Guiné 63/74 - P4072: O trauma da notícia da mobilização (1): A minha mobilização para a Guiné acagaçou-me (Magalhães Ribeiro)
Amigos Luís, Vinhal e Briote,
Recebi 4 e-mails do Hélder Valério Sousa, David Guimarães, Juvenal Amado e César Dias, em resposta à provocação que lancei ao pessoal sobre o tema do recente post em epígrafe, e que anexo abaixo.
Pelo interesse das achegas e esclarecimentos, e com a permissão dos mesmos, creio que poderia constituir para a publicação de mais um post, ou dois, complementar sobre esta matéria.
À vossa consideração.
Um abraço sempre Amigo do M.R.
1 – E-mail de Hélder Valério Sousa, em 20 de Março de 2009
Amigo MR
Pois é claro que muita coisa se passou e muitas vezes a realidade ultrapassa a ficção.
Olha, há um livro cujo autor é conhecido, mas agora não recordo, que tem o título traduzido para português como "O valente soldado Schveik" (não sei se é assim que se escreve) e que até já foi adaptado a teatro salvo erro pelo Raúl Solnado.
Esse livro relata as aventuras e desventuras do tal Chveik (*), oriundo, também se a memória não me atraiçoa, da Boémia, região hoje da República Checa, antes Checoslováquia e na altura integrada (anexada) no "Grande Império Austro-Húngaro".
Com as várias guerras travadas e/ou também forçadas a travar por esse Império, havia necessidade de incorporar cada vez mais elementos das várias regiões "integradas", em muitos casos, na maioria, combatentes à força, a verdadeira "carne para canhão", devido ao modo como então se combatia.
Pois o livro alterna entre o dramático, o irónico e o hilariante com as diversas situações do nosso "valente soldado" quer para tentar escapar das situações mais difíceis, com artimanhas várias, quer na lábia que utilizava para dizer o que os interlocutores queriam ouvir, nem que fosse a maior parvoíce ou situação afastada da realidade.
Então as várias situações de simulação de doença ou ferimento, até as situações de automutilação estão lá retratadas e, acredites ou não, eu cheguei a ler na esplanada do Bento, para alguns amigos, essas partes mais próximas das realidades que conhecíamos da nossa estada (mais ou menos profunda) em zonas do "Vietnam", como diz o Luís, e a gargalhada era geral.
O fulano que dava um tiro no pé, quem não o conheceu? O fulano que "entalava" uma mão ou outra parte do corpo para dar baixa à enfermaria ou mesmo evacuação para Bissau, quem não se lembra de ninguém assim? E aquela receita infalível para apanhar "três cruzes" de hepatite garantida com baixa e internamento em Bissau e, quem sabe, evacuação para a Metrópole, obtida com uma semana, mais ou menos, com uma ou duas "bazoocas" e duas ou três bananas em jejum? Nunca experimentaste?
Deram-me essa receita em Piche, mas felizmente a minha determinação e talvez também o facto de estar mais a recato das situações mais extremas, fizeram com que não passasse de apenas um dia para ver como sabia.
Bem, por hoje chega, vou fazer óó pois amanhã vou cedo para Lisboa.
Um abraço
HSousa
Karlovy Vary > República Checa, 2007 > Carlos Vinhal e o Valente Soldado Chveik
2 – E-mail de David Guimarães, em 20 de Março de 2009:
Bem vou falar sobre esta situação muito calmamente dizer o que me aconteceu a mim e o que na altura vi e pronto... acho que é importante não o meu caso que não serei exemplo, não sei se será bom ou não abordar este assunto - NO ENTANTO - sou suspeito sobre a matéria e direi porquê ou não - pode não ser conveniente e ser mal interpretado... Não quero polemizar as situações e contarei então que se passou comigo. Se achar oportuno darei razão por INTEIRO e eu mesmo antes da "merda" da guerra poderia ter usado todas as oportunidades e não usei, recusei e não sou herói, mas fui honesto com a minha consciência...
Um dia - já tinha a inspecção feita, por recomendação fui a uma consulta de psiquiatria, a um médico daqui do Porto célebre na Praça - já morreu...
Evidentemente que quando eu frequentava o sétimo ano (1968) comecei a ter comportamentos esquisitos. Bem, lá o médico me receitou isto e aquilo e fez-me uma recomendação - vai fazer um electroencefalograma e segundo a interpretação que lhe vou dar livro-o da tropa... Como é evidente fiz tudo e tomei os comprimidos - uns ainda hoje tomo (Diazepam 10) - mas o electro que se lixe... Ele leu e disse e eu ouvi e decidi - achei que o médico é que era maluco - e que não era bem acabado, não, isso garanto... NÃO TIVE O SENTIDO DE OPORTUNIDADE
Rejeitei totalmente na altura eu ser o único da família que não tivesse frequentado a tropa e fui claro - 22 de Abril de 1970, isso mesmo - rumo a Caldas da Rainha para o CSM - passados dois dias fiz 23 anos. Digo isto rejeitar porque - já consta no blogue o meu pai, herói de França, combatente na Batalha de La Lys (Sargento de carreira) meu irmão herói em Angola como Furriel Miliciano (Cruz de guerra) e eu... ficava em casa a beber copos de leite - coisa que nunca gostei muito... não...
Recruta nas Caldas, Especialidade em Vendas Novas e depois? Eu até tinha escrito num papel - RAP2 Serra do Pilar - V. N. Gaia. Aí a certa altura chamaram-me à Bateria e disseram - toma lá, amanhã vais para Minas e Armadilhas em Tancos. Bem no papel constava o seguinte: Por ter sido Mobilizado no BART 2917, segue para Tancos a fim de frequentar o Curso de Minas e Armadilhas o Furriel Mil... etc., etc., etc... Olhei para o papel e disse: - Porra, mobilizado para onde? Entretanto vi um camarada de recruta que tinha a Especialidade de IOL e estava a prestar serviço na secretaria do Comando - eu era Atirador. Fulano (esquece-me o nome) - vai ver para onde vai este BART 2917. Daqui a pouco, com ar pesaroso, chega-se à minha beira e diz:
- Guimarães, vais para a Guiné! - Melhor disse eu, a ter que ir que vá para a zona mais perto de Portugal.
Lá segui eu: como era evidente levei noutros nomes que eu conhecia rascunhados num papel. Cheguei a Tancos - Casal do Pote e pronto... toca a tirar o curso... entretanto tinha avisado os meus camaradas que estavam colocados na Pesada, mas tinham ficado nas unidades a dar instrução para onde era o destino deles... Éramos 200 Cabos Milicianos, nada de brincadeiras... Quase no nosso fim de Curso de Minas, sai à ordem na EPE (Escola Pratica de Engenharia) as mobilizações... Eu estava descansado outros que eu tinha avisado também, mas a maioria porra!!! Vi gente a chorar, vi gente a rir, etc., etc... Até cheguei a pensar que em Angola e Moçambique tinha acabado a guerra, porque os que riam eram esses que para lá iam e quem chorava eram os que iam para a Guiné... Mantive-me impassível e ciente só de uma coisa - todos íamos para a guerra...
Friamente terei que dizer fui e vim, outros lerparam e outros ficaram mutilados - fim.
Durante a comissão, dois pelo menos da minha Companhia vieram com a FIAAC - firma dos independente altamente apanhados pelo clima - era o que usávamos para o Xitole. Sim soldados, e foram dois, que nunca deveriam ter ido para a tropa e que já padeciam da cabeça antes de serem inspeccionados - mais nada. O resto foi e veio, salvo um Furriel que morreu - meu querido camarada Quaresma (de Algés) e outro que está cego, querido camarada Leones - vive em Lisboa - já falado no blogue ou na tabanca grande.
Vim e mantive-me a "tomar" o mesmo Diazepam - Valium 10...
Deu-se revolução dos cravos, tudo estava feliz e veio para rua... tanta burrice se fez, mas até entendo, porquê. Era o pássaro que estava na gaiola confinado a muitos limites e depois saiu - só que não soube avaliar os limites, o que era natural...
Foi só aí que se começou a ouvir falar em stress de guerra e veio lá das Américas dos veteranos do Vietname... Um dia pensei: - Se isto chega aqui aí vai haver "bichas" de stressados... adivinhei e não sou bruxo. Mais movimentos mais associações mais políticos e politiqueiros e aí está o resultado - todos temos uma pancada merecedora de um subsídio e tudo isto por causa da guerra... falo à vontade porque já fui chamado a testemunhar para um ex-militar que queria um subsídio só porque agora parece que sofre nem sei de quê... da cabeça já sofria ele então e que foi evacuado foi com uma hepatite...
Que se lixem os psicólogos, os médicos e muito mais gente que anda por aí nessas merdas... Um dos inquéritos que perguntei de imediato se estavam no gozo comigo, constava a seguinte questão: casas de banho, banhos e duches; águas e canalizações, etc., etc., etc... Perguntei ao Capitão que estava com esse processo: - Sr. Capitão quem foi o ignorante que fez esse inquérito? Possivelmente, respondeu ele a sorrir, um Alferes contratado de 22 ou 23 anos - isto foi no ano passado...
Vamos ser sérios, embora entenda que haja doentes mesmo de stress... mas não somos todos...
Porque assim não há direito... isto é uma síntese para responder e concordar com o Magalhães Ribeiro - doentes sim, mas se o oportunismo é doença então - está tudo lixado em Portugal.
NB - ENTENDO QUE ESTES ASSUNTOS DEVAM SER TRATADOS POR TU E DE CABEÇA FRIA COM O CORAÇÃO AO LADO.
AO MAGALHÃES RIBEIRO, NOSSO AMIGO, FAÇO UMA IDEIA DA DIFICULDADE QUE HÁ EM FAZER DESCER A NOSSA BANDEIRA - ISSO SIM ME FARIA MAIS DOENTE PELA CERTA.
Um abraço e preste a quem prestar este depoimento... Mas vamos ser sérios que isso sim - é dignidade que deve assistir a um antigo combatente - atendamos aos doentes claro, mas que ninguém se faça do que não é.
NOTA: A ZONA DO XITOLE FOI BEM VIVA EM GUERRA NAS DATAS QUE REFIRO 1970 A 1972... PARA QUE NÃO PENSEM QUE ESTIVE EM COLÓNIA BALNEAR.
David Guimarães
Fur Mil 17345368
At Art e Minas
Xitole 1970/1972
3 – E-mail de Juvenal Amado, em 20 de Março de 2009:
Meu caro Magalhães
Já estava preocupar-me contigo pois já há alguns dias, não aparecia nada com a tua assinatura.
Se temes ter uma tara em relação a falar da Guiné, então também eu sofro do mesmo mal.
Chego a telefonar aos meus camaradas do 3872 só para sentir a sua presença.
Em relação ao teu comentário vou tentar ler o tal poste e depois comentar. Depois te digo alguma coisa.
Um abraço
Juvenal Amado
4 – E-mail de César Dias, dia 20 de Março de 2009:
Olá MR
Tens razão, o stress começava bem antes. Quando íamos "dar o nome" para a tropa como diziam lá na minha terra (Chancelaria -Torres Novas), já a coisa começava. Depois na recruta havia gente a fazer tudo para passar aos auxiliares, um camarada do meu pelotão em Tavira andou a comer unicamente marmelada até baixar ao Hospital, conseguiu, nunca mais soube dele. Comigo parece que tudo acontecia como programado, era tudo previsível, até que um dia meti na cabeça que por ter ficado bem classificado no curso de especialidade de sapador, me livrava de embarcar porque o curso seguinte estava a sair, mas não tive sorte, o Homem do monóculo pediu dois batalhões de reforço e lá foi o Dias ainda mais rápido que o normal.
Quando cheguei a Mansoa, distribuíram-me um quarto onde sobre a porta tinha esta frase: "COM A SORNA COOPERANDO ME FUI DA LEI DA MORTE LIBERTANDO", não era bem o meu lema, mas lá me safei, como sabes nem todos encaravam a Guerra da mesma maneira, daí haver uns mais apanhados que outros, ou a fazerem-se apanhados. E HOUVE QUEM TENHA CONSEGUIDO OS SEUS INTENTOS.
Mas estás bem acompanhado com o Luís Nabais, ele está a par do que temos para ajudar os nossos camaradas que foram apanhados nessa malha.
Um abraço, Pira
César Dias
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Notas de CV:
(*) O Valente Soldado Chveik é um romance de autoria de Jaroslav Hasek, nascido em 1883 e falecido em Lipnice em 1923. Combateu sob a bandeira austríaca pela qual não nutria grande simpatia. Feito prisioneiro pelos Russos, alistou-se posteriormente no exército Checo. Foi jornalista e escritor, sendo este romance a sua principal obra.
Quanto ao soldado Chveik é a caricatura de um militar que tudo faz para fugir ao triste destino de combater pela bandeira austríaca durante a Primeira Guerra Mundial.
Quando recentemente visitei a República Checa, pude aperceber-me do sentido patriótico bem vincado naquele povo, que na sua história, conheceu a opressão do Império Austro-Húngaro, da União Soviética e ainda como território integrado, contra sua vontade, na então Checoslováquia. Voltando há poucos anos à condição de país livre e independente, como República Checa, exibe, a sua gente, um orgulho patriótico e uma cultura invejável. Um senão, a condição económica não ser muito favorável.
Guiné 63/74 - P4085: O trauma da notícia da mobilização (4): Ir em rendição individual e, para mais, 'substituir um morto'... (Henrique Matos)
1 comentário:
Obrigado, César:
Acabo de enviar ao Luis (uma vez mais), a informação de que temos, quer em Lisboa, quer no Porto, consultas de Psicologia e Psiquiatria para antigos combatentes.Para alguns com ou menor receptividade no seu problema, lá vamos andando, e alguns têm mesmo avançado para processos de stress de guerra, e enquadrados num plano mais abrangente.
Mas isso depende do julgamento/avaliação dos técnicos.
Em Lisboa, contactar Francisco Janeiro, presidente da Delegação de Lisboa, direccção de que faço parte.
Telefonem sempre primeiro, que está difícil, tal o número de camaradas que nos têm aparecido...
O STRESS DE GUERRA EXISTE.
Abraço
Luis Nabais
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