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quarta-feira, 20 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24677: Dos calores da Guiné aos frios da Gronelândia (2): Ilulissat, Gronelândia, agosto de 2023 (António Graça de Abreu)


Foto nº 8


Foto nº 9


Foto nº 10


Foto nº 11

Gronelândia, Ilulissat, agosto de 2023

Fotos (e legendas): © António Graça de Abreu (2023). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da publicação da série "Dos calores da Guiné aos frios da Gronelândia" (*), da autoria do nosso amigo e camarada António Graça de Abreu: 

(i) ex-alf mil, CAOP1, Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74; 

(ii) membro da nossa Tabanca Grande desde 5/2/2007; 

(iii) tem 326 referências no blogue;

 (iv) é escritor, autor de mais de 20 títulos, entre eles, "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura" (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp); 

(v) no nosso blogue, é autor de diversas séries: 

  • Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo; 
  • Viagem de volta ao mundo: em plena pandemia de COVID 19, tentando regressar a casa (em coautoria com Constantino Ferreira);
  • Excertos do "meu diário secreto, ainda inédito, escrito na China, entre 1977 e 1983"; 
  • Notícias (extravagantes) de uma Volta ao Mundo em 100 dias; 
  • Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74)

Dos calores da Guiné aos frios da Gronelândia (2)

por António Graça de Abreu (Foto nº 16)


Eu sei que isto são mais coisas para o nosso camarada Zé Belo, alcandorado há uns bons cinquenta anos lá pelas faldas da Lapónia, com alces a rondar-lhe a casa, em Kiruna, na bravia e gelada Suécia, e uns saltos a Narwik, na primorosa Noruega.

Mas eu também nasci com passaporte de coelho, o que até deu direito, quase numa anterior reencarnação, a participar numa guerra quente na Guiné-Bissau. Agora, Agosto de 2023, aos 76 anos, viajei durante duas semanas pela Gronelândia e pela Islândia, terras frias, tal como a Lapónia, lá no topo do mundo. Cruzei o círculo polar ártico, entretive-me a passear entre fiordes, icebergues e glaciares. Fiz bonitas fotografias, escrevi quase uma dúzia de esmerados textos. Se tiverem paciência, leiam, serão um contraponto fresco e pacífico aos calores bélicos que vivemos em África há cinquenta anos atrás. Aí vai:




Foto nº 12


Foto nº 13


Foto nº 14


Foto nº 15


Ilulissat, Gronelândia


Baía de Ilulissat, um mar de icebergues polvilhando as águas frias. Estamos duzentos e cinquenta quilómetros a norte do círculo Polar Ártico, a 69 graus de latitude . (Fotos nºs, 8., 9, 10 e 11).

 Provavelmente, foi desta baía que, entre muitos milhares de outros, desceu para os mares da Terra Nova o grande icebergue em que embateu o Titanic, na fatídica noite de Abril de 1912.

Hoje, Agosto de 2023, temos talvez o dia mais quente do ano, tempo primaveril, dez graus de temperatura. 

Uma avó gronelandesa  (Foto nº 12) empurra um carrinho com um bebé, seu neto, e usa uma blusa fina, duas mocetonas da terra, de anca larga e peitos fartos, empregadas de um hotel, saem para a rua vestindo camisas de Verão.

Dizem-me que a cidade de Ilulissat (significa “icebergues” na língua local) é o destino turístico mais popular para os fascinados por aventuras que varrem, ao de leve, o solo ímpar da Gronelândia. (Foto nº 13).

Uma caminhada de três quilómetros leva-me até às bordas do Icefjord, e depois Sermermiut, um imenso glaciar que é Património Mundial pela Unesco. Trata-se de um lugar sagrado pelos deuses e justifica a honra. São quilómetros e quilómetros quadrados de espantosos amontoados de gelo, com paredes que se elevam a mais de cem metros de altura, tudo enterrado no mar ou assentado há dezenas de séculos na pedra da costa. Vistas de extasiar, de estarrecer. 

Pena os mosquitos perto do glaciar, nas zonas onde não há gelo. São melgas negras, ferozes, que mordem, sedentas de sangue fresco. Derreteu a neve, veio o ténue calor do Ártico e, na vegetação rasteira dos pântanos entretanto criados, surgiram milhões e milhões de mosquitos.

Regresso a pé a Ilulissat (Fotos nºs 14, 15 e 17).

As casinhas desiguais, em madeira, coloridas, a construção parece barata e pouco sólida para aguentar o frio e o gelo de grande parte do ano. Porém, dentro, os lares são confortáveis, calafetados com fibra de vidro, seguros. 

Não existe saneamento público, cada casa tem uma fossa própria onde se despejam os dejectos. Uma vez por semana passa um camião cisterna que leva o conteúdo fétido e acastanhado das fossas. Em Ilulissat chamam-lhe o “camião chocolate.”

Os cinco mil habitantes da cidade vivem da pesca, da caça, da construção naval, do comércio, do turismo

Muitos têm traços fisionómicos aparentados com os mongóis, os olhos rasgados, a pele dura. São os esquimós, ou mais rigorosamente os inuites, porque a palavra “esquimó” que significa “os que comem carne crua” tem hoje um sentido pejorativo e já não é usada para os definir. 

Os 150 mil inuítes hoje existentes, resultantes de migrações do passado, estão espalhados por estas regiões acima do Círculo Polar Ártico, o norte do Alasca, o Canadá, a Sibéria e por toda a Gronelândia. 

Em Ilulissat, nasceu Knud Rasmussen (1879-1933), de pais missionários protestantes dinamarqueses. Explorador e antropólogo, -- a sua casa aqui está transformada em museu --, foi o primeiro a viajar e a escrever exaustivamente sobre os inuites e as terras e gelos do Ártico. 

De resto, a Gronelândia, a maior ilha do mundo, com 2,2 milhões de quilómetros quadrados (quase tudo montanhas de gelo) e apenas 56 mil habitantes, é ainda hoje, uma região administrativa da Dinamarca. 

Fala-se na independência plena do território que já tem bandeira, curiosamente com as cores da Dinamarca, duas metades de um círculo sobrepostas, uma rubra, o sol da meia-noite, a outra metade branca, o gelo de todo ano. (Fotos nºs 16 e 17)



Foto nº 16


Foto nº 17

© António Graça de Abreu (2023)

(Revisão / fixação de texto / negritos, e edição e numeração  de fotos, para publicação deste poste no blogue: LG)
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Nota do editor:

Último poste da série > 14 de setembro de  2023 > Guiné 61/74 - P24650: Dos calores da Guiné aos frios da Gronelândia (1): Fiorde de Prins Christian Sund, Gronelândia, agosto de 2023 (António Graça de Abreu)

Guiné 61/74 - P24676: Manuscrito(s) (Luís Graça) (233): Quinta de Candoz, as primeiras cores outonais...



















Quinta de Candoz,  19 de setembro de 2023> As primeiras cores outonais...

Fotos (e legenda): © Luís Graça (2023). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. Há quase cinquenta anos (vai fazer em 2025) que venho a Candoz (*). Aliás, ao Norte, ao Porto, à Madalena, V. N. Gaia. Para vergonha minha, antes do 25 de Abril, só conhecia o país, o Centro e o Norte, até à ria de Aveiro (e o Sul ainda pior, a margem esquerda do Tejo, Setúbal e pouco mais).

E nestes anos todos,  as transformações foram muitas, para não dizer profundas, radicais, estruturantes, em todos os domínios, a nível do indivíduo, da família, do habitat, do território, da economia, da sociedade, das organizações e instituições, etc. Da saúde à educação, do trabalho aos transportes, do lazer à cultura, da sexualidade à religiosidade, da política ao futebol, etc., etc.,

Mas, aqui em Candoz, no “país profundo”, onde o povoamento era (e ainda é) disperso e a predomina(va) o minifúndio,  ainda apanhei tantas “coisas do antigamente” (ou ainda estavam frescas na memória das gentes do vale do Tâmega)…

Listo apenas algumas (uma trintena) que me acorrem, ao sabor do teclado e no decurso desta época de vindimas (em que vim passar 15 dias a Candoz) (**), sem qualquer ordem de precedência, importância ou relevância, e esperando que os nossos leitores acrescentem outras tantas (positivas ou negativas, não têm que fazer juízos de valor; por exemplo, há outras "coidas boas" que persistem, e ainda bem nestas nossas pequenas terras , como o valor dado à família e à "leiras" (transmitidas de geração em geração ), o apego à liberdade, a linguagem chã,  a lealdade, a frontalidade, a nobreza de carácter,  o princípio da "palavra dada", a hospitalidade, a amizade, a camaradagem... 

Mas aqui vai a minha lista (que é meramente exemplificativa.  e muito "enviesada" pela minha vivência nortenha  limitada e esporádica, não tendo eu...  o ADN genético e cultural desta gente):

(i) a luta dos rendeiros contra a parceria agrícola e pecuária, formas pré-capitalistas de exploração da terra, com o pagamento das “rendas” em géneros (e em geral, numa proporção fixa, por exemplo ao terço, a meias, etc.);

(ii) a estratificação social nos campos (no passado): “”fidalgos”, pequenos proprietários, rendeiros…e cabaneiros (gente sem terra nem casa) (e que na igreja também se dispunham pela mesma ordem, com homens e mulheres, socioespacialmente separados);

(iii) os salamaleques da “servidão da gleba” (também do tempo da outra senhora): “com a sua licença, eu senhor e meu amo”, dizia o caseiro para o “fidalgo”, desbarretando-se a 10 metros de distância;

(iii) as juntas de bois lavrando a terra com arados de ferro;

(iv) a criação, em cortes, do gado bovino (o “tourinho”, mais bem tratado que a “canalha”, porque rendia dinheiro ao ser vendido na grande feira do Marco (de Canaveses);

(v) a cultura do milho de regadio, exigente em água e mão de obra (escondia-se o milho nas “minas”, as nascentes de água, para escapar à requisição do governo nos anos da guerra e pós-guerrra);

(vi) a vinha de bordadura (e na sua grande maioria, videiras de tinto… jaquê, um híbrido americano de há muito proibido mas sempre tolerado; de fraca graduação e pior qualidade, o “jaquê” chegava a maio já era intragável; de resto, nas vindimas toda a uva podre ia “para o tinto”; e não havia vinho verde branco,o que se fazia era “para o padre”()

(vii) o vinho tinto bebido da malga de barro vidrado ou da “caneca de porcelana”;

(vi) as “serviçadas” como a vindima, a malha do centeio, a desfolhada do milho, a espadelada do linho, a matança do porco, etc. . em que os vizinhos se ajudava, uns aos outros;

(vii) os grandes cestos de vime de 50 kg de uva que os “homes” transportavam aos ombros, por leiras e solcalcos abaixo (ou acima)nas vindimas,  até ao “lagar do vinho” (em geral, no piso térreo, da casa, e com chão sibroso por causa da temperatura ambiente):

(viii) a matança do porco e à salgadeira   (que era o “governinho da tia Aninhas”);

(ix) o valor comercial da madeira de carvalho, castanho e pinho (madeira nobre hoje destronada pelo eucalipto);

(x) a água de consortes (como a água de Covas, de que o meu sogro tinha direito a utilizar,só no solstício do inverno, uma vez por semana, das 10h da manhã às 6h00 da tarde;

(xi) os “montes” (pinhais) que eram “rapados” todos os anos, não só para limpeza e prevenção dos incêndios como sobretudo por causa da importância que tinha o mato para fazer “a cama dos animais” e depois o estrume;

(xii) a “esterqueira” (ao pé da porta onde se faziam todos os despejos domésticos);

(xiii) as longas caminhadas a pé (para se ir à missa, à romaria, à feira, à repartição de finanças na sede do concelho,  mas também ao "monte", ao "engenho" do m0leiro, ao médico, ao hospital da misericórdia);

(xiv) a escassez de meios de tração mecânica na lavoura (tratores, motocultivadores, etc.) e de transporte automóvel;

(xv) a “venda” que era mercearia, tasca, casa de comidas (para os de fora), cabine pública de telefone, caixa de correio, etc. (em geral à beira da estrada, e num ponto central, no "alto", por exemplo);

(xvi) a sardinha “para três” (que chegava de Matosinhos na Linha do Douro até ao Juncal, e depois era transportada à canasta e vendida de porta em porta);

(xvii) a típica gastronomia de Entre Douro e Minho, o caldo moado, as cebolinhas do talho, os salpicões feitos em vinho tinho verde, o anho com arroz de forno, as papas de farinha de pau, o arroz de cabidela, o bacalhau lascudo n0o Natal, a aletria, etc.

(xviii) só os homens usavam calças (!);

(xix) a virgindade (feminina) antes do casamento;

(xx) o medo da noite,   das trovoadas, das bruxas, dos lobisomens, o pensamento mágico, a aprendizagem através da oralidade à volta da lareira;

(xxi) a importância das feiras e romarias como factor de lazer, de socialização, de negócios, de informação, conhecimento e propaganda;

(xxii) os “bailes mandados” e as “tunas rurais do Marão”;

(xxiii) a luz do candeeiro a petróleo ou querosene;

(xxiv) o caciquismo político e eleitoral:

(xxv) o “varapau”  como símbolo da virilidade e da masculinidade (mas também de violência) (a ponto de ter sido proibido na via pública, nas festas e nos bailes, sendo o seu cumprimento fiscalizado pela GNR):

(xxvi) a fraca monetarização da economia (fazia-se algum dinheiro com a venda das uvas, do milho, do tourinho);

(xxvii) a autossuficiência da economia do pequeno campesinato familiar onde o pai era “pai e patrão” e  a “ranchada de filhos”  era garantia de mão de obra abundante e gratuita"... E em que sé cultivava e tecla o linho  e as raparigas tinh o "bragal";

(xxviii) a emigração (para o Brasil e depois para França e Alemanha);

(xxix) o obscurantismo religioso, político e cultural;

(xxx) as “grandes mulheres”, as "Marias da Fonte",  que em geral se escondem(iam) atrás dos seus “homes” ( de varapau na mão)…

… E dito isto, continuo a gostar de cá vir, em épocas emblemáticas, festivas, do Natal à Páscoa, da festa da Senhora do Socorro às vindimas... Claro, aos batizados, casamentos, festas da família, enterros… (E há perdas recentes, que nos deixam dor profunda e eterna saudade.)

E gosto de continuar a fotografar Candoz, ao longo das quatro estações e das várias horas do dia. E em particular nesta época do ano em que aparecem as primeiras cores outonais e os primeiros cogumelos. 

E continuo a eleger Candoz como tema da minha escrita (em prosa ou em verso, e nomeadamente nos meus/nossos blogues). Afinal, sou um pobre "citadino"... 

Que o leitor desculpe esta obsessão... É como a Guiné: estivemos lá menos de dois anos, e o blogue do Luís Graça & Camaradas da Guiné já vai a caminho dos vinte. Por menos, já me quiseram mandar para a psiquiatria. (LG)

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terça-feira, 19 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24675: Recortes de Imprensa (134): Jornal "Voz da Guiné" (4): Reprodução da 4.ª página do número 353, de 7 de Setembro de 1974 (Abílio Magro)

1. Continuação da publicação da transcrição das páginas do jornal Voz da Guiné de 7 de Setembro de 1974, enviada pelo nosso camarada Abílio Magro (ex-Fur Mil Amanuense (CSJD/QG/CTIG, 1973/74), em 13 de Setembro de 2023:

Bom dia camarada Carlos Vinhal
Conforme previsto no meu último mail, envio em anexo as primeiras 4 folhas do Voz da Guiné, devidamente transcritas para Word. Sobre este trabalho tenho a referir o seguinte:
1 – Corrigi várias gralhas/palavras, mas respeitei a pontuação dos autores embora me pareça existirem várias vírgulas “fora dos eixos”;
2 – Existem vários textos que nada têm a ver com a Guiné pelo que entendo ser lógico que, a partir da página 5 se transcreva apenas aqueles textos que, directamente ou indirectamente, digam respeito à Guiné-Bissau (se achares que, para o blogue, interessam todos, diz p.f., que agirei em conformidade);
3 – As folhas em Word já têm encimado o título do jornal, em jpeg (fácil de transpor para o blogger).

[...]
Saúde da boa.
Abraço
Abílio Magro


(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 18 de Setembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24668: Recortes de Imprensa (133): Jornal "Voz da Guiné" (3): Reprodução da 3.ª página do número 353, de 7 de Setembro de 1974 (Abílio Magro)

Guiné 61/74 - P24674: Manuscrito(s) (Luís Graça) (232): Zé do Telhado (Penafiel, 1816 - Angola, Malanje, 1875): um caso de "banditismo social"? Entre o mito e a realidade - Parte III: de herói patuleia a perseguido e fora-da-lei



Capa e contracapa do livro de Camilo Castelo Branco, “Memórias do Cárcere”, II Vol, 8ª ed. Lisboa, Parceria A. M. Pereira, Lda, 1966, (1ª ed., Porto, 1862) (Coleçáo "Obras de Camilo Castelo Branco,  Edição Popular, 54")


1. Aos 19 anos, por volta de 1836/37, José Teixeira da Silva (nascido em 22 de junho de 1818, no concelho de Penafiel), vai cumprir o serviço militar, no regimento de lanceiros nº 2, os "Lanceiros da Rainha", na Ajuda, em Lisboa. (*)

 Eis, a seguir,  como o Camilo Castelo Branco, a partir das confidências do Zé do Telhado na prisão do Tribunal da Relação do Porto (por volta de 1860/61), relata a sua vida na tropa e depois a sua participação na “Revolta dos Marechais” em julho de 1837, e mais tarde, em 1846/47 na revolta da “Maria da Fonte” (primavera de 1846) e na guerra da “Patuleia (novembro de 1846/junho de 1847). No primeiro caso, indo integrado nas forças do duque de Saldanha (que estava do lado dos “cartistas”) e no segundo caso como ordenança do general Sá da Bandeira, "setembrista", que tinha tomado o partido da Junta do Porto. 

Em 15 de novembro de 1846, num combate de Valpaços, Trás-os-Montes, José Teixeira da Silva (por alcunha, "Zé do Telhado") ganha por atos de excecional bravura a condecoração da Torre e Espada, grau de cavaleiro.  

Aos 19 anos, o Zé do Telhado trabalhava, como "capador" ou "castrador",  com o tio materno, no concelho vizinho de Lousada, e pretendia casar-se com a sua prima, Ana Lentina  de Campos, já órfã de mãe. O Camilo diz que este tio era de origem francesa, facto que está por comprovar. O pai da moça recusou-lhe a pretensão. Desgostoso, o rapaz alista-se no exército.

(…) Foi o moço para Lisboa, e jurou bandeira no segundo Regimento de Lanceiros, denominado o da Rainha [Dona Maria II] . A esbelta figura de José Teixeira era o encanto dos oficiais. Nenhum camarada caía tão airoso na sela, nem meneava mais garboso a lança. O cavalo entendia-lhe o mais ligeiro tremor de pernas, e enfeitava-se orgulhoso do possante e galhardo moço, que lhe embridava os ímpetos para realçar-lhe as soberbas graças.

Na conhecida revolta dos Marechais, em 1837 [1] saiu José Teixeira na comitiva do duque de Saldanha, e mostrou quem era nos combates do Chão da Feira [2] e Ruivães [3]

“Lá ouvi” − me dizia ele – “a cantiga das primeiras balas e algumas me queimaram o cabelo, e vinham dizer-me ao ouvido que estivesse sossegado. O barão de Setúbal [4]  disse-me uma vez que choviam balas; e eu mostrei-lhe a lança, e disse: “Cá está o guarda-chuva, meu general; deixe chover!”.

Não esqueceu o valente Schwalback 
[4] o afoito gracejo, quando a derrota lhe desordenava as filas. Como, em remate de luta, tivesse de emigrar para Espanha, o barão de Setúbal levou consigo, como sua ordenança, José do Telhado.

Fez-se a Convenção de Chaves [5] a tempo que o lanceiro recebia a Carta da sua prima, chamando-o a toda a pressa para se casarem com o consentimento do pai. Requereu o soldado a baixa, e obteve-a do barão de Vilar de Turpin, comandante da Terceira Divisão Militar. Recebeu o francês [seu tio materno e futuro sogro, que vivia na Lousada] em braços paternais e dotou a filha com abundantes bens para mediania aldeã. (…)

Seguiu-se a revolução popular de 1846 [5]. A populaça carecia de um chefe, e rejeitava os ilustres caudilhos, que saíram de suas casas nobres a especular com o braço do povo. Conclamaram à uma José Teixeira, e quase forçaram a comandá-los.

O chefe, conhecendo-se obscuro de mais para aceitar a responsabilidade e prestígio de cabecilha guerrilheiro, convenceu os seus amigos da precisão de se ajuntarem, sob outro chefe, às legiões populares que confluíam para a cidade heróica [o Porto].

Entrou José do Telhado ao serviço de Junta [do Porto] na arma de cavalaria. Comprou cavalo, e fardou se à sua custa a todo o primor. Repartia do seu dinheiro com os camaradas carecidos, e recebia as migalhas do cofre da Junta para valer aos que de sua casa nada tinham.

José Teixeira empenhou-se grandemente para satisfazer o que em parte era capricho e em parte largueza de alma.

Acompanhou a expedição a Valpaços, e foi dado como ordenança ao senhor visconde de Sá da Bandeira. As proezas cometidas nessa temerosa e mal sortida batalha, estão escritas na condecoração de Torre-e-Espada que o general, por sua própria mão, lhe apresilhou na farda.

Fora o caso que do cômoro duma ribanceira alguns soldados do regimento traidor [leais aos Cabrais] apontavam as armas ao general, conturbado pela fumaça das descargas, José Teixeira arranca do cavalo a toda a brida, toma as rédeas do cavalo do general, e obrigou a assaltar um valado. Mal deram o saldo, passaram as balas poucas polegadas acima da cabeça de ambos.

A este tempo três soldados de cavalaria avançaram desapoderados sobre o visconde de Sá. José Teixeira embarga-lhes a arremetida, desarma o primeiro de um golpe, fere mortalmente o segundo, e persegue o terceiro, que fugia, até lhe arrancar a vida pelas costas.

Quando voltou da fação, já o general tinha suspensa a medalha, que o valente recebeu com mais delicadeza que entusiasmo de honras.

Feito com o convênio de Gramido, José Teixeira arrancou as divisas de sargento e foi para casa, onde o esperavam a saudosa e atribulada mulher com os seus cinco filhos.

Como se disse, a casa estava onerada de dívidas, os credores perseguiam-no e as autoridades, avessas à sua política, esquadrinhavam disfarces para o 

afligirem. (…)

(Excertos: Camilo Castelo Branco, “Memórias do Cárcere”, II Vol, 8ª ed. Lisboa, Parceria A. M. Pereira, Lda, 1966, (1ª ed., Porto, 1862), pp. 87-91. Seleção, revisão, fixação de texto e notas, LG)
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Notas do editor LG:

[1] De 12 de julho até 7 de outubro de 1837

[2] Chão da Feira: perto da Batalha (28 de agosto de 1837)

[3] Ruiváes, Chaves (15 de setembro de 1837)

[4] João Schwalbach (1774-1847), barão de Setúbal

[5] Maria da Fonte e Patuleia (1846/47)
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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P24673: Convívios (973): Rescaldo do 36.º Convívio do pessoal da CART 3494 / BART 3873 levado a efeito no passado dia 16 de Setembro, em Abade de Vermoim - Vila Nova de Famalicão (Sousa de Castro)



A CART 3494 / BART 3873 CONFRATERNIZOU EM ABADE DE VERMOIM – V. N. FAMALICÃO, FOI O 36.º CONVÍVIO


No passado dia 16 de setembro realizou-se em Abade de Vermoim, freguesia do concelho de Famalicão o 36.º Encontro da CART 3494 / BART 3873 [NA GUERRA CONSTRUINDO A PAZ] que no cumprimento do dever ao serviço do Estado Português participou na guerra do Ultramar na Guiné, na zona leste, nomeadamente no Xime com 1 pelotão destacado no Enxalé, transitando mais tarde para Mansambo de 22/12/1971 até 03/04/1974.

O evento esteve a cargo do ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas – Adelino Alves Pereira com a colaboração do ex-1.º Cabo Radiotelegrafista - Sousa de Castro.


Tivemos algumas ausências de última hora, justificadas pela intempérie que se abateu em todo País, mesmo assim 34 “antigos combatentes” muitos com seus familiares mobilizaram-se e fizeram-se à estrada para mais um encontro e assim conviver, relembrando histórias passadas, mas que nunca esquecem. Foram 70 comensais. Muito Bom! Tem sido a média dos últimos anos.

Lembro, que é do nosso conhecimento a desencarnação de 38 camaradas, a quem prestamos a mais sentida homenagem, guardando 1 minuto de silêncio.

Uma palavra de ânimo para o nosso camarada d’armas, Celestino da Cunha Rodrigues (foto abaixo) que devido às suas limitações impostas pela saúde precária de que padece, a sua família, especialmente sua esposa, fez questão para que o Celestino mesmo em cadeira de rodas, convivesse uma vez mais com os seus camaradas. Era a sua vontade! Força nessa vida Celestino, estamos juntos!


Por fim dizer que para o próximo ano iremos comemorar as bodas de ouro da nossa chegada a Portugal. Já temos data, será no dia 08 de junho de 2024 em local a designar.
Foram nomeados o ex-Fur Mil TRMS – Luís Coutinho Domingues e o ex-Fur Mil Art – Manuel Benjamim Martins Dias (fotos abaixo).


Bem hajam!
Muita saúde da boa,
Setembro 2023
Sousa de Castro


FOTOGALERIA

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Nota do editor

Último poste da série de 9 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24636: Convívios (972): Almoço/Convívio do pessoal do Programa das Forças Armadas da Guiné (PIFAS), hoje, 9 de Setembro de 2023, com a presença do senhor General Ramalho Eanes (João Paulo Diniz)

Guiné 61/74 - P24672: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXXV: Um estranho sonho em Gandembel: "apanhado" pelo PAIG

Guiné-Bissau > Região de Tombali > Gandembel > Visita ao antigo aquartelamento português, por parte dos participantes do Simpósio Internacional de Guiledje (Bissau,l 1-7 de março de 2008) > 1 de março de 2008 > Restos do aquartelamento português, abandonado em 28 de janeiro de 1969, e posteriormente ocupado e dinamitado pelo PAIGC (facto a confirmar: também há outra versão, a de que o quartel, construído de raíz,  foi destruído pela FAP, o que seria mais verosímil)...  A importância estratégica de Gandembel / Balana em pleno corredor de Guiledje (bem como a sua heróica defesa, ao longo de nove meses, pela CCAÇ 2317 e outras forças portugueses, incluindo o BCP 12), não foi esquecida, apesar da posterior mediatização de Guileje...(*)

Foto (e legenda)  © Luís Graça (2008). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da publicação das memórias do Aamadu Djaló (Bafatá, 1940-Lisboa, 2015), a partir do manuscrito, digitalizado, do seu livro "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada) (**).

O nosso  camarada e amigo Virgínio Briote, o editor literário ou "copydesk" desta obra,  facultou-nos uma cópia digital. O Amadu Djaló, membro da Tabanca Grande, desde 2010, tem cerca de nove dezenas de referências no nosso blogue.


Capa do livro do Amadu Bailo Djaló,
"Guineense, Comando, Português: I Volume:
Comandos Africanos, 1964 - 1974",
Lisboa, Associação de Comandos,
2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.



O autor, em Bafatá, sua terra natal,
por volta de meados de 1966.
(Foto reproduzida no livro, na pág. 149)


Síntese das partes anteriores:

(i) o autor, nascido em Bafatá, de pais oriundos da Guiné Conacri, começou a recruta, como voluntário, em 4 de janeiro de 1962, no Centro de Instrução Militar (CIM) de Bolama;

(ii) esteve depois no CICA/BAC, em Bissau, onde tirou a especialidade de soldado condutor autorrodas;

(iii) passou por Bedanda, 4ª CCaç (futura CCAÇ 6), e depois Farim, 1ª CCAÇ (futura CCAÇ 3), como sold cond auto;

(iv) regressou entretanto à CCS/QG, e alistou-se no Gr Cmds "Os Fantasmas", comandado pelo alf mil 'cmd' Maurício Saraiva, de outubro de 1964 a maio de 1965;

(v) em junho de 1965, fez a escola de cabos em Bissau, foi promovido a 1º cabo condutor, em 2 de janeiro de 1966;

(vi) voltou aos Comandos do CTIG, integrando-se desta vez no Gr Cmds "Os Centuriões", do alf mil 'cmd' Luís Rainha e do 1º cabo 'cmd' Júlio Costa Abreu (que vive atualmente em Amesterdão);

(vii) depois da última saída do Grupo, Op Virgínia, 24/25 de abril de 1966, na fronteira do Senegal, Amadu foi transferido, a seu pedido, por razões familitares, para Bafatá, sua terra natal, para o BCAV 757;

(viii) ficou em Bafatá até final de 1969, altura em que foi selecionado para integrar a 1ª CCmds Africanos, que será comandada pelo seu amigo João Bacar Djaló (Cacine, Catió, 1929 - Tite, 1971)

(ix) depois da formação da companhia (que terminou em meados de 1970), o Amadu Djaló, com 30 anos, integra uma das unidades de elite do CTIG; a 1ª CCmds Africanos, em julho, vai para a região de Gabu, Bajocunda e Pirada, fazendo incursões no Senegal e em setembro anda por Paunca: aqui ouve as previsões agoirentas de um adivinho;

(x) em finais de outubro de 1970, começam os preparativos da invasão anfíbia de Conacri (Op Mar Verde, 22 de novembro de 1970), na qual ele participaçou, com toda 1ª CCmds, sob o comando do cap graduado comando João Bacar Jaló (pp. 168-183);

(xi) a narrativa é retomada depois do regresso de Conacri, por pouco tempo, a Fá Mandinga, em dezembro de 1970; a companhia é destacada para Cacine [3 pelotões para reforço temporário das guarnições de Gandembel e Guileje, entre dez 1970 e jan 1971]; Amadu Djaló estava de licença de casamento (15 dias), para logo a seguir ser ferido em Jababá Biafada, sector de Tite, em fevereiro de 1971;

(xii) supersticioso, ouve a "profecia" de um velho adivinho que tem "um recado de Deus (...) para dar ao capitão João Bacar Jaló"; este sonha com a sua própria morte, que vai ocorrer no sector de Tite, perto da tabanca de Jufá, em 16 de abril de 1971 (versão contada ao autor pelo soldado 'comando' Abdulai Djaló Cula, texto em itálico no livro, pp.192-195) ,

(xiii) é entretanto transferido para a 2ª CCmds Africanos, agora em formação; 1ª fase de instrução, em Fá Mandinga , sector L1, de 24 de abril a fins de julho de 1971.

(xiv) o final da instrução realizou.se no subsector do Xitole, regulado do Corunal, cim uma incursão ao mítico Galo Corubal.

(xv) com a 2ª CCmds, comandada por Zacarias Saiegh, participa, em outubro e novembro de 1971, participa em duas acções, uma na zona de Bissum Naga e outra na área de Farim;

(xvi) em novembro de 1971, participa na ocupação da península de Gampará (Op  Satélite Dourado, de 11 a 15, e Pérola Amarela, de 24 a 28);

(xvii) 21-24 dezembro de 1971: Op Safira Solitária: "ronco" e "desastre" no coração do Morés, com as 1ª e 2ª CCmds Africanos  (8 morts e 15 feridos graves);

(xviii) Morés, sempre o Morés... 7 de fevereiro de 1972, Op Juventude III;

(xix) o jogo do rato e do gato: de Caboiana a Madina do Boé, por volta de abril de 1972;

(xx)  tem um estranho sonho em Gandembel, onde está emboscado très dias: mais do que um sonho, um pesadelo: é "apanhado por balantas do PAIGC".


 Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXXV:

  Um estranho sonho em Gandembel (pp. 252-256)

 

Três dias depois de chegarmos do Boé, saímos de Quebo e fomos largados na tabanca abandonada de Gandembel, com a missão de nos emboscarmos na zona durante duas noites.

As minhas condições físicas não eram muito boas.

Três meses atrás, no Cupelom, em Bissau, quando estava a jogar o loto, a dinheiro, com vários companheiros, todos graduados, alguém gritou que vinha aí a polícia militar.

Arrancámos a correr do local, cada um para o seu lado, eu bati com o dedo grande do pé num pilar e o dedo estalou. Andei cerca de um mês a fazer fisioterapia no Hospital Militar em Bissau, mas mesmo depois dos tratamentos, quando calçava a bota, o dedo inchava e eu tinha dificuldade em andar. Durante algum tempo, entrei em Brá com uma bota num pé e um chinelo no outro.

Quando regressei dos três dias em Madina do Boé, descalcei a bota em Quebo e o dedo estava todo inchado. O descanso de três dias, que nos deram, não chegou para ficar bom e fui para Gandembel com uma bota e um chinelo.

Na primeira noite que dormi em Gandembel, adormeci quase de madrugada e sonhei um sonho idêntico, com poucas diferenças, ao que o Capitão João Bacar Jaló tinha sonhado em Jufá, quando foi morto. O sonho era este que vou contar... 

Vi-me com o meu guarda-costas a entrar numa tabanca, toda cercada de troncos de árvores. Começámos a revistar as casas e a perguntar quem tinha arma. Já à saída, pelo outro lado da tabanca, vi na última casa um homem sentado na cama, com uma arma, uma Mauser, encostada ao lado. Atingiu-o mortalmente com dois tiros e mandei o soldado apanhar a arma.

Quando estava a sair da casa,  vi um caminho com pegadas, muito utilizado. Entrei por ele até um pé de limão , com os ramos até ao chão, que não deixavam ver para mais longe. Fui até ao limoeiro e apareceu-me outro velhote, o mesmo com quem eu tinha sonhado há mais de dois meses.

Nesse sonho de há dois meses atrás, eu tinha visto esse velhote, à porta do quartel de Brá, a vender umas calças bonitas, riscadas , que na altura custavam 425 escudos e ele estava a vendê-las por 200. Achando o preço barato, escolhi dois pares e pedi-lhe que as guardasse e as trouxesse no dia seguinte, porque naquele dia não tinha dinheiro comigo. Ele respondeu para eu as levar e que no dia seguinte entregasse o dinheiro ao Cicri Marques Vieira, que era seu sobrinho. Recusei ficar com as calças, e voltei a dizer-lhe que,  se mas quisesse vender,  voltasse no dia seguinte, que eu comprava-as.

Estava neste ponto do sonho do homem das calças, quando acordei às 06h30, que era a hora do costume da gente se levantar. Nessa manhã, por volta das 11h00, apanhei uma viatura até à praça de Bissau e dirigi-me a um estabelecimento, onde comprei sete metros de fazenda bonita, riscada, que dei de esmola a um homem com aspecto de necessitado.

Voltando a Gandembel, ao sonho. Então, quando estava a sair da tabanca, vi o tal pé de limão no meio do carreiro e com muitos ramos pousados no chão, que impediam ver para além. Quando cheguei junto do limoeiro~, vi o velhote, o tal das calças, com que me tinha cruzado no sonho de há dois meses atrás.

Agarrei-lhe na mão e perguntei-lhe onde ia. Que ia para a casa dele.

Moras nesta tabanca?

Sim respondeu.

Tens arma?

Cá, só uma pessoa tem arma, que é o dono dessa casa ali à entrada.

A pessoa a quem o velhote se referia,  era o que, em sonho, eu tinha morto.

Perguntei se os combatentes vinham à tabanca e se hoje já tinham vindo.

Eu saí muito cedo. Por este caminho não vieram, agora não sei se tomaram outro caminho.

Tem dois caminhos? Onde é o outro ? perguntei.

Disse-lhe para me acompanhar, contornámos um local, onde estava caída, talvez há muitos anos, uma grande árvore, com um tronco grosso. Não havia espaço para passarmos os dois e fui à frente, para passar o tronco. Do outro lado, estava uma força de jovens do PAIGC, todos fardados e equipados com todo o tipo de armas. Eu quis fugir mas o velhote não me deixou, agarrou-me por trás e entregou-me ao PAIGC.

O comandante deles deu ordem para me amarrarem. Logo apareceu alguém com uma corda nova e amarraram-me os dois braços nas costas. Pedi para não me amarrarem, tinha o dedo grande do pé estalado, estava inchado e que não podia fugir. Trazia calçado uma bota num pé e um chinelo no outro.

 Criminosos! Até com pés partidos são voluntários para ir para a guerra! gritou o comandante.

 Não é assim, não! Nós somos obrigados, não somos voluntários! respondi.

Mandou tirarem-me a corda. Vindo não sei de onde,  surgiu um jipe que parou e o chefe mandou-me embarcar. Entrei no jipe, este pôs-se em andamento e reparei, então, que ia um europeu e que o condutor era mulato. Quando demorei os olhos no branco,  ele disse-me que, se eu me comportasse bem, talvez viesse a trabalhar com o PAIGC e com ele, que também tinha ido aprisionado.

 Onde foste preso ? perguntei eu no meu sonho.

Em Cutia respondeu.

- Cutia? Eu ouvi contar uma história de um soldado europeu, que tinha desertado com a Mauser de um milícia, em Cutia.

 Sim, fui eu, mas não desertei. Eu sempre que ia à fonte buscar água,  ouvia galinhas de mato a levantarem e, um dia, resolvi pegar na Mauser de um milícia. A Mauser é mais certeira, e fui sozinho tentar caçar alguma. Só que o PAIGC estava emboscado, à espera das mulheres dos milícias, que também iam a essa fonte buscar água, para as capturarem. E foi nessa altura que me apanharam. Se eu tivesse a intenção de fugir, não ia com a Mauser, levava a minha G-3, que talvez fosse melhor recebido.

No caminho chegámos a uma tabanca. O jipe parou, o soldado europeu saiu e, quando eu me preparava para sair também, o condutor fez-me sinal com a mão para aguardar. O mulato mascava qualquer coisa, talvez noz de cola. Tirou da boca a baba que estava a mascar e cuspiu-a no meu dedo inchado e com os dedos espalhou aquela baba em cima da unha do meu dedo estalado. Quando acabou de massajar, o soldado branco que estava ao lado disse-me:

 Calma, todas as pessoas que vêm para aqui, como detidos, têm que fazer isso.

Mandou-me acompanhá-lo a uma casa grande, que estava à nossa direita, com as portas fechadas e com buracos nas paredes e vi lá dentro gente com roupa branca vestida.

Aqui é a prisão dos civis e ali, naquela casa pequena, é a dos militares, estão lá alguns.

Deve fazer muito calor lá dentro observei.

É por isso que a porta tem buracos para entrar ar.

Meteu a chave na porta, abriu-a e, nesse momento, acordei.

Acordei admirado com o sonho e a pensar nele. Tirei um pedaço de cola que guardava debaixo do cantil, mastiguei-o e cuspi no meu dedo. Um soldado que estava ali perto, veio para ao pé de mim e perguntou se isso era para todos ou se era só para mim. Que era só para mim, que era um sonho que eu tivera.

Que sonho?

Esse soldado era filho de um padre muçulmano, de Bissau, e contei-lhe tudo. Ele disse que, se fosse ele, se fingia de doente para ser evacuado. Não vale a pena, respondi. Que no meu sonho tinha sido amarrado e desamarrado. Que tinha sido preso por balantas mas quem me escoltara fora um soldado branco e que o condutor era mulato. E que quando chegámos à prisão, o branco abriu a porta e nesse instante acordei. Por isso, não tinha nada a recear.

Foi desta forma que eu interpretei o sonho. O facto de ter o pé inchado, que era uma coisa real, salvou-me no sonho, que foi quando o comandante do PAIGC me mandou desatar.

As coisas reais, as que se passaram mesmo, foi o acidente com o meu dedo, o soldado europeu que desapareceu em Cutia e que vim a encontrar quando regressámos de Conackry.

Passámos a segunda noite em Gandembel e na manhã do terceiro dia recebemos ordem para nos prepararmos para partir para Guileje. Fomos a pé e chegámos a Guileje, por volta das 16h00.

Estivemos lá três dias à espera de alguma ordem, que nunca mais chegava. No quarto dia arrancámos para Gadamael Porto, com a indicação de apanharmos o barco de regresso a Bissau. Tudo correu conforme o previsto e embarcámos, rumo a Cacine. Estavam lá os páras, que foram nossos companheiros de viagem para Bissau.

(Revisão / fixação de texto / negritos: LG)

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(**) Último poste da série > 9 der setembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24634: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXXIV: O jogo do rato e do gato; da Caboiana a Madina do Boé, abril de 1972