1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Julho de 2022:
Queridos amigos,
É um testemunho de um valor inquestionável, alguém que acompanha e anota acontecimentos entre 1973 e 1976, a chegada de um novo poder a Bissau, regista as mensagens de maior impacto, cedo se percebe que não houve uma negociação séria entre o novo poder e os portugueses, os hospitais ficam sem médicos e as escolas sem professores e livros. O Padre Macedo regista as primeiras tensões com os apologistas da laicidade e da completa intromissão na obra missionária, deu faísca, as missionárias de Bafatá são as primeiras a sair. O tempo encarregou-se de alisar as propostas fanáticas como as de Lilica Boal, os missionários, depois deste período turbulento regressaram e são altamente estimados, deve-se-lhes o crescimento do catolicismo na Guiné, que não passava de um dígito magro até à independência, hoje o clero é influente, dialogante com o islamismo, as suas escolas são altamente procuradas e o trabalho na área da saúde mantém-se sem rival. Espero que a Ordem Franciscana publique o essencial deste diário, dada a sua riqueza histórica.
Um abraço do
Mário
Notas do diário de um franciscano no pós-Independência da Guiné-Bissau (3)
Mário Beja Santos
Na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa chamaram-me à atenção para o número mais recente da revista Itinerarium, o n.º 227, referente ao semestre de janeiro a junho de 2020, a Itinerarium é a revista semestral de cultura publicada pelos franciscanos em Portugal. Ali aparece um artigo com páginas do diário de Frei Francisco de Macedo (1924-2006) que foi missionário na Guiné entre 1951 e 1997. O diário inclui os apontamentos do religioso sobre os primeiros anos da Independência, a matéria versada relaciona-se com a educação e as missões.
Estamos a 18 de outubro de 1974, escreve: “O ruído das pancadas é estranho! Depressa me ocorre a verdade do facto: estão a retirar as letras Honório Barreto do liceu. Pobre Honório… Até tu, que eras guinéu de têmpera e que nos dias de hoje terias sido outro Amílcar, foste considerado grande colonialista e por isso querem apagar o teu nome da memória dos homens!”
Cresce a tensão entre membros da direção do PAIGC e os missionários. Nessa mesma data, consta do seu diário: “O Sr. Prefeito Apostólico recebeu as Irmãos de Bafatá, que lhe falaram da visita da Dr. Lilica Boal à casa das Irmãs em Bafatá. É uma fanática do Partido. Disse às Irmãs que o internato teria de ser misto, o que pôs em sobressalto as pobres das Irmãs. À noite, o Sr. Prefeito recebeu notícia de que tinha sido convidado para ir ao aeroporto esperar os “Homens Grandes” do Partido, que deviam chegar ao aeroporto às 10h do dia 19. A notícia caiu bem e deu-nos ânimo.” E no dia seguinte relata a chegada de Luís Cabral, Aristides Pereira, Nino e Chico Té, houve saudação à chegada do presidente do município, Juvêncio Gomes. E regista a resposta de Aristides Pereira: “A luta continua. Cabo Verde não está livre e é preciso que connosco forme uma só nação.”
A 21, volta a anotar que a posição do novo Governo não é manifestamente favorável às missões. “Uma onda de tristeza e de derrota se apoderou de alguns de nós, ao termos conhecimento da orientação que o Partido está decidido a tomar em relação aos internatos das Irmãs. Não há chance alguma para as obras missionárias.” A 25, continua as suas considerações sobre a mesma matéria: “Pelos contactos havidos e observações feitas, se vai notando que a ação da Igreja vai ficar muito coartada pela nova orientação política. É um Governo declaradamente laico que quer tomar nas mãos toda a juventude para instruir segundo a doutrina do Partido.” Mas não deixa haver surpresas, pois nesse mesmo dia Mário Cabral preside a uma reunião com os responsáveis da Educação e professores onde anuncia que será o camarada Padre Macedo que vai ser o reitor do liceu.
Estamos agora a 28, já está decidido qual o nome para o liceu de Bissau: Liceu Nacional Kwame N’Krumah. A 1 de novembro, regista que o Internato de Bor vai ser dirigido por um elemento do Partido e escreve que o totalitarismo se está a implantar. “Frequentes vezes nos interrogamos sobre qual o melhor sistema de governo para os povos africanos. A democracia evidentemente só é possível em países onde haja respeito mútuo pelas ideias políticas e maneira de pensar de cada cidadão. Ora, isso não acontece em países africanos, onde predomina o regime patriarcal. Dizem que há muitos inimigos. Continuam em luta e tomam todas as precauções de defesa. Todas as residências dos dirigentes e responsáveis estão guardadas por militares.” Também nos dá a saber que partiram delegações da Guiné-Bissau para Lisboa, é o próprio Mário Cabral quem declara que a Guiné-Bissau necessita com urgência que os seus hospitais não fiquem sem médicos e que as escolas não parem por falta de professores e de livros escolares, apela-se à cooperação portuguesa.
Em 5 de novembro, é manifesto o seu desânimo, nunca escrevera a este nível de desfalecimento: “Desfazer, desmantelar, derrubar, demolir, arrasar, abater, destruir, destroçar, desconjuntar, desertificar, aluir todas as obras de valor cultural, assistencial ou socioeconómico, realizadas e mantidas pelos portugueses, parece ser a ideia principal de alguns responsáveis do Partido. O pensamento essencial é anular, desfigurar, dissipar, apagar da mente do povo todo o conceito de bem que possa haver a respeito do branco. O único remédio e médico para estas coisas é o tempo.” Estamos agora a 8 de novembro, iniciaram-se as aulas no liceu, sai-lhe um comentário muito pessimista: “Este estabelecimento de ensino está transformado numa fábrica de… futuros operários desempregados.” No dia 14 regista no diário que a Rádio Libertação tinha emitido naquele dia um ataque frontal aos padres: “Padres sobrealimentados… e o povo subalimentado. Queremos uma nação sem subalimentados e sem padres sobrealimentados.” É neste período que há uma troca de correspondência entre o Prefeito Apostólico e o Secretário-Geral do PAIGC, Aristides Pereira. Este procura ser habilidoso, escreve contidamente, apela a que os missionários se mantenham no seu posto, o seu trabalho é altamente meritório. Acontece que as Irmãs de Bafatá tinham recebido instruções para regressar a Portugal.
Estamos nas vésperas de Natal, a 22 de dezembro, Chico Té preside a um seminário para professores do ensino secundário, o seu apelo é provavelmente a produção, não deixa de afirmar que o Governo é laico, mas que respeita todas as crenças. A 27 de dezembro, há um seminário político em que o conferente foi o Dr. Vasco Cabral. Observou em determinada altura que a direção do Partido organizara a greve o Pidjiquiti, em 3 de agosto de 1959 (rotunda mentira, dirigentes máximos do PAIGC, como Luís Cabral, sempre tiveram cuidado a falar desta greve dos estivadores manjacos), o Partido tinha analisado o acontecimento e reconheceu que não podia adotar essa via dentro dos meios urbanos (o que efetivamente aconteceu foi que Amílcar Cabral foi o autor de tal observação, abrindo espaço para a organização da subversão e desvio para Conacri de militantes para sempre preparados para a luta armada, o que efetivamente aconteceu graças ao denodado trabalho de Rafael Barbosa).
O Padre Macedo ainda põe no seu diário a 30 de dezembro a referência uma conferência do Dr. Fidélis Cabral de Almada sobre a Justiça popular, e traça um quadro histórico:
“Os descobridores veem povos com leis, com costumes, com justiça, com tradições. Queriam eliminar tudo o que era costume, queriam suprimir todos os elementos de civilização. Era este o método de colonização. A regra do domínio de um povo sobre outro povo. Por isso, a noção de Justiça e de Direito foi também eliminada. O povo da Guiné foi considerado colónia de indigenato. De fazer justiça eram encarregados os chefes de posto e os administradores, gente com espírito mercenário que vieram apenas para enriquecer. Os comités de tabanca acatam os princípios em que o povo tem de mandar na sua cabeça. A eleição do comité de tabanca faz-se por eleição popular. Em 1969, o Partido chega à conclusão de que tudo está maduro para a criação da Justiça popular. Lançámos a ideia de juízes populares, eleitos pela maioria. Escrivães, professores primários, faziam parte dos tribunais populares. O nível de criminalidade diminuiu logo. Havia pena de morte por fuzilamento. A revitalização da nossa cultura nacional surge no campo jurídico.”
O diário do Padre Macedo termina em 12 de fevereiro de 1976. Espera-se que a Ordem Franciscana, perante a valia deste testemunho histórico, permita a sua publicação, contém matéria digna de reflexão para esse período em que tantas medidas foram tomadas e que o tempo se encarregou de esvaziar o conteúdo.
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Nota do editor
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