segunda-feira, 20 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14905: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (10): Não, nunca percebi para que serviam os CTT no CTIG... Notícias de Alhandra, da minha família, por ocasião da tragédia, as grandes inundações, de 25 para 26 de novembro de 1967, que atingiram a Grande Lisboa, recebi-as através de telegrama militar... (Mário Gaspar, ex-fur mil at art, MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68)






As notícias, mesmo censuradas, da tragédia que se abateu sobre a grande Lisboa na noite de 25 para 26 de novembro de 1967... Capas do Diário de Lisboa. Cortesia da Fundação Mário Soares > Fundo:  DRR - Documentos Ruelle Ramos



1. "Bate-estradas" do Mário Gaspar (*)


[ Mário Gaspar, foto atual à direita; ex-fur mil at art, minas e armadilhas, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68; e, como ele gosta de lembrar, Lapidador Principal de Primeira de Diamantes, reformado; e ainda cofundador e dirigente da associaçºao APOIAR]:



 Data: 18 de julho de 2015 às 01:04

Assunto: Os CTT para Telefonar

Comrades:

Nos dias 19 e 20 de Novembro de 1967, participei na "Operação Raiana. Missão: Executar um golpe de mão ao acampamento de Boror. Não se chegou a descobrir o objectivo. No dia 26 de Novembro, dormindo na cama ao lado do Furriel Mecânico José Manuel Guerreiro Justo, e tendo este comprado um rádio onde ouvíamos somente Guiné Conacri, mexendo por mero acaso nos botões, oiço uma rádio portuguesa, dando notícias da nossa terra.

Contente, mas logo amargurado quando tenho conhecimento não existirem notícias animadoras. Pelo contrário acontecera uma tragédia, as inundações da Grande Lisboa, com indicações de muitos mortos e feridos e o dramatismo de algumas povoações terem sido tragadas pelas enxurradas e inundações (**).

Tudo se iniciara por volta das 19 horas. Parecia mais tratar-se de um milagre, estar a escutar, e com nitidez notícias de Portugal, nós escondidos naquele recanto no sul da Guiné – ouvi falar em Alhandra – povoação em que vivia, portanto terra onde viviam os meus pais e igualmente um irmão. Falavam para além de Lisboa escutava os nomes das vilas, entre outras de Odivelas, Loures, Alenquer, Vila Franca de Xira, Povos, e muito mais.

Parecia estar a ser atacado pelo PAIGC. Então escutava o nome de Alhandra. Recordava os anos passados, em que as cheias levavam água ao interior da vila. Cheguei a andar de botins altos e alguns barcos percorrem as ruas mais encostadas ao Tejo. Durante anos acostumei-me à ideia de ver todas as portas dos rés-chão tapadas com tábuas seguras com lama. Falava-se em enxurradas de lama que soterraram terras.

Fiquei atordoado, e resolvi falar com o Comandante da Companhia o Capitão Miliciano de Infantaria Manuel Francisco Fernandes de Mansilha. Fiquei admiradíssimo depois de contar o que se passava, tendo dito não ter notícias da família e saber que Alhandra tinha alguns mortos, o Capitão disse para ir com ele e enviámos um telegrama para os meus pais. Desconhecia essa possibilidade. Mas foi verdade.

Depois de sofrer,  recebo então um Telegrama onde a minha mãe dizia para estar sossegado por a água não ter chegado a atingir a casa. Na Praça 7 de Março em Alhandra está marcada a altura das águas neste dia fatídico para inúmeros portugueses. Portanto a minha casa, embora não tenha chegado ao 1.º andar, esteve muito perto. Curioso, nunca perguntei como a minha mãe se deslocou aos Correios,  se era uma zona inundadíssima. Recebi o tal telegrama, desta vez o sistema funcionou. O rádio de plástico do meu amigo algarvio, de Loulé,e Furriel Miliciano Justo, foi justo em informar-me desta tragédia. Ainda o ouvimos, mas depois voltam músicas de Guiné Conacri e muitas mornas e coladeras.

Notícias? O correio atrasado. Muito atrasado sem justificação. Isolados, com o mato à vista, paliçadas, abrigos e arame farpado. Telefonar? Telefonava na esquina da morança do Mamadu? Ou no Baldé? O meu telefone era a cerveja, falava dela, falava com ela e palava por causa dela. O que ingeri devia dar inundação se o seu líquido colocado numa piscina Olímpica.

Tive azar e sorte também. O azar é para esquecer, a sorte foi ter dinheiro para gozar licença na minha terra. Gozei mesmo, gastei bem, não me arrependo. Para mim a licença de Setembro/ Outubro de 1967 foi uma coroa de glória. Já estava em guerra, sabia o que ela era. Para mim era a despedida. Aproveitei aqueles 35 dias como os derradeiros dias da minha vida. Chegado a Bissau, escrevi quando se falava já naquela que seria a "Operação Revistar", para alguém – possuo essa carta mas não lhe toco mais – pois escrevi isto: – "Estou farto de Bissau, aqui só se fala em guerra". O que significa que antes desejava a guerra do que falar dela. Fui, entrei em Gadamael numa avioneta, mas nem vi os Correios, nem muito menos o telefone. O único privilégio que gozei, nos domingos ia até o Posto Rádio saber notícias do futebol em Alhandra. Na Aldeia Formosa estava o meu amigo Cordeiro, era radiotelegrafista e sabia o resultado do Alhandra.

Acho que fomos muito maltratados por não haver vontade de dar uma resposta adequada a nós que estávamos desterrados nos confins do mundo, antes, no cu do mundo. Muito pouca vontade, depois com a agravante de sermos obrigados ir buscar o Correio a Sangonhá para nos castigarem com patrulhas, quando nas vésperas tínhamos patrulhado a zona. Éramos uns imbecis e com a agravante de não termos a equivalência à tropa de elite – "Os Especiais". Olha porra! Mas sou também "Especial", "Tropa Especial", até tinha uma treta que se lia: – "Minas e Armadilhas".

Lembro-me dos Correios de Bissau, existia de facto a possibilidade de se pernoitar na cama de uma das suas funcionárias. No guiché assustei-me e desisti dessa noite entre lençóis. Foram poucos os dias de Bissau. E mesmo na cidade nunca fiz um telefonema. Fui ameaçado de castigo. Em Setembro de 1967 um Senhor Coronel disse-me após dois ou três dias seguidos no Café Benfica, estava fardado:
– Onde está, em que quartel?

Respondi-lhe que estava "no mato, em Gadamael Porto". Insistiu:
– Quem é o seu Comandante de Companhia?

Como não havia telefone em Gadamael, só respondi que era o Capitão Mansilha. Respondeu conhecê-lo e enviou cumprimentos. E se não fosse da Companhia… Estava tramado. Logo de seguida, na Agência de Viagens Sagres, estava eu e o meu amigo Jorge a tratar da documentação para entrarmos de licença, era no dia seguinte. Entraram três Capitães, passado algum tempo, berrou um deles:
– Os nossos Furriéis desconhecem os postos! Não cumprimentam? – Respondi:
– Então bom dia!

O meu amigo Jorge, a uns dias de concluir a comissão, após o almoço de despedida, trazia um garrafão de 5 litros de verde. Mesmo defronte do Hotel Portugal, completamente embriagado, agarra nas divisas e pisa-as. Aparece a Polícia Militar, comandada por um Furriel Miliciano. Segue na nossa direcção. Olho para o Jorge e para o Furriel da PM e digo-lhe:
– Vai-te embora, nada vistes, vira as costas.

Olha para mim… Respondo:
– Olha para a esquerda! – E à esquerda, e na esplanada, toda a CART 1659 se colocou de pé. A PM desandou. Não usávamos o telefone, que no mato não existia.

Cumprimentos aos Camaradas Combatentes.

Mário Vitorino Gaspar

____________


(**) Vd. entre outros recortes de imprensa:

DN - Diário de Notícias > 25 de novembro de 2007 

Nunca choveu tanto como em 67
por KÁTIA CATULO

(...) Cheias de 1967 - Memória. Mais de 700 pessoas terão morrido nas cheias que, no dia 25 de Novembro de 1967, apanharam desprevenidas as populações que viviam na região da Grande Lisboa. DN ouviu os relatos dos sobreviventes que têm memórias tão vivas como há 40 anos.

Cinco horas de chuvas torrenciais mergulharam a Grande Lisboa na maior inundação que a região alguma vez conheceu. Faz hoje 40 anos que as cheias de 1967 provocaram mais de 700 mortos e cerca de 1100 desalojados em Lisboa, Loures, Odivelas, Vila Franca de Xira e Alenquer. A enxurrada matou famílias inteiras, arrastou carros, árvores e animais e destruiu pontes, estradas e casas.

A chuva atingiu entre as 19.00 e a meia- -noite do dia 25 de Novembro as zonas baixas dos quatro concelhos da Grande Lisboa, mas só na manhã seguinte é que os portugueses se depararam com a verdadeira dimensão da tragédia. Urmeira, Póvoa de Santo Adrião, Frielas - povoações da bacia do rio Trancão-, e a Quinta dos Silvados, em Odivelas, foram os aglomerados urbanos mais atingidos. As casas eram de madeira e centenas de moradores foram engolidos pelas águas.

Lisboa, por seu turno, ficou irreconhecível. A Avenida de Ceuta, em Alcântara, esteve submersa e o mar de lama desceu até à Avenida da Índia. A água entrou em todas as bifurcações, subiu e desceu escadarias, derrubou as portas de tabernas, lojas e rés-do-chão, arrastando mesas, cadeiras, bilhas de gás, contentores e bidões da estação ferroviária.

Perto das 23.00 a chuva caiu ainda com mais força e as enxurradas atingiram um carro que circulava na Rua de Alcântara, encurralando os três ocupantes. O repórter do DN que na altura acompanhou as inundações, em Alcântara, conta que um soldado mergulhou nas águas e conseguiu retirar os três passageiros, minutos antes de o carro ser arrastado. Interrupções no trânsito sucederam-se desde a Avenida 24 de Julho ao Campo Pequeno, da zona do aeroporto da Portela à Avenida Almirante Reis, da Baixa a Santa Apolónia. Na Praça de Espanha e na Avenida da Liberdade, só se passava de barco e, na estação de caminhos-de-ferro, centenas de pessoas ficaram retidas nas carruagens porque a água submergiu as linhas.

O regime salazarista tentou minimizar os impactos das chuvas, mas as suas repercussões atravessaram fronteiras e desencadearam um movimento de solidariedade internacional. Chegaram donativos dos governos britânico e italiano, do Principado do Mónaco e até o chefe do Estado francês, o general De Gaulle, contribuiu com uma "dádiva pessoal" de 30 mil francos (900 euros, no câmbio da época). O apoio em meios sanitários veio de França, Suíça e sobretudo de Espanha, que ofereceu mil doses de vacina contra a febre tifóide. (...)

4 comentários:

Luís Graça disse...

Meu caro Mário:

Essa tragédia tocou-me, pelos relatos que li e ouvi... Nessa altura, vivia na Lourinhã, onde costuma haver cheias, devido à proximidade da serra de Montejunto. De qualquer modo, era leitor assíduo do "Diário de Lisboa", mas só mais tarde, como muitos de nós, tive a noção da dimensão da tragédia e das suas vítimas (fala-se hoje em 700 v+itimas mortais)...

Na realidade, a censura tinha uma dupla eficácia,m funciionando nos dois sentidos: nem nós sabíamos o que se passava nos teatros de operações de guerra nem os combatentes sabiam o que se passava na sua terra...

O mesmo se vai passar com o desastre do Cheche, no Rio Corubal, em que morreram 46 camaradas nossos mais 1 civil, na sequência da retirada de Madina do Bóe, em 6/2/1969... A notícia pura e simplesmente não apareceu nas capas dos jornais da época... Pelo menos no "Diário de Lisboa", que era o meu jornal...

http://www.fmsoares.pt/diario_de_lisboa/dia?ano=1969&mes=02

Tenho ideia de ter lido qualquer coisa no "Diário de Notícias", na época... Eu já estava a dar instrução militar em Castelo Branco, na véspera do sismo de 28/2/1969 recebi a notícia (essa, sim, devastadora para mim) da mobilização para o TO da Guiné... O sismo e o pânico por ele gerado em Lisboa e no sul do país foi título de caixa alta no "Diário de Lisboa"...

Luís Graça disse...

O sismo de 28 de Fevereiro de 1969, foi o que causou danos mais importantes no século passado a seguir ao sismo de Benavente de 1909.

Teve epicentro na zona do Goringe e sentiu-se em todo o país. Os maiores danos foram no Algarve (Lagos, Vila do Bispo e Aljezur, entre outras localidades), causando 13 mortos, embora apenas 2 devido aos efeitos diretos do sismo.

Foi o último sismo a provocar danos importantes e vítimas em Portugal continental, com uma intensidade de 7.3 (embora varie entre os 6,5 e os 7,5 conforme diferentes estudos/autores).

https://www.ipma.pt/export/sites/ipma/bin/docs/relatorios/geofisica/rel_sismo-1969.pdf

Hélder Valério disse...

Lembro-me bem, muito bem, desse acontecimento.
Começou de manhã, era sábado, com uma chuva miudinha, tipo 'molha parvos'.
Fui cedo para Lisboa, pois tinha aulas às 08:00 da manhã, no velho Instituto Industrial, ali perto da Estrela, na Rua Buenos Aires. Por volta do almoço, a chuva continuava, persistente, já um pouco mais cheiínha, e assim aconteceu durante toda a tarde, e começo da noite. Era costume sair depois do jantar e assim aconteceu mas, ao contrário do habitual, vim cedo para casa, lá para as 00:30 e a chuva continuava, cada vez mais forte.
Na madrugada começam-se a ouvir vozes, aflições, reboliço. Pensei que o Tejo tinha enchido e a água inundava as ruas mais próximas, onde estava a loja do meu pai e lá fomos tentar minimizar os estragos, reforçando os tais taipais que o Gaspar fala e que era habitual colocarem-se em situações destas.
Pela manhã começaram as chegar as notícias das maiores desgraças, pelo menos as que ocorreram mais nas proximidades, principalmente nas Quintas, ali entre a Castanheira do Ribatejo e o Carregado, que ficou arrasada e também sobre Alhandra.
Logo muita gente se mobilizou, mesmo nesse domingo, para começar a acudir e a ajudar a debelar os estragos.
Fiz parte das brigadas que estiveram em Alhandra. Estive com o Tito, o Vacas e muitos outros.
Remover lama, detritos, limpar, etc.
Depois, na 2ª feira, os trabalhos continuaram com uma grande participação de estudantes universitários, de várias Faculdades mas principalmente de Medicina, que ajudaram com as vacinas contra o tétano e outras que não sei precisar.
Foi um acontecimento trágico.
Foi, também, um momento impulsionador para a 'tomada de consciência' de muitos. Na ocasião.

Abraços
Hélder S.

Mário Vitorino Gaspar disse...

Caros Camaradas

O Tejo é um dos meus mundos. A zona de Alhandra se não sofresse a austeridade da Fábrica Grande, Cimentos Tejo, na época, seria um local a visitar. O Tejo corre lindo em Alhandra. O Hélder Valério que fala do Vacas, o Fernando?, e do Tito, filho do Gineto de Soeiro Pereira Gomes, Joaquim Baptista Pereira, meu grande amigo, coitado do Tito que foi operado quando eu, corri os mesmos riscos que ele e outros que nos deixaram, e desse grupo apoiado pelo Doutor Nunes Diogo, nosso Cardiologista e igualmente meu amigo. Fico para o fim. Pois esses apoios que se falam, Alhandra sofreu muito, muitas famílias ficaram na miséria. Mas outras, que conheci, que nada sofreram ficaram com os cobertores, tendas, camas e até dinheiro.
Pode-se ver a altura das águas no chamado Largo da Praça, onde se discutia tudo desde futebol a política, sucede que recentemente pretendeu alguém retirar a testemunha das conversas, aquela estátua do Doutor Sousa Martins, o Doutor que era e é um cérebro da humanidade. Em lugar de se estudar o Espírita Sousa Martins, por que não estudam o grande Médico português, o Robim dos Bosques português. O médico que dedicou a sua vida à ciência. Conhecido em todo o Mundo, e em Portugal é o santo que faz milagres. Será que se suicidou? Não o fez se é Espírita! Aquela enxurrada foi vivida na Guiné, o sismo de 28 de Fevereiro de 1969 foi cá. Também comprava o Diário de Lisboa, mas no regresso comecei por comprar diariamente a República. Davam-nos o jornal dobrado para que não os pides, muitos em Alvalade, Lisboa, o vissem. Tinha a encomenda feita, chegado à Avenida da Igreja, junto do histórico Astória, Pastelaria e Café, abria a República e todos sabiam que a comprava. Do Diário de Lisboa guardo muitas recordações, mas anos para trás. O Tejo transborda a alegria dos meus sonhos. Assisti a muitas inundações em Alhandra – mas as de 25 de Novembro de 1967, embora ausente estive presente. Houve um milagre e escutei num rádio barato as notícias das minhas gentes. Não sei como com as inundações, a minha mãe consegue enviar o telegrama. Fui informado de tudo a partir desse dia.
Quando regressei contaram-me em pormenor. Há gente que aproveita a desgraça dos outros. Conheço-os.

Mário Vitorino Gaspar
Ex Furriel Miliciano da CART 1659


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