1. Mensagem de Manuel Reis ( Ex-Alf Mil CCAV 8350) (*) para Vasco da Gama ( ex-Cap Mil CCAV 8351)
Assunto - Resposta ao poste P-3815, de Vasco da Gama (**)
[Subtítulos e negritos do editor L.G.]
Amigo Vasco da Gama:
Tive imenso prazer em te rever, passados tantos anos. Não me recordo de estar contigo “nos teus territórios” de Cumbijã e Colibuía o que me intriga, pois estive lá até 19 de Agosto de1974, data da entrega do aquartelamento ao PAIGC.
(i) Só me juntei à Companhia em Cumbijã, em finais de Novembro de 1973
Nem sequer sabia que o aquartelamento de Cumbijã tinha sido construído pelos teus homens, soube pela tua intervenção no blogue. Andámos desencontrados, a culpa foi minha pelos motivos que te apresento. Eu afastava-me sempre dos centros de decisão. Só fui uma vez a Aldeia Formosa e aproveitei uma ida à água.
Não segui com a Companhia, [a CCAV 8350,] para Cumbijã. Foi aproveitada a minha ida diária a Bissau, onde fazia tratamentos no Hospital Militar, para passar o testemunho à Companhia que ia ocupar o aquartelamento de Quinhamel. Assim decidiu o Capitão Patrocínio (falecido recentemente). Por esta razão só devo ter aparecido em Cumbijã, nos finais de Novembro [de 1973].
(ii) Em 15 meses tivemos 4 comandantes
O novo Comandante passou a ser o capitão Reis (do Quadro, hoje Major-General) e seguiu-lhe o Capitão Santos Vieira (do Quadro, hoje Coronel). A comissão deles era curta, como bem dizes, de 4 meses no máximo. Alguns mal lá pararam.
Em 15 meses tivemos 4 Comandantes de Companhia. Procurava estar onde eles não estivessem. O Capitão Reis estava em Cumbijã e eu pedi-lhe para ir para Colibuía desde que fosse possível. O Capitão Santos Vieira estava em Colibuía e eu pedi-lhe para ir para Cumbijã.
Até para Nhala fui. Estive, com o meu grupo de combate, a fazer protecção à Engenharia e assisti ao desenrolar dos tristes acontecimentos que levaram Braga da Cruz (Cap Mil) a ir apresentar-se a Aldeia Formosa, ao Comando. Tentei que tal não sucedesse, mas nada consegui, os Alferes estavam determinados a tirar partido da situação. Só entendo assim e foi esse o meu entendimento na altura. O 25 de Abril já tinha acontecido! Aliás tu conheces bem a situação.
Julgo que esta minha situação de “vagabundo” deve ajudar a explicar o nosso desencontro.
(iii) Em 4 de Junho de 1973, o nosso comandante era o Cap QP Caetano
Vamos aos esclarecimentos que me solicitaste.
[ Questão 1. Estando a vossa Companhia já em Gadamael, afirmas no teu texto e passo a citar: "No dia 4 de Junho 11 (onze) militares mal armados, saem para o mato pressionados pelo novo comandante da CCav 8350 e são emboscados a 500 (quinhentos) metros do arame". Podes dizer-nos quem era este comandante? V.G.]
O Comandante da CCAV 8350 que substituiu, em Gadamael, o Capitão Quelhas Quintas e ordenou a referida emboscada, foi o Capitão Caetano (Quadro), falecido pouco tempo após seu o regresso.
Claro que percebo o alcance do teu esclarecimento. A situação é difícil de entender, quando estamos num palco de guerra e a guerra está no auge. Não citei o nome na altura, porque me pareceu que não interessava a ninguém e qualquer discussão sobre o tema era inoportuna. De qualquer modo devo acrescentar que ele soube controlar a situação e os estilhaços caíram sobre mim e sobre um Capitão Miliciano, cujo nome não me ocorre. Foi enviado para lá, não recordo com que missão, apenas sei que estava, no dia anterior em Cacine.
Os dois tínhamos presenciado todo o desenrolar dos acontecimentos, cujos passos detalhados e alguns protagonistas vou continuar a omitir, para não magoar mais os familiares dos camaradas mortos, que eventualmente pudessem vir a ter conhecimento por esta via.
Destituiu-me do cargo de 2º Comandante (não era importante para mim), sem argumentação plausível, colocou-me nas zonas do aquartelamento mais expostas às flagelações, responsabilizou-me pelo espólio do Alferes morto na emboscada e encarregou-me de estabelecer contacto escrito com a mãe.
A troca de correspondência foi dolorosa para mim a para a mãe e julgo que não lhe minorou o sofrimento Transmitiu, ainda, para o exterior uma imagem negativa da minha pessoa, como cidadão e como militar, que viria a ter repercussões bastante profundas na minha maneira de ser e de estar.
Ao Capitão Miliciano desafiou-o, em Gadamael, para um duelo à antiga portuguesa, acompanhado de outro tipo de ameaças. Chegou a puxar dos galões servindo-se da antiguidade.
(iv) O estigma de Guileje e Gadamael marciou-nos para sempre
Isto aconteceu porque comentámos, com um grupo de camaradas, a delicadeza da situação. Não houve qualquer intenção de o criticar, ele era nosso superior hierárquico e merecia-nos todo o respeito. Estava uma noite de breu e não nos apercebemos da sua proximidade, caso contrário nada teríamos dito. Era uma situação muito desagradável e embaraçosa para ele. Nós sabíamos que sofria como todos nós.
O estigma de Guileje e Gadamael acompanhou-nos para sempre. Por isso, se tornou muito difícil a vivência da Companhia após o período de Guileje e Gadamael. Até um camarada meu, companheiro das lutas estudantis de 1969, em Coimbra, me aconselhou a sair da sua mesa, na Messe dos Oficiais em Bissau, porque o podia comprometer.
A presença dos nossos soldados, em Bissau, tornou-se problemática pelas provocações de que eram alvo e quase sempre degeneravam em confrontos físicos.
[Questão 2 - Depois de todas as tragédias no Guileje e em Gadamael, a CCav 8350 veio para o Cumbijã, julgo que no dia nove do mês de Novembro de 1973. Conviveram connosco, patrulhavam juntamente com os meus Tigres e eram comandados na altura pelo Capitão Reis, do Quadro Permanente, de quem guardo a melhor das impressões como ser humano. Veio a ser substituído pelo também oficial do Quadro e meu bom amigo Capitão Vieira que esteve presente no lançamento do tão falado livro do Coronel Coutinho e Lima. (As comissões da malta do Quadro eram mais curtas do que as nossas...). V.G.]
Mas então o que fizemos nós “nos teus territórios” de Cumbijã e Colibuia?
Mantivemos a actividade operacional que vocês faziam. Com Reis (Capitão), colocámos em dia 53 processos relativos a mortos e feridos. Não existia nada. Foi um trabalho, feito por mim, pelo Seabra (Alf Mil) e pelo Gonçalves (Alf Mil) e coordenado pelo Capitão. Trabalho meritório do Capitão Reis, que hoje teria graves repercussões nos familiares se não tivesse sido efectuado atempadamente.
Ainda durante o período do Capitão Reis iniciámos a construção de casas para a população, em Colibuía, o chamado reordenamento.
Após o 25 de Abril e já com o Santos Vieira (Capitão) no Comando da Companhia a actividade operacional quase estagnou. Como o Santos Vieira quisesse ficar em Colibuía, eu fui para Cumbijã depois de o ajudar a enquadrar-se com as actividades da Companhia. Em Bissau pintaram-lhe um quadro negro sobre os homens que ele ia comandar e os primeiros tempos foram de alguma apreensão. Nesta altura o Seabra ( Alf Mil) já estava colocado em Bissau.
Durante o meu período de Cumbijã (Junho, Julho e parte de Agosto de 1974) fazíamos a manutenção do aquartelamento e arranjávamos actividades ocupacionais do tempo livre. Era importante manter o pessoal ocupado e começar a prepará-lo para a recepção a grupos do PAIGC.
Não me recordo de qualquer referência à tua Companhia, a maior parte das questões eram sobre Guileje pelo facto de transportarem com eles muitos objectos que foram deixados lá: Sapatinhas, camisas, calções, ti-shirts e até uma agenda do enfermeiro.
(v) Os nossos ois encontros (tensos) com o PAIGC, depois do 25 de Abril
[Questão 3 - Os Tigres do Cumbijã embarcaram para Bissau a bordo
da LDG de seu nome BOMBARDA a 27 de Junho de 1974, sem que
tivessem tido a visita de qualquer elemento do PAIGC. Avistei uma vez um grupo de combate junto à estrada quando comandava a coluna do Cumbijã para o Quebo. V.g.]
[Questão 4 (...) Julgo que nos diálogos verbais que mantiveste com o PAIGC, teriam eventualmente falado sobre a minha Companhia que, duma zona povoada de minas, sofrendo inúmeros ataques ao aquartelamento, vivendo em barracas de lona e construindo pelos seus próprios meios valas de protecção e habitações com o mínimo de dignidade, assaltando Nhacobá, fazendo colunas diárias a Aldeia, ou protegendo Buba/Aldeia, com umas dezenas de contactos de fogachal, devia ter merecido da parte deles algum comentário. É uma parte da história da minha Companhia que me falha e nunca entendi qual foi a razão que impediu o PAIGC de ter confraternizado com OS TIGRES após o 25 de Abril, como o fez em tantos outros lados. Sei que esperou a nossa saída.... V.G.]
Tivemos dois encontros, o primeiro ocorreu no fim da estrada asfaltada, sob alguma tensão, pois íamos desarmados, e se algo corresse mal poderia ser problemático. No segundo encontro já se aproximaram do aquartelamento e foram banqueteados com um panelão de arroz. Nestes encontros esteve sempre presente o Capitão Santos Vieira que informado rapidamente se deslocava lá.
Os comícios políticos eram feitos pelos comissários políticos do PAIGC e eram direccionados ao grupo de milícias (20), mas a tensão era enorme, poucos apareciam e mesmo esses vinham contrariados. Uma das vezes tive de intervir para que o comício não degenerasse numa batalha campal.
O aquartelamento foi entregue a 19 de Agosto ao PAIGC e do grupo de milícias (***) apenas ficaram dois elementos, os restantes partiram rumo ao Senegal, digo bem Senegal. Eles conheciam bem as diferenças de actuação entre o Presidentes Senghor e Sekou Touré e preferiram contornar a Guiné pelo leste de modo a entrar no Senegal. Não sei se o terão conseguido, apenas soube que a travessia do Corubal se tornou complicada pela exigência monetária que lhes fizeram.
Fica aqui um pequeno escrito, elaborado na altura, referente à entrega das armas, no dia 18 de Agosto de 1974.
'AS TEIAS QUE O IMPÉRIO TECE'
Agosto de 1974.
A guerra terminara.
Encontrava-me em Cumbijã, sul da Guiné.
Comigo permaneciam dois grupos de combate e um de milícias.
Aproximava-se a data da entrega do aquartelamento.
É-me ordenado que desarme os milícias na véspera.
O desarmamento processa-se de uma maneira calma e ordenada.
O ambiente era pesado, de dor e tristeza.
Mamadu, sargento-milícia, dirige-se-me num tom sereno e educado
e recorda-me o momento
em que lhes tinha sido entregue o armamento.
Quantas promessas!...
Não tive palavras.
De lágrimas rolando pela face,
num abraço apertado,
despedi-me de Mamadu.
Até sempre!...
Um abraço amigo,
Manuel Reis
P.S. De Aveiro à Figueira da Foz ou vice-versa é perto.
_____________
Notas de L.G.:
(*) Vd. poste de
24 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3788: Dossiê Guileje / Gadamael 1973 (1): Depoimento de Manuel Reis (ex-Alf Mil, CCav 8350)
Vd. primeiro poste da série de 30 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3818: Apontamentos sobre Guileje e Gadamael (Manuel Reis) (1): Gadamael, eu te amo, eu te odeio
3 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3835: Apontamentos sobre Guileje e Gadamael (Manuel Reis) (2): Resposta aos comentários no P3788
(**) Vd. poste de 29 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3815: Quatro considerações, a propósito dos Postes 3788 e 3789 (Vasco da Gama)
(***) Mensagem posterior do Manuel Reis:
Amigo Luís: Obrigado pela arrumação que deste ao texto. Mas o titulo que extraíste do texto não está correcto. Assim quando dizes: LÁGRIMAS NA ENTREGA DE CUMBIJÃ devias ter dito: LÁGRIMAS NA ENTREGA DO ARMAMENTO DOS MILÍCIAS ou LÁGRIMAS NO DESARMAMENTO DOS MILÍCIAS.
São coisas distintas e o que me doeu, de facto, foi o total abandono a que as milícias foram sujeitas.
A data está correcta. O desarmamento foi efectuado a 18 de Agosto e a entrega do aquartelamento a 19 de Agosto.
Um abraço amigo
Manuel Reis
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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5 comentários:
Caro Manuel Reis
Estive em Mampatá, Cart. 6250, entre 72 e 74.Inauguramos Colibuia por volta de Maio de 73 e lembro-me de estar lá e ouvir os ataques a Guilege. Colibuia Cumbidjã e Nhacobá são topónimos da Guiné que nunca esquecerei. Espero rever esses e outros lugares daquela região do Tombali,muito brevemente pois partirei para lá no dia 20 de Fevereiro.Muito gostaria que viesses almoçar com rapaziada da Guiné (ex-combatentes)no próximo dia 11 ou 18 ao restaurante Milho Rei a Matosinhos.
António Carvalho
TLM:919401036
Caro Manuel Reis
Eu estava em Nhala na altura dos "tristes acontecimentos com o Braga da Cruz" e quem tentou reter e conseguiu que o Braga da Cruz não fosse levado para Aldeia Formosa, foram os soldados (quase todos), porque não sabiam o que se passava, mas depois de informados no outro dia, não se opuseram e o nosso Capitão foi levado numa chaimite para se apresentar no comando.
Abel Salgueiro
ex-furriel miliciano da 2ª companhia do Batalhão 4513
Caro Manuel Reis
Afastado da nossa Tabanca desde sábado, só hoje tomo conhecimento com mais estes esclarecimentos retirados do fundo das tuas recordações, que compreendo sejam miuto dolorosas e amargas.
É sempre tão fácil emitir opiniões "à distância" ou " desfasadas no tempo" e, como é difícil tomar decisões no "calor das refregas", mesmo para quem foi ao longo dos anos preparado para o "ofício"...
Quanto mais leio, mais penso e me interrogo. E se fosse um tão impreparado miliciano? O que seria? Uma carnificina?!
Um abraço do "vizinho Ilhavense"
Jorge Picado
Lágrimas de crocodilo!!!
Que covardia...
Encontrei este site por acaso, ao procurar alguma informação sobre os Piratas de Guileje na Cumbijã. Na Páscoa de 74 fui lá parar com o Capitão Vieira que já tinha sido o nosso Tenente em Mafra.
Acontece que fui mandado para o curso de Capitães e enviado para a Cumbijã em estágio, como Alferes Miliciano. Ali fiquei até Agosto - o estágio era de 4 meses. Em 75 lá fui parar a Angola como Capitão Miliciano. Infelizmente não guardo contacto com ninguém de lá. Folgo em saber que o Coronel Vieira está bem. Tomou conta de nós todos num período difícil e delicado. Bem haja.
Um abraço a todos.
João R Corrêa
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