terça-feira, 20 de novembro de 2018

Guiné 61/74 - P19213: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (59): os reordenamentos no desenvolvimento sócio-económico das populações, brochura da Repartição de Assuntos Civis e Ação Psicológioco [ACAP], do QG / CCFAG - Parte I



Guiné > Região de Tombali > Cufar > Matofarroba > Tabanca > 1973 > Aspeto parcial do reordenamento com o fontenário à direita


Guiné > Região de Tombali > Cufar > Matofarroba > Tabanca > 1973 > Aspeto do reordenamento feito pelas NT. Matofarroba ficava/fica, a 2km/3km, a sul de Cufar.


Fotos (e legendas): © Luís Mourato Oliveira (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


Capa da brochura "Os reordenamentos no desenvolvimento sócio-económico das populações". Província da Guiné, Bissau: QG/CCFAG [Quartel General do Comando Chefe das Forças Armadas da Guiné]. Repartição AC/AP [, Assuntos Civis e Ação Psicológioco].  s/d.

Foto: © A. Marques Lopes / António Pimentel (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

I. Na sequência do poste P19196 (*), decidimos reproduzir o documento supracitado, que nos chegou, em tempos, pela mão dos nossos camaradas António Pimentel e A. Marques Lopes, e que já foi publicado, no nosso blogue em 2007 (**) , com revisão e fixação de texto do nosso coeditor Virgínio Briote.  

Vamos pedir ao A. Marques Lopes que nos confirme: (i) o número de páginas da brochura; e (ii) se o texto foi publicado na íntegra na altura. Uma ou outra palavra está ilegível.

Vamos pedir aos nossos leitores, amigos e camaradas da Guiné, que nos disponibilizem textos, fotografias e outros documentos sobre os reordenamentos populacionais. Tanto quanto sabemos, não há trabalhos académicos publicados sobre este tópico. Muitos de nós estiveram envolvidos, direta ou indiretamente, nos reordenamentos populacionais no TO da Guiné, nomeadamente no tempo do Com-Chefe e Governador Geral António Spínola (1968-1973).

Gostávamos de poder fazer um levantamento de todos os reordenamentos populacionais realizados ma Guiné, durante toda a guerra. E idenficar os nossos camaradas que integraram as equipas técnicas dos reordenamentos (graduados e praças) (, caso. por exemplo, do Luís R. Moreira) e que no BENG 447 planearam, coordenaram, apoiaram e/ou supervisionaram a construação de reordenamentos (caso,. pro exemplo, do Fernando Valente Magro).

Reprodução do documento [Revisão e fixação de texto: VB / LG].


INTRODUÇÃO (pag. 1)


1. O problema de fundo de toda a manobra de contra-subversão é a conquista das populações. Na Guiné os argumentos sob os quais o PAIGC construiu a sua máquina subversiva e os objectivos que se propõe atingir, estão sendo anulados ou apropriados pela política prosseguida pelo Governo da Província, que se baseia no desenvolvimento sócio-económico da população em tempo útil.

A estagnação sócio-económica que se verificou no passado, facilitou a tarefa inicial do PAIGC em ordem à mobilização subversiva. Contudo não foi ainda, e não é a curto prazo, possível a
o partido de Amílcar Cabral concretizar os programas de fomento que propagandeia, por não ter ainda a adesão da esmagadora maioria da população e por não ter estruturas e quadros que os ponham em prática, em tempo.

Por outro lado, em relação ao Governo da Província, este esforço de fomento, no campo da manobra contra-subversiva, apresenta alguns aspectos favoráveis ao êxito:

  • reduzidas dimensões do território da Guiné, permitindo a rápida deslocação e que, com meios pouco vultuosos e dentro das possibilidades da Nação, se desenvolva a manobra contra-subversiva pelo fomento; 
  • o baixo nível de vida dos países limítrofes, possibilitando que uma sensível melhoria provoque um contraste notável.


Como atrás foi dito, a conquista das populações pelo desenvolvimento
sócio-económico, terá de fazer-se em tempo útil, "rapidamente e em força", provocando o desiquilíbrio das populações indecisas e mesmo das controladas pelo IN, a favor da causa portuguesa. 

As populações da Guiné apresentam-se extremamente receptivas e sensíveis às realizações que se traduzam numa melhoria visível da situação da Província. Assim, a necessidade de aproveitar todos os meios disponíveis e a colaboração a que as Forças Armadas são chamadas a prestar.


2. Os reordenamentos são um meio de promoção, mesmo quando impostos pela evolução da manobra militar do IN. O desenvolvimento sócio-económico através deles, alcançar-se-á mais facilmente pela:

  • concentração populacional em menores espaços, permitindo auferir maiores benefícios colectivos;
  • maior economia de meios humanos e técnicos;
  • o controle mais eficaz e adequado das populações, subtraindo-as à acção subversiva e impedindo qualquer ajuda que, eventualmente, pudessem dar ao IN;
  • a defesa mais fácil, pela concentração, possibilitando a auto-defesa, a existência de destacamentos militares ou a integração do agregado em planos mais vastos de defesa.

PANORAMA DOS PRINCIPAIS GRUPOS ÉTNICOS (pag. 2-3)



1. Podemos considerar que existem dois grandes grupos humanos na Guiné: islamizados e animistas. No primeiro grupo incluiremos os Fulas, Mandingas, Beafadas, Saracolés, Sossos e Panjadincas e no segundo, Balantas, Manjacos, Papeis, Felupes, Baiotes, Brames, Banhua e Bijagós.


Existem, no entanto, pequenos núcleos híbridos, formados por etnias que utilizam práticas animistas e islâmicas e são, geralmente, sub-grupos em vias de se islamizarem. 
O factor religioso condiciona todo um comportamento social feito de usos, costumes e tradições ligadas às práticas religiosas. 

Assim, existem dentro de cada um dos sub-grupos elementos de afinidade e repulsão, como existem também, e mais vincadamente, entre os islamizados e os animistas. Interessará conhecer os principais elementos de cada grupo e, ainda, de algumas etnias principais, tomadas como padrão.


ISLAMIZADOS
  • forte sentimento tribal;
  • quase fanatismo religioso;
  • apreço pelo gado bovino;
  • fidelidade tradicional às autoridades;
  • respeito pela hierarquia religiosa;
  • dependência jurídica do Alcorão;
  • culto da hospitalidade;
  • espírito guerreiro;
  • desejo de cultura, assistência social e melhoria de vida.

ANIMISTAS
  • sentimento tribal menos intenso;
  • sentimento religioso normal;
  • preconceito racial (em relação aos islamizados);
  • apego à família e à terra;
  • espírito guerreiro;
  • espírito de vingança;
  • desejo de cultura, assistência social e melhoria de vida;
  • coesão familiar;
  • respeito pela vida da mulher;
  • desejo de justiça.
Entre os islamizados existem também afinidades e repulsões, elementos que os caracterizam e que são suficientemente fortes para os opor e, simultaneamente, os unir. Usando como exemplo duas etnias islamizadas, as mais representativas quantitativa e qualitativamente, vamos verificar essas motivações.

FULAS
  • ódio ao mandinga;
  • apreço e dependência do gado bovino...
  • [ilegível].

MANDINGAS

  • ódio ao Fula; 
  • apreço de gado bovino só para fins ... [ilegível].


As afinidades entre os animistas são talvez mais flagrantes, visto que as religiões são diversificadas e não existe uma unidade sob o ponto de vista religioso que, como já se disse, condiciona o seu comportamento social. No entanto, existe similitude de práticas religiosas, o respeito pelos espíritos dos mortos e pelos símbolos que os representam (os Irãs), o respeito e aceitação espontânea e indiscutível das interpretações dos guardas de Irã que constituem uma espécie de sacerdotes do animismo.

Das etnias tomadas como exemplo, os Balantas e os Manjacos constituem as principais dentro do grupo animista. Os Balantas têm uma população de 150.000 habitantes e a totalidade do grupo constitui dois terços da população guineense. Os Felupes, sendo uma minoria étnica é, sem dúvida, extraordináriamente característica por ser uma das mais primitivas e, ainda, a mais antiga que se conhece como originária do território guineense.

BALANTAS
  • culto do roubo como prática social;
  • resistência à cultura europeia;
  • desrespeito pelas hierarquias verticais;
  • interesse material pela família;
  • resistência ao cristianismo e islamismo.
MANJACOS
  • aversão ao roubo;
  • desejo de toda a cultura;
  • respeito pelas hierarquias verticais;
  • interesse relativo pela família;
  • resistência ao cristianismo e islamismo.
FELUPES
  • não aceitação do roubo;
  • resistência à cultura europeia;
  • respeito pelas hierarquias verticais;
  • interesse pela família (influência da mulher);
  • permeabilidade ao cristianismo.
Existindo dentro de cada um dos grupos humanos- Islamizados e Animistas- motivações tão flagrantes, é lógico que entre ambos essas motivações aumentem, já que são duas sociedades distintas em presença, cada uma das quais mantendo em relação à outra uma certa animosidade. A compreensão dessas motivações, facilitará esta visão geral do mosaico étnico- religioso e humano- da Guiné Portuguesa.

ISLAMIZADOS
  • monoteístas;
  • forte sentimento religioso;
  • dependência jurídica do Alcorão.
ANIMISTAS
  • diferentes concepções da divindade;
  • relativo sentimento religioso;
  • independência jurídica de fórmulas religiosas.
(Continua)

______________


Notas do editor:


Guiné 61/74 – P19212: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (41): O Cama 16 que afinal não estava internado e uma G3 desaparecida no Cacheu

1. Em mensagem do dia 18 de Novembro de 2018, o nosso camarada José Eduardo Oliveira (JERO) (ex-Fur Mil Enf.º da CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), enviou-nos duas histórias, uma passada no HMP e outra já na Guiné, relacionadas com estranhos desaparecimentos.


O CAMA 16

A caminho dos 90 anos de idade – já fiz 78 – continuam-me a vir à memória os meus tempos da vida militar. Foram 4 anos que “nunca mais me largam”…
Confesso que estas tristes e recentes histórias de Tancos e Chamusca me “tocaram” desagradavelmente mas não é sobre isso que vou “falar” hoje.

Em termos militares fiz a minha recruta na EPC (Escola Prática de Cavalaria), de Santarém, em Agosto e Setembro de 1962 e nos 2 anos seguintes vi a “Estrela” quase todos os dias, pois era nessa zona de Lisboa que se situava o Hospital Militar Principal.

Nos meus tempos no HMP estive em Dermatologia cerca de um ano (entre Junho de 63 e Maio de 64) como Chefe de Enfermaria. Era caso singular no Hospital pois era o único militar fora do “quadro” (era “miliciano”), que desempenhava esse tipo de funções. Tinha ficado em 1.º lugar no meu curso do CSM e “calhou-me a sorte” dessas funções de chefia para as quais não estava minimente preparado.

Passei meia dúzia de dias junto do militar do “quadro” que ia substituir (por ter sido mobilizado para a guerra do Ultramar) e fui assinando “papéis” comprovativos da “carga hospitalar”, de que iria ser responsável nos tempos mais próximos.
A Enfermaria tinha 70 camas, o que correspondia em termos de “carga” a 70 colchões, 140 lençóis, travesseiros, almofadas, mesas de cabeceira, montes de seringas, instrumentos diversos para tratamentos e muito mais “coisas” que me dispenso de descrever para não fatigar o leitor.

Havia ainda uma sala de tratamentos e outra para as consultas de dermatologia, onde se sentavam o médico-chefe e um médico-estagiário para as consultas externas dos civis ligados a instituições militares (Manutenção Militar, Oficinas Gerais de Fardamento, etc). Era então director do HMP o Dr. Ricardo Horta Júnior.

Além destas responsabilidades tinha comigo uma equipa de cabos milicianos e alguns soldados que era suposto ajudarem-me no meu desempenho. Em poucos dias percebi que os meus camaradas milicianos era uns “sornas”, que entravam sempre tarde porque o ”chefe” era “miliciano” e não os iria castigar.
Entrava às 8 da manhã – estava “desarranchado” e dormia (por minha conta) num quarto de uma casa particular na zona de Campo de Ourique – e não tinha horas de saída…

No final do primeiro mês de “chefe” comecei a dar por falta de “coisas” que estavam descritas na “carga da enfermaria”, mas que só existiam no papel. Como é que eu me ia desenrascar!?
Depois de algumas noites mal dormidas lembrei-me de consultar o Sargento Enfermeiro Sineiro, que era meu conterrâneo. Já o tinha visto no Hospital e fui ter com ele e apresentei-me, dizendo quem era e a que família de Alcobaça pertencia.
Não podia ter tido melhor sorte.
Disse-me como me desenrascar pois já tinha muitos anos de vida hospitalar.
Se tivesse na “carga” 6 seringas e só tivesse uma em condições “partia” essa em 6 bocados e fazia um ”auto de aniquilamento”, descrevendo a “existência” de seis “avariadas”, e pedindo o seu abatimento na carga. Depois de deferido o seu “aniquilamento” tinha apenas que fazer a requisição de 6 novas seringas.
Desde que houvesse algum “bocado” do material em falta era só fazer o auto para apresentar os “bocados” do total do material a substituir.

Assim fiz e resultou inteiramente.
Respirei fundo e guardei para mim estes novos “saberes”. Passados alguns meses estava tudo em ordem no que respeita a material.
Mas surpresas das surpresas faltava-me um doente: o “cama 16”.
Fiquei para morrer. Como é que isso podia acontecer?
O encarregado anterior da Enfermaria já estava no Ultramar (julgo que em Angola) e ainda não havia telemóveis!!!
Encontrei o registo do “faltoso” e soube onde era a sua morada em Lisboa. Com diversas ajudas consegui contactá-lo através de telefone fixo e fui ao seu encontro. Ao vivo e a cores…

Era um rapaz de “famílias bem” que tinha “comprado” a sua estadia em casa ao anterior responsável da Dermatologia.
Ofereceu-me umas “massas” para manter o seu anterior estatuto. Mas não teve sorte nenhuma.
No dia seguinte queria-o na Enfermaria junto da sua “cama 16”. E assim aconteceu. Finalmente “carga completa”.

O tempo passou e já estava um mestre em gestão hospitalar quando fui mobilizado para a guerra. Tinha 2 anos de vida militar e pensava que regressaria a Alcobaça dentro em breve, como eu julgava que merecia.
Puro engano.
Fiz as malas sim mas foi para seguir para o RI 16 (Regimento de Infantaria 16), de Évora e em 8 de Maio de 1964 embarcava no “Uíge” a caminho da Guiné como Furriel Enfermeiro Miliciano da CCAÇ 675.
E mal sabia eu que os meus conhecimentos em fazer “autos de aniquilamento” iriam ajudar muita gente. Fora e dentro da minha Companhia.


UMA G3 DESAPARECIDA NO CACHEU

Mas para terminar o tema só vou contar mais uma história que, julgo eu, nunca foi contada e terá sido esquecida pelos seus principais intervenientes há muito tempo.
Não garanto todos os pormenores porque estão passados muitos anos mas penso que o que descrevo seguidamente estará muito próximo dessa realidade de há mais de meio século!
Quando faltava apenas um mês para terminar a nossa comissão e regressarmos a casa um soldado do tipo “Chico esperto” pediu emprestado a um nativo uma canoa e meteu-se no Rio Cacheu para caçar um crocodilo, cuja pele serviria para fazer uma mala e um par de sapatos para depois do regresso oferecer à sua namorada.

Está claro que se fez acompanhar da sua espingarda “G3”, porque os crocodilos não se apanham à mão. Deu umas remadas e nem ao meio do rio chegou.
A canoa virou-se e quando o “caçador de jacarés” veio ao de cima a sua “G3” estava desaparecida. Nadou para terra e algumas horas depois confidenciou aos camaradas o que lhe tinha acontecido.

Perder a arma de combate que lhe estava distribuída queria dizer que era candidato a algum tempo de prisão, que lhe faria perder o regresso a casa que estava tão próximo.
Por sorte o Comandante de Companhia estava em Bissau e o seu 1.º Substituto era o Alferes Mendonça, que era miliciano. Fez-se uma reunião nessa noite no “escritório” do 1.º Sargento Santos para tentar resolver a “bronca”.

Depois de muitas e variadas opiniões resolveu-se “inventar” um ataque do inimigo às 3 da manhã com granadas de morteiro, que iriam “cair” numa arrecadação que iria arder violentamente.
Quando o incêndio estivesse extinto tudo que nessa altura “faltava” na Companhia (colchões, lençóis, pneus e uma espingarda G3) teria sido consumido pelo fogo. O Furriel Enf Oliveira faria um auto de aniquilamento no dia seguinte para ser enviado para o Batalhão em Farim. E assim se fez.

Respirámos todos de alívio e um mês depois deixámos Binta e, via Farim com passagem pelo Oio, viemos para Bissau para embarcar no “Uíge” a caminho de casa. Já lá vão mais de 50 anos.

O crocodilo do Cacheu há muito que deve ter netos ou mesmo bisnetos!

José Eduardo Reis de Oliveira
JERO
Fur Mil Enf da CCAÇ 675
____________

Nota do editor

Último poste da série de 24 de outubro de 2012 > Guiné 63/74 – P10563: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (40): O avô da Matilde, um vizinho especial

Guiné 61/74 - P19211: Convívios (881): Festa do Magusto da Tabanca de Matosinhos (José Teixeira)

1. Em mensagem do dia 19 de Novembro de 2018, do nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enf da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70) enviou-nos a reportagem do Magusto da Tabanca de Matosinhos:


FESTA NA TABANCA DE MATOSINHOS

Com castanhas, bom vinho e bom fado, depois de um almoço bem servido, como sempre, e com a sala cheia de combatentes, assim foi mais uma quarta feira de convívio em Matosinhos.
Depois do almoço, o Rodrigo, o camarada sempre pronto para cuidar da bem estar da malta, foi a correr buscar o vinho e logo chegaram as castanhas ao som da musica tangida pelo Campos, pelo Luís Bento, pelo Arménio e pelo Alexandre Cardoso.
Seguiu-se uma excelente tarde de fados.
O Vitorino, o grande cantor da Tertúlia, trouxe à Tabanca para com ele animar a malta, a sua sobrinha Francisca Silva, uma voz a reter pela forma como dá vida ao fado, o Delfim Costa que andou por Angola e nos presenteou com excelentes fados e canções da América Latina, como só ele sabe cantar.
Entretanto houve tempo para cantarmos os parabéns ao grande Zé Manel Lopes pelo seu aniversário. Uma forma de lhe desejarmos muitos anos devida e de saborear o seu "vinho fino velho" que tem um sabor delicioso. Recebemos ainda alguns camaradas que escolheram este dia para nos visitarem pela primeira vez.
Quase no fim o Leite Rodrigues usou da palavra para mostrar a sua alegria pela tarde, relembrar que somos uma classe em extinção e há de chegar o dia em que um de nós fechará a porta da Tertúlia Tabanca de Matosinhos. Registe-se a sua afirmação que ficou gravada no mais intimo do ser de cada um dos presentes: " A guerra é um conflito armado em que jovens que não se conhecem e não se odeiam, se matam entre si, mandados por velhos que se odeiam... mas não se matam entre si".

A tarde passou rapidamente. Que pena!









____________

Nota do editor

Último poste da série de 13 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19190: Convívios (880): 72.º Encontro da Tabanca do Centro e Almoço-convívio de Natal, Monte Real, 28 de novembro, 4ª feira, a partir das 12h30... Prazo de inscrições (até ao limite de 90): dia 23 do corrente

Guiné 61/74 - P19210: Facebok...ando (50): J.Casimiro Carvalho, o herói de Gadamael, e hoje régulo da Tabanca da Maia, nosso grã-tabanqueiro da primeira hora, presta homenagem aos "strelados" António Martins de Matos, Miguel Pessoa e Giselda Pessoa




Leiria > Monte Real > Palace Hotel Monte real > 8 de junho de 2013 > VIII Encontro Nacional da Tabanca Grande > Almoço convívio > Dois heróis de 1973, batendo a pala um ao outro: o antigo ten pilav António Martins Matos (hoje ten gen pilav ref; era o asa do Miguel Pessoa, quando este foi abatido por um Strela sob os céus de Guileje, em 25/3/1973) e o ex-fur mil op esp J. Casimiro Carvalho, o "grande pirata de Guileje" que merecia uma cruz de guerra em Gadamael (dois meses a seguir)...

Foto: © Miguel Pessoa (2013). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Alfagride, Amadora > Estado Maior da Força Aérea > 13 de novembro de 2018 > O Miguel e a Giselda Pessoa, na assistência, no autório gen Lemos Ferreira, na sessão de de lançamento do livro do António Martins de Matos "Voando sobre um ninho de Strelas" (Lisboa: BooksFactory, 2018, 375 pp.)


Foto (e legenda): © Luís Graça (2018). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. O J. Casimiro Carvalho, nosso grã-tabanquerio da primeira hora, herói (esquecido) de Gadamael, hoje régulo da Tabanca da Maia, partilhou, na página do seu Facebook e do Facebook da Tabanca Grande, um comentário, seu, já antigo, de 15 de novembro de 2012, que, no nosso entender, merece as honras de um poste, na montra do nosso blogue (*)... 


O pretexto, agora, foi a sessão de lançamento do livro do António Martins de Matos, "Voando sob um ninho de Strelas", lançado no dia 13 do corrente  no Estado Maior da Força Aérea,em Alfragide, sessão em que esteve também presente os nossos queridos camaradas Miguel e Giselda Pessoa (*)...  O comentário, já antigo, é também uma homenagem ao povo da Guiné e à nossa capacidade de, tendo feito a guerra, termos conseguido também fazer as pazes, connosco e com os outros que lutaram do outro lado.

Grande Timoneiro Luis Graça :

Tenho cometido o erro de, pelas facilidade de postagem, ter aderido em força ao Facebook, relegando para segundo  plano, este Blogue, famoso e de qualidade.

Sinto que tenho que fazer uma mea culpa e penitenciar-me.

Acerca do assunto em questão, e porque não me sinto letrado o suficiente, para rebater, opiniões de outros Blogs, gostava só de salientar que,  aquando da minha visita aquele País, onde fiz uma comissão entre 1972 e 1974, pelas vivências que são conhecidas e notórias,nem tudo foi mau,antes pelo contrário, percorri aquele território, durante dez dias, e não estive só em Bissau, mas sim,quase sempre a percorrer o interior.

Tenho as minhas "mazelas", como muitos, e poderia até ter um certo retraimento em relação a alguns Guineenses que poderia encontrar e que me lembrassem o período, nefasto, da guerra no sul, e do susto em Paúnca.  Mas não...não aconteceu, antes pelo contrário, senti por aquele povo uma empatia tal que falávamos em "Turras" e "Tugas", e num desses dislates, conheci um oficial fardado (!?) que,  após uma troca de cumprimentos e palavras soltas, vim a saber que foi comandante da patrulha (emboscada) que matou 4 homens ao meu lado em 4 de Junho de 1973.

Ofereci lhe uma prenda (uma camisola original do FCP) que ele vestiu ali mesmo.

Em quase todo o interior senti uma afabilidade da parte da população, em relação aos ex-colonialistas, que nós representávamos, que fiquei boquiaberto,chegando alguns a pedir para voltarmos, pois tinham melhor qualidade de vida do que agora.

Como é possível não gostar desse povo, porque é que há tantos ex-combatentes a ir, a suas expensas, visitar a Guiné ?

A Paz (ou a falta dela) tem que ser conquistada por esse povo e seus dirigentes, e pela via democrática, e não pelas armas nem por insinuações soezes e jocosas.

Se puder hei-de voltar e comover-me ,confraternizar e até, talvez, chorar, porque não ?
Um abraço fraterno ao Povo da Guiné que gosta de nós, como nós gostamos deles.Obviamente, que haverá ressabiados, mas e, aqui, não há ?

Por uma Guiné melhor...o meu voto!

2. Legenda para uma foto (**):

No Facebook do José Casimiro de Carvalho, com data de 15 do corrente, sob a foto de Luís Graça, que se publica acima:

"Para quem desconhece, este Senhor era o Tenente Aviador Miguel Pessoa (hoje Coronel), cujo Fiat G-91 foi abatido por um míssil Strela, nos céus de Guileje, originando uma enorme operação de resgate (da qual fiz parte), para recuperar o piloto [, que se ejetou. A senhora ao lado é a sua esposa (Giselda Pessoa), que fez parte dessa operação, enquanto enfermeira paraquedista. Mais tarde casaram, coisas da Guerra, e como são de Guerra... continuam casados.

"Parabéns aos dois, aqui em  Alfragide, Amadora. A foto é tirada no Estado Maior da Força Aérea - 13 de Novembro de 2018 .O Miguel e a Giselda Pessoa, na assistência, no auditório Gen Lemos Ferreira, na sessão de de lançamento do livro do António Martins de Matos,  'Voando sobre um ninho de Strelas' (Lisboa: BooksFactory, 2018, 375 pp.)."

_____________

Notas do editor:


(**) Últimmo poste da série >  6 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19074: Facebook...ando (49): Álbum fotográfico de João Rebola (1945-2018), ex-fur mil, CCAÇ 2444 (Bula, Có, Cacheu, Bissorã e Binar, 1968/70)

segunda-feira, 19 de novembro de 2018

Guiné 61/74 - P19209: Lembrete (30): 40º almoço-convívio (e festa de Natal 2018) da Magnífica Tabanca da Linha, 5ª feira, dia 22, às 12h30, no Restaurante Caravela de Ouro, em Algés... Últimas inscrições até às 10h00 de amanhã. Até às 13h00 de hoje, estavam inscritos 52 magníficos/as que vão desejar, em voz alta e em coro, as melhoras do régulo Jorge Rosales, hospitalizado em Santa Maria! (Manuel Resende / Armando Pires)


Lista dos 52 inscritos até às 13h de hoje 


1. Mensagem do Manuel Resende‎, régulod de A Magnífica Tabanca da Linha, com data de ontem, à noite 

Caros Magníficos, irei publicando aqui as inscrições já feitas, sempre que se justifique, para que os próprios possam ver se já estão inscritos. [Até às 13 horas de hoje, eram 52, conforme lista que se publica acima]

Estamos a chegar ao fim do prazo, até amanhã, Segunda - 19, e até ao fim do dia (que será até às 10 horas de terça), pois tenho de confirmar o número de pessoas, para orientação do restaurante, no entanto se aparecer alguém depois, será sempre bem recebido. (*)


2. Mensagem. de ontem, do Armando Pires, na página da Magnífica Tabanca da Linha

Amigos e Camaradas

O excelentíssimo comandante Rosales foi ontem operado.  Uma cirurgia dura e demorada.
Encontra-se de momento nos cuidados intensivos.  Obviamente, sem visitas.
O Rosales é um vencedor.


3. Lembrete do régulo Manuel Resende (**)

Prato principal será BACALHAU À LAGAREIRO", com batatinhas a murro, grelos e saladas. Os antes e os depois já todos conhecem. Preço: 20 aéreos (tudo incluído).

Inscrições, por todas as formas já habituais (facebook, email, sms ou telemóvel), para Manuel Resende (919 458 210) até ao fim do dia 19, segunda-feira, o mais tardar 10h00 da manhã de 3ª feira.

Quando se inscreverem,  digam o nº de acompanhantes.

Informo que quem usa a Via Verde pode baixar o aplicativo "ESTACIONAR" da via Verde e utilizá-lo para estacionamentos, sem moedas. O local está abrangido por este sistema.
_________________

(**) Último poste da séroe > 15 de maio de 2018 > Guiné 61/74 - P18635: Lembrete (29): Lançamento do livro de Mário Beja Santos, "Um Escafandrista nas Nuvens", Âncora Editora, amanhã, dia 16 de Maio, pelas 18 horas, no Auditório da Sociedade Portuguesa de Autores, em Lisboa

Guiné 61/74 - P19208: A Galeria dos Meus Heróis (15): O "Bate-chapas" que queria ser fotocine... (Luís Graça)


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bafatá  > 2010  > O antigo cinema da vila e depois cidade de Bafatá, agora em ruinas... O regresso do Fernando Gouveia, 40 anos depois...

Foto (e legenda): © Fernando Gouveia (2014).Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Luís Graça, Contuboel,  
CCAÇ 2590 / CCAÇ 12, 
julho de 1969, 
Luís Graça >  A galeria dos meus heróis (15) >  O "Bate-chapas" que queria ser fotocine...



Excertos do "Diário de um bate-chapas" (*)

2/3/2018

Dia de inverno. Não admira, estás em março. E a primavera é só daqui a três semanas. E parece que vai continuar assim na próxima semana. Partidas da meteorologia. Ou nem por isso. Se há algo que é previsível é o tempo. Por isso há as previsões meteorológicas e os meteorologistas. Ciência matemática, dizem os gajos. 

 Dantes pensavas que era o São Pedro quem mandava nos céus e arredores. Metiam-te medo com o dilúvio e a arca de Noé. Santa ignorância, quando se é puto. Quem te metei na cabeça essas patranhas ? Agora parece que destronaram o Santo e já não há ninguém de respeito que mande nesta merda. Anda tudo desregulado: o tempo, o clima, a economia, os quatros humores, a saúde… As estações andam trocadas. 

Quando eras puto, havia quatro estações, e o Natal era no inverno, e fazia frio, e caía neve. Na Guiné, no teu tempo, havia duas estações, dividindo o ano ao meio: a das chuvas (de maio a outubro), e a do tempo seco (de novembro a abril). E quando as primeiras chuvas caíam era uma explosão de vida e de alegria. 

 Até tu, ó "Bate-chapas", pé de chumbo, vinhas para a "rua", no meio da tabanca, dançar com os "djubis", as bajudas e as mulheres grandes. Grande tonto!... Mas nunca te lembraste de tirar umas chapas desses momentos que, afinal, eram os mais felizes da vida na Guiné, os primeiros dias de chuva!...

Estás a dar cabo da tua casa, do teu chão, do teu teto, da tua terra. A fauna e a flora, as criaturas de Deus, sofrem sem terem culpa, à exceção do bicho homem. Pintem-no de todas as cores, para que ele apareça ainda mais feio, fero e mau, o "diabo branco" que metia medo aos "djubis" na festa do fanado… A malta pre
cisa, em todas as culturas, da figura de um diabo que simbolize o mal absoluto. 

Em dias assim, o que te resta é meter-te num centro comercial, o mais perto de casa, com estacionamento à borla, luzes, lojas, ar condicionado, e gente tão solitária como tu… Perdidos, automatizados, alienados. 

Enfias-te num cinema. A oferta é muita mas a maior parte é lixo. Puxas dos cartões, à cata de descontos. Sempre dão para as pipocas. Não sejas intelectualmente arrogante. Se o lixo está em cartaz, é porque há clientes, há público para consumir o lixo. Ainda por cima pagam para comer lixo. És um  consumidor de lixo, seja cinema, sejam salmões da Noruega ou douradas da Grécia ou caju da Guiné ou nozes da Califórnia ou as mensagens dos Trumps no Twitter. Ou o futebol ou as pregações evangélicas ou os "sites" pornográficos. Ou os "best-sellers" de Natal.

Há uns gajos de fato completo e gravata que gozam à brava com isto tudo, e vão aumentando as suas contas bancárias e fortalecendo as suas redes de poder e de influência. As lojas e as redes sociais estão cheias de lixo, barato, a preço de saldo, que tu compras.  E "a malta não olha a preços, quer é descontos"… e viver, freneticamente, o cagagésimo de segundo do presente... "O último a morrer que feche a tampa do caixão!"...

Lembras-te, ó "Bate-chapas"?!... Foi a frase publicitária de maior sucesso que tu criaste lá no quartel, em Bafatá, antes de a companhia ir para a região do Gabu: "A malta não olha a preços, quer é descontos"… Tão atual, hoje em dia, cinquenta anos depois!... Eh, pá, tu devias ter ido para o marketing criativo!...


Houve "chapas" ao preço da chuva, no primeiro Natal que lá passaste. Não perdeste dinheiro, mas também não ganhaste. Foi uma operação de "marketing", para lançar a marca do "Bate-chapas". E o sucesso foi de tal ordem que vendeste logo uma centena de fotos da malta vestida de pai Natal tropical, bajudas de "mama firme", e até a cabeça cortada de um desgraçado de um turra, uma foto que um fotógrafo de Bambadinca, teu conhecido, te passou às escondidas em Bafatá, bem como fotos dos comandos africanos empunhando as Kalashes da vitória.

Recordas-te ? Chegaram a vender-se Kalashes, plural de Kalash, em Bambadinca e Bafatá, por 500 pesos cada uma. Vinham, novinhas em folha, diretamente de Conacri, depois do regresso dos comandos africanos. Como é que se chamava essa operação, lembras-te ?... Ah!, sim, Operação Mar Verde, ordem para invadir um país independente, ordem para matar. Só não convidaram cá o "Bate-Chapas" para fazer a cobertura fotográfica. 

Não, nunca tiveste vontade de ter uma Kalash... Ainda apanhavas uma porrada... Como é que a fazias chegar à metrópole ? Desmontada, em peças, escondidas num caixote feito de madeiras exóticas, fintando os gajos das Alfândegas ?... Preferias investir em máquinas fotográficas, tinhas três, compradas em Bissau, lá na loja dos libaneses. o tal Taufik Saad, não sei quantos... Havias gajos que arriscavam, os oficiais e sargentos do quadro permanente, faziam chegar muito contrabando através desse truque dos caixotes feitos com tábuas de madeira preciosa, que valia ouro na metrópole, nessa época.


"Bate-chapas"!!!... A princípio, não achaste piada nenhuma à alcunha... Isso era alcunha dos gajos da ferrujem.  Era desvalorizar o teu talento e a tua arte de fotógrafo. Mas toda gente tinha uma alcunha. E tu acabaste por assumir a tua. Até a mulher do capitão, era a "Capitoa". E o "Pastilhas" que era o enfermeiro. E o teu alferes que era o "Ranger", e o Casanova da companhia que era o "Picha d'Aço". E o cozinheiro que era o "Merda Seca"..
.

As lojas aqui, no centro comercial,  também tresandam a merda seca, "made in" China, Indonesia, Bangladesh. Dantes, tinhas "scotch whisky", marca branca,  que vinha diretamente da Escócia em barris para a malta da tropa. O mais baratinho. E depois engarrafado no Beato com água do Tejo. Chamavam-lhe uísque de Sacavém. Para os bravos que se batiam para sobreviver à tona de água do Geba. "Beber a água do Geba"... Lembras-te da expressão ?!... Bebeste muitas vezes a água do Geba, mas nunca tiveste saudades da Guiné nem muito menos vontade de lá voltar. Mas quem recorda, não desdenha, é isso ?! 

E nos saldos saldam a roupa de inverno e os sapatos de inverno, porque já vem aí a primavera e logo a seguir o verão do nosso contentamento. "Ainda vamos ser felizes, meu amor, com casa à beira da praia no reino de Portugal e dos Algarves",  diz a chavala para o gajo, ali ao teu lado, comendo pipocas. Não percebes esta mania, horrorosa, de as miúdas de agora se tatuarem de alto a baixo. Parecem umas osgas, todas pintalgadas! 

Compra-se a crédito, barato, a casa de praia. E a mobília. E os electrodomésticos. E o amor. E a moda é quem mais ordena. Consumir é bom para a economia, que acelera e às vezes desacelera, para desespero do ministro das Finanças… Mas nem tudo o que é bom para a economia é bom para o balanta, o felupe, o fula ou o mandinga ou o morador do Bairro da Bela Vista em Setúbal. 


10/3/2018

Foste à praia do Guincho, gostas de lá ir no inverno. O mar está sujo, escuro e bravo como um touro. Espuma de raiva. Às vezes apetecia-te ter a raiva do mar. "Vamos ter forte temporal esta noite", dizem os metereologistas da Antena Um, os novos profetas da desgraça. Aviso amarelo a passar para o vermelho daqui a umas horas. Tempestade Félix. Não percebes nada de meteorologia, meu estúpido. O que é o anticiclone dos Açores ? E o que é uma tempestade ? E um furacão ? Há uma escala para medir estas fúrias dos elementos da natureza. Devias saber mais sobre estas merdas de que agora tanto se fala, as alterações climáticas, a subida da água dos oceanos, os fogos florestais... 

Há gajos que são pagos para saber. Tivestes 22 meses na Guiné,na puta da guerra, a defender a Pátria, nunca te explicaram quem era a Pátria, essa entidade nebulosa, hermafrodita, simultaneamento macho e fêmea. Nem nunca te disseram quem eram os pais da Pátria... Nunca te explicaram isso, nem na recruta nem na guerra. O teu capitão, do quadro permanente, que até era fixe, afável, católico, não tinha jeito nenhum para as tiradas patrióticas. Nunca o ouviste falar da Pátria. Mas os camaradas que morreram, esses, "morreram em nome da Pátria"... Viste cópia do telegrama, chapa um, que se mandava para a família.


15/3/2018

Fazes horas… Meu estúpido, que raio de expressão?!... Se tu soubesses em que ano, mês, semana, dia ou hora a morte te vinha bater à porta, já tinhas dado um salto mortal no sofá, no "hall" do cinema, e programado os últimos dias ou meses que te sobravam para viver… Ninguém entra em pânico com esta hipótese felizmente teórica, a não ser quando ouve o verídico final do médico, do juiz ou do carrasco. Os médicos agora já não estão com paninhos quentes, olham-te, olhos nos olhos, e fuzilam-te: "Ou tens juízo ou não te dou mais do que seis meses de vida"… 

A sacana da tua médica de família mandou-te ir ter com os gajos do ACP para te passarem o atestado médico a enviar ao IMT – Instituto da Mobilidade e Transportes. Está de greve, a gaja! Ah!, querias revalidar a carta de condução ?!...Ela diz que não pode atestar a tua validade (e, muito menos, virilidade, acuidade auditiva, sanidade mental e por aí fora)… 

"Estamos todos a prazo, doutora… Quem me diz que não apanho uma macacoa ou não sou atropelado à porta do centro de saúde ?!... Ainda há dias, um velhote com 90 anos, sem carta (há mais de cinco anos!), me iam passando a ferro na passadeira… Velhote de 90 anos, um ova, general, medalhado!... O homem parou a 10 cm de mim!... E ainda tive que lhe bater a pala!"... 

E tu que já tens 70 ?!.. 20 anos de distância ainda é muito ano… Não é nada, idiota, é já daqui a 20 anos!... E a guerra já acabou há 50!...

Fazes horas!... em vez de estares a viver intensamente o resto dos dias que te faltam para cumprir calendário… Agora vives para cumprir calendário, para não dar cabo da estatística da esperança média de vida… Por patriotismo, para que o teu país não fique mal nas fotografias, como ficava nos anos em que lá andaste, na Guiné, com a puta da canhota!...E, nas horas vagas, a tirar o retrato à malta... Toda a gente queria tirar o retrato para mandar para casa, no aerograma do dia seguinte, como "prova de vida"... "Estou bem, meus amores,  até ao meu regresso!... Rezem por mim"...

Até tu, lembras-te ?!, ias fazendo um tracinho na parede, em cada semana que passava… 4 eram um mês, 48 um ano, mais coisa menos coisa… Que um gajo queria era cavar daquele campo de concentração!... E a Pátria deles, que se fodesse!...


Quando um gajo trabalhava, tinha horas para tudo, estava tudo planeado, regulamentado, havia normas e leis, usavas agenda e gravata, saías de casa de manhã, entravas á noite, metias-te no comboio de Sintra a caminho de Lisboa, com regresso a Rio de Mouro, a tua gaiola dourada com vista sobre o Palácio da Pena, a serra de Sintra, o pavoroso cimento à volta!... Um mouro de trabalho, uma besta de carga, foi o que tu foste!... Para quê ?, para quem ?...

Agora não já precisas da puta da agenda, nem de apontar o nome e o número de telefone dos clientes e fornecedores,  a não ser para marcar a consulta do dentista e registares o dia e a hora da última vez em que deste uma queca! Fazes as palavras cruzadas e a sopa de letras que é para prevenir o Alzheimer, a recomendação da tua vizinha, ainda boazona, que vive sozinha com o cão, e que trabalha lá na clínica manhosa do teu bairro…

Agora és um cinéfilo compulsivo, vais ao cinema todas as semanas... Foste ver o filme "Três cartazes à beira da estrada"… Passa-se num cidadezinha ronceira do Missouri e há uma mãe justiceira que quer vingar a violação e a morte da filha, um lugarzinho do mundo onde nunca foste, nem onde nunca irás, porque é sítio que não interessa nem ao menino Jesus, tal como o Rio de Mouro, ou a puta da aldeia, Mazouco,  lá em Freixo de Espada à Cinta onde nasceu a tua avó e a tua bisavó, gente que nunca chegaste a conhecer. E aonde nunca foste, a terra das velhotas… Morreu de parto, a tua mãe, do teu mano mais novo,  contava-te a chorar o sacana do teu velhote, que voltou logo  a casar, sem fazer o luto... 


Cresceste sem mãe a partir dos 10 anos. A outra foi sempre madrasta… Mãe é mãe e só há uma... Também lá está a fazer tijolo, a tua madrasta, ela e o teu velhote, morreram, há quinze anos,  os dois num acidente de carro, na autoestrada a caminho do Norte… Um estúpido acidente com a gaja a conduzir com a mão direita, com o telemóvel na mão esquerda… Infelizmente, o teu velhote morreu sem teres resolvido o contencioso que tinhas com ele… Nunca gostaste da gaja dele, que afinal o acabou por matar... Há anos que não falavas com ele e com ela...E estás com essa atravessada na tua consciência, acusa-te o teu irmão mais novo. Sentes culpa por o teu velhote ter morrido, nas circunstâncias trágicas em que morreu, sem nunca teres tido uma conversa séria com ele, nem que fosse de despedida, de filho para pai, de pai para filho...

E lá no Missouri, no sul, na América profunda onde nada acontece, o raio do realizador fez um filme que é um misto de tragédia, comédia, "western" e "thriller" policial. Eh!, pá, andas a pensar fino e a falar grosso, ainda acabas em crítico de cinema… E já tens "nick name", o "Bate-Chapas", registado na Sociedade Portuguesa de Autores, para quando acabares de escrever e publicar o teu livro, "Memórias de um Bate-Chapas que queria ser fotocine na Guiné"… 


Achas que é um bom título, camarada ? Não é, não, senhor,  vão-te confundir com os gajos da ferrugem… "Bate-chapas", essa, sim, era uma especialidade dos gajos da ferrugem... Havia uma 1º cabo bate-chapas, na CCS do batalhão, em Nova Lamego,  mas a malta chamava-lhe o "Trancoso", se bem estás recordado.

Alguém sabe lá o que é um fotocine… Estes gajos de agora não foram à tropa, esta geração do pós-25 de Abril… "Bate-chapas"… que raio de alcunha que te puseram!.. Tu nunca foste mecânico, eras operacional, 1º cabo atirador de infantaria… E até comandaste uma secção no último ano… O furriel, lembras-te ?,  fora destacado para Bambadinca, para os reordenamentos, era preciso fazer casas para a balantagem que vivia na zona ribeirinha do Geba, e que fornecia o Zé Turra e a Maria Turra com aqueles coisas elementares que o Zé Tuga vendia, lá na tasca dele, tabaco, petróleo, velas, cola, arroz, aguardente de cana, redes mosquiteiras… Gostavas de passar por lá, quando ias ao Xime, em colunas logísticas, buscar os abastecimentos para a companhia... O Zé Tuga estava sempre a sacudir a água do capote, quando a malta insinuava, na reinação, que o gajo era turra: “Eu só quero que a minha vidinha corra, não quero que ninguém morra”… O gajo estava feito com a balantagem,… E era tão branco como tu…

Chamavam-te "Bate-chapas", os "djubis" e as bajudas, por que andavas sempre a tirar fotografias, no quartel, na tabanca, nas colunas, era o teu biscate, para arredondar o pré ao fim do mês, e fazer um pé de meia para as férias… Eras um fotógrafo compulsivo. Revelavas e expunhas as provas, numeradas,  num placard que servia de mostruário.

A Arminda e a garota, que tu mal conhecias (, tinha escassos meses, a tua filha, quando partiste para a Guiné), ansiavam por ti, ainda faltavam dois ou três meses para vires de férias… Quem eram os cabos que vinham de de licença de férias à metrópole ? Só tu, que tinhas dois ordenados, e o cabo cripto, que era um gajo evoluído, com estudos como tu, e o "escritas" que também comia da gamela com o "nosso primeiro"… E, claro, os graduados, os furriéis, os sargentos, os alferes, e o capitão no 1º ano (, no segundo ano levou a esposa, a "Capitoa", que vivia em Bafatá..., o que era um pretexto para ele lá ir dormir aos fins de semana, quando a guerra abrandava...).

Podias ter sido fotocine, se tivesses tido uma boa cunha, se tivesses tido sorte na puta da vida, era uma rica especialidade, não saías de Bissau, quando muito terias que fazer uma ou outra sessão de projeção de cinema no mato… Ias de avião até Bafatá ou Nova Lamego, depois apanhavas uma coluna… Na outra semana, descansavas e ias beber umas boas bejecas no Pelicano ou na 5ª Rep.

Lembras-te quando a malta esteve dois ou três em Bafatá, a caminho do Gabu... Ía-se à noite ao Bataclã e um dia, no dia dos teus anos,  até convidaste  as gajas todas que fodiam com a tropa, para ir ao cinema, ver uma cagada de um filme cómico italiano do tempo da Maria Cachuca ?!… Foste tu pagaste os bilhetes, foi bodo geral aos pobres... Os "djubis", as bajudas e as mulheres grandes, riam-se que nem uns perdidos, mesmo não percebendo nada que os gajos e as gajas do filme diziam, em italiano, e muito menos as legendas… E o sacana do Lopes, trocista e racista, a mandar as suas bocas: "Ó Barrote Queimado, quem não sabe ler, vê os bonecos"…

O cinema de Bafatá, a grande obra de civilização que lá deixaste no leste.ó tuga… Mais a piscina, e a mesquita, e a catedral… Nunca mais viste um filme quando a guerra começou a sério, e os índios e os cobóis deixaram de ter tempo para limpar as armas…


16/3/2018

Rica vida de reformado, dirás tu, a gozar contigo próprio. Dias de inverno, a escassas dias da primavera que há-de vir (ou não). Foi um mês em que choveu sem parar. E vai continuar a chover , pelo menos até ao dia 22, segundo viste na Net. Afinal, do que seria de ti sem o raio da Net e os teus amigos virtuais do Facebook, tu que não tens um amigo do peito que te dê um ombro onde possas chorar. Que um homem não chora, muito menos os camaradas da Guiné.

Voltas a enfiar-te no porto de abrigo do teu centro comercial. O que dá para ver a meio da tarde, ó cinéfilo ? O filme "Post", de SpielBerg, com o Tom Hanks e a Merry Streep. É sobre quê ?, perguntas. O papel do jornalismo nas democracias modernas. O braço de ferro do "Whashington Post" e do poder político-militar na América que queria cortar o bico aos jornalistas.

Não é nada de empolgante, mas é importante pelo episódio (histórico) que recria: publicação, pelo "New York Times" e pelo "Washington Post", dois jornais de referência, dos papéis do Pentágono, um documento ultrassecreto feito por académicos sobre o envolvimento americano no Vietname, desde o presidente Eisenhower. Os governos americanos foram-se atolando no Vietname e as perspetivas eram claramente as de uma crescente escalada e quiçá desastre a nível militar.

O estudo encomendado pelo Robert McNamara estava guardado a sete chaves até que uma cópia foi parar aos jornais… Mas há lá chaves e cofres que guardem um segredo ?!... Só a malta na Guiné é que foi apanhada de surpresa pelo Strela!... E depois pela declaração unilateral da indepência em 24 de setembro de 1973. Mas o que é que os "pides" andavam a fazer nessa época ? E os craques da Força Aérea… não sabiam que já havia uma arma dessas, o Strela, a ser utilizada no Vietname ?!


Não te quiseram para fotocine, os cabrões da tropa, tu que já eras fotógrafo, amador, na vida civil!... Amador, não, profissional, com cartão passado pelo sindicato corporativo!... Fazias casamentos e batizados, tinhas um patrão, já velhote,  que não podia a ir a festas, que se enfrascava todo, cortava a cabeça aos noivos  e dava cabo dos rolos… Valia-lhe o genro, que acabou por tomar da casa... Mas, olha, safaste-te, a biscatagem deu-te para montar o teu negócio próprio, quando regressaste de vez, são e salvo, graças a Deus, benzia-se o teu velhote, amarrado a uma gaja vinte anos mais nova do que ele, e que o chupava até ao tutano… Pobre do velho que podia ter tido mais sorte na vida!...

Mais tarde, com as tuas economias todas, abriste uma papelaria e livraria com secção de fotografia, lá no teu bairro, em Rio de Mouro. Tal como na tropa, em matéria de fotografia, fazias tudo menos a revelação de diapositivos. (Uma merda, veio depois a fotografia digital, a revelação automática, o "self-service" os centros comerciais, o negócio foi por água a baixo!... Os livros vendiam-se pouco, a não ser o material escolar... Vendeste a baiuca… Que tristeza, recusas-te a passar por lá… Agora  deve ser uma loja de um chinês ou um templo evangélico. Valeu-te ao menos o dinheiro do trespasse, compraste títulos da dívida pública, que sempre te dão algum rendimento, no banco não vale a pena teres dinheiro, ainda tens que pagar por cima.)

−Ó bate-chapas, tira-me aqui um chapa, e faz-me um postal com dois corações que é para mandar para a miúda que vai fazer 21 anos e já pode casar quando eu voltar!...

− Ó bate-chapas, arranja-me umas fotos das putas do Bataclã que é para eu mandar para o meu irmão mais novo que vai às sortes, e que nunca viu uma gaja nua…

E alcunha ficou mesmo, para o resto da vida… Não levas a mal. Já faz parte da tua identidade... Afinal, foste um "Bate-chapas" toda a vida... Ainda hoje te fazem uma festa quando vais aos convívios anuais da companhia:

− Ó bate-chapas, bate-me aqui uma!...

Eras um gajo popularucho na companhia. Tinhas milhares e milhares de provas e negativos, no teu estaminé, improvisado, por detrás da caserna grande, onde ficava a malta do 1º e 2º pelotões… Ficou tudo reduzido a cinzas quando houve aquela pavoroso incêndio, que até parecia um ataque dos gajos do PAIGC ao arame farpado… Ninguém soube como aconteceu!... Foram muitos os palpites, mas tudo indica que tenha sido um raio numa daquelas frequentes trovoadas tropicais… Houve quem dissesse que foi sabotagem, gajos civis que trabalhavam no quartel e que eram turras, e que terão deitado o fogo, quando a malta do 1º e do 2º pelotões estavam no mato... 

Estavas já perto do final da comissão, felizmente tinhas depositado um mês antes a guita, o teu pé de meia, no BNU em Bissau… Ficaste de tanga, sem máquinas, sem rolos, sem laboratório, sem arquivo… Até a lista dos calotes ardeu!... Muitos camaradas perderam tudo, armas, roupa civil, o pouco patacão que tinham… Não havia bombeiros no mato!... E muito menos água e a mangueiras e bocas de incêndio!... Aquilo era no cu de Judas, no Freixo de Espada à Cinta lá no chão dos fulas!....

E hoje aqui estás, viúvo, reformado, fechado numa sala de cinema de um centro comercial, comendo pipocas para aliviar a angústia do fim de tarde… Antes de ires para casa, e aqueceres a sopa requentada que a tua empregada cabo-verdiana faz para toda a semana… De tempos a tempos, meia dúzia de vezes se tanto por ano,  falas pelo Skype com a tua filha que está na Austrália, casada com um grego... E mal conheces os teus netos que não falam português. Porra, tens uma filha com 50 anos!... Foste pai aos 20, irresponsável.


E lá vais escrevinhando o teu diário, falando em voz alta com o teu "alter ego", o mesmo é dizer, falando para as paredes do teu T2 em Rio de Mouro, agora grande demais para um homem só.

Podias ter sido um grande fotocine, um grande fotógrafo, um grande cineasta, quem sabe ?!...
Foste apenas uma "Bate-chapas"… Consola-te: levaste um pouco do calor da amizade e da camaradagem da Guiné a muitos lares portugueses, mães e pais, esposas, namoradas, madrinhas de guerra…, arrancaste muitos sorrisos a "djubis", bajudas de fama firme e mulheres grandes de teta caída… E até a homens grandes, régulos, milícias, guerreiros que habitualmente nunca sorriam... Foste à guerra, deste e levaste… Tiveste mulheres que gostaram de ti. 

E hoje ? Só tens amigas do Facebook, tristes e empedernidos corações solitários… E olhas-te para o espelho e vês um gajo velho, como ó caraças!,… e pegas no teu bilhete de identidade, que é vitalício, e a foto que lá está não condiz com a puta da imagem que vês no espelho da casa de banho … O São Pedro não te vai deixar entar no Paraíso, quando chegar a tua vez… Mal por mal, vais ficando por aqui, esquecido (, e oxalá que ainda por uns bons aninhos!), no Limbo da Terra, depois de teres conhecido o Inferno da Guiné. 

 Não adianta reclamar, ó “Bate-chapas”, ninguém te vai devolver o dinheiro... Nâo há livro de reclamações no Céu, no Paraíso ou no Olimpo dos deuses e dos heróis, como lhe queiras chamar: tu é que compraste o bilhete errado para a sessão de cinema errada… Trocaste o filme… da tua vida, ó "Bate-chapas"! 


Luís Graça (**)
_______

Nota do editor:

(*) Trata-se de uma alcunha, o que era vulgar na tropa e na guerra, sobretudo entre os praças... Palavra que vem do árabe al-kunia, sobrenome... Significado: epíteto, geralmente fundado nalguma particularidade física, moral ou comportamental  do indivíduo ao qual ele se atribui. Neste caso, o indivíduo em questão era um fotógrafo amadora que, nas horas vagas, fazia retratos dos seus camaradas, tendo um pequeno laboratório de fotografia, a preto e branco, onde revelava os negativos. Frequentemente usava a expressão"Vamos bater uma chapa"... Estes excertos fazem parte de um texto manuscrito que ele nos facultou, para apreciação crítica, e que pode vir a dar origem a possível livro de memórias, caso se arranje um editor.

Guiné 61/74 - P19207: Notas de leitura (1122): “Lineages of State Fragility, Rural Civil Society in Guinea-Bissau”, por Joshua B. Forrest; Ohio University Press, 2003 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Setembro de 2016:

Queridos amigos,
Parece-me de grande interesse detalhar as teses que este investigador norte-americano avança quanto à capacidade das etnias fixadas na Guiné-Bissau de manterem um elevado grau de autonomia em todas as fases do pré-colonial, colonial e pós-colonial. É nesse contexto que o autor encontra as chaves explicativas para a fragilidade do Estado, mormente no período colonial e pós-colonial. Ele debruça-se sobre os equívocos que a proposta de unidade e luta, da autoria de Amílcar Cabral, comportam. Amílcar Cabral antevia que todo o processo da luta estava a adensar uma nova base cultural que se plasmaria numa entidade nacional e que o PAIGC iria modelar o Estado. Pelo caminho, os dirigentes do PAIGC pretendiam passar à margem sobre um dado indesmentível: a hostilidade dos nativos guineenses aos representantes da administração colonial, os cabo-verdianos. Tudo correra bem na dimensão da luta, mas nos prolegómenos da unidade os rancores do passado vieram ao de cima.

Um abraço do
Mário

Guiné-Bissau:
O Estado é frágil, as sociedades rurais são a alma da nação (2)

Beja Santos

Referiu-se no número anterior que o título da obra “Lineages of State Fragility, Rural Civil Society in Guinea-Bissau”, por Joshua B. Forrest, Ohio University Press, 2003, parece desconcertante e no entanto trata-se de uma arguta e audaciosa investigação de que, incompreensivelmente, não se vê qualquer alusão nos autores de referência. Tratando-se, em minha modestíssima opinião, de um dos mais importantes trabalhos de tese sobre a Guiné-Bissau, só vejo utilidade em repartir a densa e brilhante argumentação deste investigador norte-americano em vários textos.

A tese fundamental de Joshua B. Forrest é de que o território onde hoje situa a República da Guiné-Bissau sempre faz parte de Estados fracos, é uma situação que remonta ao período pré-colonial, tendo daí resultado um modo de desenvolvimento das sociedades rurais que descobrem as suas redes comerciais, estabelecem redes de alianças entre etnias e mesmo em períodos de grande intimidação, em termos coloniais e pós-coloniais, mantêm a sua identidade e autonomia. Esta tese é forçosamente controversa. Basta pensar nas propostas de Amílcar Cabral no tocante à nação guineense e à unidade Guiné-Cabo Verde. O líder do PAIGC declarou e escreveu que a cultura desenvolvida pela luta armada estava a dar uma fisionomia ao novo Estado, as etnias iriam todas confluir numa nação que se pautaria por uma democracia revolucionária. O Congresso de Cassacá, em Fevereiro de 1964, teria marcado a condenação das práticas mágicas negro-africanas e a punição severa de chefes da guerrilha torcionários e crentes nessas práticas mágicas. O PAIGC era apresentado como uma unidade entre cabo-verdianos, luso-africanos e africanos. Sabe-se que o golpe de Estado de 14 de Novembro de 1980 liquidou esse sonho. Ficou o verso do hino nacional, escrito por Amílcar Cabral “nação forjada na luta” para significar a importância maior de que a nação deve preceder o nascimento do Estado, este teria de ser moldado pelo partido em convergência com o mundo rural guineense.

Logo no prefácio Joshua Forrest sublinha a natureza do colonialismo português na Guiné: durante séculos, os portugueses selecionavam bases de comércio, de preferência na orla marítima, estabeleciam relações com os chefes locais para acordar os negócios da escravatura, pagavam taxas por tal fixação, tinham que cumular os chefes com presentes; o fim do tráfico negreiro implicou outro tipo de intervenção, a exploração agrícola, mas mantiveram-se os múltiplos conflitos com os chefes locais; a pacificação proporcionada pelas campanhas de Teixeira Pinto abriram espaço para acordos de acordo com a lógica “dividir para reinar”; a Guiné não conheceu industrialização, os negócios, a partir da II Guerra Mundial, significavam arroz, amendoim, madeiras exóticas, curtumes e pouco mais. Criou-se uma administração colonial que recorria ao trabalho forçado e procurava cobrar impostos. Mas as infraestruturas só se realizavam com dinheiro metropolitano. Território incómodo pelo clima adverso, como a presença de população branca mínima, em que o essencial da administração era ocupado por cabo-verdianos, a potência colonial publicitava na metrópole o fascinante do mosaico étnico, os guineenses atraíam o público que frequentava as exposições coloniais e mesmo a Exposição do Mundo Português. A potência colonial tinha uma presença precária e fugia aos conflitos com as sociedades rurais, Bissau era o centro nervoso dos negócios, dos símbolos da civilização, das instituições de educação e saúde e mesmo da cultura.

Na primeira parte do seu trabalho, o autor elenca as sociedades pré-coloniais, designadamente os Balantas, Papéis, Manjacos, Felupes e Bijagós. Quando os portugueses arribaram à Costa da Guiné o império do Gabu decompunha-se e os Mandingas, então etnia profundamente guerreira, chegada ao território no século XIII, tinha um papel primordial. O autor destaca um território povoado por animistas (Felupe, Beafada, Brame-Papel, Balanta, Cobiana, Banhum, Baiote, Nalu, Mancanha e Bijagó). Os Mandingas terão ocupado parte do Gabu e estabeleceram uma federação de Estados satélites. Datam desta fase relações entre etnias e a prática de trocas comerciais entre as etnias de interior com as da costa. Tem o maior interesse a análise que o autor faz à evolução de todas estas etnias entrelaçando-as inclusivamente com a economia do Gabu.

De seguida, Forrest dá-nos um panorama das relações luso-africanas entre o século XV e o século XIX. Destaca a natureza contratual em que os mercadores e a administração colonial ficavam dos chefes locais. O quadro de exceção era dado pelos lançados, que contestavam os negócios da coroa e se lançavam por contra própria em negócios com os africanos. É-nos dado um quadro do funcionamento da Guiné das praças e presídios e da crescente importância do crioulo, a língua veicular, salientado o papel dos grumetes, a aceitação e rejeição dos missionários. O papel precário da administração e do poder político colonial é-nos dado por Ziguinchor e Bolama. Perto de 1730, as populações do rio Casamansa pretenderam repudiar na só os comerciantes portugueses como todos os outros, foi necessário uma conjugação de forças que levaram a uma maior influência dos franceses. Os ingleses pretenderam Bolama, fizeram negócios com os chefes locais, maltrataram os representantes portugueses, a situação atenuou-se porque Honório Pereira Barreto interveio e reestabeleceu uma nova aliança com as chefias locais, e mais tarde a questão de Bolama foi dirimida pelo presidente Ulisses Grant, dos EUA, que deu razão aos argumentos portugueses. Mas Forrest escalpeliza a situação das outras praças e deixa claro que havia uma resistência ativa à volta das praças e dos presídios.

O período de 1840 a 1910 é ditado pela chegada de um novo poder local, os Fulas, que vão ocupar uma área vastíssima do antigo Kaabú, desfeitearam os Mandingas, submetendo-os, e obrigaram as sociedades rurais a novas migrações, por exemplo os Beafadas ocuparam Tombali e Quínara, o que implicou que outras etnias se aproximassem e fixassem no mar ou junto do mar. No final do século XIX, a potência colonial estabelecerá acordos com os Fulas, estes tinham feito alianças com os Beafadas e os Mandingas, o que contribuiu a prazo para o desenvolvimento do islamismo do território guineense. Esta a primeira parte do trabalho de Joshua Forrest onde se relevam as identidades étnico-políticas e a sua origem, a fragilidade das relações luso-guineenses até ao final do século XIX e o modo como os reinos africanos reagiram quando foram confrontados com a crescente presença colonial portuguesa. Para Forrest, este é o principal ingrediente que leva a que a Guiné-Bissau possua um cimento nacional assente nas sociedades rurais a despeito de um poder central ausente. O próprio PAIGC que montara uma estrutura orgânica para se fazer representar no interior do território como um partido-Estado, primou pela sua ausência, cedo se desmotivou e de um modo geral o mundo rural recebeu-o com indiferença, mesmo com o papel aterrorizante da segurança do Estado.

No próximo texto, abordam-se a resistência das etnias à progressiva presença portuguesa depois da conferência de Berlim, o que aconteceu na campanha de pacificação de Teixeira Pinto e o equívoco que se instituiu na administração colonial de que controlava o território, isto quando era patente que as sociedades rurais mantiveram a sua organização à margem da presença portuguesa.

(Continua)
____________

Notas do editor

Poste anterior de 12 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19187: Notas de leitura (1120): “Lineages of State Fragility, Rural Civil Society in Guinea-Bissau”, por Joshua B. Forrest; Ohio University Press, 2003 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 16 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19200: Notas de leitura (1121): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (60) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P19206: Parabéns a você (1528): Mário Migueis da Silva, ex-Fur Mil Rec Inf (Guiné, 1970/72)

____________

Nota do editor

Último poste da série de 18 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19204: Parabéns a você (1527): António Mateus, ex-1.º Cabo At Inf da CCAÇ 12 (Guiné, 1969/71)

domingo, 18 de novembro de 2018

Guiné 61/74 - P19205: Blogpoesia (595): "Fardas e batinas...", "Romagem a Lisboa" e "Olho daqui Lisboa...", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) estes belíssimos poemas, da sua autoria, enviados entre outros, durante a semana, ao nosso blogue, que publicamos com prazer:


Fardas e batinas...

Fardas e batinas,
Vestes chiques,
Fraques de cerimónia,
Lunetas e óculos escuros,
Lantejoulas,
descem vaidosos as calçadas de Lisboa,
Chiado e Madragoa.
Espiolham as vitrines,
Mercam cravos e flores,
Tragam bicas e fumegam cigarros e cachimbos, pelos cafés,
Bons vivants,
Uns snobs.
E, na esquina,
empertigado,
Um homenzarrão,
Corda ao ombro,
É só chamá-lo,
Um bruta-montes,
Carrega às costas
O que for preciso,
Por uma migalha.
Pelas valetas dos passeios,
Escorre a chuva, leva tudo adiante,
Até ao Tejo.
E, na Praça nobre, dos ministérios,
Um Arco triunfa aos tempos,
Canta glórias e desditas,
Feitos idos.
Umas escadas leves, em mármore eterno,
Desce ao rio e lava os pés,
Olhando além.
Incansáveis, os eléctricos amarelados,
Trilham as linhas de aço,
Brilhando ao sol.
Fervilham de gente que não quer ficar.
É asim Lisboa, enquanto Deus quiser...

Ouvindo Carlos Paredes
Berlim, 14 de Novembro de 2018
7h15m
Jlmg

********************

Romagem a Lisboa

Afastaram-me de Lisboa as forças cegas do destino.
Vagueio perdido neste mundo.
Minhas raízes estão bem vivas.
Meus pés sangram de saudade.
Só de longe a longe lá regresso.
Nem chego a aquecer-me nos seus lençóis.
Tomo as malas e me ausento angustiado.
Foi assim traçado meu destino.
Desvarios de quem comanda nosso barco,
Atirando para o infortúnio da emigração,
Negando-lhe o direito de permanecer no seu torrão natal.
Só os desterrados sabem quanto dói
E a só temos uma vida para viver...

Ouvindo Carlos Paredes
Berlim, 17 de Novembro de 2018
8h7m
JLMG

********************

Olho daqui Lisboa...

Aqui de longe, olho para Lisboa e sinto saudades.
Daquele amanhecer suave ao sol nascente glorioso vindo do além.
Daquele manto extenso de casario em ondas largas de colinas.
Aquele formigar de gente pacata pelas ruas e avenidas descendentes e sinuosas,
de autocarro ou eléctrico, a caminho do trabalho.
Daquele espelho azul do magno rio, em constante correria que, prazenteiro, nos leva ao mar.
A incessante procissão de barcos-cacilheiros abraçando as duas margens.
As duas pontes longas levando e trazendo, num instante, gente nova.
Os braços divinos de Cristo-Rei a abençoar Lisboa e Almada.
Aquelas noitadas longas no mistério cativante das guitarradas.

Ouvindo Carlos Paredes
Berlim, 16 de Novembro de 2018
8h5m
JLMG
____________

Nota do editor

Último poste da série de 11 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19184: Blogpoesia (594): "Vasos de barro", "As notas da guitarra" e "Com granizo e trovoadas...", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

Guiné 61/74 - P19204: Parabéns a você (1527): António Mateus, ex-1.º Cabo At Inf da CCAÇ 12 (Guiné, 1969/71)

____________

Nota do editor

Último poste da série de 16 de Novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19198: Parabéns a você (1526): José António Viegas, ex-Fur Mil Art do Pel Caç Nat 54 (Guiné, 1966/68) e Ten-Coronel Art Ref José Francisco Robalo Borrego, ex-Fur Art do 9.º Pel Art (Guiné, 1970/72)