Foto nº 2 > Um jato F-84 Thunderjet, de fabrico norte-americano, sendo abastecido de combustível na Base Aérea 9, em Luanda. Esta aeronave, em concreto, pode ter atuado na operação ao Quiuanda.
1. Mensagem de Fernando de Sousa Ribeiro [,ex-alf mil at inf, CCAÇ 3535 / BCAÇ 3880 ( Zemba e Ponte do Zádi, Angola, 1972/74); membro da Tabanca Grande desde 11 de novembro de 2018, com o nº 780; tem cerca de 2 dezenas de referências no nosso blogue: é engenheiro electrotécnico reformado; vive no Porto; é autor do livro, inédito, em formato digital "Dignidade e Ignomínia: Episódios do Meu Serviço Militar", de que se publicaram seis partes ou postes no nosso blogue]
Assunto - Capítulo extra do meu livro
Caro Luis,
Quando há três meses vi pela primeira vez o filme que está ao cimo do blog da CCav 2692, do BCav 2909 (http://ccav2692susaeles.blogspot.com/), senti um arrepio na coluna, como se esta fosse percorrida por uma corrente elétrica. «Eu estou ali!», pensei, espantado. Não estava, mas vivi uma situação que foi em tudo igual à que está documentada naquele filme, tal e qual.
O filme não tem nada de especial, de modo nenhum, apenas mostra uns helicópteros em Zemba e alguns militares a embarcarem num deles, enquanto outros militares observam, cheios de curiosidade. Se algum interesse o filme possui, é o próprio facto de existir, dado que há pouquíssimos filmes sobre a guerra colonial. Mas este filme não mostra tropas em ação nem nada, não tem interesse absolutamente nenhum. Pessoalmente, sim, o filme interessa-me imenso, pois dois anos mais tarde eu fui protagonista de uma cena parecidíssima com a documentada no filme.
Eu tinha começado um esboço de capítulo para o meu livro virtual, sobre uma operação helitransportada que comandei em Zemba, mas não consegui conclui-lo, Não consegui concluir o capítulo, mas deixei ficar o seu rascunho no computador. Após visualizar o filme, decidi escrever o resto que faltava ao capítulo, completando-o e complementando-o. Acho que agora posso dar o capítulo por concluido, finalmente, e remeter-to. Faz dele o que quiseres.
Um abraço e votos de feliz Páscoa (se o coronavírus deixar)
Fernando de Sousa Ribeiro
Quando me comunicaram que eu iria comandar uma operação militar helitransportada, não entrei em pânico, mas pouco faltou. «Como é que se comanda uma operação helitransportada?», pensei eu, sobressaltado. «Nunca me ensinaram!»
Passei mentalmente em revista o Curso de Oficiais Milicianos que frequentei em Mafra e concluí que ninguém, em momento algum, me ensinou fosse o que fosse que estivesse relacionado com operações deste tipo. «Porque não entregam o comando da operação a alguém que tenha um mínimo de conhecimentos sobre o assunto?», interroguei-me ainda, mas logo me apercebi de que em todo o batalhão não havia um só capitão ou alferes nessa situação. Todos eles pareciam saber tanto como eu, ou seja, nada. Quis o acaso que fosse a mim, e não a outro, que calhasse a responsabilidade do comando daquela operação.
Pouco a pouco, fui-me tranquilizando a mim mesmo, concluindo que tudo iria correr bem, pois a sorte que sempre me acompanhara na guerra, o instinto de sobrevivência e a intuição me iriam valer nessa operação, como já me tinham valido em operações anteriores. Quaisquer que fossem as dificuldades que me viessem a surgir, eu iria conseguir resolvê-las e tudo iria correr da melhor maneira possível. Sempre assim tinha sido e com certeza assim voltaria a ser mais uma vez. Quando embarquei no helicóptero que me iria largar nas proximidades do objetivo, já eu me sentia relativamente confiante e decidido a enfrentar as dificuldades que me viessem a aparecer.
A operação foi muito mais fácil do que eu tinha imaginado. Foi, incomparavelmente, a menos cansativa de todas as operações militares que fiz, e também foi, sem qualquer sombra de dúvida, uma das menos arriscadas. Esta operação teve como objetivo uma base da FNLA chamada Quiuanda, situada muitos quilómetros a norte de Cambamba, e nela participaram dois grupos de combate da minha companhia: o 2.º grupo, que era o meu próprio, e o 4.º grupo, que era comandado pelo alferes miliciano Peixoto.
A operação decorreu entre 20 de abril (Sexta-Feira Santa) e 22 de abril (Domingo de Páscoa) de 1973. A partida para a operação foi em tudo idêntica à que está documentada no vídeo existente no endereço de internet que a seguir se indica e que recomendo seja visto em ecrã inteiro, dada a pequenez da imagem publicada. Este vídeo foi feito precisamente em Zemba, mas no ano 1971, e mostra a partida para uma operação helitransportada feita por militares pertencentes ao batalhão que nessa ocasião se encontrava sediado lá, o Batalhão de Cavalaria 2909.
As cenas que nós protagonizamos em 1973 foram iguaizinhas às filmadas em 1971, tal e qual: o mesmo quartel do mato, o mesmo alvoroço dos militares do batalhão perante a presença inusitada de helicópteros na pista, as mesmas serras envolventes, as mesmas florestas, as mesmas nuvens baixas no início da manhã, a mesma dissipação da névoa com o avançar do dia, o mesmo embarque de tropas, os mesmos volteios dos helicópteros no ar, enfim, tudo se passou de forma rigorosamente igual ao que se vê no filme. Só os protagonistas foram diferentes. De facto, foram muito diferentes; no filme só se veem europeus, enquanto o meu batalhão era multirracial. O filme está no endereço seguinte:
Fomos levados "ao colo" por helicópteros Puma [, Foto nº 1,] até às proximidades do objetivo. Estes helicópteros eram grandes e muito fechados. Embarquei no primeiro que levantou de Zemba e à chegada fui um dos primeiros militares a saltar do aparelho que ficou a pairar a cerca de metro e meio de altura do chão, com a intenção de dirigir a colocação no terreno dos meus homens.
À medida que eles iam saltando, eu encaminhava-os de maneira a formarem uma ampla circunferência em volta do local do desembarque, deitados no solo e com as armas apontadas para fora. Ainda hoje não sei se era assim que eu devia proceder; fiz o que me ocorreu naquele momento. Ao mesmo tempo que saltávamos dos helicópteros, diversas aeronaves da Força Aérea faziam fogo à nossa volta, provocando uma barulheira infernal.
Fui tomado de uma enorme euforia, que só com muito custo consegui refrear, porque me senti invencível, rodeado que estava por um tão grande poder de fogo. Eu estava no meio de um inferno, mas o inferno era "bom", porque me protegia. Confesso que tive muita dificuldade em conseguir dominar-me e tomar consciência da real situação em que estava.
As aeronaves que evolucionavam à nossa volta eram jatos F-84 [, Foto nº 2], um avião a hélice DO-27 [Foto nº 3] e um helicanhão, o qual consistia num helicóptero Alouette III possuindo um pequeno canhão MG-151 montado a bordo [Foto nº 4].
Os rebentamentos dos rockets lançados pelos aviões e as rajadas do helicanhão faziam um barulho ensurdecedor. Este barulho durou até ao momento em que o último dos meus homens saltou para o chão. Então, todas as aeronaves se calaram e partiram de regresso a Luanda, deixando-nos sozinhos no terreno. Ordenei logo ao meu pessoal que se levantasse e se preparasse para partir. Dirigimo-nos imediatamente para a base que deveríamos destruir.
Apesar de ter uma certa importância estratégica, a base de Quiuanda era pequena e não justificava um tão grande poder de fogo por parte da Força Aérea. Os poucos guerrilheiros que deviam guarnecer a base puseram-se em fuga antes de entrarmos nela. Encontramos a base vazia de gente.
Os guerrilheiros deviam ter sido apanhados de surpresa pelo ataque, pois deixaram pequenas fogueiras acesas com latas cheias de água em cima, em jeito de cafeteiras, provavelmente para prepararem o pequeno-almoço, em Angola chamado mata-bicho. Os guerrilheiros e a população que os apoiava costumavam reaproveitar as latas vazias e as colheres de plástico das rações de combate que a tropa portuguesa abandonava na mata durante as operações.
Foto nº 5 |
Depois de termos destruído a base, saímos dela por um trilho, a fim de explorarmos a região envolvente. Mais adiante, na beira do caminho, encontramos uma mulher morta, sem metade da cara. Era evidente que ela tinha sido abatida pelo apontador do helicanhão. As balas disparadas pela arma montada a bordo desta aeronave costumavam ser de ponta explosiva. Uma bala deve ter atingido a mulher na cara, abrindo-lhe um horrendo buraco de ossos estilhaçados e sangue.
O soldado Domingos Cangúia, que era natural do Cuanza Norte e era íntegro e puro como poucos, chorou convulsivamente a morte gratuita daquela desgraçada mulher, a quem até a vida foi tirada. Dizia o generoso soldado, entre soluços:
— Que mal é que esta mulher fez a quem a matou? Porque foi que ele a matou? Certamente ela tinha filhos pequenos. O que vai ser agora dos filhos?
E chorava inconsolavelmente. Há cenas que ficam gravadas na nossa memória como ferro em brasa. Para mim, esta foi uma delas.
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Nota do editor:
Último poste da série > 15 de outubro de 019 > Guiné 61/74 - P20241: Dignidade e Ignomínia (Episódios do Meu Serviço Militar) (Fernando de Sousa Ribeiro, CCAÇ 3535, Angola, 1972/74) - Parte VI: Não aos crimes de guerra: os bravos não são cruéis e os cruéis não são bravos