terça-feira, 2 de junho de 2009

Guiné 63/74 - P4450: Estórias do Juvenal Amado (16): Borrasca no Pilão

1. Mensagem de Juvenal Amado (*), ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1972/74, com data de 30 de Maio de 2009:

Caro Luis, Carlos, Virgínio, Magalhães e restante tabanca

Dirão alguns que a minha posição nesta estória não é de algum modo de um soldado brioso.
Com 10 meses já estava farto de conflito e não sabia que ainda me faltam 17.

Mas voltando ao assunto, eu fui como tantos outros um homem de paz, que teve que ir para a guerra. A minha visão de valentia, nunca se mediu pelo o número de inimigos mortos, mas sim pelos foram evitados de ambos os lados.

Como o José Brás muito bem disse, muitos de nós preferimos o abraço do que o aço e o homem em vez de inimigo.

Gosto deste espaço em que polémicas à parte todos tem o seu lugar, enquanto uns como eu já se sentem em paz, penso que o blogue ainda cumpre o seu desígnio terapêutico, aos que necessitam de ajuda e sem coragem para escrever, se sentem também retrados nas várias estórias.

Podem pelo o menos dizer: - Vês eu não estava a mentir quando falava do que lá passei.

Um abraço
Juvenal Amado


2. Borrasca no Pilão

Sentado do lado da janela, parecia um pardal de telhado sempre ao saltos.

Muito magro, pequeno pouco maior que uma G3, foi durante toda a viagem de regresso à Guiné motivo de animação.

Quando avião se fez à pista e começou a ver o arame farpado a correr veloz, o seu semblante transformou-se ligeiramente.
- Já estamos de regresso ao arame farpado novamente - disse com algum desânimo.

As férias correram rápidas, os dias escaparam-se por entre os dedos, agora no corredor de rumo à saída do 727 pensava no calvário, que ia passar até chegar a Galomaro.

Ainda sinto o cheiro dos lençóis e a frescura daquele Novembro, que a escassas 3 horas deixei para trás.

Cada passada que dava me aproximava da porta, a hospedeira desejava-nos sorte. Tão apreciada durante toda a viagem, o seu sorriso depressa se diluiu nas ondas de calor, que me atingiu quando cheguei às escadas.

A roupa arde. O corpo ainda está à temperatura do ar condicionado.

Vou para os Adidos. Apresentei-me já sabendo que seria escalado para tudo que era serviço. Tenho que sair de Bissau rapidamente.

A mistura de periquitos e veteranos fazia uma manta de retalhos. Os braços e joelhos branquinhos contrastava com os rostos tisnados da malta mais velha.

A noite foi passada em cima do colchão sem lençóis e todo vestido, pois sabia lá quem já tinha dormido naquela cama.

No dia seguinte foi fatal, estou de piquete.

Quem comandava o piquete era um furriel novinho em folha, tão branco e magro, o suor corria-lhe em bica e dava-lhe um aspecto quase transparente.

Ou muito me engano ou se houver chatice, vai ser complicado convencer o furriel de que não deve fazer ondas.

No Pilão, conviviam entre a população, segundo era voz corrente, clandestinos do PAIGC, comandos africanos, fuzileiros e prostitutas, que eram responsáveis pelas visitas dos soldados às enfermarias com maleitas, que por vezes faziam temer o pior em relação ao futuro reprodutor dos mesmos.

Assim estava eu a rogar a todos as santinhos que não houvesse problemas lá para aqueles lados, quando o piquete foi chamado.

Estava visto que as minhas preces não tinham sido ouvidas.

Tinha estalado um fogachal com rebentamentos à mistura bem no meio do bairro.

Olho à minha volta, três ou quatro soldados mais velhos, o resto são acabados de chegar. Um Unimog com o nosso furriel no comando dirige-se para os cavalos de frisa da entrada do bairro. Os clarões estão cada vez mais perto e ouvem-se tiros.

Nós não conhecíamos o bairro, nem tínhamos qualquer preparação para lá intervirmos.

- Meu furriel o melhor é não entrarmos lá, sem que outros piquetes mais conhecedores lá entrem primeiro. Tentavam os velhinhos demover o furriel.

O bom senso ditava que aguardássemos que os piquetes de Bissau interviessem primeiro.

Passaram os piquetes do QG, dos Comandos, PM e não sei mais quantos. A coisa não dava sinal de abrandar, o cheiro a incêndio era intenso. Por fim lá nos fizemos à vida e entramos também.

As cubatas queimadas, feridos e possivelmente mortos deram-nos razão. Não teríamos salvação se fôssemos apanhados entre fogos, nem saberíamos donde nos chovia.

Regressamos aos Adidos, já madrugada tentei dormir, lembrava-me do sorriso da hospedeira, da fresquidão dos lençóis, dos sabores e perfumes de casa.

Os mosquitos atacavam em esquadrilhas, estou demasiado excitado para dormir.

Pensava: - Tenho que arranjar transporte para o Xime numa LDG ou coisa parecida, rapidamente, pois lá perto está a minha segunda casa.

Juvenal Amado

O Geba ao fundo

Piscina de Bafatá

De regresso a Galomaro há que festejar. O Passos, Ivo, Catroga, Setã, Alfredo, Silva, Ferreira, Romão e Viseu
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de1 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4270: Blogpoesia (42): Reflexão - É mais fácil (Juvenal Amado)

Vd. último poste da série de 2 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3162: Estórias do Juvenal Amado (15): Adeus, até ao meu regresso

2 comentários:

Hélder Valério disse...

Pois é, caro Juvenal, não é a história dum soldado brioso, guerreiro, "salvador da Pátria", mas sim a de um homem prudente e sábio.
Gostei bastante foi da tua "entrada", simples, concisa, intrinsecamente honesta, dizendo o sentias "A minha visão de valentia, nunca se mediu pelo o número de inimigos mortos, mas sim pelos foram evitados de ambos os lados" e também "Como o José Brás muito bem disse, muitos de nós preferimos o abraço do que o aço e o homem em vez de inimigo", e o que sentes "Gosto deste espaço em que polémicas à parte todos tem o seu lugar, enquanto uns como eu já se sentem em paz, penso que o blogue ainda cumpre o seu desígnio terapêutico, aos que necessitam de ajuda e sem coragem para escrever, se sentem também retrados nas várias estórias".
É isso mesmo!
Um abraço
Hélder S.

Luís Graça disse...

Bravo, Juvenal, por continuares em boa forma (literária) e com vontade de escrever, por e para quem aparentemente não tem talento para a escrita mas pode reconhecer-se no nosso blogue...

Sobre o Pilão, com a tua já temos pelo menos 7 histórias/estórias... Cito algumas:

11 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - CIII: Comandos africanos: do Pilão a Conacri (Luís Graça)

18 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1290: Estórias de Bissau (7): Pilão, os dez quartos (Jorge Cabral)

24 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1314: Estórias de Bissau (8): Roteiro da noite: Orion, Chez Toi, Pilão (Paulo Santiago)

2 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1484: Estórias de Bissau (10): do Pilão a Guidaje... ou as (des)venturas de um periquito (Albano Costa)

10 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1512: Estórias de Bissau (11): Paras, Fuzos e...Parafuzos (Tino Neves)

14 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2264: Blogue-fora-nada: O melhor de... (3): Carta de Bissau, longe do Vietname: talvez apanhe o barco da Gouveia amanhã (Luís Graça)


19 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2556: Estórias de Bissau (16) : O Furriel Pechincha: apanhado ma non troppo (Hélder Sousa)

17 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2272: As nossas (in)confidências sobre o Cupelom, Cupilão ou Pilão (Helder Sousa / Luís Graça)


19 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2281: Estórias de Bissau (13) : O Pilão, a Nônô e o chulo da Nônô (Torcato Mendonça)

21 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2290: Estórias de Bissau (14) : O Pilão, a menina, o Jesus e os pesos que tinha esquecido (Virgínio Briote)


13 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3446: Estórias cabralianas (41): O palácio do prazer, no Pilão (Jorge Cabral)


Sabes que o Schultz chegou a ponderar a hipótese de arrasar o Pilão cpm bulldozers ? LI isso nas memórias (que vou publicar) de um nacionalista guineense, o Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai - justamente pai o actual primeiro ministro da Guiné-Bissau...

Era ele então vereador da Câmara Municipal de Bissau. E presidente o Major Matos Guerra... A proposta do presidente que alegava ordens do Governador, baseava-se na suspeição de que o Bairro do Cupelom (Pilão) era "um ninho de terroristas"... O problema do realojamento da população acabou por levar a vereação a recusar a proposta, "que ficou suspensa"... Isto terá sido por volta de 1965/66...

Como vês, a estigmatização do Pilão já vinha detrás...