1. Mensagem de Mário Beja Santos (*), ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70, com data de 29 de Setembro de 2009:
Caríssimo Carlos,
Penso que és tu que estás à testa do nosso glorioso negócio.
Espero enviar-te o segundo texto nos próximos dias, depois faço uma pausa.
Por favor, publica antes deste a terceira e última parte das memórias do sargento Talhadas.
Recebe um abraço do
Mário
Meus bravos, de que cor é o medo?
Beja Santos
Magalhães Pinto (economista, publicista, biógrafo e romancista) dedicou o seu segundo romance às memórias da sua comissão na Guiné (“Os heróis e o medo”, Magalhães Pinto, Âncora Editora, 2003). Tudo gira à volta de um batalhão, o 600 e tal, os Águias, com sede em Mansoa, é governador e comandante-chefe Arnaldo Schultz. A tónica fundamental, assegura o autor, gravita em torno da heroicidade, que não se mede pelo número de adversários mortos mas pelo profundo sentido de humanidade, pelo saber fechar as portas ao medo, dando aos outros a nossa coragem, a nossa solidariedade.
Magalhães Pinto apresenta o seu romance como uma história ficcionada. Há um narrador, Mário, para o qual convergem outras histórias, outras vidas. É imobilizado imprevistamente, a sua vida já estava rotinada, resigna-se, informa a família, casa, forma batalhão em Santa Margarida, ruma no Uige para Bissau. O comandante do batalhão é António Soveral, para quem a Pátria não se discute. O filho fora feito prisioneiro na Índia, a filha envolve-se na contestação académica, namorisca mesmo com alguém que é contra a guerra colonial. Amélia, a mulher do tenente-coronel Soveral suporta a solidão e todas estas contradições familiares. Os protagonistas vão aparecendo, um a um: Álvaro, o Manel fadista, José António, o namorado de Rafaela, a filha do tenente-coronel Soveral, uma chusma de gente embarca para Santa Margarida, assim apresentada: “Aquilo não era um quartel. Era um exército de quartéis. Uma longa avenida, larguíssima, ladeada pelos típicos edifícios militares mais recentes. Ao fundo, a servir de rolha à avenida, uma capela. Estilo moderno. A presença da Igreja num local onde se ensinava a matar. Onde se ensinava, também, a morrer”. A divisa do batalhão será: bravos, leiais e fiéis. É em Santa Margarida que chega a notícia da mobilização: Guiné, que todos tinham ouvido dizer ser o teatro de guerra mais violento e perigoso.
António Soveral vive os seus dramas: o filho Ricardo já foi libertado, abandona a vida militar, vai refazer a sua vida em França; o Pais, da PIDE, quis falar com ele sobre as relações da filha com gente do contra, recomenda ao tenente-coronel que encontre modos de controlar melhor a sua filha. E depois o embarque: “Firme!... Sent...op!... Direita... er! Em frente... arche!... O rufar dos tambores. A marcha militar, de novo. As botas, nessa altura ainda de sola, a baterem no empedrado, como se fossem um par apenas. Desarmados. A G3, companheira fiel de cada um deles nos próximos dois anos, não era para mostrar ali. Assim, a imagem a perdurar nos familiares pendurados na varanda do cais seria a de um passeio”. E o navio afasta-se, os oficiais na primeira classe, os sargentos na turística e os soldados nos porões. Álvaro faz poesia, assim se partiu para África, assim rapidamente se chegou a Bissau, ao seu pequeno cais, todos partem em lanchas de desembarque numa coluna de camiões Berliet, irão ser despejados junto ao quartel-general. E começa o fascínio dos contactos descrito pelo Mário: “Bô miste lavadêra? Bô miste pillha, branco? Miste missanga bonita pra mandá tua senhora?... Qué mancarra, branco?... Dois saco um peso...”
O batalhão parte para Mansoa, sua sede, as companhias dispersam-se por Mansabá, Bissorã e Olossato. Pior do que o Oio só Guilege e Gadamael, lá mais para o sul, e a ilha do Como. Antes de partirem, Mário, Álvaro e Manel percorrem Bissau. Samba Jau leva-os ao Pilão, ao bordel. Zé António, o namorado da Rafaela, é metido na tropa, vai para um quartel em Bragança.
Magalhães Pinto ficciona uma primeira operação e dá-lhe o tom mais polémico possível: o capitão Soares da Cunha, depois de uma emboscada, comanda uma chacina: “Ordenou a alguns homens para irem às viaturas buscar morteiros e granadas. Quando eles voltaram, mandou armar os morteiros e apontar à aldeia. Os homens ainda o olharam, interrogativos. Mas o rosto duro do capitão não deixava espaço para diálogos. Foi ele mesmo a enfiar no tubo a primeira granada. Ouviu-se o deslizar da granada cano abaixo, fazendo silvar o ar expelido. O barulho do choque do fulminante com o percutor confundiu-se com o assobio da granada a ser expelida do tubo e a cruzar os ares. A explosão. Em cheio na aldeia. Soares da Cunha mandou esgotar o cunhete. As granadas sucederam-se ao ritmo das explosões. Pam... pam... pam... Pancadas secas de pilão a esboroar fragilidades de adobe e colmo. Quando o cunhete ficou vazio, novamente o silêncio. A tabanca tinha deixado de existir. Toda. As moranças. As mulheres. As crianças. Os velhos”. Mário entra em solilóquio: “Tudo perde sentido aqui. Esta violência não fere, queima. É este silêncio que mais me confrange, que mais me dói. É preciso ser herói para assistir a tudo isto em silêncio”. Magalhães Pinto lá terá as suas razões para ter forjado este Wiriamu na Guiné, escrever em pleno século XXI um massacre de que nunca ninguém ouviu falar, é obra, sabe-se lá qual o alcance da parábola sobre estas populações açoitadas pela presença do guerrilheiro e das forças portuguesas.
Começam as baixas no batalhão 600 e tal, o estado de ânimo de António Soveral começa a desagregar-se. Mário escreve à mulher, está-se nas tintas para um potencial censura, confessa que precisa do seu carinho, fala em saudades. Mas aqui também não se entende a parábola de Magalhães Pinto, como se os militares portugueses vivessem em estado de sodomia: “Esta semana tenho andado com uma amigdalite. E o médico da companhia receitou-me uns supositórios. Foi o Álvaro quem mos introduziu. Havias de ver os cuidados dele com a minha doença. Deixei de chamá-lo pelo nome próprio e chamo-lhe agora, sempre, irmão. E ele também me chama irmão. Bem, às vezes, quando procuramos desabafar as tristezas numa alegria postiça, chamamo-nos manas. Ó mana, queres vir tomar um café? Devia ser um chá. Mas ninguém se lembra de bebidas tão finas, apesar de tratamento tão delicado. Tão feminino”.
As distracções são escassas, há a esplanada do Clube dos Balantas, cinema aos sábados, ao ar livre, e os livros eróticos de Cassandra Rios. Joga-se o “abafa”, um jogo de cartas de pura sorte ou azar. É nesta atmosfera que se anuncia a ida de os Águias ao acampamento de Morés. De Bissorã, Mansabá e Olossato saíram as companhias operacionais e de Mansoa partiram os comandos. As companhias foram reforçadas pelos pelotões de milícias. Mário é emboscado. As nossas tropas reagiram, o inimigo recuou. Mário e Mamadu, um mandinga, combatem lado a lado. Não havia tabanca que Mamadu não conhecesse em toda a região do Oio, ostentava uma cruz de guerra por actos de bravura. Naquele dia foi ferido. Mário parte em seu auxílio, imobiliza a força atacante. As nossas tropas capturaram um guerrilheiro, Mamadu é evacuado com um feio buraco no abdómen. Avança-se para o Morés, a água acabou, o sofrimento é enorme: “A boca adquire rugosidades desconhecidas. A língua enrola-se no palato. A garganta arde como lenha. O cérebro embota-se na ideia fixa de torrentes cristalinas. O tempo alonga-se insuportavelmente. A distância ganha dimensão de infinito. A arma, segura e fiel companheira dos momentos de perigo, torna-se um objecto supérfluo e incómodo, que apetece deixar encostado a um mangueiro qualquer”. É uma longa e lenta caminhada para o Morés.
(Continua)
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 30 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5040: Historiografia da presença portuguesa (22): Bolama, Farim... Álbum fotográfico de 1943 (Beja Santos)
Vd. último poste da série de 29 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5031: Notas de leitura (25): "Memórias de um guerreiro colonial", de José Talhadas - Parte III (Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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2 comentários:
O batalhão 6oo e tal, é o BART 645.
Está referido no post 2626
(13/3/08)-Encontros... # post 2894
(28/5/08)O nosso livro de visitas # post 4594 (27/6/09) - Fichas das unidades.
José Martins
Bem, não vejo grande inconveniente em que se tenha alguma "liberdade criativa" na construção de romances...
O que é importante é que se saiba, se diga de forma clara, que se trata de um romance, de uma construção ficcionada, pois caso contrário corre-se o risco de tomar "à letra" o que fica escrito e que pode passar a ser "a verdade".
É realmente muito importante que cada um de nós conte a sua história, a verdadeira, não a que se gostaria que fosse, mesmo aquelas, por serem verdadeiras, que se discorda, pois isso é que poderá vir a constituir o real depositório da "campanha da Guiné" e assim contrapor factualmente às ficções.
Hélder S.
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