quinta-feira, 18 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23536: In Memoriam (448): Gratas recordações do confrade António Júlio Emerenciano Estácio (1947-2022) (1): Um homem bom, um estudioso que ligou a China à Guiné, sua terra natal (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de hoje, 18 de Agosto de 2022 do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70):

Queridos amigos,
Confesso que não foi uma notícia totalmente inesperada, a partida do António Estácio. Há poucos anos, terá sofrido um AVC que o deixou bastante diminuído, nas nossas conversas espúrias num cantinho da Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa, queixava-se da perda de memória e do cansaço que sentia quando se embrenhava em novas leituras, retia cada vez menos. Depois desapareceu do convívio da biblioteca, ao telefone a filha explicou-me que o seu pensamento era cada vez mais volátil, que não contasse com o seu regresso aos papéis da biblioteca. O blogue perde alguém que amou profundamente a Guiné, a ela dedicou estudos, uns inovadores, outros de homenagens a figuras de mulheres empreendedoras, entusiasmou-se pelo estudo que fez de Bolama, sonhava em escrever as suas memórias do tempo guineense. Aqui me curvo respeitosamente em sua memória, recordando pedaços do seu legado.

Um abraço do
Mário


António Estácio, um homem bom, um estudioso que ligou a China à Guiné, sua terra natal


Gratas recordações do confrade António Estácio

Mário Beja Santos

Consternou-me muito a partida deste dedicadíssimo amigo da sua terra-berço. A nossa convivência era digna da vida de um clube, não fossem os nossos encontros realizados no ambiente em que ambos trabalhávamos, a Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa. Se havia outra gente às mesas de trabalho, refugiávamo-nos num cantinho, debaixo do quadro a óleo de Gago Coutinho e ali permutávamos informações sobre o que andávamos a fazer, ele era um leitor crónico do Boletim Oficial da Guiné, vasculhava tudo sobre Bolama e Bissau, não só do tempo em que lá andou, na juventude, mas com o firme propósito de estudar Bolama, dali saiu livro pertinente e útil, a que juntou outros estudos como as Nharas, a Carlota e a Bijagó, figuras que sempre o entusiasmaram. Tive a oportunidade de ler o seu artigo, bem original, sobre os chineses em Catió, chegados na alvorada do século XX, e depois o importante trabalho que fez com o Philip Harvik, publicado na revista Africana Studia, N.º 17, 2011. Permitam-me que volte a repertoriar a matéria deste trabalho, aqui o deixo com abraço saudoso deste homem bom. Os autores recordam a utilização de degredados para os trabalhos públicos e administrativos em territórios coloniais. No caso da Guiné, a maioria dos condenados vinha de Cabo Verde, mas a introdução de mão de obra, vinda de outras colónias, também se insere nas mudanças operadas no decurso do século XIX, e que aparecem associadas ao fim do tráfico de escravos e no início da plantação de culturas de renda (caso do algodão, o cacau, o café e o amendoim). Indo diretamente à Guiné, o sinal da transformação deu-se com a introdução do amendoim e a colheita de amêndoas de palmeira. Em simultâneo, a cultura do arroz sofreu alterações profundas através da comercialização na região da África Ocidental de variedades originárias da Ásia, novidade introduzida por comerciantes da Gâmbia inglesa.

Em suma, a criação de explorações agrícolas e comerciais, as chamadas pontas da Guiné, irão ser uma realidade a partir da terceira década do século XIX. A monocultura do amendoim fez com que a Guiné ficasse muito exposta à volatilidade dos mercados, pelo que se explica que a descida das cotações se saldo no fim das pontas, nos anos 1980 do século XIX. Passemos agora para os chineses.

O envio dos primeiros chineses insere-se numa tentativa de se trazer à força novos braços. Eles vieram provavelmente da zona de Cantão do estuário do Rio das Pérolas. Os primeiros cantonenses chegaram à Guiné em 1902, é uma presença diretamente associada à expansão de orizicultura no sul da Guiné a partir das primeiras décadas do século XX. Traziam conhecimentos do cultivo do arroz, estes chineses criaram as condições para um processo de migração em massa de comunidades africanas do interior para terras ainda não aproveitadas. Inevitavelmente, deu-se a mestiçagem, é bem provável que longe dos olhares metropolitanos e até da governação. Os autores recordam que após 1891 se intensificaram as campanhas militares, os Bijagós mostravam-se indomáveis, pouco ou nada recetivos a tratados de paz. Os Nalus afastaram-se das investidas dos Biafadas e dos Fulas, migraram para o Baixo Cacine, Cantanhez e para os Rivières du Sud (rios Componi e Nuno) na Guiné francesa. A presença destes chineses é marcante no Tombali, região onde havia um posto militar português e algumas feitorias. Os autores referem o estabelecimento de pontas, com a anuência dos chefes Nalus e recordam que o rio Tombali se tornou uma área de fixação de ponteiros de origem cabo-verdiana. Não sendo abundante a documentação sobre a presença chinesa, há indícios nos arquivos de pelo menos dois chineses que se diziam oriundos de Macau e eram à época residentes em Bolama, tinham feito um pedido de repatriação em 1909.

Os autores mostram fotografias de descendentes chineses em Catió, estes chineses abriram caminho para o desenvolvimento da orizicultura, ela será potenciada pelos Balantas, que fizeram um povoamento que correu de forma pacífica. Lembram igualmente os autores que aí pelos anos 1930, a Guiné era uma colónia em regime anárquico de concessão de terras. Em jeito de conclusão, dizem os autores que estes chineses se integraram na sociedade guineense, mas não pode ser escamoteado que tinham o estigma de degredados, e por isso eles apresentavam-se como refugiados. Quando chegou a hora da luta pela independência, estes descendentes de chineses dividiram-se entre o apoio ao PAIGC, trabalhar na administração colonial ou vieram para Portugal. E concluem enfatizando a necessidade de continuar os estudos sobre a presença das comunidades chinesas das antigas colónias portuguesas. Não quero terminar aqui a minha homenagem ao António Estácio, permitam-me oportunamente referenciar outros títulos que ele dedicou à sua tão extremosa Guiné.

Recriar a China na Guiné: os primeiros chineses, os seus descendentes e a sua herança na Guiné Colonial. Africana Studia. N.º 17 (2011) Publicado em: https://ojs.letras.up.pt/index.php/AfricanaStudia/article/view/7379/6763

Publicado em: Guiné 63/74 – P14926: Notas de leitura (740): “Recriar a China na Guiné: os primeiros chineses, os seus descendentes e a sua herança na Guiné colonial”, artigo assinado por Philip J. Harvik e António Estácio (Mário Beja Santos).


Revista Africana Studia, 2.º semestre, 2011
Uma imagem de Catió na atualidade
© Reuters - Com a devida vénia
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Nota do editor

Vd. poste de 9 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23510: In Memoriam (445): António Júlio Emerenciano Estácio (Bissau, 1947 - Algueirão, Sintra, 2022): foi alf mil, RM de Angola (1970/72), viveu e trabalhou em Macau (1972/98) e era um apaixonado pela sua terra e as suas gentes

Último poste da série de 14 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23523: In Memoriam (447): Gen João Almeida Bruno (1935-2022): cerimónias fúnebres na Academia Militar, capela do Palácio da Bemposta... E recordando também a sua memória da Op Ametista Real (Senegal, 1973), de que ele foi o comandante

2 comentários:

Anónimo disse...

Merecida recordação do António Estácio, Guineense que amou a terra que o viu nascer.

V. Briote
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António J. P. Costa disse...

Olá Camarada

Uma hipótese de homenagem seria promover a reedição da Bolama, a Saudosa. Fui ao lançamento do Palácio da Independência e vi que tem imensas gralhas e erros de sintaxe, que seria com corrigir...

Um Ab.
António J. P. Costa