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terça-feira, 8 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23058: Memória dos lugares (436): Safim, às portas de Bissau, e o terminal dos autocarros da A. Brites Palma (Victor Costa, ex-fur mil inf, CCAÇ 4541/72, Safim, 1974)


Foto nº 1


Foto nº 1A


Foto nº 2


Foto nº 2A

Guiné > Região de Bissau > Safim > c. 1973/74 > Autocarros da empresa A. Brites Palma que faziam a carreira Safim-Bissau (Foto nº 1) e Safim-Nhacra (Foto nº 2)

Fotos (e legendas): © Victor Costa  (2022). Todos os os direitos reservados. [Edição e legendagem complementa: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem do nosso camarada Victor Costa, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 4541/72 (Safim, 1974)


Data - 8 de março de 2022, 14:20  
Assunto - Fotografias dos autocarros da A. Brites Palma em Safim

Amigos e camaradas da Guiné,

Esta mensagem tem como objectivo, adicionar informação e duas fotografias relativas aos autocarros da empresa A. Brites Palma,  da Guiné,  para melhorar o produto final da publicação de 20/02/2022. (*)

A primeira fotografia mostra um autocarro dessa empresa, pronto para partir para Bissau. Por detrás dele encontra-se um mangueiro e o edifício da Marisqueira de Safim e do lado direito desta, o escritório da venda de bilhetes. 

A segunda fotografia é do mesmo dia e mostra outro autocarro no outro lado da estrada, na direção de Nhacra com as pessoas a aguardar a sua partida, portanto na direção contrária. O local das fotografias corresponde à estação de Safim.
 
Entre a estação e a placa de informação rodoviária (Bula) publicada em 06/03/2022  (**) existia uma distância de cerca de 200 m onde se realizava um mercado ou pequena feira ao ar livre (posso também enviar duas fotografias se acharem de interesse).

Se acharem que alguma coisa está fora da forma ou do espírito do Blogue, por favor, devem corrigir. Isto para mim é uma coisa nova, mas penso que estou a melhorar. (***)

Um abraço,
Victor Costa
Ex-Fur Mil At Inf
___________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 20 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P23011: Fotos à procura de... uma legenda (160): Transportes públicos de Bissau: ABP, que sigla seria esta ?

(**) Vd. postes de:


(***) Último poste da série > 28 de janeiro de 2022 > Guné 61/74 - P22944: Memória dos lugares (435): Missirá, regulado do Cuor, Sector L1 (Bambadinca), 23 de dezembro de 1966 (José António Viegas, ex-fur mil, Pel Caç Nat 54, 1966/68)

Guiné 61/74 - P23057: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XXIV: O regresso a casa, com a cidade do Porto a abrir os seus braços só para mim



Porto > Parte Ribeirinha da Zona Histórica do Porto, ao final do dia > c. 2016 > Foto do nosso saudoso camarada, e grande fotógrafo, amante da "Invicta", o Jorge Teixeira (Portojo) (1945-2017) (ex-Fur Mil Arm Pes Inf, Pelotão de Canhões S/R 2054, Catió, 1968/70). Publicada em 5 de setembro de 2016, na sua página do Facebook Jorge Portojo  (seu nome artístico), a escassos meses da sua morte, em 7 de abril de 2017. Reproduzido aqui com a devida vénia...

Quem vem e atravessa o rio
junto à serra do Pilar
vê um velho casario
que se estende até ao mar.

(...) E é sempre a primeira vez
em cada regresso a casa
rever-te nessa altivez
de milhafre ferido na asa.

letra de Carlos Tê, música de Rui Veloso)



Foto nº 1 > Uma imagem vale mais do que mil palavras...O Joaquim Costa, de braços abertos


Foto nº 2 >  O Vago Mestre Ferreira, o homem do arroz com estilhaços e o amigo Machado de óculos escuros


Foto nº 3 > O meu grande amigo Afonso... O homem da “caminhada louca” com o olhar cúmplice da sua esposa Luísa

Sobral do Monte Agraço> 20 de Abril de 2002 > O meu 1.º encontro-convívio, o 6º da CCAV 8351, "Os TIgres do Cumbijã" (Cumbijã, 1972/74)

Fotos (e legeendas) © Joaquim Costa  (2022). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Joaquim Costa, hoje e ontem. Natural de V. N. Famalicão,
vive em Fânzeres, Gondamar, perto da Tabanca dos Melros.
É engenheiro técnico reformado. Foi também professor.

Já saiu o seu livro de memórias (, a sua história de vida),
de que temos estado a editar largos excertos, por cortesia sua.
Tem um pósfácio da autoria do nosso editor Luís Graça (*)



Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) (**)

Parte XXIV - O regresso a casa

Estranhamente o dia da partida e a viagem para Portugal foram vividos quase em silêncio. Só quando se avistou Lisboa,  o pessoal gritou de felicidade e cantou: “cheira bem cheira a Lisboa”, mas sem grande entusiasmo. 

Sentia-se um ambiente estranho. Alegre, descontraído e ao mesmo tempo contido. O fim das hostilidades e uma pequena brisa do vendaval do PREC, que também chegou ao Cumbijã, talvez possam explicar esta melancolia.

Chegados a Lisboa, foi tudo muito rápido: Partida para um quartel que não faço ideia qual, nem onde fica, desfazendo-me de tudo que me recordasse a Guiné (deitei, literalmente, tudo num caixote de lixo, até os “roncos” de Nhacobá e muitas fotografias)... 

E mal nos despedimos uns dos outros, apenas uns acenos de circunstância com aqueles que nos cruzavámos na azáfama de nos libertamos “rapidamente e em força” (onde é que eu já ouvi isto?) dos último três anos.

Chegado ao Porto (Campanhã), pese embora a sofreguidão em rever a família, uma força vinda das entranhas, levou-me ao centro da cidade, apanhando um comboio com destino à estação de S. Bento com o dia ainda a romper. 

Quatro anos de estudante fizeram desta cidade a minha casa. A esta hora poucas pessoas se viam nas ruas e nos transportes. Senti a cidade a abrir os seus braços só para mim. Foi a primeira sensação do regresso a casa,  depois de uma longa e cansativa viagem.

Caminhei quase sozinho pelos Aliados, sentindo a falta do café Astória e do Imperial, este com a sua imponente porta giratória e o engraxador residente. Subi os Clérigos, passei pelo Estrela, o Aviz, o Piolho e ainda pelo Ceuta, felizmente, tal como os deixei. 

Respirei fundo várias vezes, chegando mesmo a limpar uma lágrima por este abraço da cidade que adotei e se me entranhou.

Durante uns anos nem falei nem queria ouvir falar da Guiné. Encontrei mais tarde o Portilho, o Albuquerque, o Beires, o Parola, o Félix e o Caetano em Itália (Veneza), em conversas de circunstância, não fazendo uma única referência à Guiné, procurando abreviar a conversa e fugir daqueles encontros como a fugir do passado recente.

Passados 28 anos depois do regresso da Guiné,  fiquei maravilhado com a carta do Tomé a convocar-me para o 6º encontro da companhia, em Sobral de Monte Agraço.  Com o entusiasmado até as lágrimas me vieram aos olhos com a perspetiva de rever aquela maravilhosa família.

No dia marcado lá abalei eu, mais nervoso do que quando embarquei para a Guiné.

Chegado ao local marcado na carta do Tomé: o mercado municipal, avistei, ainda dentro do carro, um grupo de idosos, não reconhecendo ninguém comentei com a minha mulher e o meu filho Ricardo: "De maneira nenhuma este grupo de idosos (já mais para lá do que para cá), é o pessoal da minha companhia"...

Abri a janela do carro e perguntei a uma pessoa que passava se aquele edifício, onde estavam os idosos, era o mercado municipal, confirmando que sim. Vai daí telefonei ao Tomé a saber se o grupo já tinha abalado para a igreja. Informa-me que não e que todo o pessoal ainda se encontrava junto ao mercado. 

Entretanto, o meu filho Ricardo, que tinha visto comigo, nos dias anteriores, as fotografias da Guiné que tinham escapado ao caixote do lixo em Lisboa, identificou o Afonso. Afinal, aquele grupo de idosos eram os temidos Tigres do Cumbijã

Tal como na Guiné, mantive o hábito de não me ver ao espelho!!!

(Continua)

3. Capa do livro do Joaquim Costa, "Memórias de Guerra de um Tigre Azul: O Furriel Pequenina, Guiné: 1972/74". Rio Tinto, Gondomar, Lugar da Palavra Editora, 2021, 180 pp.(*)

O livro, saído neste último Natal de 2021, aguarda a melhor oportunidade para a sua apresentação ao público.

Mas podem desde já serem feitos pedidos ao autor: valor 10 € (livro + custas de envio), a transferir para o seu NIB que será enviado juntamente com o livro.

Os pedidos devem ser feitos para o e-mail:


indicando o endereço postal.



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Notas do editor:


(**) Último poste da série > 1 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22954: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XXIII: Velhice vai no Bissau, Ó-lé-lé...lé-lé...

Guiné 61/74 - P23056: Parabéns a você (2043): Cor Art Ref DFA António Marques Lopes, ex-Alf Mil Art da CART 1690/BART 1914 (Geba, Banjara e Cantacunda, 1967/69)

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Nota do editor

Último poste da série de 5 DE MARÇO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23049: Parabéns a você (2042): Gil Moutinho, ex-Fur Mil Piloto DO e T6 da BA 12 (Bissau, 1972/73)

segunda-feira, 7 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23055: Notas de leitura (1426): “Amílcar Cabral - Pensar para Melhor Agir”; edição da Fundação Amílcar Cabral, Praia, 2014 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Junho de 2019:

Queridos amigos,

Se subsistem dúvidas sobre os inegáveis talentos de comunicador, educador, analista, ideólogo, incontestável líder político, ler estas centenas de páginas das intervenções que Amílcar Cabral produziu em Conacri no Seminário de Quadros do PAIGC, de 19 a 24 de novembro de 1969, elas ficarão dissipadas com tal leitura. 

E mais, está aqui o pensamento e o modo de agir de Amílcar Cabral, as suas convicções, o seu dogmatismo a que não falta a feição marxista heterodoxa, um entusiasmo e otimismo irrestritos mas com uma observação dos homens sem qualquer ingenuidade, ele sabia que estava a conduzir uma luta sem nenhum companheiro com capacidade que se lhe aproximasse, que enveredara para uma união de duas regiões com fortíssimas incompatibilidades, que ele pretendia que fossem superadas pela luta armada, como não foram.

Perpassa por todo este vasto documento o hálito daquele que foi, na sua geração, um dos mais formidáveis génios africanos.

Um abraço do
Mário



Um guia prático para conhecer o pensamento do revolucionário Amílcar Cabral (1/5)

Beja Santos

A obra intitula-se “Pensar para Melhor Agir”, comporta o teor integral das intervenções de Amílcar Cabral do Seminário de Quadros do PAIGC, que se realizou em Conacri, de 19 a 24 de novembro de 1969. A edição é da Fundação Amílcar Cabral, Praia, 2014, e tem organização de Luís Fonseca, Olívio Pires e Rolando Martins. 

De há muito que só é possível ler Amílcar Cabral entre nós nas bibliotecas ou adquirir as suas obras em alfarrabistas. Mesmo a antologia que António Duarte Silva lhe dedicou em 2008, já não está acessível. Escrevem os organizadores que os textos integrais aqui reunidos forma submetidos a uma revisão cuidada, não se perdeu o estilo comunicativo, coloquial, com o recurso a exemplos, que era timbre da sua oratória. 

O livro aparece organizado em sete capítulos que seguem a ordem cronológica das intervenções. Para se apreender o que de essencial as intervenções de Cabral trouxeram à narrativa política, os organizadores recordam o contexto em que foram proferidas no âmbito de um processo de institucionalização de um Estado soberano, respondia igualmente à política de Spínola, não iludia as dificuldades da luta de libertação em Cabo Verde, é também um valioso guião para estar atento às tensões internas, o líder do PAIGC não escamoteava casos de corrupção, de negligência, e daí o recurso por vezes de litania aos princípios e às orientações que norteavam o partido de que ele era a força-motriz, o mostrar os pontos fortes e fracos da atuação do partido, as por vezes atitudes desrespeitosas no relacionamento entre os militares e o povo, intervenções bem sistematizadas onde couberam a história da fundação do partido, a sua aliança com outros movimentos de libertação, o papel da mulher, como se podia melhorar o trabalho político no plano interno e na frente externa e, acima de tudo, em que consistia a ideologia anticolonialista que promanava da prática partidária.

 Este documento é de consulta obrigatória para quem quiser estudar a guerra da Guiné ouvindo diretamente os principais protagonistas, com Cabral na primeira linha.

Logo na saudação, anuncia que o princípio que o partido estabelecera nas relações com os militantes era o de confiar para que se possa confiar em nós, dizendo logo de seguida que era dever abrir caminho para que os jovens pudessem tomar a dianteira: 

“Mal-avisados são os dirigentes que queiram guardar o lugar só para si, sinal de que não têm consciência alguma do dever para com o seu povo; mal-avisados são os dirigentes que receiam os mais novos e ainda que a barba e os cabelos embranqueçam, ainda que envelheçam, pensam manter o seu lugar para sempre e tolher o caminho para que outros não passem adiante. Esses são servidores dos seus interesses, não são servidores do seu povo”.

Não deixa iludir que existia uma linha dogmática, di-lo abertamente:

“Connosco só marcharão aqueles que seguirem a linha do partido”.

 E revelando maleabilidade anuncia a rejeição do oportunismo, havia oportunistas que só queriam lutar pela Guiné e outros por Cabo Verde, o partido exigia unidade, era questão inegociável, como inegociável era a questão da cor, não se tolerava o racismo:

“Quem quer um partido só de negros que vá criar o seu partido. Quem quer um só de mulatos que vá criar o seu. Aqui não há nem Manjaco, nem Papel, nem Mandinga, nem Balanta, nem Fula, nem Sussu, nem Beafada, nem filho de Cabo-verdiano. Aqui há filhos do povo da Guiné e Cabo Verde que querem servir o partido”.

 Era uma saudação que funcionava como bilhete de identidade, e não se escondia que “quem não é por mim é contra mim”, é também dito abertamente: 

“Quem é contra o PAIGC é contra os interesses do nosso povo e a favor dos tugas. Porque na nossa terra, hoje, não há que escolher. A escolha é entre o PAIGC ou os criminosos colonialistas portugueses”.

 Cabral saúda quem veio de longe, quem estudou longe e vem agora entregar a sua vida ao partido, deseja a todos as maiores felicidades. E passa seguidamente para a análise da situação atual da luta. Comenta a organização do partido, a natureza da relação entre quem combate e quem trabalha, o orgulho que se tem em que a luta do PAIGC seja considerada exemplar na arena internacional, pelo facto de se ter pegado em armas para fazer política.

Aparecera uma consciência nova e tece-se de imediato uma crítica rigorosa: 

“Os camaradas que mais têm prejudicado a nossa luta não são os que têm armas nas mãos e não fazem fogo, que fogem das frentes do combate, que abandonaram a luta e foram esconder-se no Senegal ou na área de Bafatá, não são esses. Os camaradas que mais a prejudicaram são os que cometeram erros para com a nossa população, levando a que, nalgumas áreas, uma parte da população tenha perdido a confiança em nós. Foram camaradas que, abusando da força e das condições que o partido lhes deu, agiram mal em relação à população. São esses que estão a estragar a nossa luta. 

Alguns camaradas do partido chegaram a defender a opinião de que o nosso povo só vai à pancada. Houve mesmo camaradas responsáveis do partido que foram capazes de tratar os combatentes como se fossem animais. Como se pode contar com um combatente como camarada, como companheiro de luta, se ele é tratado com violência. Se temos de espancar o nosso povo, então deixemo-lo entregue aos tugas, até ao momento em que tivermos consciência para avançarmos sem pancada, porque o nosso povo não é lacaio”.

Passando de raspão sobre a luta em Cabo Verde, analisa a luta armada, vai direto à administração do território:

“Os colonialistas estão mal, politicamente, porque a sua administração é hoje mera fachada. Que está mesmo o administrador de Bafatá a administrar? E o administrador de Farim, o que é que ele administra? Que está a fazer lá sentado o chefe de posto de Bigene? Uma colónia não se mantém com tropas, com quarenta mil soldados; uma colónia governa-se com administradores, chefes de posto e cipaios”.

 Adverte que é através da luta que se constrói uma nação e que a condição étnica tem que ser superada, lembra que o colonialismo tem diferentes formas de apoio na Guiné, todos esses traidores estarão condenados a prazo. Apela à mentalidade ofensiva de todo o partido, enfatiza as questões da eficiência e da eficácia, e exemplifica:

“Se em vez de atacarmos um quartel uma vez em três meses o atacássemos três vezes num dia, eles sairiam de certeza, sobretudo se a nossa pontaria for boa e se tivermos sempre a coragem de atacar de mais perto. 

Infelizmente se, na verdade, o morteiro e o canhão, sobretudo o morteiro, representam um grande avanço na luta, também nos atrasaram um bocado, porque, desde que temos armas de longo alcance como os morteiros, os camaradas têm evitado agir com a infantaria. 

Mas ainda não temos grandes conhecimentos para trabalhar devidamente com o morteiro. Por isso gastamos muitos obuses e os resultados não correspondem a esse gasto. Se metade dos obuses que já gastámos da nossa terra atingisse o inimigo, este já tinha desaparecido da Guiné. Mas, mesmo nas condições em que trabalhamos, podíamos obter muito melhores resultados se os camaradas fizessem melhores reconhecimentos para utilizarmos melhor as armas que temos”.

Faz igualmente reparos à luta nos rios, à moleza revelada em flagelações, em emboscadas, há comandantes militares que já deviam ter sido afastados pelos responsáveis políticos. E volta de novo o seu olhar crítico para os membros do PAIGC que só pretendem gozar regalias e fogem ao trabalho duro. E endereça uma conclusão para esta comunicação:

“Ninguém mais do que nós mesmos pode estar em condições de avaliar a nossa luta. Se fomos capazes de fazer o que fizemos até hoje, devemos ser capazes de levar a cabo o resto que nos falta, que é muito mais do que aquilo que já conseguimos. Mas isso não nos deve subir à cabeça nem nos deixar cegos para nos impedir de ver as faltas, as asneiras, as indignidades e erros, até muito graves, que se têm cometido. Tanto por escrito como de viva voz, já tive ocasião de fazer duras críticas aos camaradas a esse respeito. Se cada um de nós, responsáveis do partido, homens e mulheres, elevarmos a nossa consciência ao nível da consciência e da esperança que o povo tem em nós, nada nos pode parar neste mundo, por maiores dificuldades que tenhamos de vencer”.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 4 DE MARÇO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23048: Notas de leitura (1425): "Portugal no Mundo"; Publicações Alfa - Um pouco da Guiné na obra de Luís de Albuquerque (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23054: Memórias do Chico: Refugiado na sua própria terra durante a guerra civil de 1998/99: 200 km e oito dias de aflição, entre Bissau e Fajonquito (Cherno Baldé) - III (e última) Parte: 14-15 de junho de 1998, "lar, doce lar"...


Guiné > Região de Bafatá > Contuboel > Centro de Instrução Militar de Contuboel > CCAÇ 2479 / CART 11 (1968/69) > Um instruendo, de etnia fula, cuja identificação se desconhece (mas parece ser uma cara "familitar", a de futuro soldado da CCAÇ 12) ... A placa rodoviária assinala alguns das povoações, mais importantes, mais próximas, anorte: Ginani (17 km), Talicó (22 km), Canhamina (27 km), Fajonquito (30 km), Saré Bacar (39 km), Farim (96 km)...
 
Foto (e legeenda) © Renato Monteiro (2007). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Fajonquito > c. 1972/74 > Rua principal de Fajonquito. Foto do álbum do José Cortes, ex-Fur Mil At Inf (CCAÇ 3549, Fajonquito, 1972/74 

Foto (e legeenda) © José Cortes (2010). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


RECORDAÇÕES DA GUERRA DE BISSAU,
O CONFLITO POLITICO-MILITAR DE 7 DE JUNHO DE 1998


III (e Última) Parte - De 14 a 15 de junho de 1998:  
De Bafatá a Fajonquito


por Cherno Baldé (*)


8º dia, 14 de junho, domingo, Bafatá: recordações dos tempos de estudante e da OPAD - Organização Pioneiros Abel Djassi (1975/79)

Na tarde do dia 14 de junho de 1998, uma semana depois do inicio da guerra ( a 7 de junho), chegámos à cidade de Bafatá. E durante a viagem, para já, o único acontecimento de relevo tinha sido o facto do jovem condutor decidir voltar, ainda, até Nhacra antes de virar o rosto do camião para leste. 

Tive medo sim, por algum momento, por causa dos imprevistos e imponderáveis a que estava sujeito qualquer veículo equipado de motor e assente sobre um monte de ferralha e rodas de borracha. Se acontecesse alguma avaria ao camião seria uma grande desgraça para nós que voltávamos para trás depois de termos alcançado lugares seguros. 

Era uma aventura perigosa. Para me acalmar, dizia a mim mesmo que não havia razão para entrar em pânico e repetia isso várias vezes à minha consciência, mas sempre que olhava para as crianças o medo voltava a me invadir de novo.

Ao atravessarmos a ponte de Finete, perto de Bambadinca, entrámos na zona controlada pelos governamentais que, a acreditar naquilo que tínhamos visto no caminho, oferecia maior segurança as populações civis. Junto à ponte estava um destacamento de tropas da Guiné-Conacri e alguns tanques de guerra dissimulados no meio do arvoredo. Tudo novinho em folha. 

Depois de Bantandjan, finalmente, chegámos à cidade de Bafatá.

Mas antes, o camião atravessou a ponte sobre um braço do rio Geba, por onde corria a água turva carregada de material orgânico com que fertiliza as bolanhas nas suas margens, passou pela antiga fábrica de cerâmica, atravessou a rua Porto, passando pelo Liceu, o nosso velho Liceu onde está situado o memorial de Amílcar Cabral e foi parar no Bairro de Sintchã Bonódji, na saída para Gabú.

Sem contar com o número de pessoas que tinha afluído a esta cidade leste do país, fugindo da guerra de Bissau, não se notava qualquer diferença. Sim, Bafatá era ainda a mesma cidade de sempre, preguiçosamente estendida no dorso de um planalto meio adormecido que tínhamos deixado 27 anos atrás, quando partimos para continuar os estudos em Bissau (em 1979).

Esta cidade não será, certamente, a pior localidade da Guiné, mas para mim foi um inferno durante uns longos anos dos quais conservo uma péssima recordação dos tempos de estudante. Aqui, de rafeiro saído de um antigo quartel de brancos e filho querido de um lojeiro de uma pacata aldeia que, no fulgor da sua inocência, pontapeava o prato de farinha de milho que a avó lhe trazia à noite, tinha-se transformado num verdadeiro cão vadio. Nunca e em lugar algum tinha merecido tanto este animalesco cognome.

Lembrei-me de Boma (situada à frente do quartel), suas árvores frondosas e a água fresca das suas nascentes onde íamos esconder-se das brasas do calor que arrasavam os Bairros situados na parte mais elevada do planalto e a Ponte Nova e onde, também, íamos enganar a fúria das nossas fomes insaciáveis de estudantes sem tecto, fingindo estudar. 

O guarda da plantação de mangueiras e cajueiros nas profundezas de Boma cujo nome era Sekuel (1), nos conhecia de cor e deixava-nos assaltar a sua horta, na certeza de que não adiantava muito tentar impedir-nos. Era uma pessoa dotada de grande humanismo e de bom senso, vacilando entre as suas obrigações de guarda e os sentimentos de piedade para com crianças deserdadas. No princípio ainda tentou, mas rapidamente teria notado que, empurrados pela fome, a nossa insistência e capacidade de resistência eram fora do comum.

 Não tínhamos alternativa. Acabou por nos aceitar como se aceita a presença de animais roedores dentro da própria casa. De facto, durante mais de cinco anos, conseguimos sobreviver graças a nossa perícia em roubar e mendigar peixe e frutas, ora nos mercados ora nas hortas à volta da Cidade.

Foto à esquerda: OPAD - Organização Pioneiros Abel Djassi. Foto de perfil, página do Facebook (com a devida vénia...)


Ali estava Bafatá com os seus habitantes avaros e a sua juventude implacável que aceitava mal a invasão da mocidade mal fardada,  vinda das tabancas ao seu redor a quem apelidavam de mocidade treco (2). 

O certo é que, por qualquer razão, as nossas fardas destoavam sempre dos da cidade. Foi assim no tempo da mocidade portuguesa e foi assim com os pioneiros Abel Djassi. A farda era a mesma, mas a tonalidade das cores era sempre diferente. As meias, calções e sapatilhas não eram tão castanhos como se devia, a camisa era verde ou azul mas não tão verde ou azul como se devia e isto era motivo de chacota e de corre-corre entre os jovens incautos que tinham aceitado a aventura das paradas e acampamentos na cidade. Faziam-no de propósito, para se divertir.

Vindos de Contuboel, Gabú, Sonaco, Cossé, Pirada, Bajocunda, Paunca, Pitche, Bambadinca, Quebo, entre outras localidades, e abandonados numa cidade inospitaleira, o nosso bando era formado por jovens de todas as regiões, de todas as cores, com uma particularidade bem marcante. Todos tinham nascido e crescido com a guerra colonial e todos eram originários de antigos centros de aquartelamento de tropas portuguesas e muitos tinham aprendido as primeiras letras com soldados e oficiais portugueses.

Esta era, para todos os efeitos, a primeira geração formada nas escolas portuguesas dentro da comunidade Fula e talvez de todos os grupos étnicos (chamados gentílicos) na zona leste da Guiné-Bissau. 

A administração portuguesa só tardiamente (com o General Spínola), se tinha resolvido a seguir os conselhos de Teixeira Pinto, ainda no princípio do século XX, de criar escolas para os nativos em todos os postos militares, convencido que, a coragem e irredutibilidade do Guinéu estaria ao mesmo nível do seu obscurantismo (R. Pélissiér – História da Guiné).Mas, no fim, foram o PAIGC e a independência que colheram os louros da formação de quadros,  iniciada na década de 60 e acelerada a partir de 70.

Quando apanhavam um dos nossos durante os saques, os outros vinham em grupo ajudar o companheiro infeliz. Tínhamos regras a que éramos muito fieis, ajudar um ao outro e nunca faltar às aulas, com ou sem fome. Era a mesma lógica no enfrentar das situações de perigo e de necessidade. Roubar ou morrer de fome.


9º dia, 15 de junho, segunda feira, Fajonquito:  "lar, doce lar"...

A nossa estadia em Bafatá, não demorou muito, estávamos apressados. Dormimos uma noite e na manhã seguinte partimos para Fajonquito

Antes de partir, acompanhámos a Djenaba e as suas crianças a fim de apanharem o transporte que os conduziria até Bambadinca donde partiriam para a aldeia dos pais em Cacine, no sul do país. Despendi parte do meu dinheiro para os ajudar a alimentar-se durante o trajecto que seria, longo e, certamente, difícil nessa altura. (Distância Bambadinca-Cacine, 103 km).

Podia estar orgulhoso do meu trabalho, pois apesar das dificuldades, tinha conseguido tirar de Bissau duas famílias, ou seja,  10 pessoas. Também, já não restavam dúvidas que esta guerra iria durar. Foi com este pensamento que me despedi deles e da cidade de Bafatá, rumo à minha terra natal.

Engraçado, agora que estava a alguns quilómetros da minha tabanca, lembrei-me que o meu filho, nascido e criado na cidade, não sabia falar a nossa língua, como dizem os Fulas, era macaco que não sabia trepar

Também eu, alguns anos antes, não sendo filho de gente da cidade, quando me mudei para Bafatá, ainda não falava o crioulo. O meu filho fazia o percurso inverso num contexto e condições diferentes, porém, havia uma constante, era o mesmo país de sempre, a Guiné-Bissau como a Guiné de Cabo Verde, no desequilíbrio da balança, oscilando entre a guerra e a paz.
                                                                   
Bissau, de Junho a Dezembro de 2000
                                                                          
Cherno Abdulai Baldé
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Notas do autor:

(1) O sufixo el depois de qualquer nome na língua fula- Sekuel, Gadamael- Contuboel- significa pequenino e, logo, lindo. A beleza, entre os fulas, é algo intimamente associado ao que é pequeno, que não é grande.


5 de março de 2022 > Guiné 61/74 - P23050: Memórias do Chico: Refugiado na sua própria terra durante a guerra civil de 1998/99: 200 km e oito dias de aflição, entre Bissau e Fajonquito (Cherno Baldé) - Parte I: Bissau, 7-11 de junho de 1998

domingo, 6 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23053: Memórias do Chico: Refugiado na sua própria terra durante a guerra civil de 1998/99: 200 km e oito dias de aflição, entre Bissau e Fajonquito (Cherno Baldé) - Parte II: de 11 a 13 de junho de 1998, de Safim a Mansoa: uma dádiva de Deus


Guiné > Carta de Bissau (1949) > Escala 1/50 mil > Posição relativa de Nissau, Ajuda , Brá, Bissalanca, Antula, Cumeré, Jal, Safim e Nhacra

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2022)



Guiné > Região de Bissau > Safim > 1973 > Cruzamento: Bula e João Landim, à esquerda; Ensalme, a 5 km, à direita... (e depois Nhacra e Mansoa)

Foto de um militar português, António Rogério Rodrigues Moura, que lá estava aquartelado em 1973...



RECORDAÇÕES DA GUERRA DE BISSAU,
O CONFLITO POLITICO-MILITAR DE 7 DE JUNHO DE 1998


Parte II-  De 11 a 13 de junho de 1998: De Safim a Mansoa, uma dádiva de Deus 

por Cherno Baldé (*)


5º dia,  11 de junho, quinta-feira, Safim. (*)

Na manhã do quinto dia, 11 de Junho de 1998, decidi que desta vez se a Djenaba, a minha cunhada, irmã mais velha da minha esposa,  não quisesse sair, então eu sairia com a minha família, mulher e filho. 

No entanto, quando lá cheguei, já estavam prontos, na verdade todos os vizinhos já se tinham ido embora. Pegámos nas coisas, metemos algumas provisões num carrinho de mão e rapidamente, atravessámos a bolanha de Bairro Militar, na zona de Brá. Ainda o fluxo da população era enorme. 

Seguimos ao longo da estrada que leva a estrada de volta a Bissau. A nossa caravana estava constituída de 10 pessoas: Eu, a minha esposa, o filho de três anos de idade [Abduramane Santos Baldé], a minha sobrinha de cinco anos, por um lado, e por outro Djenaba, seus quatro filhos e uma sobrinha, com 13 anos. Portanto, três adultos e sete crianças,  dos 3 aos 13 anos.

No caminho, pelas informações que circulavam, soubemos que em Safim a multidão era tanta que já era muito difícil encontrar água. Munido desta informação, decidi seguir a via alternativa. Consultámo-nos rapidamente e decidimos tentar chegar até Nhacra

O percurso seria difícil mas aumentava nossas hipóteses de sobrevivência se conseguíssemos lá chegar. Caminhámos para o cemitério de Antula. A minha intenção era atravessar a bolanha, passar para os lados de Cumeré e seguir até Nhacra a uma distância de, talvez, 20 Km.

Era puro palpite, nunca tinha feito esse percurso antes. O raciocínio parecia correcto mas, todavia, ao chegarmos às portas do cemitério, cruzámo-nos com uma multidão de pessoas que estavam cobertas de lodo dos pés a cabeça, irreconhecíveis, pareciam Nhayés Balantas, informaram-nos que era impossível passar por ali pois o curso d´água estava muito baixo, só pessoas jovens e fortes podiam fazer a travessia, e isto quando havia canoa.

Ao ver o estado deplorável dos nossos interlocutores, não tive qualquer dúvida e tivemos que voltar atrás a fim de procurar o caminho de Safim. Já tínhamos perdido três horas de tempo e as crianças já davam sinais de fadiga. A quantidade de água era insuficiente pelo que comecei a racionar o seu consumo. 

A alegria das crianças abrandou, no caminho, juntámo-nos à multidão que de todos os lados afluía, seguindo depois pela bolanha que separa o Bairro de Afiá ao Aeroporto de Bissalanca, para tentar chegar à estrada que leva a Safim, para os lados de Djáhal.

Ninguém soube porque tinham fechado as vias de saída para fora, por onde todos podiam sair, transportados em veículos, sem grandes dificuldades. Mas eu sei e a resposta, na minha opinião, é muito simples: Ódios e medos que ganharam as hostes dos militares e antigos combatentes desde 1980. Ódios, medos e velhos demónios trazidos das matas de Oio, Cubucaré e Quitáfine, que ainda não tinham sido exorcizados de todo.

Durante o trajecto ouvíamos o som das explosões das BM [, órgãos de Estaline,] e uma vez pareceu-nos que éramos nós os visados ao ouvirmos o assobio,  seguido do impacto de uma bomba à nossa frente e nessa altura tivemos que nos deitar ao chão. 

Foi durante este exercício que o meu filho que viajava em cima dos meus ombros, caiu estatelando-se no chão. Para além dos bombardeamentos contínuos que pareciam nos perseguir, foi, talvez, o único momento em que ele sentiu, de facto, o perigo em que nos encontrávamos e já não lhe parecia tão divertido andar viajando nos ombros do papai.

Chegámos à vila de Safim quando o sol já começava a descair para oeste, pintando o horizonte de vermelho. O maior problema que tivemos foram os bombardeamentos que nos acompanharam ao longo do trajecto, de resto, chegámos em bom estado e, no fundo, a travessia acabou sendo divertida com as crianças a correr de um lado para o outro numa planície largamente aberta e pitoresca. 

As paisagens da nossa terra são lindas. Era uma maravilhosa descoberta para eles, crianças de uma cidade caótica, fechadas entre muros e estradas estreitas. Sentia-se o cheiro acre da terra esbranquiçada da bolanha que os pés libertavam na caminhada qual manada de búfalos em corrida tresloucada.

A confusão em Safim, afinal, não era assim tão grande como se dizia, e não tivemos problemas de maior para nos instalarmos. Era preciso preparar rapidamente qualquer coisa para comer e preparar-se para o que desse e viesse. 

Graças à ajuda de um colega, consegui uma cama para três pessoas. O espectáculo na estrada era impressionante, uma corrente humana afluía de Bissau para o interior, cada um carregando o que podia, acompanhado de suas crianças e até de alguns animais. Esta caminhada era sobretudo difícil, para não dizer impossível, para os idosos. Alguns caiam no caminho completamente esgotados, e muitos acabaram por morrer.

Passámos dois dias em Safim, na vã esperança de que tudo ficava resolvido e que tão cedo como isso voltávamos para casa. Tudo se assemelhava a um pesadelo, que insistia teimosamente em transformar-se na mais dura das realidades, daquelas que não queremos reconhecer como tal mas que parecem gozar com a nossa capacidade de entendimento. Todos os dias víamos pessoas a correr para embarcar em camiões que as levavam para longe dali.

Como da primeira vez, a minha decisão de partir chegou tardiamente, pois a Djenaba estava à espera que o seu marido viesse à sua procura. Também eu desejava que assim acontecesse pois senão teríamos grandes problemas com ela e seus filhos pois o seu destino era para o sul e nós devíamos seguir para leste. Todavia, o marido não aparecia. No dia seguinte, decidimos avançar para o centro da vila na esperança de conseguir transporte.



Guiné > Mansoa > 1968 > CCAÇ 2405 (1968/70) > O Alf Mil Inf Paulo Raposo, membro da nossa Tabanca Grande, junto à placa toponímica que indicava as localidades mais próximas: para oeste, Nhacra (28 km), Bissau (49 km)...; para leste, Enxalé (50 km), Bambadinca (65 km), Bafatá (93 km)... De Bissau a Fajonquito, o "refúgio" do Cherno Baldé e família eram caerca de 200 km.

Foto (e egendaO: Paulo Raposo (2006)Todos os os direitos reservados. [Edição e legendagem complementa: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


7º dia, 13 de junho, sábado, Mansoa:  O perigo ainda a espreita

No centro da vila de Safim, apesar do trabalho contínuo dos camiões que transportavam as pessoas para o norte, o  leste e o sul, ainda a multidão apinhada junto a estrada era enorme e, para conseguir um lugar num desses camiões,  era uma autêntica guerra e para quem tinha crianças e cargas ainda pior. 

Como a desgraça nunca vem só, o transporte não era gratuito,  aliás, os preços tinham subido cinco vezes mais. Fomos parar junto a uma escola, onde pernoitámos. A maioria estendeu-se assim directamente no chão. Consegui arranjar um lugar sentado numa carteira da escola local, apinhada de gente, onde passei a noite com o meu filho ao colo. Na manhã do dia seguinte esperava-nos uma boa surpresa.

O meu colega tinha conseguido, para nós, uma boleia até à cidade de Mansoa. Bem, não era exactamente o que precisávamos mas, nessa altura, com os ruídos e os sinais da guerra cada vez mais perto, o que importava era afastar-se o mais longe possível. Quando me informaram, nem sequer nos preocupámos com o pequeno-almoço. Preparámo-nos rapidamente e fomos pegar o camião.

Depois de muitos anos trabalhando como quadro superior da administração com carro de função e regalias, a sensação que senti, ao embarcar nas traseiras de um camião, foi indescritível. Mais uma vez, isto não era o mais importante, aliás, sem o saber, tínhamos entrado no labirinto onde, cada vez, as coisas tomavam um carácter estranhamente diferente, onde tudo perdia o seu verdadeiro sentido e valor. 

Ali, pela primeira vez, percebi que o mal era irreversível e com ele a desgraça humana que o acompanha sempre que a ordem é abalada. A pensar que, no meu íntimo, tinha desejado esta sublevação armada, logo a desordem. Não, de facto, não era a desordem que desejara mas sim uma mudança. Mas, é possível fazer a mudança sem criar desordem? Era possível criar, algo de novo, sem destruir? Eis uma questão melindrosa para a qual não tinha resposta.

No geral não nos surpreendeu muito esta inversão de situação e, como eu, as pessoas viviam esta situação de forma absolutamente normal, afinal tinham também vivido a independência, acontecimento que tinha virado o país de pernas ao ar há cerca de 24 anos atrás. 

O desespero é apanágio das pessoas de pouca fé. Isto não durará para sempre, dizia-me a mim mesmo para me confortar. Na verdade, o medo do desconhecido roía o meu coração de chefe de família e, chegado a este ponto, lembrei-me do meu pai e da sua coragem nas situações mais difíceis por que tínhamos passado, na infância. Tinha conseguido, finalmente, encontrar a âncora que me faltava neste mar de angústias, o exemplo e a bravura do meu pai.

O camião rolava velozmente para fora de Safim, finalmente tínhamos conseguido sair do inferno situado nos arredores de Bissau. Tentando verificar se estávamos ao completo, acabei reparando em Djenaba, acocorada não muito longe, à minha esquerda. O seu rosto estava banhado em lágrimas. Porque chorava ela? É possível compreender as mulheres? Virou-se para o outro lado como quem queria admirar o andamento das árvores, na verdade, não queria enfrentar o meu olhar recriminatório. Ah, Chita, a nossa cadela, deixámo-la ficar em casa. Era tarde demais.

A nossa partida para Mansoa tinha sido fruto de um puro azar, o que não era de admirar naquelas circunstâncias e, por isso mesmo, não tínhamos ninguém à nossa espera. Descemos do camião e acomodámo-nos na sombra de uma mangueira,  perto da missão católica enquanto ia pensando sobre a decisão a tomar de seguida. 


Sabia do enorme esforço que a igreja estava a fazer para ajudar as multidões abandonadas a si, particularmente naquela cidade. Mas, na verdade, imaginando o trabalho que já teriam tido com toda aquela gente, eu não tinha qualquer intenção de sobrecarregá-la com mais pessoas, por enquanto. Fomos, sim, lá dentro reabastecermo-nos de água.

Foto (à esquerda): Cherno Baldé em Fajinquito  (2010) . 

Mais uma vez, foi um colega que nos encontrou ali casualmente e que nos socorreu, levando-nos para a sua casa. No dia seguinte  já estávamos bastante melhor. Estávamos longe do teatro da guerra, tínhamos tomado banho e recuperado um pouco do nosso juízo e amor-próprio.

Todavia, sabia que ainda estávamos numa área potencialmente perigosa, pois a cidade de Mansoa, situada na confluência das principais vias que atravessam o pais, é um corredor natural de acesso às três zonas em que este se divide, Bissau/Centro, Leste/Sul e Norte/Oeste. E funcionou sempre como um ponto estrategicamente importante em termos militares. 

Por enquanto estava sob o controlo da Junta Militar [de Ansumane Mané,], aliás toda a zona norte estava nas mãos desta, enquanto a zona leste e parte do sul se mantinham fiéis ao governo. Para qualquer das duas partes, pensei, o controlo de Mansoa será indispensável para a conquista do resto do país. Por isso convinha sair dali sem perda de tempo.

A casa do meu colega estava situado na estrada que liga Mansoa a Mansabá e não muito distante do centro da cidade, por isso, deixámo-nos ficar ali à espera mesmo depois de ter despedido dos nossos benfeitores. Comecei, então, a fazer vaivém entre a casa e o centro da cidade à procura de uma solução. 

Foi com grande alívio que vi aparecer um camião que já conhecia, e o motorista, um jovem da minha aldeia, Fajonquito, quando me viu parou para os habituais cumprimentos. Não foi preciso dizer nada pois era evidente que estava ali à espera de poder viajar até Bafatá a partir donde poderia seguir para a aldeia natal. Explicou-me que tinha que ir até Farim mas que, de seguida, voltaria no mesmo dia a Bafatá.

Ficámos à espera, já, mais confiantes e descontraídos. Consegui finalmente comer alguma coisa para enganar a fome,  pois a preocupação e a responsabilidade que pesavam sobre mim não me tinham permitido fazê-lo havia muito tempo. A espera não foi demorada. Pode ser que tenha sido, mas não deu para perceber, estava contente de mais pela dádiva que Deus nos concedera.

(Continua)
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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 5 de março de 2022 > Guiné 61/74 - P23050: Memórias do Chico: Refugiado na sua própria terra durante a guerra civil de 1998/99: 200 km e oito dias de aflição, entre Bissau e Fajonquito (Cherno Baldé) - Parte I: Bissau, 7-11 de junho de 1998                                 

sábado, 5 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23052: Fotos à procura de... uma legenda (162): Também me recordo da carreira de "Ambulâncias" entre Bissau e Cacheu, só não me lembro da cor dos autocarros nem da empresa a que pertenciam (António Bastos)

1. Mensagem do nosso camarada António Paulo Bastos (ex-1.º Cabo do Pel Caç Ind 953, Teixeira Pinto e Farim, 1964/66), com data de 4 de Março de 2022, onde nos fala da "Ambulância" que fazia a carreira Bissau-Cacheu-Bissau:

Boa noite a toda a Tabanca Grande.

Camaradas, já venho há umas semanas a ver se consigo lembrar-me qual a cor e a empresa do autocarro mas não saiu nada, são os anos.

Eu estive no Cacheu de 21-7-64 a março de 1965. Como sabem, aquele rio tinha a foz muito perto da fronteira com o Senegal, e era ali que chegavam os Ihomincas, como lhes chamavam no Cacheu. Aquela gente vinha carregada de tudo naquelas canoas (na 1.ª foto) eram eletrodomésticos, máquinas fotográficas, rádios etc.

Foto 1 - Canoas no Pidjiguiti

Ao desembarcarem tinham que passar pelo quartel e abrir as malas para serem vistas (2.ª foto), depois seguiam para o Posto Administrativo para pagarem a respectiva taxa (não me recordo quanto era) e depois lá iam eles apanhar a "Ambulância", assim chamavam ao autocarro com destino a Bissau.

Foto 2 - Cacheu, Novembro de 1964 > Bastos e Lopes fiscalizam as malas do gilas vindos do Senegal

A "Ambulância" fazia a carreira Bissau-Cacheu-Bissau. Também me recordo de o motorista, assim que chegava a Cacheu, geralmente ao sábado de manhã, ir logo a casa do senhor Joaquim Escada entregar encomendas e passar um pouco de tempo com ele e com a esposa. Eram um casal novo e tinham um filho com uns sete anos que mais tarde faleceu lá.

Também me lembro de numa altura em que a "Ambulância" vinha de Bissau para Cacheu, na estrada de Bula-Teixeira Pinto, ter sido atacada. Houve feridos, não me recordo quantos. Depois deste acontecimento, as carreiras foram interrompidas durante umas semanas.

Também sei que no mês de Agosto de 1964, quando os ihomincas chegaram à foz do Rio Cacheu, apanharam um tornado, tendo chegado a Cacheu com as canoas cheias de água e o material todo molhado.

Ainda tenho um rádio Sharp que lhes comprei e que ainda funciona.

Se entretanto me recordar de mais alguma coisa sobre o Autocarro ("Ambulância") logo escrevo.

Um abraço
A. Paulo
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Nota do editor

ùltimo poste da série de 2 DE MARÇO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23043: Fotos à procura de... uma legenda (161): Transportes públicos de Bissau: nos anos 50, operava a empresa A. Brites Palma (ABP), e os autocarros chamavam-se "ambulâncias"... Depois da independência, formou-se a empresa pública Silo Diata... (Mário Dias / José Colaço / Albertino Ferreira / Carlos Filipe Gonçalves / Cherno Baldé)

Guiné 61/74 - P23051: Os nossos seres, saberes e lazeres (494): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (40): Os esplendorosos jardins do Palácio dos Marqueses de Fronteira (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Dezembro de 2021:

Queridos amigos,
Aqui se põe termo à visita aos jardins dos Marqueses de Fronteira, azulejos admiráveis num jardim do tipo italiano, alguém disse que há a considerar neste palácio duas partes bem distintas, pois que parte da decoração interior é do século XVIII, mas o aspeto exterior, a riquíssima decoração cerâmica dos terraços e jardins, bem como a disposição geral destes, datam da primitiva e constituem o mais interessante e completo exemplo existente em Portugal de uma vivenda nobre seiscentista. Aliás deslumbra a vista do jardim e da Galeria dos Reis a partir do interior do palácio, ver a belíssima combinação entre a Casa do Fresco, nos jardins, com os anexos da capela, percorrer os painéis de azulejos no terraço, com a capela à vista, e saber que estes jardins cercados de uma azulejaria de sereias e tritões e tudo o que a fantasia oferece da vasta mitologia permite pensar que estes canteiros cercados de bucho, de acordo com as estações do ano, vêm desabrochar narcisos, margaridas, jacintos, tulipas, escovinhas, anémonas, rainúnculos e outros primores da jardinagem. Jardins e palácio são indissociáveis dada a estética harmoniosa que os completa, o que aqui se fez foi visitar ao pormenor estes primorosos jardins... E fica-nos desde já a vontade de voltar.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (40):
Os esplendorosos jardins do Palácio dos Marqueses de Fronteira (2)

Mário Beja Santos

Em São Domingos de Benfica, confinando com um fim ao Parque Florestal de Monsanto, de paredes meias com a Quinta dos Marqueses de Abrantes, levantou-se o Palácio dos Marqueses de Fronteira, por todos considerado um dos mais belos de Portugal, um verdadeiro museu de azulejos, de cerâmica, de belo estuque lavrado, fundado pelo 2º Conde da Torre e 1º Marquês de Fronteira, D. João Mascarenhas. E se o palácio é um tesouro, os seus jardins não lhe ficam atrás. É deles que vamos mostrar imagens que não iludem as preciosidades que acolhem os visitantes. Serve-nos de bússola o livro Jardins e Palácio dos Marqueses de Fronteira, por José Cassiano Neves, Quetzal Editores, 1995.
Recorda-se que estamos a falar de jardins ao gosto italiano, um amplo espaço circundado de terraços, escadarias como a bela balaustrada em mármore de Carrara. Tal terraço é continuado por um corredor que circunda o palácio para a direita, parece uma meia moldura onde ao fundo está uma interessante fonte com conchas, búzios, vidros de várias cores, fragmentos de loiças orientais, tudo fazendo desenhos bizarros – é a fonte da Carranquinha. Rodapés de azulejos é coisa que não faltam, polícromos, do século XVII.


O visitante, é inevitável, olha surpreso para temas da fidalguia, quadros mitológicos, bustos régios, cavaleiros à moda velasqueana, cavalos empinados, a circundar a fonte. Painéis de azulejos de murete, aqui e acolá, suscitam a atenção. E percorre-se a Galeria dos Reis bisbilhotando os que são de Portugal, sabendo que os Filipes, com quem tão estrenuamente os Mascarenhas lutaram, não têm ali lugar. Mesmo na Galeria dos Reis não faltam temas mitológicos, lá está Pã. Descendo da galeria para os tanques octogonais, há para ali uma bonita e artística taça, graciosidade é coisa que não falta nos jardins dos Marqueses de Fronteira. Como esta imagem abona é perfeito o enlace entre o palácio e os jardins.

O grande lago é espetacular e monumental, faz parte da lógica da conceção do jardim, vale a pena andar ali a bisbilhotar de um lado para o outro a alta parede do fundo do lago com os seus doze painéis de azulejo, três grutas e mais dois painéis laterais, com repuxo ao centro. Grandes painéis de azulejos figuram em tamanho natural, são os tais cavaleiros em grande galopada de altivo e marcial arranque, por isso se diz que à moda de Velasquez, este genial pintor espanhol assim concebeu os seus retratos equestres do Infante Baltasar Carlos, de Filipe IV e do Conde-Duque de Olivares.

Aqui o visitante se detém à busca de pormenores, já viu os guapos cavaleiros, alguns deles bem identificados, entre a casa dos Mascarenhas, um deles tem mesmo à sua volta uma cercadura com os títulos a que deu origem: Conde de Santa Cruz, Conde de Óbidos, Conde da Torre, Conde de Conculim, Marquês de Fronteira, Marquês de Montalvão, Conde de Sabugal, Conde de Serém, Conde de Castelo Novo, Conde de Palma, Conde de Vila da Horta.
Já se visitou a Galeria dos Reis, vai-se agora a caminho de um lago em forma octogonal, entre fetos e camélias, tendo a meio três golfinhos enlaçados. Andando por esse jardim, num dos topos, temos a Casa de Água ou do Fresco, trabalho de embrechado, com conchas, fragmentos de porcelana e vidro e lascas de pedra. Aqui encontramos faunos no interior da casa e cá fora revestimentos em forma de S, representando animais marinhos.


Atenção às costas dos bancos que envolvem o tanque dos S, porventura está aqui alguma da mais prodigiosa riqueza azulejar, cenas de pesca ao coral, painel com macacos e gatos representando a ala de música e o barbeiro. E divindades mitológicas, omnipresentes.

Requer-se tempo e gosto para ver os tipos de pesca, as sereias e os tritões, os búzios e as conchas, a variedade de figuras alegóricas no meio de arcos de vegetação, entender que esta aristocracia se dava bem com os temas da música e da dança, com fantasias e efabulações, como uma orquestra composta de gatos e macacos que tocam e cantam e onde não falta a menina dos cinco olhos para castigar quem desafina… Como diz Cassiano Neves, toda esta policromia azulejar data do primeiro terço do século XVII. Atenda-se que no plano superior a este jardim, há um novo lago, de forma quadrangular, tendo nove nichos, com outras tantas figuras mitológicas, conhecido por Lago dos Pretos. E o visitante nunca deve abstrair o ambiente circundante da Mata de Monsanto onde se encontram ainda algumas espécies da antiga vegetação da Serra de Monsanto, enquadramento natural do Palácio dos Marqueses de Fronteira.
A visita por natureza é inextinguível, aqui se vem de novo reclamado por esta estética admirável, não é por acaso que estes jardins estão entre os mais belos que há em Portugal. Finda a visita, haverá um dia em que aqui se regressará para falar das coisas do palácio. Fica o elemento de ligação, o estuque brasonado que nos receberá no dia em que aqui se baterá à porta do palácio.


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Nota do editor

Último poste da série de 26 DE FEVEREIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23033: Os nossos seres, saberes e lazeres (493): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (32): Os esplendorosos jardins do Palácio dos Marqueses de Fronteira (1) (Mário Beja Santos)