segunda-feira, 30 de março de 2020

Guiné 61/74 - P20793: Notas de leitura (1277): O Coronel Vaz Antunes e as conversações com o PAIGC em Junho de 1973: muitas questões em aberto (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Março de 2017:

Queridos amigos,

Se vos trago à reflexão o artigo saído do punho do Coronel Vaz Antunes sobre conversações que teve no último dia de Junho de 1973 com alegados negociadores da fação guineense do PAIGC, que terão entusiasmado Spínola, há que ter em conta todas as alterações do xadrez político-militar daquele tempo: os mísseis Strela, o endurecimento das relações entre Marcelo Caetano e Spínola, a visita de Costa Gomes em Junho, no rescaldo dos acontecimento de Guileje, Gadameal-Porto e Guidage, e em que se definiu a retração do dispositivo em termos tais que Spínola se apercebeu que era o princípio do fim; a nível do PAIGC, caminhava-se para novo Congresso que preparava a radicalização política, com consequências desastrosíssimas para a diplomacia portuguesa, e muito mais. Spínola perdera o é dos acontecimentos, a fação guineense ficou entregue a si própria.

É convergência de todos estes fatores que preludiam o 25 de Abril, o encontro em território senegalês, no último dia de Junho de 1973 é demonstrativo de que os combatentes guineenses caminham para a sua própria independência, o tempo político em Portugal já não permitia consolidar a tal Guiné melhor.

Um abraço do
Mário


O Coronel Vaz Antunes e as conversações com o PAIGC em Junho de 1973: muitas questões em aberto

Beja Santos

Cor António Vaz Antunes
O Coronel António Vaz Antunes elaborou um documento, datado de 1987, intitulado “Guiné: Uma diligência interrompida. Porquê?”. O documento é público, o leitor interessado tem dele acesso através do link indicado em rodapé.[1]

Encontrei-o na Biblioteca da Liga dos Combatentes, em dia sim, pois emprestaram-me a importante história dos Paraquedistas na Guiné e a Engenharia Militar na Guiné, de que já se fez as competentes recensões.

A diligência que o General Spínola pediu ao Coronel António Vaz Antunes, de acordo com esta versão, poderia ter tido o condão de mudar o curso da guerra travada na Guiné. Mas vamos aos factos, tome-se o que escreveu o Coronel Vaz Antunes.

Este militar estava ligado à Operação Guidage, naturalmente desgastante, naquele terrível Maio de 1973. Recebeu a ordem do Comando-Chefe para montar um Comando avançado em Cuntima. O oficial chega à Companhia e o Comandante da mesma não escondeu a sua surpresa, terá suposto que a sua capacidade para enfrentar a situação não era suficiente. No dia 29 de Junho três helicópteros aproximam-se da pista, coisa que não acontecia há meses. Numa conversa a sós, Spínola explica-lhe o que o levou ali:

“No tom mais cordial que imaginar-se se possa, contou-me o que tinha sido a sua acção desde que chegara à Guiné, nos contactos com o Presidente Senghor, com os comandos do PAIGC nos tempos de Amílcar Cabral e as suas diligências na interferência da escolha do próximo secretário-geral do PAIGC, cuja eleição iria ocorrer dentro de dias”.

O Coronel Vaz Antunes ouvia tudo com muita atenção mas não compreendia a natureza desta abertura, esta abordagem de temas tão secretos. Sempre bem-humorado, e sem nunca lhe explicar a natureza dos aspetos tão confidenciais, Spínola regressou a Bissau.

A 30 de Junho, tudo se precipita, Vaz Antunes é procurado por um Fula que era um agente de informações com o nome de código Padre, algo se sabia pertencente ao Front da Guiné Conacri. Conheciam-se, Padre era um elemento de peso, chegara a ir com um agente da DGS de Farim até Bissau de avião. Padre surpreendeu completamente Vaz Antunes: “pediu que fizesse uma mensagem relâmpago para Bissau solicitando a presença do General Spínola nesse dia, ali em Cuntima, para um contacto com alguns dirigentes do PAIGC”.

Vaz Antunes entendia agora a visita da véspera. Começa a troca de mensagens, Bissau responde que não é possível a deslocação àquela hora, 16 horas. Padre mostrou-se angustiado, pediu então a Vaz Antunes para comparecer na referida reunião. Depois de algumas peripécias, Vaz Antunes atravessa a fronteira no marco n.º 104. Na noite cerrada, chegou um automóvel que parou a duas centenas de metros do qual saíram dois indivíduos que se dirigiram para Vaz Antunes e Padre. “Tratava-se do representante pessoal do comandante-geral das forças do PAIGC”.

O interlocutor foi direto:

“Andamos há já 10 anos nesta luta. Somos agora menos do que quando começámos. Actualmente não nos entendemos com o escalão político: eles são cabo-verdianos e comunistas e nós somos guinéus, combatentes e não comunistas. Desejamos apenas uma Guiné melhor. Já chegámos à conclusão de que, sozinhos, não somos capazes de a fazer, mas sê-lo-emos convosco. A nossa proposta é muito simples: em dia e hora que se combine acaba a guerra, nós seremos integrados nas forças da Guiné, sem recriminação nem vingança”.

Vaz Antunes promete rapidamente comunicar o teor desta mensagem a Spínola. A 1 de Julho apresenta-se no Palácio do Governo em Bissau. Será recebido ao fim da tarde. Ouvida a mensagem, Spínola liga para Lisboa, telefona para António Fragoso Allas, o chefe da DGS em Bissau, pede-lhe para regressar urgentemente à Guiné.

Em Agosto Vaz Antunes entrou de licença. Aqui soube da substituição de Spínola por Bettencourt Rodrigues, foi à tomada de posse deste, pareceu-lhe que o discurso do novo Governador e Comandante-Chefe não estava em sintonia com tudo o que se passara anteriormente. Padre, manifestou-se em Farim, mais tarde, desgostoso por se aperceber de que tudo voltara ao princípio, não se entendia o porquê do retrocesso.

E chegamos ao final da história:

  “Um dia, no bar do Estado-Maior do Exército, já em 1976, contava o caso a uns camaradas, dado que a manutenção do segredo já não tinha razão de ser. O então Major Monge estava ao lado interrompeu-o e disse: 'Afinal foi o meu Coronel quem provocou o 25 de Abril' . Fiquei atónito. Mas imediatamente me veio à memória que tinha lido dias antes uma informação do General Costa Gomes para o governo de Marcelo Caetano segundo a qual para Portugal era preferível na Guiné um desastre militar a uma solução negociada… Porquê?”.

A narrativa do Coronel Vaz Antunes levanta inúmeras questões. É facto historicamente comprovado que naquele mês de Junho, antecedendo o Congresso do PAIGC, que ratificou Aristides Pereira como dirigente máximo do PAIGC, a linha guineense, com todas as cautelas, procurava uma posição de força para evitar um controlo maioritário de líderes cabo-verdianos. Nino sabia-se vigiado, Osvaldo Vieira já não contava, o rumo de ofensiva militar alterara completamente os acontecimentos, era certo e seguro avançar-se para uma declaração unilateral da independência, criando um ainda mais serrado cerco à diplomacia portuguesa. Padre não estaria na posse de informações quanto ao confronto já instalado entre Marcelo Caetano e Spínola, hoje bem conhecido através da epistolografia trocada, o Primeiro-Ministro proibira Spínola de negociar com o PAIGC o quer que fosse.

Seguramente que Fragoso Allas conseguira chegar até ao núcleo dos combatentes guineenses que não se conformavam com a liderança cabo-verdiana em perspetiva. Recorde-se que Aristides Pereira foi hábil, no mando supremo ficou ele, Luís Cabral e Nino Vieira. Mas de Junho para Julho, acontecera algo de decisivo para a desmotivação de Spínola: era fundamental retrair o dispositivo militar, com sacrifício de populações e quartéis nas fronteiras, Lisboa não tinha dinheiro para acompanhar a escalada armamentista do PAIGC, a partir daquele momento era o PAIGC quem estabelecia as regras do jogo, atacando e flagelando onde lhe apetecia e numa posição muitíssimo forte, sabendo que os mísseis Strela impediam a presença da Força Aérea.

Inconformado com a situação, prenúncio de perigos maiores e sabendo já que se caminhava para a declaração unilateral de independência, o que acarretaria a possibilidade da presença de exércitos amigos do PAIGC, Spínola afasta-se de tudo, vem para Lisboa preparar a sua resposta política, o livro Portugal e o Futuro. Não se entende o final do artigo do Coronel Vaz Antunes exatamente por que foi Marcello Caetano e não Costa Gomes quem disse que era preferível na Guiné um desastre militar a uma solução negociada.

Ainda pouco se sabe sobre os primeiros meses tresloucados de 1974, quando Marcello Caetano decidiu por sua conta e risco abrir negociações secretas com os movimentos de libertação. O que hoje é seguro é que a Guiné já estava fora dos seus planos, congeminou um cessar-fogo antes que fosse demasiado tarde.

[1] - Aceder ao documento em:
http://ultramar.terraweb.biz/06livros_antoniovazantunes_Guine_uma_diligencia_interrompida.htm
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Nota do editor

Último poste da série de 27 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20781: Notas de leitura (1276): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (51) (Mário Beja Santos)

7 comentários:

antonio graca de abreu disse...

Diz o MBS: "Era o PAIGC quem estabelecia as regras do jogo, atacando e flagelando onde lhe apetecia e numa posição muitíssimo forte, sabendo que os mísseis Strela impediam a presença da Força Aérea."
Assim MBS reescreve a nossa Historia, Guine 73/74.Os misseis Strella impediram a presenca da Forca Aerea apenas durante dois meses, nunca a Forca Aerea bombardeou tento as posicoes do PAIGC como no final da guerra. O problema era politico, ai a guerra nao tinha mais razao de ser, para nos, portugueses.
O MBS sabe, mas continuara sempre a insistir, a falsificar a nossa Historia, rebaixando a capacidade militar da NT, exaltando a forca do PAIGC.
Um abraco, desde os mares do norte da Australia.

Antonio Graca de Abreu

Unknown disse...

Concordo plenamente com o comentário do AGA. Exceptuando as questões atinentes às orientações partidárias, matérias onde não meto a colher.

A FA continuou a realizar as operações. Factos assentes e não meras "estórias".

E o PAIGC, contrariamente ao que sempre se alega, em 1974, mesmo antes do 25/04, tinha ZERO. até em termos de efectivos já eram mesmo muito poucos. E não conseguiam já recrutar.

Gastaram os últimos "cartuchos" em 1973. Tal como quem está em situação de insolvência, muitas vezes, faz uma grande aquisição a fim de tentar demonstrar a sua solvabilidade.

Basta atentar nos efectivos que colocaram em Bissau quando vieram "aprender" a tomar conta da cidade, da segurança e da administração em geral. Eram sempre as mesmas pessoas ou militares ou combatentes, como queiram, que estavam de serviço. Quanto muito tratava-se de um efectivo equivalente a uma companhia. Não conheci mais.

E quanto aos carros de combate que já tinham e que iriam invadir os nossos aquartelamentos, também nunca os vi, idem quanto os famigerados MIG's. Enfim...

No ano de 1974, o PAIGC estava de rastos. O que, sem dúvida, foi bom para aqueles de nós que por lá estávamos.

Sempre com todo o respeito por todos quantos nos antecederam e lá estiveram nos anos da brasa. Amigos tive que lá morreram.

Sei daquilo que falo, pois, para além de ter constatado esta factualidade, o estado da situação foi-me relatado e confirmado pelo militar/combatente com quem tive reuniões diariamente (agora briefings) a fim de acordarmos a integração deles no plano de actuação para esse dia, isto quando estive em serviço na guarda ao Palácio do Governador, o então Senhor Brigadeiro Carlos Fabião.

Cada um diz o que entende, mas os factos são e serão sempre factos e não meros exercícios de ficção.

Grande e Fraterno Abraço para todos os Camaradas e Amigos,

Joaquim Sabido
Évora

Valdemar Silva disse...

…..é caso para dizer ...mais um aninho, nem tanto, o IN rendia-se e acabava a guerra com o regresso vitorioso da tropa.
E prontos... tinha-mos o problema resolvido e bem mais fácil que saltar à corda.

'tá bem, só passaram 46 anos e … o cornodovirus já está a fazer efeito….

Valdemar Queiroz

AC disse...

Cá está o motivo devido ao qual eu nunca fiz menção a esta realidade. Não falei em vitoriosos nem em problemas resolvidos. Nem em continuarmos a ocupar aquele ou outro território. Falei de factos concretos, à época.

O Valdemar estava lá ?.

Qual era a realidade que se verificava em 74 em Angola e em Moçambique?

Joaquim Sabido
Évora

Valdemar Silva disse...

Joaquim Sabido
Mas 'essa realidade' foi observada, julgo in loco, e apurada em que indicadores da acção militar no terreno?
Então em 1974 (Janeiro?)o PAIGC estava de rastos, com falta de homens e armamento. Quer dizer que os homens do MFA, na Guiné, não sabiam, e seria desnecessário o levantamento revolucionário.
Calhando, o mesmo estava a acontecer em Angola e Moçambique.
Passados quase 50 anos, continuamos a ser surpreendidos. É pena estas revelações aparecerem em tempos de quarentena devido ao cornovirus (como agora dizemos)

Estive na Guiné de Fev/1969 a Dez/1970.
Valdemar Queiroz

AC disse...

Sem entrar em discussões acerca dos fundamentos que estiveram na génese do MFA, nomeadamente questões de carácter laboral, digamos assim. Contestando o tal Decreto que colocava os milicianos com comissões de serviço e que pretendessem integrar o Quadro Especial de Oficiais - QEO, com a antiguidade resultante da comissão, ficavam, para efeitos de promoção, à frente dos oficiais oriundos da Academia que não tinham qualquer comissão de serviço. Ou não foi assim que aconteceu ?.

O que eu quero dizer e afirmo é que no ano de 1974, o PAIGC tinha escassos meios humanos e materiais. Os indicadores militares e da PIDE, muitas vezes eram/foram empolados, ou não sabemos que assim acontecia ?. Onde é que iam recrutar, decorridos que mais de 11 anos de combates, onde é que já iam os ideais ? isso mesmo consta no post principal do Camarada MBS, por referência ao Exmo. Senhor Coronel Vaz Antunes. Os da Guiné versus os de Cabo-Verde. Uns andavam no mato, os outros dedicavam-se a fazer política...

Se gostei deste desfecho que me antecipou, e de que maneira, o regresso ?, não gostei, adorei.

Todavia, estávamos em condições de poder ter feito as coisas como devia ser. De negociar de outra forma, sem essa dos vencedores e dos vencidos.

E quando digo negociar, refiro-me concretamente à situação em que deixámos os muitos Camaradas naturais da Guiné, que integraram as NT e que connosco sempre estiveram connosco e nos ajudaram em muitas ocasiões. Quer servindo na milícia, nos pelotões e companhias de quadrícula, mos comandos, nos fuzileiros, etc.

Que traição enorme cometemos contra esses Camaradas. desarmámo-los e deixámo-los entregues à sua sorte (triste) como se sabe.

Não tinha que ter sido desta forma, pois o PAIGC estava muitíssimo debilitado e em clara perda. Reafirmo. O demais é conversa, meras balelas.

Tínhamos força negocial para impor outra forma de saída e não regressar tipo com o "rabinho entre pernas" como então se fez e ainda se quer fazer crer. Apenas para alijar algumas responsabilidades e algum peso de consciência.

Ainda há algum tempo aqui li um post da Exma. Senhora - de que não me recordo o nome - mas que é Filha do Exmo. Senhor Coronel Coutinho e Lima, que nos trazia uma arengada de um qualquer senhor da Guiné, a afirmar que iam arrasar tudo e todos, lá vinha con as tais estórias e conversa fiada de que a nossa FA já não levantava voo, etc. Até o nosso Camarada Joaquim Mexia Alves, deixou um comentário a dizer que para esse peditório já não dava. Se bem me lembro.

Então essas tretas fundamentam-se em que indicadores militares ? Nem militares, nem factuais, nem sequer de qualquer outra natureza.

A questão de abandono em que lá deixámos os nossos Camaradas Africanos, é um tema (gravíssimo em minha opinião) com o qual ainda hoje não durmo bem.

A História, nunca o irá dizer, pois as patranhas são, como se vê, muitíssimo distantes da verdade. E escritos para estudo futuro e distanciado, não existem.

Na propaganda debitada na rádio, quantos de nós lá matava a Maria diariamente ?
Falamos de quê, meu Caro Valdemar?.

Joaquim Sabido
Évora


Valdemar Silva disse...

Pois, caro Joaquim Sabido.
Quer então dizer, que estávamos mesmo no 'ponto certo' para uma negociação da paz com o PAIGC? Então os Exms. Senhores não sabiam disso?
Na verdade, 'A História, nunca o irá dizer, pois as patranhas são, como se vê, muitíssimo distantes da verdade'. É isso mesmo. E até nós próprios arranjamos conjecturas históricas dos acontecimentos ocorridos e/ou como deveriam ter acontecido.
Também lamento, e de que maneira, o que aconteceu, depois, aos nossos soldados africanos, que o 'é assim a guerra' não me deixa descansado. Tive a sorte de fazer parte uma Companhia de soldados africanos. E que extraordinários soldados.
Espero não chegar ao ponto de dizer GOODBYE AND GOOD LUCK e por desejo
CUIDE-SE E NÃO SAIA E CASA

Valdemar Queiroz