1. Mensagem de Carlos Geraldes* (ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66), com data de 28 de Novembro de 2009:
Caro amigo:
Envio agora, integrado nas memórias que vou retirando das gavetas, um relato que há muito estava para ser feito, cansado de ver tanta gente a gabar-se de ter ido à guerra, como se tivesse assistido a um magnífico jogo de futebol, decisivo para as cores do seu clube.
A guerra onde participámos como protagonistas não foi só regada com o sangue dos nossos soldados, mas sim com a de muitas vítimas inocentes. Cujo destino aliás, foi sempre esse ao longo dos séculos, nunca tendo conhecido ouro. Quando penso nisso vem-me automáticamente à lembrança o rosto daquela jovem mãe que fugindo desvairada quando nos viu chegar de surpresa à tabanca, foi logo varada por uma bala assassina que logo ali lhe ceifou a vida atravessando também o crâneo do bébe que transportava às costas. O autor do disparo ainda se riu da proeza.
Um grande abraço, amigo Carlos Vinhal e preparemo-nos calmamente para mais um Natal.
O Primeiro Ataque a Pirada (A Morte do Gila)
Não sei se o deva contar, porque nem sequer fui testemunha ocular. Nesse dia, 28 de Maio de 1965, estava de férias na Metrópole junto com a família. Um mês inteiro longe da guerra, na total ignorância de como as coisas se iam passando por lá a milhares de quilómetros. Só quando regressei de avião a Bissau é que me contaram a novidade. Pirada tinha sido atacada!
Ao princípio custou-me a acreditar, até porque quem mo contou também não sabia bem os pormenores. Mal pude conter a impaciência nos dias que se seguiram à espera de boleia num Dakota (o velhinho, mas muito útil DC-6) para Nova Lamego onde depois teria um jeep da Companhia para me ir buscar. O sempre sorridente alferes Pinheiro lá estava pontualíssimo para me servir de condutor de regresso a casa.
E então lá me contou como tudo se tinha passado, enquanto eu o ouvia embasbacado, ainda pouco crente que me estivesse a falar verdade.
O M. Soares, como sempre, fora informado que um numeroso grupo de guerrilheiros se estava a juntar do outro lado da fronteira, no Senegal. Estava bem armado e tinha intenção de fazer qualquer coisa ao quartel da tropa em Pirada. E até se sabia o dia e a hora em que isso iria acontecer. O nosso Capitão fez aquilo que a prudência mandava, entrincheirou-se o melhor que pôde e aguardou. Aliás, tomou até uma medida que sempre me pareceu um pouco ousada e timorata. Quis contra-atacar. Planeou então uma manobra para emboscar o inimigo que supostamente viria atacar o aquartelamento do lado ocidental a coberto da povoação nativa, a cintura de palhotas que envolvia Pirada. Para isso mandou que o alferes Pinheiro e o seu Grupo de Combate se fossem colocar, muito discretamente, do lado de fora da tabanca, numa zona baixa, já perto da bolanha, onde aí, montariam uma emboscada e contra-atacariam os assaltantes encurralando-os contra o quartel. Só que as coisas nem sempre correm tão bem como se planeiam no papel. A noite estava escuríssima, conforme me ia contando o Pinheiro:
- Eu mal consegui dar com o sítio que o capitão me tinha dito onde eu e os meus homens nos deveríamos ocultar para depois apanhar os gajos. E depois quando a festa começou deu-me a impressão que afinal estávamos mais afastados do que era previsto. E pelo arraial que faziam deviam de ser mais de duzentos. Olha, eu, pelo sim pelo não, para não estar para ali a fazer fogo sem mais nem menos, resolvi que o melhor seria esperar muito caladinho e ver como as coisas se iriam passar. Se revelássemos a nossa posição até talvez ficássemos numa situação muito perigosa. Aliás poderia acabar por fazer fogo contra os nossos, não achas? Por isso, ficámos ali muito quietinhos à espera que tudo passasse. No quartel estavam mais bem protegidos pelos abrigos, eu ali não tinha protecção nenhuma!
Sim, o alferes Pinheiro tinha razão, era insensato atacar às cegas um inimigo que não se sabia bem onde estava nem de onde vinha, muito superior em número e armamento. Tomou uma decisão que à primeira vista poderá ser tomada como um acto de cobardia, mas que na verdade, tratou-se apenas de evitar um mero suicídio colectivo totalmente gratuito e ineficaz.
Assim o ataque desenrolou-se durante grande parte da noite, com a população nativa aterrorizada, escondida o mais que podia para escapar às balas perdidas que voavam em todas as direcções, varando de lado a lado as palhotas e as vedações dos quintais, enquanto do quartel atiravam morteiradas em todas as direcções e abriam fogo de metralhadora à vontade numa ânsia de aniquilar um inimigo que nem conseguiam descortinar.
Segundo depois me contou o M. Soares, elementos do PAIGC passearam-se mesmo pelo centro do povoado, donde, até debaixo do alpendre da sua casa fizeram fogo na direcção do quartel. Mas a ele e à família nem num cabelo tocaram. Admirável cavalheirismo romântico, que não seria fácil encontrar ali no mais remoto interior da Guiné. Gesto que, no entanto, lhe acarretaria futuros problemas com as desconfianças que a tropa foi alimentando a seu respeito, esquecendo que paralelamente M.Soares sempre lhes fornecera amplas e atempadas informações das andanças dos grupos inimigos que transitavam regularmente pelo Senegal, vindos da Guiné-Konakri em direcção à região do Morés, no triângulo Mansabá, Mansoa, Bissorã. Na verdade a imunidade de M.Soares devia-se muito à sua condição de hábil agente duplo que soube manter durante muito tempo e isso acaba sempre por ter um preço amargo de pagar.
Planta de Pirada
Messe dos Oficiais
Com o raiar do dia já depois de as armas se terem silenciado é que, aos poucos e poucos se foram verificando os estragos. Felizmente do nosso lado não houve mortos nem feridos, apenas danos materiais. As instalações ficaram com as paredes crivadas de balas, e duas viaturas foram atingidas mas nada de grande monta. Na tabanca é que tinha sido pior, tinham ardido umas dezenas de casas, devido talvez ao nosso fogo de morteiro. Quatro mortos a lamentar e bastantes feridos sem grande gravidade, pois grande parte da população tinha fugido para longe. O posto médico depressa se encheu e o pessoal de saúde não teve mãos a medir, enquanto patrulhas percorriam toda a zona de onde o inimigo teria estado a fazer o fogo, agora facilmente identificável pelo elevado número de cápsulas vazias de vários calibres espalhas pelo chão. Os rastos deixados pelo grupo dos atacantes indicavam também que deveriam ter sofrido algumas baixas pelos vestígios de sangue deixados nos percursos de fuga em direcção do Senegal. Mal recuperados do susto que tinham apanhado, tanto oficiais como sargentos e praças nem tinham vontade de falar no assunto.
Mas envergonhados também pelas reacções primárias a que se entregaram, quando ainda naquela manhã, prenderam um atónito gila que inocentemente tinha carregado na sua bicicleta, vários sacos de cartuchos vazios que fora apanhando pelo caminho que percorrera despreocupadamente (?). Logo ali o acusaram de espião e resolveram fazer justiça pelas próprias mãos. Enquanto o capitão e o resto dos oficiais e sargentos se fecharam na caserna, a turba uivando cada vez mais enfurecida, arrastou o pobre desgraçado para o meio da parada e no meio de insultos e pancadaria acabou de matar o pobre do gila, regando-o em seguida com gasolina e chegando-lhe fogo.
E até me mostraram fotografias, que acabaram por depois fazer desaparecer, cientes da barbaridade cometida.
Ainda cheguei a tentar falar com o capitão sobre o acontecimento. Mas apenas me respondeu com um silencioso encolher de ombros revelador de uma total incapacidade de impedir o linchamento. E se calhar até de algum tácito consentimento para serenar os ânimos.
Mas só na antiga Roma é que os cruéis imperadores proporcionavam ao povo espectáculos de morte, para o poder controlar a seu bel-prazer!
Teria acontecido aqui o mesmo?
Porém, com o passar do tempo tudo foi esmorecendo e caiu no esquecimento.
Mas, o gila teria deixado família? Mulher, filhos, outros parentes? Qual teria sido a raiva e a dor deles? Como teriam encarado o futuro?
A guerra não foi só recheada de heroísmos, ou uma alegre perseguição das bajudas lavadeiras apanhadas desprevenidas no regresso da bolanha, ou uma imprevidente saída para o mato na escuridão de uma noite tenebrosa.
A guerra foi também um longo rosário de pesadelos que nos marcou profundamente, mas que teimamos em não valorizar também.
Recolhi a Paúnca logo que pude, para tentar esquecer.
__________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 25 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5340: Blogpoesia (59): Guiné: A Face Oculta (Carlos Geraldes)
Vd. último poste da série de 15 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5277: Gavetas da memória (Carlos Geraldes) (12): O Furriel Emanuel
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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3 comentários:
Este post de Carlos Geraldes dá uma demonstração da falta de preparação que a maioria do exército português tinha para esta guerra.
Falta de preparação quer militar quer psicológica.
Já é tempo de não ter medo de começarmos a ouvir de historiadores e analistas, como foi possível aguentar 13 anos.
Falta de preparação, não quer dizer cobardia, antes pelo contrário, era antes coragem e relacionamento com as populações.
Antº Rosinha
Caro Carlos Geraldes
Nunca fiz grandes comentários aos teus textos (embora os tenha lido com interesse e atenção), porque a isso não me atrevi.
Dum modo geral são trabalhos de fôlego, consistentes, que se leem com avidez e que convidam à reflexão.
Exemplo disso é exactamente este trabalho que aqui nos presenteaste.
Ainda para mais encabeçado com aquela espécie de introdução, com a qual me identifico. Já lá na Guiné me irritavam os 'fanfarrões', daí uma vez ter saído aquela que já contei da 'bazuca a disparar em rajada'.
Um abraço
Hélder S.
O teu relato, vem ao encontro,
do meu pensamento.
Quem sofreu, mais do que ninguém,
foi o povo. Levava dos dois lados.
Sou do teu tempo, 1964/66. Estive
em P.Gole e Bolama, sempre ligado
aos soldados da Guiné. Talvez por
isso, entender melhor a tua mensagem.
Um abraço, Jorge Rosales
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