quedistas Tenente-Coronel Araújo e Sá e Capitão Mira Vaz, aqueles insofridos operacionais andaram 12 dias a pentear aquele inóspito território, como quem procura agulhas em palheiro, enquanto o intuitivo e bem informado Nino Vieira, ao comando dos seus bisonhos 400 combatentes nacionalistas, enquadrados por cubanos, com a sua lendária sorte e pelas suas audaciosas manobras de diversão, ofensivas e defensivas, conseguiu manter à distância e garantir o desencontro de toda aquela tropa com esses intrometidos “emissários especiais”. A segurança próxima de Abdulai Barri e segurança alargada de Constantino Teixeira não dispararam um tiro.
Em 10 de Abril, em Conacri e, a seguir, em Nova Iorque e noutras arenas internacionais, aqueles emissários diplomáticos clandestinos proclamaram, na certeza de colher a condescendência da generalidade das chancelarias que, nos 5 dias e 6 noites da sua visita à Guiné (da sua imaginação) percorreram cerca 200 km a pé em “áreas libertadas, e apenas de noite – uma média de 30 km por cada dessas curtas noites tropicais, superior à alcançada em corridas pedestres em pista – proeza de super-homens! – que estiveram em 9 localidades libertadas, em contacto com as populações na inspecção das estruturas que enformam os Estados – serviços da administração, saúde, justiça, educação, obras de reconstrução, economia, assembleia nacional, etc (seriam portadores de óculos de visão nocturna?). E que, a simbolizar a missão cumprida arvoraram a bandeira da ONU no galho duma árvore, algures na península de Cubucaré/Bedanda.
Essa mistificação dessa missão internacional a uma imaginativa Guiné custou ao PAIGC a destruição do “hospital” e da “loja do povo”, razão por que não as visitaram, importante armamento aos 400 duros combatentes do comandante-chefe Nino Vieira e 47 baixas, entre mortos, feridos e prisioneiros. O fotógrafo oficial da ONU, o japonês Youtaca Nagata, voluntariara-se para a essa missão, mas não terá tirado a foto pró-memória do acontecimento, prevenindo-se do seu do contraditório, enquanto o relatório e seus anexos, para uso da Comissão de Descolonização, do Secretário-Geral, da Assembleia Geral e do Conselho de Segurança da ONU denunciam a mão do PAIGC.
Essa visita da Comissão Especial da ONU à Guiné foi um embuste - protagonizou o maior acto de hipocrisia diplomática da Comunidade das Nações. Não fora mandada com a missão de observar, mas para satisfazer o formalismo da apresentação dum relatório, circunstancial de modo e de lugar. Ainda há pouco alguns ex-quadros do PAIGC se descaíam, em privado, em como esses onusianos apenas puseram os pés nas bordas do chão bissau- guineense.
Testemunhos espontâneos de veteranos combatentes diziam que aquele grupo onusiano apenas se aventurara a pequenas deslocações, ao longo da fronteira, sempre de noite, a penar os tormentos da guerra, sempre com o credo na boca. Penetrados 5 km no mato da Guiné, a audição dos rebentamentos, a sua intensidade e o roncar dos Fiat's fizeram o diplomata Kamel Belkhiria, secretário da missão permanente da Tunísia, avaliar o risco que incorriam, manifestou-se renitente à aventura e tornara-se recorrente nas tentativas de não só não avançar mais como de voltar para trás. Tendo em conta que Boké dista cerca de 80 km da fronteira, aos apregoados 200 km palmilhados terão de ser subtraídos os 160 km de ida e volta, percorridos de viatura em território estrangeiro. A máxima distância em linha recta, entre Bissau e o ponto fronteiriço mais distante, como Buruntuma ou Guileje, será pouco superior a 100 km...
Essa desavergonhada missão internacional, porque clandestina e nocturna, em favor ao reconhecimento dum Estado também ele ausente, nocturno e clandestino, ter-se-á limitado ao acto de dependurar a bandeira da ONU no galho duma árvore além rio Balana, ao Cantanhez – esse santuário da Natureza Bissau-guineense, entrado em processo de desertificação demográfica, que a conjugação das adversidades naturais com as tormentas daquela guerra transformaram em “inferno verde” para os seres vivos – animais, guerrilheiros, tropa e populações.
Essa Comissão da ONU aterrou em Conacri, então a capital da Guiné-Bissau, e poderia ter aterrado em Bissau ou nas 60 pistas de aterragem activas, espalhadas pela Guiné Portuguesa. A sua precedente aterrara em Bissau, em Julho de 1971, observara os 12 mil aldeamentos sociais espalhados pelo território, construídos pelo Batalhão de Engenharia de Bissau e pelas guarnições das suas quadrículas, e não escondeu o seu espanto, pelo sucesso do PAIGC em revertê-los em seus secretos pontos logísticos. O PAIGC tinha “comissários” nesses aldeamentos; a sua circulação era quase livre…
Se não fosse tão “especial”, essa missão teria podido deslocar-se por terra, mar e ar, aos quatro cantos da Guiné, teria avaliado “a guerra de guerrear” do PAIGC, eficiente em criar dificuldades e na disrupção da vida das populações rurais guineenses, pela minagem das picadas e trilhos, teria observado a sua eficácia a dar combate, em encontros de primeiro grau, como as emboscadas de bate e foge às patrulhas, colunas-auto da tropa ou os ataques, em regra nocturnos, aos seus aboletamentos; teria visto mortos, feridos ou estropiados de um e de outro lado, em particular nas áreas florestais e suas acessibilidades.
Mas, em lugar algum dessa Guiné real encontraria Amílcar Cabral ou qualquer um da cúpula dos mandantes dos seus insofridos combatentes da liberdade. Viviam em Conacri. O próprio Nino Vieira viva em Boké. Em abono da verdade, seriam obrigados a reportar que o atraso da Guiné portuguesa era ligeiramente superior ao do Portugal europeu, que a colonização portuguesa era algo mental e pouco económica, que a capital da Guiné do PAIGC e as suas instituições políticas e militares funcionavam em Conacri e noutras cidades no estrangeiro e que as dimensões atribuídas às “áreas libertadas” eram criações fantasiosas, propaganda mediática.
Estavam os intrusos onusianos a pisar a margem do rio Balana e o Comandante-Chefe comparecera no palco da quimérica operação que desencadeara. No dia seguinte ao conhecimento que já tinham abandonado o território, que lhe chegara pela diligente propaganda radiofónica do PAIGC, os voos rasantes de reconhecimento duma parelha de jactos Fiat anunciavam a sua visita à área dessa visita e um “zingarelho” da base aérea de Bissalanca poisou nela.
O general, carismático pelo seu monóculo e pela teimosia de ir aos locais onde o PAIGC já tinha ido, chegava ao encontro com a ONU, atrasado mas não clandestino, a lavar, com a sua presença, o enxovalho da ONU dirigido à terceira nação mais antiga do mundo e aos seus soldados; e só então mandou calar a metralha, que havia 12 dias punha o Cantanhez a ferro e fogo, por terra, água e ar, já Nino Vieira manobrava o Terceiro Corpo de Exército das FARP pelo troço no estrangeiro do famigerado “Corredor de Guileje”, para as suas bases de retaguarda, de Kandiafara e Boké.
Os mesmos populares que o PAIGC havia coagido a sair dos seus esconderijos, a seco e em segredo, para fazer de cenário a esse evento onusiano, foram os mesmos a acorrer à aterragem do Comandante-Chefe, que animou a malta, presenteando-os com dois garrafões de aguardente de cana.
Os naturais da Guiné são naturalmente hospitaleiros e nunca desperdiçam a oportunidade dum ronco (uma festa); e esses mesmos figurantes para o evento da ONU rufaram o “bombolom” nos seus tambores, convocatório a nova reunião, ora de celebração à presença do “homem grande de Bissau” e em gratidão à sua dádiva aguardenteira, enquanto os 800 militares dos agrupamentos de tropas especiais e normais da Operação Muralha Quimérica começavam a recolher aos seus aquartelamentos, mortos de cansaço físico e psíquico pelos esforços e sofrimento individual que lhes foram exigidos, a custo de um morto e sete feridos graves. Estariam longe de imaginar ou de qualquer pressentimento que acabavam de abordar uma emergência transcendental e que dois garrafões de aguardente de cana-de-açúcar da “Apsico” do Comando-Chefe fizeram mais pela “Guiné Portuguesa” que os seus 12 dias de canseiras, sofrimento e combates.
Como as operações combinadas dos três ramos são planeadas pelos Comandantes-Chefes, no outro lado, no Índico, o Comandante-Chefe General Kaúlza do Arriaga, o oposto do General Spínola, com a sua Operação Fronteira embargou 13 vezes ao Comité dos 24 da ONU, as suas tentativas de penetração clandestina em Moçambique…
À maneira de “um general no seu labirinto”: o espião das informações em que o Comando-Chefe baseou o planeamento da Operação Muralha Quimérica e o guia para o avanço do seu desencadeamento haviam-lhe sido “fornecidos” pelo PAIGC. Luís Cabral escreveu terem tomado precauções militares e “conspirativas”...
Dizem que o tempo e a História devolvem a gratidão aos povos. Os nossos netos verão em Bissau uma estátua a homenagear o General António Spínola “Por uma Guiné melhor”?
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Notas do editor:
(*) Vd. poste de 16 de março de 2019 >
Guiné 61/74 - P19592: (D)o outro lado do combate (48): A Missão Especial da ONU na Guiné - Abril 1972 (António Graça de Abreu / Luís Graça) - III (e última) Parte II: capa + pp. 9-11.
Postes anteriores:
14 de março de 2019 >
Guiné 61/74 - P19586: (D)o outro lado do combate (46): A Missão especial da ONU na Guiné - Abril 1972 (António Graça de Abreu / Luís Graça) - Parte I: capa + pp. 1-3
(**) Último poste da série de 7 de fevereiro de 2019 >
Guiné 61/74 - P19478: (In)citações (126): o facto de ter havido alguém, como o Ramiro Elias da Silva, a ter a ideia de um convívio do batalhão em Angola, por volta de 1980, à semelhança dos que fazemos em Portugal, é altamente significativo do espírito que animou os seus militares, o que muito me orgulha (Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alf mil, CCAÇ 3535 / BCAÇ 3880, Zemba e Ponte de Zadi, 1972/74)
(***) Vd. poste de 29 maio de 2007 >
Guiné 63/74 - P1793: Operação Muralha Quimérica, com os paraquedistas do BCP 12: Aldeia Formosa, Guileje e Gadamael, Abril de 1972 (Victor Tavares)