1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Fevereiro de 2021:
Queridos amigos,
Há para aqui uma viagem solitária entre parques e edifícios das instituições europeias, avultam memórias daquele completamente inesperado primeiro encontro que mudou a vida de dois cinquentões bem maduros, ela não se cansa de tocar a tecla da saudade e desfia o rol dos seus trabalhos, faz o inventário de papéis que ele lhe manda com pendular regularidade. Ainda é segredo, Annette vai propor nas férias da Páscoa um passeio pela costa belga, pensou mesmo numa estadia numa bela ilha holandesa, tem igualmente um plano B, uns dias em Hasselt, a capital do Limburgo, Paulo do seu lado fala entusiasmado em duas grandes exposições que ocorrem em Bruxelas (uma retrospectiva de Chagall) e gostava de ir a La Louvière na província de Hainaut ver uma mostra de cartazes de propaganda soviética do tempo de Estaline, para Annette há tempo para tudo, aguarda as datas disponíveis de Paulo, em princípio é período coincidente com a ausência de trabalho de intérprete. Já lhe passou pela cabeça, num dia de profunda melancolia, de questionar Paulo sobre o que ele pensaria da ideia de ela criar uma empresa de interpretação em Portugal, depois retraiu-se, o filho, Jean Luc, continua errático em empregos da treta ou biscates aleatórios, parece que se habituou à ideia de viver da ajuda dos pais, para Annette, que saiu cedo de casa dos pais adotivos e conquistou a sua independência, faz-lhe muita confusão os problemas desta geração marcada por tantas desigualdades sociais, Jean Luc é um mileurista, um verdadeiro desassossego para uma mãe que não se importaria de ir viver lá nos confins do Ocidente Europeu com o seu amado.
Um abraço do
Mário
Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (40): A funda que arremessa para o fundo da memória
Mário Beja Santos
Très adoré Paulo, capricho dos deuses, venho de uma reunião de uma sala ao lado daquela em que nos conhecemos, na Rue Froissart, uma tarde com algum sol, pelas quatro horas o presidente deu por encerrada a sessão, era a receção de uma delegação do Vietname, falou-se imenso de cooperação com base em acordos que estão a ser feitos ou confirmados naquela região do sudeste asiático, pelos resultados obtidos os vietnamitas saíram felizes e eu também, habitualmente abandono estas reuniões ao escurecer do dia. E deu-me prazer refazer passeios e sobretudo veio-me à memória o nosso primeiro trajeto em comum quando caminhámos para a estação de metro de Schumann. Ontem arrumei fotografias das nossas curtas férias em Lier e encontrei dois postais de um passeio que demos na Campina, em Averbode, espero que te recordes, estivemos ali de visita, está no limite do Brabante e das províncias de Antuérpia e Limburgo. Tem tudo ar muito novo por causa do incêndio de 1942, é um barroco faustoso, depois fomos para a praça beber cerveja local e naquele dia perguntei-te pela primeira vez: “Paulo, seguramente já fizeste um balanço destes dois anos da Guiné que estamos a arrumar por força do teu romance. Que significado atribuis, passadas estas décadas, ao que viveste, como se incorporou na tua vida uma comissão militar a que não faltou brutalidade, horror, mas também uma fraternidade sem limites?”. Demoraste a responder, ias rodando, ensimesmado, a caneca de cerveja e depois olhaste longamente os telhados de lousa da igreja de Averbode. Era percetível a tua emoção, um quase pirralho, moço inexperiente, lançado numa povoação nativa, com deveres e obrigações implacáveis. E falaste na educação recebida de três mulheres, a quem tu continuas a chamar as tuas madres fundadoras, nos valores religiosos, na ligação ao Outro, tratando-o com dignidade, e foste acumulando situações e casos que eu agora conheço bem por lidar com os papéis, melhorar a segurança dos aquartelamentos, introduzir-lhes algum conforto, apoiar a população com médico, abastecimento regular, professor para as crianças, cumprir as missões de vigilância em Mato de Cão, procurar conhecer os problemas dos militares que de ti dependiam… E foste encaminhando este discurso para a formação de um adulto que transportara para um pequeno país da Europa, a sua pátria, uma personalidade temperada por um tal tipo de experiência, feita de sobressaltos, de violências, de procurar mitigar a miséria dos outros, de viver acantonado num pequeno território cercado de terra de ninguém, sabendo muito bem que expressões como “zonas libertadas” não passavam de litanias da propaganda mas que acarretavam também o equívoco de serem territórios onde não se podia permanecer com qualquer tipo de segurança. E resumias, dizendo que trouxeras uma grande vontade de viver em paz, ter doçuras familiares e uma profissão onde te realizasses, como inesperadamente aconteceu, supunhas vir a ser um professor de História da Arte e por um acaso do destino navegavas agora num oceano chamado mercado do consumo, fazendo alguma batalha pelos direitos desses cidadãos cercados de uma crescente profusão de bens e serviços.
Meu adorado amor, viera até à Rue Froissart de transporte público, entrei no Parque Leopoldo, vi crianças ainda a brincar, parei junto dos choupos, senti profundamente a tua falta, recordei aquelas nossas conversas das tuas primeiras vindas a Bruxelas, aquela gare do Luxemburgo que tu conheceste tão desprezada e que hoje é um pequeno ícone do Bairro Europeu, os passeios que começaste a dar quando ias visitar nas ruas laterais da Rue de la Loi diferentes organizações relacionadas com o teu trabalho, e decidi caminhar como se tu estivesses a meu lado, medindo a evolução que teve esta área de Bruxelas desde a tua primeira viagem em 1977 até aos dias de hoje, em breve teremos um novo alargamento da União Europeia, o Bairro Europeu foi crescendo e tudo à volta se modificou. Lembro o que me disseste quando aqui passaste a vir com mais regularidade, a partir de 1986, a importância que na época ainda tinham diferentes associações europeias de consumidores, como eram poucas e de certo modo insignificantes as organizações de saúde, como começaste a pressentir que o futuro da política dos consumidores precisava de uma parceria com as políticas de saúde e do desenvolvimento sustentável, mas tu já antevias os fanatismos paroquiais que iriam obstaculizar a operacionalidade na conjugação de interesses comuns, estavas profundamente cético sobre o futuro da cidadania no consumo, já nessa altura previas que as associações iriam ficar reduzidas a um papel meramente colaborante, perdida a motivação de causas de interesse público, disseste isto mesmo no jantar na Rua do Eclipse, na companhia do Gilles Jacquemain, não me esqueci.
Paulo mon amour, foi um passeio cheio das tuas memórias, lá fui palmilhando até à Rua do Eclipse e tenho algumas notícias a dar-te quanto ao início do segundo ano da tua comissão na Guiné. Prosseguem obras no quartel, apareceu em Missirá um alferes sapador que por sua vontade tinha armadilhado quase tudo à volta, encontrei um aerograma teu em que escreves eufórico que estão a chegar algumas toneladas de materiais vindas de um batalhão de engenharia. Começaram as pequenas flagelações em Missirá, vão-se repetir de agosto a outubro, tu escreves que não matam mas moem, são um surdo confronto, grupos de guerrilha que se aproximam ao fim da tarde de Missirá e Finete e descarregam os morteiros e desaparecem. No meio de tanta azáfama, quando tu mais necessitavas de ter os teus efetivos completos, os Comandos de Bambadinca vão-te subtraindo secções de milícia, no pior momento, tens muitos homens doentes, tudo fruto da época das chuvas, que atrai a malária. E vejo também que vos mandaram numa operação à região do Xime, é para mim uma completa surpresa o nome que davam àquelas operações, Fado Hilário, Pato Rufia, o que retive é que os guias se desorientaram, havia muito nevoeiro e tu escreves que os helicópteros não puderam largar os paraquedistas, a operação será repetida no início de setembro, entretanto há nova flagelação em Missirá, os mesmos disparos de morteiro, e tocou-me profundamente o resumo que me mandaste da conversa que tiveste com Benjamim Lopes da Costa, aquele teu colaborador guineense que perdera a cabeça no decurso de uma emboscada, tu viras um vulto a avançar para ti e desfechaste com a arma, o Benjamim perdeu a cabeça e num desvairo chamou-te branco assassino, mágoa profunda, que sinto que ainda não digeriste completamente. O que interessa é que numa noite mais desocupada convocaste para o teu abrigo e lhe propuseste que passassem uma esponja sobre o assunto, sugerias o perdão mútuo àquela insinuação de racismo, o Benjamim prontamente te estendeu a mão e te lembrou o amor de Deus.
Estou agora a alinhavar os apontamentos que chegaram no fim da semana passada. Tu referes a chegada de um novo segundo comandante a Bambadinca, alguém que se chama Ângelo da Cunha Ribeiro e que lançará o crisma de Tigre de Missirá, estou agora a escrever os apontamentos da segunda edição da tal operação Pato Rufia, mas só penso na Páscoa e na tua companhia, mesmo com o lenitivo do correio que recebo diariamente, os teus belos telefonemas, o aliciante dos teus projetos, nada, conquistador do meu coração, absolutamente nada substitui a força dos teus braços, o ímpeto dos teus beijos, o calor do teu corpo. E suspendo aqui os termos de uma paixão que bendigo a toda a hora, arrimo inesperado e que estou segura me acompanhará pelo tempo que ainda tenho de vida. Despeço-me agora, tenho coisas para arrumar, saio pelas seis da manhã em direção ao Grã Ducado do Luxemburgo, mais um dia enfadonho com os peritos da Estatística divertidos e cheios de si e nós na cabine em desespero a soletrar aqueles números… Bien à toi, Annette.
Abadia de Averbode
Igreja da Abadia de Averbode
Parque Leopoldo, Bruxelas
Parque Leopoldo, Bruxelas
Gare do Luxemburgo antes da criação do bairro Leopoldo
Gare do Luxemburgo na atualidade
Edifício do Parlamento Europeu, Bruxelas
As instituições europeias e a Rue de la Loi, Bruxelas
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Nota do editor
Último poste da série de 12 de fevereiro de 2021 >
Guiné 61/74 - P21890: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (39): A funda que arremessa para o fundo da memória