sábado, 18 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22818: Os nossos seres, saberes e lazeres (482): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (29): As surpresas que o Museu de Lisboa nos reserva (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Novembro de 2021:

Queridos amigos,
Aqui se conclui a viagem pelo piso térreo do Museu da Cidade, foram bem felizes as benfeitorias produzidas, logo entra a Pré-História e a Lisboa Quinhentista e o novo semblante que tem a cozinha e a Lisboa dos ofícios. Penso que há tudo a ganhar em uma visita-guiada, ainda não há um documento completo sobre o Museu de Lisboa, a despeito das duas boas brochuras entregues na receção sobre uma súmula histórica do que nos reserva o Museu, uma, e sobre a maquete de Lisboa anterior ao Terramoto de 1755, outra. A museografia é cativante, formula-se com mais discernimento a comunicação dos objetos com a história da cidade e quem como eu tenho a felicidade de o visitar desde a primeira hora posso dizer que se tem vindo a aprimorar a partir do sonho idealizado por uma eminente olisipógrafa e investigadora que felizmente não está esquecida, a dinâmica Irisalva Moita, a quem os museus da cidade ficaram com uma dívida impagável. Mas ainda há muito mais para ver, haverá circunstância para continuarmos este passeio por esta Lisboa de outras eras.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (29):
As surpresas que o Museu de Lisboa nos reserva


Mário Beja Santos

Sobre o histórico do Palácio Pimenta, quem por aqui viveu e inclusivamente deixou memórias nas Artes Plásticas (caso do pintor Manuel Amado que nos legou obras soberbas das suas recordações de infância) já se fez menção no texto anterior, como igualmente se exaltou o papel determinante de Irisalva Moita, que logo com responsabilidades ligadas à conservação dos museus municipais elaborou um programa do então chamado Museu Municipal de Lisboa, concebeu uma exposição sobre a História de Lisboa, no fundo já estava a esboçar o programa museológico que veio dar lugar ao museu que abriu as suas portas ao público em 1979. O museu irá conheceu um programa de alargamento concluído em 1985, quando o museu ganhou três novos núcleos expositivos. O denominado Pavilhão Preto do Museu da Cidade foi inaugurado em 1994 com uma exposição intitulada Lisboa em Movimento, 1850-1920, organizada no contexto da programação de Lisboa Capital da Cultura 1994. Irisalva Moita envolveu-se igualmente na reformulação dos restantes museus municipais de então, o Museu Antoniano e o Museu Rafael Bordalo Pinheiro. Num livro de consagração que recentemente o Museu de Lisboa dedicou a Irisalva Moita, vê-se como esta arqueóloga, olisipógrafa e museóloga utilizava as exposições temporárias como meio para complementar a exposição de longa duração em qualquer dos museus municipais. No caso do Museu da Cidade, terão sido as exposições Lisboa e o Marquês de Pombal (1982) e Lisboa Quinhentista (1983), os dois pontos altos da sua atividade.
Como o leitor recordará, estamos a percorrer o piso térreo do Palácio Pimenta, já andámos bastante da Pré-História até à Cidade Medieval Cristã, percorreu-se um pouco a Cidade Quinhentista, muda-se de edifício depois de visitar os objetos que pertenceram ao Hospital de Todos-Os-Santos, aguarda-nos a maqueta de Lisboa anterior ao Terramoto de 1755.
Antes, porém, somos confrontados com um conjunto ímpar de azulejos onde podemos ver como era o Terreiro do Paço, os quadros impressionantes da Lisboa até Setecentos, incluindo o mercado que se situava o Campo das Cebolas, podemos ver a Casa dos Bicos como existiu até ao Terramoto de 1755, caiu o primeiro andar, tudo foi reedificado no tempo de uma exposição que deu brado, a XVII Exposição Europeia de Arte Ciência e Cultura, de 1983, de que aqui se reproduz a imagem do edifício reedificado.


Reedificação da Casa dos Bicos, 1983

Que importância podemos atribuir a esta maquete de Lisboa, idealizada pelo historiador Gustavo de Matos Sequeira? À distância de mais de meio século, a maqueta é ainda uma representação fidedigna de Lisboa nas vésperas do terramoto de 1 de novembro de 1755, apresentando a cidade como entidade urbana ribeirinha, entre Alcântara e Santa Apolónia, e desenvolvendo-se para norte até ao Rato e à Senhora do Monte.
Em 2009, associaram-se à exposição da maquete conteúdos multimédia interativos, com o intuito de facilitar a comunicação com o público. A par do modelo tridimensional da Lisboa representada da maquete, apresentam-se modelos 3D rigorosos de 22 edifícios civis e religiosos, ruas e praças da Lisboa barroca e três percursos que permitem conhecer o centro urbano nas vésperas do terramoto. Graças a estes dois quiosques multimédia, cada visitante tem a possibilidade de explorar a cidade antes do terramoto, consoante os seus próprios interesses. A brochura que é oferecida ao visitante recorda-nos cinco lugares icónicos desta Lisboa antes do terramoto: o Terreiro do Paço, centro político, cívico e social e símbolo do poder régio, uma praça de aparato; o Rossio como palco de vida intensa, ali estava o Hospital Real de Todos-os-Santos que se estendia para o que é hoje a Praça da Figueira, o hospital sobreviveu ao terramoto mas foi logo desativado; a Casa dos Bicos, edifício prestigiante e original na Lisboa Quinhentista, mandado construir por Brás de Albuquerque, 1º Presidente do Senado da Câmara de Lisboa; a Rua Nova dos Ferros, a mais importante rua da cidade, estendia-se desde a Praça do Pelourinho Velho até ao Largo da Patriarcal; o Colégio de Santo Antão, grandioso edifício jesuíta fundado em 1573 que depois de remodelado passou ao que é hoje o Hospital de São José; e a Praça da Patriarcal, destruída pelo terramoto e nunca reconstruída, dava acesso à Capela Real mandada construir por D. João IV e engrandecida por D. João V.


Um belo azulejo evocativo de Santo António, o Museu da Cidade alberga outras peças afins como o Registo da Nossa Senhora da Penha de França, datado de 1756

Um dos espaços que mais deslumbram o visitante é a cozinha, detentora de conjuntos azulejares de invulgar qualidade e beleza, parece que está pronta a servir, é um dos pontos fortes das visitas guiadas, ajuda a criançada a entender os motivos desta azulejaria, a conhecer os utensílios de cozinha, desde os tachos e panelas aos almofarizes e tabuleiros.


Saímos da cozinha e temos nova surpresa, a cidade dos ofícios, uma produção cerâmica que muitos ignoram, há um quadro que menciona os locais de fabrico e o visitante tem à sua mercê peças de valor excecional que saíram da Fábrica do Rato. Vale a pena determo-nos a compreender esta cidade de ofícios e uma cerâmica que teve tantos continuadores, como a Viúva Lamego, a Fábrica de Santana ou a Fábrica de Cerâmica Constância, podemos ver o painel de azulejos da autoria de João Abel Manta que está na Avenida Calouste Gulbenkian, como que envolvendo o bairro da Calçada dos Mestres.

As Belas-Artes testemunham como grandes artistas viram Lisboa, logo Carlos Botelho com este magnífico quadro onde cabe Lisboa antiga supostamente vista de uma janela com um supostamente emaranhado montanhoso a beijar um Tejo de um tom turquesa desmaiado. Outros mestres aqui têm destaque, pense-se em Eduardo Viana e muitos outros.

Deixamos para o fim um quadro singular de azulejos com motivos orientais e mais bela cerâmica, isto com a preocupação de alertar o visitante para a riqueza azulejar desta casa, está tudo muito beneficiado com as recentes obras de remodelação, um dia destes subimos ao andar superior, onde outras belezas espetaculares nos aguardam, dessa Lisboa de outras eras.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 11 DE DEZEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22799: Os nossos seres, saberes e lazeres (481): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (21): As surpresas que o Museu de Lisboa nos reserva (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22817: O meu sapatinho de Natal (13): Votos de Boas Festas dos camaradas: Abel Santos, Ernestino Caniço, Sousa de Castro e José Firmino

Aerograma de Natal


Mensagem do nosso camarada Abel Santos, (ex-Soldado Atirador Art da CART 1742 - "Os Panteras" - Nova Lamego e Buruntuma, 1967/69), com data de 13 de Dezembro de 2021:

A minha mensagem de Natal

Desejo um bom Natal e um excelente Ano Novo a todos os camaradas que prestaram o serviço militar à Pátria durante a chamada guerra colonial, assim como aos da minha CART 1742 os "Panteras" de Nova Lamego e Buruntuma, 1967/1969.

Abel Santos


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Mensagem do nosso camarada Ernestino Caniço, ex-Alf Mil Cav, Comandante do Pel Rec Daimler 2208, Mansabá e Mansoa; Rep ACAP - Repartição de Assuntos Civis e Ação Psicológica, Bissau, Fev 1970/DEZ 1971, com data de 16 de Dezembro de 2021:

Caros amigos:
Mais um ano prestes a findar.
Esperemos, e, desejamos que o próximo nos traga algumas melhorias, especialmente saúde como bem mais precioso.
Se nos mantivermos vivos já é um bom passo.

Um abraço,
Ernestino Caniço


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Mensagem do nosso camarada Sousa de Castro (ex-1.º Cabo Radiotelegrafista, CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, 1971/74), com data de 16 de Dezembro de 2021:

Para todos antigos combatentes, o desejo que este Natal seja o último desta pandemia. Muita Paz e muita saúde!

Sousa de Castro

CART 3494 & camaradas da Guiné (cart3494guine.blogspot.com)


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Mensagem do nosso camarada José Firmino (ex-Soldado Atirador da CCAÇ 2585/BCAÇ 2884, Jolmete, 1969/71):

Amigos e camaradas da Tabanca Grande
Para todos vós e respectivas famílias, os meus votos de um Santo Natal e um 2022 cheio de saúde.

José Firmino
CCAÇ 2585
Jolmete
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Nota do editor

Último poste da série de 16 DE DEZEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22815: O meu sapatinho de Natal (12): Aos 74 anos e com 58 anos de Amador de Teatro sinto-me um homem feliz... Votos de Boas e Felizes Festas para a malta da Tabanca Grande (Eduardo Estrela, Grupo de Teatro Lethes, Faro)

Guiné 61/74 - P22816: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (83): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Novembro de 2021:

Queridos amigos,
Enquanto Paulo arruma os trastes em Lisboa, deixando temporariamente a casa a dois filhos em trabalho precário, Annette escreve-lhe para lhe contar que acha que chegou ao fim do romance da Rua do Eclipse, coligiu as lembranças do período até 1999, ano em que se conheceram e começaram dois romances. Annette dirá mais tarde que foi uma trabalheira, papéis soltos, cartas vindas da Guiné, fotografias tiradas em Lisboa, antigos camaradas que tinham fugido ao pelotão de fuzilamento deixavam fixar a imagem onde pairava um semblante com uma infinita tristeza. Annette não entendia como tinha falhado redondamente aquela missão que ele vivera com tanto entusiasmo em 1991, parecia que tinha havido uma concordância desde o Palácio Presidencial aos diferentes ministérios, tinham passado vários programas televisivos sobre os desafios postos àquele milhão de consumidores e quais as respostas possíveis, juntando esforços entre as diferentes agências das Nações Unidas, e organizações não-governamentais que de bom grado acederam a cooperar.
Paulo confessava a Annette que fora uma das maiores amarguras da sua vida, ainda por cima ele se sentia ludibriado, tinha acreditado que no advento do multipartidarismo havia grandes oportunidades para as iniciativas de cidadania. O que Annette não sabe ainda é que meses depois de Paulo estar em Bruxelas irá fazer uma viagem, essa sim, o fecho de cúpula daquele romance. Porque o outro romance, em que eles já estão quase sessentões, esse não encerrou e possui ingredientes suficientes para continuar a ser lido à luz da vela ou ao sol fervente.

Um abraço do
Mário



Rua do Eclipse (83): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Paulo mon adoré, mon chevalier, ma joie de vivre, antes de regressares à tua casa na Rua do Eclipse quero fazer-te uma grande surpresa, já fiz uma sinopse da tua estadia na Guiné, vinte anos depois. Está concluído o resumo daquele período de adaptação logo a seguir à tua chegada a Lisboa, usei os teus apontamentos quanto ao tempo que passaste em Mafra, entre outubro de 1970 e finais de abril de 1971, vinhas nitidamente em forma e nem todos os recrutas receberam bem o entusiasmo, a forma impetuosa, com que os preparaste para as lides futuras. Estudaste, tinhas a vida simplificada num organismo chamado Agência Militar, manuseaste milhões de contos (ainda não fiz a conversão ao euro) e pagaste às famílias esses tantos milhões. Ficaste bacharel, logo concorreste ao ensino, quiseram-te como professor de História de Arte, a vida deu as suas voltas, foste parar ao Ministério da Economia, será aí, mais propriamente com o 25 de Abril, que irás descobrir a tua profissão. E cerca de vinte anos depois voltas à Guiné, imagine-se, para fazer cooperação, ali passarás alguns meses, dormes nas instalações de uma fábrica de cervejas, de nome CICER, e almoças e jantas na Pensão Central, na Avenida Amílcar Cabral, quem ali manda é dona Berta de Oliveira Bento, a quem irás chamar Avó Berta, nessa Pensão Central farás conhecimento do Dr. Francisco Médicis, será ele que te levará a Missirá num género de furgonete de caixa aberta. Felizmente que guardaste os apontamentos dessa viagem e dessa experiência sobre a qual escreveste quando entraste em Missirá e comovido até às lágrimas voltaste para Bissau, na caixa da furgonete, empertigado, vitorioso, vinha Cherno Suane, mais tarde virá para Portugal, aqui viveu e faleceu.

Não posso esquecer aqueles dias vibrantes que se seguiram ao teu regresso, as visitas de alegria e as de dor, neste caso à mãe do teu mais querido amigo, e aos teus sinistrados. Mas, primeiro os estudos, e depois a compulsão do trabalho, o casamente e os filhos, as recordações da Guiné pairavam num limbo, acompanhei cheia de curiosidade aqueles dias de adaptação a Lisboa em que voltaste aos alfarrabistas, ao departamento de mecanografia em que trabalhaste até 1967 e registei como Mafra foi determinante para as decisões que tomaras quanto ao rumo da tua vida. Escreveste em várias folhas o teu permanente espanto como aqueles oficiais passavam as tardes a jogar e a bebericar, juraste a ti mesmo que em circunstância alguma era fadário que te coubesse. Envolveste-te a sério nas duas recrutas que deste, deram-te como merecimento o encurtamento de um ano para seis meses. Mantiveste correspondência com a Guiné, encaraste sem amargura a diluição dessas responsabilidades. Chegava gente que trazia notícias e inopinadamente recebes uma carta do Benjamim Lopes da Costa se era possível ajudar o irmão, estava a estudar em Lisboa com uma bolsa, precisava de um suporte na disciplina de Filosofia, que foi dado pela tua mulher. Formavam-se companhias de Comandos e antigos soldados teus para lá foram.

Os anos passam, chegam notícias funestas, fuzilamentos, prisões arbitrárias, gente em fuga, gente que tu amas muito. Sofres mas a Guiné parecia uma gaveta a abrir e rapidamente a fechar, nem titubeaste quando se deu o golpe de Estado de 14 de novembro de 1980, há muito que descortinaras que o azeite não é miscível com a água.

Lá para os finais de 1989, os teus superiores informam-te que o Ministro do Ambiente, numa reunião com ministros do PALOP, recebera o mais inusitado pedido que seria suposto vir da Guiné, um protocolo de cooperação na área da defesa do consumidor. O ministro empenhava-se para afinar uma estratégia comum para a Cimeira da Terra, que se realizaria no Rio de Janeiro em 1992, disse logo que sim e o teu nome veio à cabeça, seria primeiro uma semana para avaliar a situação e aquilatar da viabilidade de tal missão. É assim que no segundo domingo de janeiro de 1990 tu regressas a Missirá, deixaste escrito um texto lindíssimo sobre essa viagem, o tumulto, o frenesim, os abraços, a gritaria a acolher o Branco de Missirá a quem os homens grandes as narrativas falam aos mais novos do N’Baké, um guerreiro de pele branca que faz parte daquele chão. Há mesmo um parágrafo em que tu descreves a viagem, muito gostava que este parágrafo viesse reproduzido no romance da Rua do Eclipse, vão pela estrada alcatroada e passam perto do Enxalé, vais completamente alvorotado:
“Via embevecido as culturas do arroz pam-pam, ao fundo nas lalas os majestosos tabás, os cipós, surpreendia-me com as culturas do cajueiro; do Enxalé para a frente, sentia a respiração entrecortada, os olhos suspensos no horizonte, à procura dos meandros do Geba, sentia-me desnorteado, o novo traçado da estrada afastara-se ligeiramente do rio, chegou-se a Saliquinhé, perguntou-se aos passantes onde estava o rio, que estava mais longe, agora não era fácil, com o crescimento do tarrafo, chegar próximo daquele lugar mágico que visitara todos os dias, não faz mal, atirara-se ao caminho mais pelos homens e menos pelos lugares, mas não resiste aos cheiros, ao oceano florestal, o importante é que regresse ao Cuor, sua pertença. É um dia de janeiro sem uma aragem e escorre pelos corpos um calor fervente, eleva-se a zanguizarra dos grilos, aqui e acolá, naquela estrada que fora o seu tormento e de que sempre fugira, na prevenção de minas e emboscadas, entra em transe, avista-se a curva de Canturé, mais adiante, no tormento daquela estrada alcantilada que atira os viajantes uns contra os outros dentro da cabine, passa-se ao lado de Mato Madeira, Missirá está pertíssimo, agora a estrada alarga-se, alguém aparece e explica que há gente a viver em Maná, Cancumba renasceu, a carrinha inflete numa picada, outro alguém, a caminho das hortas, confirma que é preciso tornear a nova tabanca para chegar a Missirá, e então reconheço os altos poilões e o mar de cajueiros, ouve-se perfeitamente o gralhar das crianças, começam a sair os adultos das moranças e naquele espaço que fora a parada do quartel a viatura sossega, cercam-nos com sorrisos, abraços, especado, quando se abre aquele círculo infrene, está Bacari Soncó, é emoção superior às minhas forças, este homem é meu irmão, viveu algumas das grandes agruras que o mundo nos oferece lado a lado, não posso mais esconder a emoção, encosto a cabeça no seu ombro, soluço sem parar, é verdadeiramente irrepetível este dia da ressurreição dos vivos”.

Voltaste no ano seguinte, li de fio a pavio o documento que elaboraste sobre essa missão, dedicaste a fundo em preparar uma estrutura para servir os mais necessitados, houve muitas promessas, até um despacho presencial, tudo acabou na água, nunca se saberá porquê. Deliberaste pôr ponto final no assunto, mas os silêncios africanos são de pouca dura, aí por 1996 chegou Abudu Soncó, o filho mais novo do régulo Malam, era professor primário, viera para uma ação de formação em Setúbal, farto de privações com vários filhos para sustentar, tomara a decisão de aqui ficar, atirou-se às mais humildes tarefas da construção civil, retomava-se o contato com o Cuor, tinham reaparecido povoações que tu conheceras reduzidas a estacas calcinadas, Finete mudara de lugar, havia vida em Sansão, em Aldeia do Cuor, em Chicri, aparecera perto de Gambiel um local chamado Madina de Gambiel. Por Abudu, foi-te dado perceber que não houvera reconciliação, pairavam rancores, medos, muitas feridas por sarar.

Meu adorado Paulo, esta é a síntese desses papéis avulsos, de tudo quanto aconteceu até nos conhecermos, há ainda umas folhas avulsas da chegada de antigos soldados teus que escaparam a fuzilamentos e prisões. Caso tu entendas é aqui que se fecha o ciclo das tuas viagens, aqui Penélope pode pôr o termo ao extenso bordado, Ulisses não chegou a Ítaca, o seu domínio espalha-se por duas cidades, numa delas está a Rua do Eclipse para onde ele vem em breve, mais uma vez para se envolver no interesse público, de que tem longo lastro.

Outra surpresa reservada é a readaptação dos espaços, vais ter o teu próprio escritório no quarto que foi da Noémie, pressinto que vais encontrar esta casa na Rua do Eclipse mais formosa à tua espera. Quantas vezes, na quietude da sala, me questiono dos muitos anos que aqui vivemos e dos outros muitos anos que a velhice nos poderá reservar na nossa bela casinha de Lisboa. Vem depressa, gosto muito daquela expressão portuguesa “paixão ardente”, o que importa é que já não sei viver sem a tua vibração, a tua voz, o teu corpo. À tantôt, ta chérie, Annette.

(continua)

Carvalho Araújo, nele viajei em outubro de 1967 para Ponta Delgada, de novo em abril de 1968 para Lisboa, e no regresso de Bissau, em agosto de 1970
Este é o rio da minha vida, é bem provável que por aqui naveguem barcos como estes, que nós protegíamos em Mato de Cão, vinham em comboio, tinham um cheiro caraterístico a mancarra e a coconote, rebocando-se uns aos outros nas curvas apertadas do Geba estreito
Agora, que procuro pôr um ponto final no acervo de recordações que me levaram a conservar algumas dezenas de imagens, aqui venho publicamente renovar a minha preferência por aquela que mais me impressiona. Contaram-me que o arquiteto Luís Saldanha fora a Varela acompanhar as obras do aldeamento turístico. No regresso, um jovem Felupe fez questão de posar, o arquiteto acedeu, tudo isto se terá passado perto do final da década de 1950, em 1961, depois do ataque a S. Domingos, o grupo dos Manjacos de François Mendy tudo vandalizaram
Perguntei em Bambadinca se ainda havia cemitério para soldados portugueses. Ainda restavam alguns túmulos, a informação que me davam era de que a Liga dos Combatentes gradualmente fazia a trasladação. Fiquei chocado com o que vi, espero que a esta hora este camarada da Guiné repouse em paz junto dos seus, ou perto dos vivos que guardam lembrança
A imagem é de um conhecido fotógrafo, Francisco Nogueira, foi ele o responsável pelas belas imagens de um livro dedicado ao património arquitetónico dos Bijagós, uma edição da Tinta da China. É um dos mais impressivos monumentos de Arte Deco em toda a África Ocidental, uma oferta de Mussolini para lembrar as vítimas de um desastre aéreo que ocorreu em Bolama, ainda na década de 1930
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Nota do editor

Último poste da série de 10 DE DEZEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22795: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (82): A funda que arremessa para o fundo da memória

quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22815: O meu sapatinho de Natal (12): Aos 74 anos e com 58 anos de Amador de Teatro sinto-me um homem feliz... Votos de Boas e Felizes Festas para a malta da Tabanca Grande (Eduardo Estrela, Grupo de Teatro Lethes, Faro)



Odemeria > 1968 > Um esepctáculo de fantoches (de luva), pelo então  Grupo de Teatro do Círculo Cultural do Algarve.  hoje, Grupo de Teatro Lethes , com sede em Faro, e de que parte o nosso camarada Eduardo Estrelaa.

Foto (e legenda): © Eduardo Estrela (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1.Mensagem do nosso amigo e camarada Eduardo Estrela (ex-fur mil at inf, CCAÇ 14, Cuntima e Farim, 1969/71; vive em Cacela Velha, (en)cantatada por Sophia, e que pertence a Vila Real de Santo António; um das suas paixões é o teatro amador;

Data - 1 dez 2021 23h31

Assunto - Ribertos
Boa noite companheiro!

A propósito do teu post noticiando o espectáculo de fantoches (*), anexo uma fotografia tirada em 1968 em Odemira durante um encontro amistoso com a criançada daquela localidade.

Na altura o Grupo de Teatro Lethes ainda se denominava Grupo de Teatro do Círculo Cultural do Algarve.

Neste encontro de amigos não participei pois estava na tropa em Tavira. Mas foram muitas as vezes que tive o privilégio de colaborar na comunicação com os miúdos através do Teatro de Fantoches, depois do regresso da Guiné.

Era uma maravilha observar a atenção que dispensavam ao que viam.

Aqui na zona mais ocidental do Sotavento algarvio diz-se que são " treteros " os que manuseiam os títeres.

A partir duma determinada altura o Grupo deixou a prática dos Fantoches.

Mandei-te um mail há alguns dias, onde perguntava pela tua saúde, pela Clarinha e pelo Alfero Cabral. Espero que tudo esteja bem.

Grande abraço

Eduardo

2. Resposta do editor LG, com data de 12 do corrente:

Eduardo, que maravilha. Obrigado. Vou muito oportunamente publicar. O Teatro Dom Roberto, como se diz agora, faz parte das nossas memórias de infância e, felizmente, está a renascer... Hás de contar algo mais sobre a tua experiência no teu grupo de teatro... Bom Natal, espero ainda escrever-te. Luis

3. Nova mensagem do Eduardo Estrela, com data de 16 do corrnte, 17h43

Boa tarde,  Companheiro!

Como tu muito bem sabes, o trabalho realizado por um Grupo de Teatro Amador não se esgota na realização de espectáculos. Extravasa para além do belo e do efémero visual. Consistentemente, fortalece e dinamiza a cultura da sociedade e dos seus próprios elementos.

O Grupo de Teatro Lethes tem sido ao longo dos seus 64 anos de existência, um importante veículo de dinamização do sentir e do acreditar num mundo melhor, ancorado nas palavras de poetas e dramaturgos da literatura universal.

Para mim, tem sido um privilégio viver com a partilha de ideais que consubstanciam solidariedade e fraternidade. Aos 74 anos e com 58 anos de Amador de Teatro sinto-me um homem feliz, pois tenho fortalecido a minha consciência cívica e ajudado a dinamizar valores básicos e essenciais à vida.

O Grupo de Teatro Lethes foi criado em 1957 por José Campos Corôa, Emílio Campos Corôa e Maria Amélia V. C. Corôa, com a designação inicial de Grupo de Teatro do Círculo Cultural do Algarve.

Os seus fundadores foram elementos do Teatro de Estudantes da Universidade de Coimbra ( TEUC), tendo José Campos Corôa sido fundador do próprio TEUC que era na altura dirigido pelo Prof. Paulo Quintela.

A actual denominação resultou do convite feito em 1972 pela Delegação de Faro da Cruz Vermelha Portuguesa, proprietária do edifício do Teatro Lethes, para que o Grupo se transferisse para aquele espaço. A nossa sede social como Entidade com Estatuto de Utilidade Pública continua a ser na Rua de Portugal 50 Faro, endereço que corresponde ao edifício do Teatro Lethes.

Em 64 anos de actividade o Grupo realizou 550 espectáculos sendo 100 de Teatro Infantil. Estreias absolutas foram 18 e tradução e adaptação de textos 9.

No que ao Teatro Infantil diz respeito foram efectuados 52 espectáculos apenas com fantoches de luvas, 31 com peças apenas para a infância, 8 apenas com palhaços e 9 espectáculos infantis não especificados.

Representámos: Abreu e Sousa, Almada Negreiros, Almeida Garrett, Alves Redol, André Brun, António Aleixo, António Ferreira, António Patrício, Aquilino Ribeiro, Ascensão Barbosa, Bernardo Santareno, Correia Alves, Costa Ferreira, D. João da Câmara, Eça de Queiroz, Fernando Dacosta, Fernando de Paços, Fernando Pessoa, Gervásio Lobato, Gil Vicente, Henrique Galvão, Joaquim Magalhães, José Cardoso Pires, José Régio, José Vilhena, Júlio Dantas, Luís Francisco Rebelo, Luís Stau Monteiro, Manuel Córrego, Marcelino Mesquita, Matilde Rosa Araújo, Mendes de Carvalho, Miguel Barbosa, Miguel Rovisco, Pinheiro Chagas, Prista Monteiro, Raul Brandão, Ricardo Alberty, Romeu Correia, Salazar Sampaio, Sidónio Muralha e Teresa Rita Lopes, autores Portugueses.

Dos autores estrangeiros representámos:

Andrés Lizarraga, Calderon de la Barça, Erico Veríssimo, Federico Garcia Lorca, Henri Gheon, Ionesco, Irwing Shaw, Joseph Kesselring, Leon Chancerel, Mayakovsky, Máximo Gorki, Molière, Luigi Pirandello, Saint Exupéry, Shaskpeare, Stefan Zweig, Steinbeck, Synge, Tcheckov, Thornton Wilder, Tone Bruling e autor anónimo do século XV.

Passaram pelo Grupo cerca de 500 amadores, sendo que alguns seguiram uma carreira profissional.

Continuamos a remar contra a maré porque acreditamos num Teatro que continue a apelar para a Igualdade, Democracia e Respeito pelos Direitos do Homem.

É absolutamente lamentável que o poder político nos despreze como faz.

Como diz António Ramos Rosa, " Até quando !? "

Abraço fraterno para ti e demais companheiros/camaradas com muita saúde e votos de Boas e Felizes Festas. (**)

Eduardo Estrela

(**) Último poste da série > 15 de dezembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22811: O meu sapatinho de Natal (11): Adeus, Guiné!... O regresso da 35ª CCmds, no N/M Niassa, uma viagem horrível, com partida de Bissau a 15/12/1973, e chegada a 22 (Ramiro Jesus, ex-fur mil, 35ª CCmds, Teixeira Pinto, Bula e Bissau, 1971/73)

Guiné 61/74 - P22814: Facebook...ando (66): Farmácia e Saúde na Guerra do Ultramar - Conferência em streaming no Facebook, amanhã, dia 17, pelas 18 horas, em directo do Museu da Farmácia de Lisboa


O Museu da Farmácia, desde a sua inauguração, que homenageia os militares dos três ramos das Forças Armadas portuguesas (Exército, Força Aérea e Marinha) pelo seu esforço pessoal e profissional - na área da Saúde - em ambiente de guerra. Esta tertúlia especial a realizar em período de Natal e de Paz, traz consigo uma série de testemunhos de pessoas que viveram na linha da frente os murmúrios da dor e os sorrisos da esperança da vida.

Farmacêuticos, médicos, enfermeiros, investigadores e museólogos (todos militares à época), são convidados a partilharem memórias e a fazerem o seu comentário sobre a Farmácia e a Saúde na Guerra de Ultramar, criando assim um diálogo único entre as peças do museu e as suas experiências, em jogos de sombras e em ambiente de conflito armado.

Uma conversa com José Damas Mora, farmacêutico; António Maia Nabais, museólogo; Fernando Reis Lima, médico; Maria Arminda Santos, enfermeira; Mário Beja Santos, escritor e investigador; e Pedro Correia Taveira, enfermeiro.

Modera João Neto, Diretor do Museu da Farmácia.

👉17 de dezembro (sexta-feira) |18h00| em direto do Museu da Farmácia Lisboa, streaming no Facebook.
Informações: museudafarmacia@anf.pt

https://www.facebook.com/events/3135133946723967

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Nota do editor

Último poste da série de 6 DE SETEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22517: Facebook...ando (65): "Deu-me muito prazer preencher, com as minhas palavras sentidas, as duzentas e dezoito páginas, do meu livro, Um Caminho de Quatro Passos, a ser apresentado, sábado, dia 11, às 11h00, na Tabanca dos Melros (António Carvalho, Medas, Gondomar)

Guiné 61/74 - P22813: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XXII: Salzburgo, Áustria, 2002



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Áustria, Salzburgo e arredores, 2002


1. Continuação da série "Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo" (*), da autoria de António Graca de Abreu [, ex-alf mil, CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74. Texto e fotos recebidos em 11 de novembro último.

Escritor e docente universitário, sinólogo (especialista em língua, literatura e história da China); natural do Porto, vive em Cascais; é autor de mais de 20 títulos, entre eles, "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura" (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp); "globetrotter", viajante compulsivo com duas voltas ao mundo, em cruzeiros. É membro da nossa Tabanca Grande desde 2007, tem mais de 290y referências no blogue.



Áustria, Salzburgo, 2002

por António Graça de Abreu


Duas vezes, com intervalo de mais de vinte anos, a viagem de automóvel de Lisboa a Salzburgo, por mil atalhos escondidos na Europa. Não exactamente por causa do Mozart, que aqui nasceu, nem da Família Trapp, cinemografada em filmes de excelência como “Música no Coração”, rodada no palácio de Hellbrun e em mais recantos da cidade, e arredores, com a Julie Andrews, a noviça Maria e as criancinhas a cantar, sob o circunspecto olhar de um capitão Von Trapp a preparar a fuga aos nazis.

Também não vim para o Festival de Salzburgo, com excelsos concertos, ópera e teatro. Passeio pelo empedrado da Getreidegasse, as ruas pedonais da cidade, o rio Salzach dividindo-a em duas partes. O repicar dos sinos na catedral barroca, as primeiras flores nos jardins, um par de noivos fotografando-se em Mirabell Palace.

Subida ao castelo/fortaleza de HohenSalzburg, do século XI. Abarcar a cidade, as torres de palácios e igrejas, os Alpes tudo circundando, Estamos em Abril, as terras altas ainda cobertas de neve.

Aqui em redor, os lagos no fundo das montanhas. Fuschl, que até praia tem, St. Gilden onde nasceu a mãe de Mozart, a vilazinha debruçada no turquesa do lago Wolfangsee. As paisagens da perfeição do mundo.

À noite, pego no carro e faço os trinta quilómetros até ao Mondsee, o lago da Lua. Acho que vim outra vez ao Salzkammergut para o encontro com as magias do Mondsee. A serenidade, o silêncio, a água espelhando luzes raras e a escuridão da noite. Como o poeta Li Bai, há treze séculos atrás, um abraço à lua-cheia, enorme, brilhante, reflectida na evanescente transparência da superfície do lago.

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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 4 de dezembro de  2021 > Guiné 61/74 - P22780: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XXI: Tahiti, Polinésia Francesa, Oceano Pacífico, fevereiro de 2020

Guiné 61/74 - P22812: (De)Caras (184): Sene Sané, régulo de Pachisse, com capital em Canquelifá, tenente de 2ª linha, vogal do Conselho Legislativo, falecido em 1969


Sené Sané, régulo de Canquelifá, eleito pelas autoridades tradicionais para o Conselho Legislativa da Província Portuguesa da Guiné. Sané Sané, régulo de Canquelifá, Tenente de 2ª linha, pertencia *a nobreza mandinga, sendo descendente do último rei do império do Gabu (morto na batalha de Cansalá, em 1867). Publicada em "O Arauto", diário da Guiné, edição de 14 de junho de 1964.

Foto (e legenda): © Lucinda Aranha (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Capa do do livro de fotografia "Buruntuma: algum dia serás grande, Guiné, Gabu, 1961-63". (Edição de autor, Oeiras, 2016).] (*): o fotógrafo, em 1961, ao lado do então régulo Sené Sané, que era tenente de 2ª linha. junto ao marco fronteiriço ("República Portuguesa: Província da Guiné"), na fronteira com a República da Guiné. Cortesia do autor-

O autor, Jorge Ferreira, ex-alf mil da 3ª CCAÇ (Bolama, Nova Lamego, Buruntuma e Bolama, 1961/63), é membro da nossa Tabanca Grande, é um fotógrafo amador com mais de meio século de experiência, tem um página pessoal no Facebook, além de um sítio de fotografia, Jorge da Silva Ferreira; as suas fotos de Buruntuma inserem-se na categoria da etnofotografia.


1. O PAIGC teve vários militantes (e guerrilheiros), de apelido Sané, provavelmente aparentados com o Sené Sané (**), um dos mais poderosos régulos da Guiné, na época colonial, ao ponto de ter sido eleito para o Conselho Legislativo da Província (criado pela Portaria n.º 19921, Diário do Governo n n.º 150/1963, série I. 

Os outros dois eleitos foram o régulo de Badora, Mamadu Bonco Sanhã, e o régulo de Cachungo, Joaquim Baticã Ferreira, fuzilados pelo PAIGC a seguir à independência. O Conselho começou a funcionar em 1964 sob o "consulado" de Schulz. Sené Sané teve "a sorte" de morrer... em 1969. Mas a sua cabeça devia estar... "a prémio", a par do Bonco Sanhá e do Baticã Ferreira.  Para o PAIGC, era "um dos cães dos colonialistas". (***)

Ironia da história, o actual régulo de Pachisse (vd. carta de Canquelifá 1957, escala 1/50 mil) que abrange as aréas de Canquelifa, Camajaba e Buruntuma, é o José Bacar Sané, um dos filhos do velho régulo Sene Sané (imformação confirmada pelo Cherno Baldé e pelo Patrício Ribeiro).(*)

Em 27/11/2019, o Patrício Ribeiro escreveu-nos (*): 

"Falámos com filho mais velho, do antigo régulo Sene Sané, José Bacar Sané, telemóvel nº 00254...119, morador em Canquelifa, é o actual régulo de Canquelifa e Buruntuma, já com alguma idade. (Foi antigo militar português do grupo de Marcelino do Mata).

"Nomeou o seu irmão mais novo, Mama Sané ( telemovel nº 00 245...330), residente em Buruntuma, seu representante do seu regulado em Buruntuma."

E a propósito o Chermo Baldé comentou no poste P20384 (*):

(...) "Como se costuma dizer, pode-se facilmente conquistar um território pela violência, mas é extremamente difícil continuar a governar as pessoas na base na mentira e na propaganda. Começaram, logo após a independência, por destituir todos os Régulos e Regulados (quando não eram fuzilados) e nomeado seus Comitês de tabancas. Com o tempo constataram que nada funcionava como queriam e a população não reconhecia as autoridades impostas de cima para baixo. Com o golpe de estado de Nino Vieira, voltaram a reconhecer as antigas chefias da época colonial para melhor controlar e manipular as populações."

E esclarece o nosso colaborador permanente, que vieve em Bissau: "O Regulado que tutela a cidade de Pitche chama-se Manna e tem a sua sede em Dara, localidade a cerca de 15/17 Km de Gabu cidade na estrada para Pitche. Este Regulado confina com o de Chanha a sul e o Paquessi a Nordeste/Leste."

O nosso editor LG,  por sua vez,comentou:

"Era voz concorrente que os elementos do grupo "Os Vingadores", comandados por Marcelino da Mata, teriam sido todos fuzilados, a seguir à Independência, com uma ou duas exceções (a começar pelo Marcelino, oportunamente refugiado em Portugal)...

"Se o José Bacar Sané, filho do antigo régulo Sene Saná, da época colonial (e amigo do Jorge Ferreira), foi um antigo militar português, e esteve integrado no grupo de Marcelino do Mata, "Os Vingadores" (de acordo com a informação do Patrício Ribeiro), e está vivo, mora em Canquelifa, e é hoje o atual régulo de Canquelifá / Buruntuma... bom, só temos que nos congratular com esse facto... Espero que seja um sinal, sincero e irreversível, da reconciliação dos guineenses que outrora foram 'inimigos', combatendo uns sob a bandeira do PAIGC e outros sob o estandarte do exército português, naquilo que foi não apenas uma 'guerra pela independência' ou de "libertação' mas também uma 'guerra civil' "


Guiné > Região de Gabu > Canquelifá > s/d  > O régulo Sene  Sané, tenente de 2ª linha, com uma das filhas, e um militar português. Alguém é capaz de identificar este camarada e a subunidade a que pertencia? - Pergunta a Lucinda Aranha. O régulo morreu em 1969.

Foto (e legenda): © Lucinda Aranha (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Região de Gabu > Carta de Canquelifá (1957) > Escala 1/50 mil > Pormenor > Posição relativa de Canquelifá, capital do regulado de Pachisse.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2021)


2. Reproduz-se  a seguir um documento, do Arquivo Amílcar Cabral, datado de Kundara, República da Guiné,  16 de janeiro de 1962, e onde é patente o temor que o régulo Sene Sané inspirava em Canquelifá: 

Em carta, datilografada a Amílcar Cabral, José Ferreira Crato faz o balanço das informações obtidas na sua sequência da sua viagem de  reconhecimento da região fronteiriça. Ele e o  seu companheiro, Alphouseni [Sané], natural do regulado de Pachisse,  não conseguiram transpor a fronteira e chegar ao coração da região de Gabu, como pretendiam, e conforme missão que lhes fora confiada pelo Secretário Geral do PAIGC. Todavia, terão recolhido informação relevante sobre Canquefilá.  Na povoação fronteiriça da Guiné-Conacri, que o remetente  não identifica, chama-lhe apenas "a última tabanca dos pajadincas", haveria já muitos "simpatisantes" do PAIGC... Repare-se, estamos o início do ano de 1962...

Pode ler-se: "Encontrámos muitos simpatisantes do nosso partido, porque quase todos os pajincas ali residentes são de Canquelifá, que fugiram por causa do régulo Sené Sané (sic)"... 

E arremata: "Eu não garanto, mas pelos vistos havemos de vencer o Sené Sané, sem dificuldades como muitos julgam".





Citação:
(s.d.), Sem Título, Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_37630 (2021-12-15)

Casa Comum | Instituição: Fundação Mário Soares |  Pasta: 04604.038.014 | Assunto: Informa que já se encontra em Koundara. Missão na fronteira com Alfosseine. Dificuldades na tabanca dos Pajadincas. Can-Quelifá. Declarações da população local. Régulo Sene Sané. | Remetente: José Ferreira Crato, Koundara | Destinatário: Secretário Geral do PAIGC [Amílcar Cabral] | Data: s.d. | Observações: Doc. Incluído no dossier intitulado Correspondência 1962 (...)  |  Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral.

  [Reproduzido com a devida vénia...]  

3. Comentário do Cherno Baldé, acabado de chegar,  ao poste P22808 (**)

A acentuação em alguns nomes não está correcta, assim escreve-se Sané e não Sené (nome próprio das etnias mandinga e fula); escreve-se também Alage e não Alagé (titulo honorifico de quem fez a peregrinaçao a cidade "santa" de Meca, transfigurado para nome próprio nos grupos muçulmanos).

O caso da família dos Sané, régulos de Pachisse com capital em Canquelifa e descendentes directos de Djanké Waly, o último rei de Gabu ou Kaabu, ilustra o facto de que, na realidade, nunca houve uma guerra entre fulas e mandingas, como sempre se propalou durante o regime colonial, pois se isso fosse o caso os Sané de Paqhisse (Canquelifa) não seriam régulos após a derrota dos mandingas. 

A história da África Ocidental está repleta de casos de guerras pelo poder em que os derrotados eram sempre obrigados a se submeter ao grupo maoritário de entre os vencedores e o surgimento de novas alianças estratégicas, facto que muitas vezes levava a mudanças radicais entre os vencidos, inclusive o abandono da sua língua e parte de práticas culturais e adopção de uma outra lingua, usos e costumes.

Neste caso concreto, os Sané de Canquelifa, para continuarem a fazer parte do poder foram obrigados a se converter a favor da língua fula, grupo maioritário e mais forte dentro do grupo que conquistou o poder, de tal maneira que as últimas gerações, vivendo no meio de uma maioria fula, já nao falavam a lingua mandinga e muitos nem se consideravam mandingas. 

Quem diz mandingas, diz também padjadincas, saracolés, landumas, bajaras, jacancas etc; da mesma forma que os fulas durante todo o periodo de mais de 6 séculos que estiveram sob o dominio mandinga de Mali, primeiro e Gabu, mais tarde, foram obrigados a falar a língua do dominador, apesar da resistência passiva em curso.

Era esta a realidade no terreno e em espaços humanos ainda em construção e em constantes mutações sócio-politicas e territoriais. Todavia, os novos acontecimentos no território após a independência (1974) tiveram o efeito e a tendência inversa ao curso dos anos anteriores, obrigando a novas situações e novos posicionamentos de adaptação ao novo contexto político e social.
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Notas  do editor:


(**) Vd. postes de: 


15 de dezembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22808: Fotos à procura de... uma legenda (157): Os quatro membros da comitiva guineense (a saber Sené Sané, Sampulo Embaló, Duarte Embaló e Alagé Baldé, amigos do meu pai, Manuel Joaquim dos Prazeres,) às Comemorações do V Centenário da morte do Infante D. Henrique, agosto de 1960 (Lucinda Aranha, escritora) - II ( e última) Parte

(***) Último poste da série > 24 de novembro de  2021 > Guiné 61/74 - P22748: (De)Caras (183): Revivendo e partilhando (João Crisóstomo, Nova Iorque, de Visita a Portugal)

quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22811: O meu sapatinho de Natal (11): Adeus, Guiné!... O regresso da 35ª CCmds, no N/M Niassa, uma viagem horrível, com partida de Bissau a 15/12/1973, e chegada a 22 (Ramiro Jesus, ex-fur mil, 35ª CCmds, Teixeira Pinto, Bula e Bissau, 1971/73)






N/M  Niassa > "Adeus, Guiné!"... Viagem de regresso, da 35ª CCmds,  à metrópole, de 14 a 22 de dezembro de 1973... 


Fotos (e legenda): © Ramiro Jesus (2018) . Todos os direitos reservados (Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné)



1. Mensagem de Ramiro Jesus (ex-Fur Mil Comando, 35.ª CCmds, Teixeira Pinto, Bula e Bissau, 1971/73):

Data - 15 dez 2021 17h41

Assunto - Adeus, Guiné!

Boa-tarde, camaradas/companheiros.

Cumprem-se, hoje, 15/12/21, quarenta e oito anos que pude imitar, com propriedade e alegria, mas também (ainda me lembro) alguma nostalgia, aquele conjunto típico que criou e vendeu aos milhares, aquela cantiga com o título desta minha mensagem: Adeus, Guiné!

Pois é, foi no dia 15/12/73 que embarquei, com a minha 35.ª CCmds e um batalhão, no navio Niassa, que nos trouxe na viagem de regresso, ansiosamente aguardada havia umas semanas, quando o "jornal da caserna" começou a insinuar que ainda vínhamos cá passar o Natal.

E viemos, mas foi por pouco: chegámos ao Tejo no dia 21, mas só de noite, por isso só desembarcámos no dia 22, depois de uma viagem horrível, a partir do 2º dia e de termos ultrapassado as Ilhas Canárias.

Envio algumas fotos, já tiradas do navio, desde a partida do cais do Pidjiguiti até às Canárias. A partir dali, como digo, foi... deitados, para não vomitar o pouco que conseguíamos comer, tais eram os "baloiços" daquela carcaça ferrugenta.

Boas-Festas para vós, para os vossos familiares e para toda esta grande família da tertúlia.

Um abraço!
Ramiro Jesus
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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P22810: Historiografia da presença portuguesa em África (294): Memória dos Felupes, artigo de José Joaquim Lopes de Lima, 1839 (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Abril de 2021:

Queridos amigos,
O seu a seu dono, José Joaquim Lopes de Lima faz parte do leque de escritores de leitura obrigatória para se saber algo mais sobre a presença portuguesa na Senegâmbia na primeira metade do século XIX, deixou-nos um relato sumário mas impressivo. Aqui se publica o que sobre ele se diz no conceituado Dicionário Bibliográfico do Inocêncio, é pouco abonatório, Lopes de Lima deverá ter andado metido em irregularidades espúrias. E sinto-me feliz pela descoberta no Archivo Popular de 1839 (uma publicação do género enciclopédico, já então muito comum em toda a Europa) por este artigo ou memória sobre os Felupes, ele não cita fontes, deverá ter por aqui viajado, talvez em Bolor, Jufunco ou imediações, seja como for, o que deixa relatado tem muito interesse no campo etnológico e antropológico.

Um abraço do
Mário



Memória dos Felupes, artigo de José Joaquim Lopes de Lima, 1839 (1)

Mário Beja Santos

O nome José Joaquim Lopes de Lima não nos é estranho, pode aparecer associado às principais narrativas referentes à Senegâmbia na primeira metade do século XIX, podemos juntá-lo aos trabalhos de Conrado de Chelmicki, Senna Barcelos, Travassos Valdez e Honório Pereira Barreto. Não terá tido uma vida muito regular, segundo o Dicionário Bibliográfico Português, Estudos de Inocêncio Francisco da Silva, Tomo IV, 1860, onde se pode ler o seguinte a respeito do dito: “Do Conselho de Sua Majestade, Cavaleiro da Ordem de Torre e Espada, Capitão de Fragata, Governador-Civil no Reino e Ultramar, Deputado. Homem de inegável inteligência e muita atividade, tido como um dos mais devotados sustentáculos do partido denominado Cartista, foi sucessivamente incumbido de comissões superiores e melindrosas que, todavia, deu sempre infelicíssima conta. Parece que o seguia uma espécie de fatalidade, vendo-se não menos de três vezes forçado a abandonar cargos que lhe confiavam, e a procurar na fuga o meio de subtrair-se às consequências de uma animadversão geral, que em toda a parte concitou com o seu procedimento. Mandado recolher ao reino debaixo de prisão para responder pelo modo como desempenhara a comissão que por último lhe fora conferida nas ilhas de Solor e Timor, faleceu durante a viagem”.

De todos os seus escritos, o mais útil e continuadamente estudado pelos investigadores são os Ensaios sobre a estatística das possessões portuguesas na África Ocidental e Oriental, tomos publicados em 1840 e 1846. É no livro I – parte II que descreve a Guiné de Cabo Verde (páginas 80 a 119). Despede-se deste seu trabalho frente à Guiné com a seguinte observação: “Em mais de um lugar nesta obra eu fiz ver os imensos lucros que daria o comércio de Bissau e Cacheu a uma companhia mercantil portuguesa a quem se concedesse o exclusivo da navegação e resgates de compra e venda dentro nos rios de Geba e Farim (e muito mais se ela tentasse explorar de novo o Rio Grande e o Rio Nuno), com a única condição de ela compreender no seu grémio portugueses que se resolvessem, como os nossos antepassados, a ir afrontar por uma vez somente uma febre aguda, para depois gozarem por anos dilatados de todas as vantagens do homem rico e poderoso, sem mais receio pela sua existência, de que se vivessem na Europa”. Esta memória sobre os Felupes foi publicada em O Archivo Popular, Semanário Pintoresco, N.º 40, em 5 de outubro de 1839 e no N.º 41 de 10 do mesmo mês e ano. Vamos ao essencial deste trabalho.

Primeiro, a religião dos Felupes: “É mais um teísmo bárbaro do que uma idolatria; eles reconhecem e adoram um só Deus universal, e não dão culto a divindades subalternas; não só não têm ídolos, mas não têm templos ou casas de adoração; e não professam ritos, ou cerimónias quotidianas. Contudo, há vários lugares sagrados, onde só nos casos de importância, o povo se dirige presidido pelo rei, e pelos padres, a consultar a vontade do Ente Supremo, fazendo libações e holocaustos, e examinando no fim, como os áugures romanos, o interior da vítima. Os lugares onde isto se pratica são chamados chinas (…) Nenhuma liturgia se observa entre este povo; nenhuma prática adotam senão a da confissão (que provavelmente tomaram antigamente dos cristãos). A dignidade sacerdotal é hereditária, bem como a real, de tios a sobrinhos; os sacerdotes, que eles mesmo chamam padres, nada recebem do povo senão veneração; e trabalham nas suas lavouras, bem como qualquer outro: não têm distintivo algum senão o de não usarem dos enfeites de contas ou manilhas, de que os outros usam.
Todavia, este povo crê, assim como todas as nações africanas, na feitiçaria, e nos processos; e como não têm nem o mais leve conhecido da arte de curar, nem das moléstias do corpo humano, muitas vezes se sentem enfermos, pensam que o demónio (ou o irã) lhe arrebatou a alma, e a tem presa, e assim entram a clamar em altas vozes, chamando jambacós na língua felupe, o qual se supõe ter um demónio familiar, que lhe fala à vista de todos os Felupes, sem que seja visto por ninguém: este, depois de ter recebido avultados presentes, faz ajuntar o povo, trazendo todos uma boa porção de vinho de palma, que bebem em concurso; e no meio desta embriaguez geral, o impostor faz falar o seu oráculo do canto de uma casa mui escura, e com várias cerimónias tão supersticiosas como ridículas, depois de ter resgatado a alma do enfermo lha restitui pelo sovaco do braço, assoprando-a por um corno de vaca: se o doente melhora foi devido à mágica do jambacós, se morre ele é tão responsável por isso como os nossos médicos que não curam”
.

E, por último: “Os Felupes creem na imortalidade da alma, e em outra vida depois desta, em que há de haver prémio para os bons, e castigo para os maus. Supõem o mundo tão eterno como o seu autor; e acerca do princípio da geração humana, creem que Deus, tendo criado primeiro a mulher e depois o homem, estes tiveram dois filhos, dos quais um escarneceu do seu pai por estar descomposto quando dormia e o outro o repreendeu: que deste bom filho nasceu a geração dos brancos e do mau a dos negros: não sabem porém o nome nem dos pais nem dos filhos; e por isso mesmo pode suspeitar-se que a história dos filhos de Noé, ouvida por eles aos primeiros cristãos que ali se estabeleceram, tenha ficado transmitida de uma maneira bárbara às gerações que se seguiram. Não têm cerimónia alguma de batismo, nem mesmo põem nome aos filhos senão depois que eles chegam à idade de falar”.

Iremos ver adiante o que Lopes de Lima nos tem a dizer sobre os casamentos, os funerais, os usos e costumes dos Felupes. Não deixa de ser curiosa a forma como ele contextualiza a presença portuguesa, o comércio e até o clima: “Quando algum branco chega de novo a Bolor para fazer negócio, é do uso mandar ao rei um ou dois frascos de aguardente, e algum tabaco, rogando-lhe que venha a casa do seu hóspede para pôr as medidas, é este o princípio da boa fé. Os Felupes negoceiam pouco em escravos, pois que eles não escravizam pessoa alguma, e apenas servem de corredores de escravos, que lhes remetem do Interior para serem vendidos aos brancos. A porção de marfim que se pode encontrar neste país é insignificante, assim como a de coiros e cera; mas a vizinhança em que está da costa chamada Debaixo fornece de todos estes géneros o comerciante que aqui se vem fornecer”. Lopes de Lima diz que o clima é igual ao dos outros sítios da Guiné, há duas estações, o país é abundante em galinhas, patos, porcos e mesmo bois e que as frutas do país são a banana, a papaia, a laranja e o ananás.

(continua)


Lutas de Felupes
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Nota do editor

Último poste da série de 8 DE DEZEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22789: Historiografia da presença portuguesa em África (293): "Atlântico, a viagem dos escravos", texto de Miguel Real, ilustrações de Adriana Molder, fotografia de Noé Sendas; Círculo de Leitores, 2005 (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P22809: O meu sapatinho de Natal (10): A minha Consoada de 1969... a uns quilómetros do nosso aquartelamento de Capunga, entre Bula e Binar... a apanhar melgas e mosquitos (António Ramalho, ex-Fur Mil Cav)


Guiné > Região do Cacheu > Bula > CCAV 2639 (1969/71) > A AM [autometralhadora] Panhard, companheira insubstituível nas nossas colunas.

Foto (e legenda): © António Ramalho (2018) . Todos os direitos reservados (Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné)


1. Mensagem de e António Ramalho [, natural da Vila de Fernando, Elvas, a viver em Vila Franca de Xira, foi fur mil at da CCAV 2639 (Binar, Bula e Capunga, 1969/71), membro da Tabanca Grande, com o nº 757: tem cerca de três dezenas de referências no nosso blogue]


Data - 14 dez 2021 12:33 
Assunto - O meu Natal no mato
Caro Luís e restantes camaradas, bom dia.

O nosso blogue continua a encher de orgulho e prazer todos os que a ele têm acesso muito mais a quem nele colabora, muito grato por isso.

Com isto avivaste-me a memória, a minha Consoada de 1969 foi "magnífica", como não podia deixar de ser!

Fomos com um Gr Comb  a uns quilómetros de distância do nosso aquartelamento de Capunga, entre Bula e Binar, apanhar melgas e mosquitos!

À meia noite preparamos a mesa da Consoada, a mim tocou-me um cantil de chá e umas bolachas da MM - Manutenção Militar, bem boas!...

De Binar ouvimos um camarada, presumo que sentinela, fazendo umas rajadas, mas com ritmo alusivo à quadra natalícia!

Perante o silêncio da noite regressámos ao aquartelamento, felizmente sem problemas, o IN conteve-se, era Natal!

Um forte abraço para todos.
António Ramalho (nº 757)
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Nota do editor:

Último poste da série > 13  de dezembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22805: O meu sapatinho de Natal (9): Os meus Natais de 1970, em Bambadinca, e 1971, no Saltinho (Mário Migueis da Silva, Ex-Fur Mil Rec Inf)

Vd. também poste de 11 de dezembro de  2021 > Guiné 61/74 - P22798: O nosso blogue por descritores (6): "O meu Natal no mato": tem mais de 80 referências... Por curiosidade, o poste P5522, de 8 de dezembro de 2009, da autoria do Joaquim Mexia Alves ["Era lá noite de se embrulhar!"...] bateu o recorde de visualizações de páginas (n=4627) e de comentários (n=15).