
Queridos amigos,
O nosso malogrado confrade Fernando de Sousa Henriques descreve neste texto de recensão o assédio brutal a Canquelifá.
Estamos num local e num tempo da guerra de guerrilhas da Guiné onde o PAIGC já se move como num teatro de guerra convencional, traz viaturas e despeja em rampas os foguetões sobre os objetivos. Pelo que ele tão discretamente narra, o abandono de Copá teve foros de dramatismo. Nos primeiros tempos, a aviação ainda se afoitou a procurar castigar as peças de artilharia que desfaziam Canquelifá. Depois atingiram um avião, as coisas mudaram. Até porque um mês depois chegou o 25 de Abril.
Um abraço do
Mário
No ocaso da guerra do Ultramar (2)*
Beja Santos


Nunca encontrei relato que se aparentasse com este, não é uma questão zelo burocrático, é a nítida vontade de inserir o leitor num ambiente de Piche e quartéis envolventes, deu-se ao cuidado de explicar o que era o reino de Pachisse, caracterizou Canquelifá, todas as instalações do aquartelamento, os usos e costumes de Fulas e Mandingas, as acessibilidades, as milícias locais, os guias e colaboradores, o sistema de informações naquela área tão sensível, dá-se mesmo ao cuidado de contar, em resumo, os principais factos relacionados com o Batalhão que foram render e como se processou o período de sobreposição. Igualmente minucioso com o quotidiano de todo o efetivo militar e assim chegamos à guerra propriamente dita.
O sector do BCAÇ 3883 tornou-se repentinamente explosivo em 1973. O PAIGC saíra beneficiado da retirada das tropas portuguesas do Boé, paulatinamente foi-se aproximando de populações hostis e urdiu uma estratégia de clara intimidação a partir de 1972, começou por privilegiar as emboscadas nos principais eixos de comunicações. Em Agosto de 1973, entre Piche e Canquelifá fez um ataque feroz e observa que depois destes acontecimentos nada ficou como dantes. O próprio capitão Peixinho de Cristo ficou abalado, ele que assistiu à morte de um dos seus soldados, atingido gravemente nos intestinos, conversou com ele até ao final, dele recebeu, entre gemidos, as últimas vontades. As minas anticarro começaram a proliferar. O moral da companhia baixou.
A partir de Novembro, não mais houve descanso em Canquelifá, repetiram-se as flagelações, os mísseis deram entrada nas flagelações frequentes, era nítido que os guerrilheiros queriam comprometer os reabastecimentos e acantonar as tropas aos seus quartéis. As emboscadas às obras da estrada Piche-Nova Lamego também se acentuaram. Em dezembro houve um relativo descanso mas os assaltos às tabancas deram frutos, as populações, ainda lentamente, começaram a fugir para os grandes centros.
No início de Janeiro, os ataques com foguetões a Canquelifá marcaram presença, o autor explica a natureza das destruições que as imagens, pela sua eloquência, desfazem todas as dúvidas. Mas não só Canquelifá, Piche e Buruntuma também foram contempladas. Nessa altura os efetivos do Batalhão levam quase 24 meses de Guiné, foi necessário pedir apoio à CCAÇ 21, uma companhia só de guineenses, comandada pelo tenente Jamanca. Em 7 de Janeiro a CCAÇ 21 surpreende uma força inimiga e traz dois corpos, um cubano e cabo-verdiano. As flagelações recrudesceram. Ia começar o martírio de Copá, um destacamento que irá ser abandonado por impossibilidade de defesa. As picagens tornaram-se um tormento. De 19 a 21 de Março, Canquelifá é sujeita a bombardeamentos consecutivos, a partir de diversas bases de fogos situados a Leste e a Norte do aquartelamento. Quartel e tabanca estão irreconhecíveis, o gerador elétrico inutilizado, muitos edifícios queimados, um dos paióis periféricos da artilharia escapou milagrosamente. O desgaste psicofísico das tropas é enorme. As tabancas vizinhas começam a desertificar-se, a própria população civil de Canquelifá começa a retirar. O autor escreve: “Canquelifá passara a ser o epicentro de um vulcão, pronto a explodir. Era a capital do reino de Pachisse, um território ancestral e carismático, o único com fronteiras com o Senegal e Guiné-Conacri. Canquelifá era um alvo a abater para maior projeção externa do PAIGC”.
Em capítulo separado, o autor descreve os derradeiros dias do destacamento de Copá: “A partir do início de Fevereiro, esse destacamento passou a estar sujeito a fogo de morteiro de 120 mm, com intensidade variável, mas algumas das vezes até inusitada. Dentro, não havia a possibilidade de levantarem a cabeça”. Na segunda quinzena de Fevereiro, depois de uns três dias seguidos de assédio a Copá, foram aparecendo aos poucos e em pequenos grupos os elementos provindos daquele destacamento. “O pessoal vinha todo sujo, camuflado, se existia, em desalinho, arma às costas ou ao ombro, desorientado e de olhar perdido. Enfim, uma lástima. Tinham fugido do inferno em que Copá se transformara. Sem o saberem, deixaram para trás o furriel, o operador das transmissões e talvez outros. Aquilo parecia deserção. Confrontados com a ideia de regresso, diziam que preferiam ser mortos”. Lá foram convencidos a juntarem-se a quem permanecera no posto de combate, juntaram-se ao furriel, e então regressaram todos.
Em 21 de Março, chega ao aquartelamento o major Raul Folques, vinha a comandar duas companhias de comandos africanas. Detetaram uma base inimiga, atacaram-na, veio a Força Aérea e rechaçou-os, o PAIGC terá tido 26 mortos, entre eles 2 cubanos, capturam-se 2 morteiros 120 completos e 2 incompletos. Os Comandos, no decorrer da refrega, sofreram 2 mortos e 20 feridos. A seguir, fez-se uma nova coluna de reabastecimento, os guerrilheiros apareceram em peso mas a resposta das nossas tropas foi enérgica. As minas prosseguiram, mesmo a seguir ao 25 de Abril.
O BCAÇ 3883 deixou a Guiné em Junho de 1974. Fernando Sousa Henriques descreve emocionado as despedidas de todos, enumera e louvores e distinções de todo o Batalhão, e ao longo dos anos, os convívios sucessivos. Procede à relação nominal dos efetivos e não descura o espólio fotográfico relacionado com o sector L4. São impressionantes as imagens de Canquelifá em fase de destruição, os aspetos desoladores da tabanca, vemos mulheres e crianças catando nas cinzas os seus pobres bens pessoais, vemos as colheitas a arder, um canhão sem recuo completamente destruído. Fernando de Sousa Henriques cumpriu cabalmente o objetivo a que se cometera, nada de mais minucioso, segundo sei, se fez à volta da história de um Batalhão, de uma Companhia, de uma vivência. O autor já não está entre nós, ainda voltou à Guiné, escreveu em 2011 “Picadas e caminho da vida na Guiné”, na mesma altura em que aderiu ao nosso blogue.
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Nota do editor
(*) Vd. poste de 20 de Setembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12061: Notas de leitura (521): "No Ocaso da Guerra do Ultramar", por Fernando de Sousa Henriques (1) (Mário Beja Santos)