domingo, 18 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6183: Tabanca Grande (213): Carlos Nery Gomes de Araújo, ex-Cap Mil, CCAÇ 2382 (Buba, 1968/70)



Guiné > Região de Quínara > Buba > CCAÇ 2382 (1968/70) > Dia do pagamento do pré. Cap Mil Art Gomes de Araújo, Alf Mil Curado, Sargento Boiça e Fur Mil Henrique. A foto é do nosso camarada Manuel Traquina, retirada e editada, com a devida vénia, do seu livro, Os tempos de guerra: de Abrantes à Guiné (Abrantes: Palha de Abrantes, 2009, p.130).




1. Texto de Carlos Nery, com data de 13 do corrente, enviado ao editor do blogue, com conhecimento ao Manuel Traquina (ex-Fur Mil da CCAÇ 2382, Buba, 1968/70)

Assunto: O Guião da CCaç 2382

Amigo e Camarada,

Sou o Carlos Nery Gomes de Araújo, fui o comandante da CCaç 2382. Capitão Miliciano, portanto. Teria muita coisa a contar da minha experiência de Guiné... Por vezes, até, tenho a sensação de que nem saberia por onde começar...

Tenho reparado que, à medida que o tempo passa, me vão surgindo fragmentos, aparentemente sem importância e que, pouco a pouco, vão conquistando um relevo até agora insuspeitado. Por exemplo, sou um amador (no sentido em que amo) de Teatro. Aliás, em Bissau, no fim da comissão, ainda encontrei disposição para encenar "A Cantora Careca", de Ionesco... Teatro do absurdo em teatro de guerra... Um dos meus actores foi o Alferes Barbot, da Secção de Justiça do QG, hoje escritor Mário Cláudio. No programa do espectáculo escreveu um texto muito a propósito da situação dos muitos absurdos em que estávamos mergulhados...

Bem... Passaram-se quarenta anos, não é? Pois acontece que, neste momento, participo numa empolgante experiência no Centro Cultural de Belém.

Dir-lhe-ei que foram convidadas pessoas com experiência teatral com idade superior a sessenta anos. Tiago Rodrigues (actor, dramaturgo e encenador) é o responsável pelo projecto que aponta para a formação da Companhia Mayor do CCB. O texto ainda não existe. Ou melhor vai sendo construído por nós. Numa primeira apresentação pública eu "fui" um soldado que conta um episódio baseado em algo que aconteceu realmente:

Em 26 de Agosto de 1968, a CCaç 2382 estava empenhada na segurança à coluna Aldeia Formosa/Buba efectuada pela CCaç 2381.

O inimigo actuara nos pontões da estrada, destruindo, por completo o do Rio Gunti e colocando minas A/P e A/C nas imediações. A água da chuva subira nas bolanhas. Um dos militares da 2381 pisara uma mina perdendo um pé. A Força Aérea informava só poder fazer a evacuação de Nhala, afirmando não ter tecto para descer junto da coluna atascada numa das bolanhas. Pedi voluntários e parti com eles até encontrá-la. Há lençois de água com centenas de metros. O capitão Aidos, metido na bolanha, faz passar viatura a viatura puxadas por um guincho. Um inferno!

Regressamos com o ferido. Tinham sido cerca de oito quilómetro até à coluna. Outro tanto no regresso mas carregados com a maca que nunca julguei ser tão pesada! Mas o helicóptero aguarda-nos em Nhala. O ferido recebe os primeiros tratamentos e é levado para o Hospital de Bissau.

Baseado neste episódio real, improvisei, portanto, um texto que disse nessa primeira apresentação pública. "Fui" um soldado descrevendo e comentanto aquilo que vivemos então.

Mas muito mais poderia relatar. O célebre ataque a Buba, que já comentei em http://coisasdomr.blogspot.com/2009/01/guin-atauqe-buba-livro-guerra-colonial.html (*), mas que talvez merecesse um relato mais detalhado. O ataque a Contabane, no início da nossa comissão. (Sobre este último escrevi um texto, já publicado, que poderei facultar). E as tais pequenas coisas, aquelas sem importância mas, talvez, as que têm mais encanto como a que descrevi no CCB.

Um abraço do Carlos Nery

2. Comentário de L.G.:

A Internet tem destas coisas, está a transformar-se num verdadeiro Big Brother, para o melhor e para o pior. Deixámos de poder passear, tranquilos e anónimos, pelo espaço público... Foi o que aconteceu ao Carlos Nery, que vim a descobrir que vivia em Alfragide. Daí até arranjar o seu nº de telefone fixo foi um ápice, permitindo-me entrar em contacto com ele. Primeiro que tudo, somos vizinhos... Mais vizinho ainda dele é o Humberto Reis, ambos moram na mesma rua, a Dom Luís I...

Além disso, o Carlos é bancário, reformado, tendo trabalhado no Banco de Portugal, o que quer dizer que temos alguns amigos e conhecidos comuns... No início da década de 1960 era estudante em Coimbra, tendo sido um dos fundadores da Real República Trunfé-Kopos... O grande entusiasta da passagem do Solar a República foi o Dr. Jacinto Magalhães, médico já falecido (em 1987), que passou á história da saúde em Portugal por ter sido o pioneiro, em 1971, do teste do pezinho (diagnóstico pré-natal). O seu nome passa a estar imortalizado através do Centro de Genética Médica Dr. Jacinto Magalhães, com sede no Porto, e que faz parte do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge.

O Carlos Nery contou-me, rapidamente, a sua história: tinha feito a tropa nos anos 1957/59, dez anos depois seria chamado para o Curso de Milicianos... Ei-lo, pois, a comandar a CCAÇ 2382, que esteve na Região de Quínara (Buba) mas também na Região de Tombali (Aldeia Formosa)... Falámos logo de camaradas conmhecidos, o Manuel Traquina (CCAÇ 2382) mas também o Zé Teixeira (CCAÇ 2381)... Doutro Maioral, o Alf Mil José Belo, ele não se lembra... A propósito, estas duas companhias (independentes, mas que andaram pelos mesmos sítios e actuaram em conjunto nalgumas operações), vão-se encontrar em Fátima, no dia 1 de Maio, em almoço-convívio anual...

O Carlos Nery conhece o nosso blogue e aceitou o meu convite para ingressar na nossa Tabanca Grande (**). Um dia destes vamo-nos encontrar, para continuar a nossa conversa. Para já, ficamos a saber que é o autor do brazão ou logótipo da sua companhia (pormenor que terá passado despercebido ao Manuel Traquino). Que teve um único morto, o infeliz "Esgota.Pipas", vítima do ataque ao quartel de Buba, em 14 de Fevereiro de 1969 (é evocado pelo Manuel Traquina, no seu livro, a pp. 143/144). E, finalmente, que ficou em Bissau, por razões burocráticas, depois da companhia regressar à Metrópole, tendo levado à cena a peça do Ionesco, "A Cantora Careca", com três actores, que hoje são figuras públicas: o escritor Mário Cláudio, o constitucionalista Canotilho Gomes e um advogado madeirense, de apelido Vasconcelos, cujo nome não retive (João ? José ?).

Carlos, sê bem vindo! Temos uma série, Eu, Capitão Miliciano, Me Confesso (***), a que tens que dar continuidade.

______________

Notas de L.G.:

(*) Comentário ao poste de 25 de Janeiro de 2009 > M48 - Guiné - Ataque a Buba (Livro Guerra Colonial do Diário de Notícias)

(...) Eu era o Comandante da CCaç 2382, uma das unidades sediadas em Buba quando do ataque. A frase transcrita do relatório,, então elaborado, foi de minha autoria. Porém, o desenho baseado naquele que fiz nesse mesmo relatório, contém algumas inexactidões.

Efectivamente os cinco bigrupos do PAIGC que pretendiam entrar em Buba (cerca de 300 homens) foram emboscados por um grupo de combate da CCaç 2382, comandado pelo Alf Mendes Ferreira, e por elementos do Pelotão de Milícia, postados no exterior do aquartelamento para lá da pista de aviação, tendo retirado com baixas e sem atingir o seu objectivo. Nessa retirada utilizaram o largo trilho aberto quando da sua aproximação.

Enquanto isto, a nossa artilharia, 2º Pelotão/BAC, comandado pelo Fur Mil Gonçalves de Castro, atingia com eficácia a posição dos morteiros inimigos. Ficaram no local e foram capturadas na madrugada seguinte pelos fuzileiros do DFE 7, 158 granadas, das 180 com que contava o Comandante Peralta na sua "Ordem de Fogo", preparando o ataque a Buba.

Entretanto, os dois morteiros 81, guarnecidos pelo Pel Mort 2138, atingiam a posição ocupada pelo comando do ataque IN, instalado na margem direita do Rio Mancamã, junto à foz. No lusco-fusco desse fim de tarde, viu-se, do quartel, a confusão de vultos em fuga, por entre o capim, nessa outra margem do rio. A maré estava baixa. Um frémito percorreu os defensores. Elementos do DFE 7, da CCaç 2382 e da Milícia, sob o comando do Tenente Nuno Barbieri, alcançam a margem do rio Bafatá, fronteira à posição dos canhões sem recuo e do comando inimigo. É aí deixada uma base de apoio comandada pelo Alf Domingos, da CCaç 2382, enquanto o Tenente Barbieri tenta ganhar a margem oposta no comando dos restantes voluntários, actuação esta que fez aumentar a confusão existente no dispositivo inimigo. Uma noite sem lua caíra, entretanto. Foi decidido regressar ao quartel.

O relatório desta acção foi recebido com cepticismo em Bissau. Porém, quando da captura do Comandante Peralta, pelos Pára-quedistas, passados poucos dias, foi constatado que os planos de sua autoria para atacar Buba se ajustavam à descrição por nós elaborada.

Na realidade, o Comandante Pedro Peralta cometeu algumas falhas: as obsevações que mandou efectuar deixaram sinais detectados pelos nossos patrulhamentos. Por outro lado a preparação do tiro de artilharia que efectuou nas vésperas do ataque (disparos isolados ocorriam a horas inesperadas) levou-nos a prever o tipo de ataque que se preparava. Para cúmulo instalou as suas bocas de fogo nos pontos de mais provável instalação, já utilizados em inúmeros outros ataques. Mal foram ouvidas as "saídas" da artilharia inimiga já a nossa resposta ía a caminho com precisão. O resto já está descrito. Mas o "azar" de Pedro Peralta não acabou ali. Passadas escassas semanas, no dia 18 de Novembro, caía numa emboscada dos pára-quedistas do CCP 122, onde foi gravemente ferido e capturado pelas nossas tropas. Ficava adiada por mais uns anos a tentativa do PAIGC de fazer subir a fasquia do tipo de guerra de que vinha tomando a iniciativa.

Gomes de Araújo (Cap Mil Art) (...)

(**) Vd. último poste desta série > 16 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6166: Tabanca Grande (212): Manuel Carvalho Passos, Pel Rec Inf/CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1972/73 (Juvenal Amado)

(***) vd. postes de:

28 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3248: Eu, capitão miliciano, me confesso (1): Engenheiro agrónomo, ilhavense, 32 anos, casado, pai de 4 filhos... (Jorge Picado)

17 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3581: Eu, capitão miliciano, me confesso (2): Vasco da Gama, CCAV 8351, Cumbijã, 1972/74

6 comentários:

Carlos Nery disse...

Só algumas precisões, meu caro Luís Graça:
Os Drs. Canotilho e Carlos Vasconcelos não participaram na "Cantora Careca". Eram Alferes da Secção de Justiça do QG, em Bissau, assim como o era o Ruy Barbot (Mário Cláudio), que participou no espectáculo como actor. Tenho fotos desse trabalho que, depois, lhe mostrarei.
A CCaç 2382 sofreu dois mortos, na Guiné:
O soldado Ilidio Fidalgo Rodrigues, o saudoso "Esgota-Pipas", atingido por um estilhaço no ataque de 14FEV69 veio a falecer no HM de Bissau em 31MAR69.
O Furriel Ramiro Augusto de Sousa Duarte faleceu em Bissau em 31JAN69
num acidente de viação.

Carlos Nery disse...

"Não foi intencionalmente que escolhemos (...) um autor considerado "difícil". A peça que seleccionamos serve, porém,inteiramente a nossa finalidade: propor uma saída para eventuais conversações labirínticas ou marcar uma pausa na eternidade de certos jogos.
Que uma dúzia de pessoas haja decidido pôr em comum os seus esforços e tentar esta prova, pode ser em absoluto indiferente; pode causar surpresa, admiração e mesmo um certo alarme. Qualquer reação se justificará, se a não justificar o espectáculo que ides ver.
Gostaríamos, porém - e só formulamos este voto - que nos pudesse aproveitar a lição das personagens de Ionesco: - a lição de que, apesar de tudo, é possível dialogar no caos. E talvez nem seja preciso gritar muito alto."
(Texto de Ruy Barbot inserido no programa do espectáculo "A Cantora Careca", de Ionesco, estreado no recinto da piscina do Clube Militar de Oficiais do CTIG em 5 de Abril de 1970)

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Carlos: Obrigado pelas correcções às minhas imprecisões... Risco de quem, por vezes, trabalha sem rede, sobre pressão do tempo...

Parabéns pela ousadia e até coragem de levar à cena a peça do Ionesco... Seria uma subida honra, para nós, se o Mário Claúdio - um dos três, quatro ou cinco maiores escritores portugueses da actualidade - nos lesse e aceitasse integrar a nossa Tabanca Grande.

Last but not the least: Carlos, combinámos tratarmo-nos à boa maneira romana, ou seja, por tu...

Até a um próximo encontro

Luís

PS - Manda-me uma foto actual, tipo passe, digitalizada.

Carlos Nery disse...

"- a lição de que, apesar de tudo, é possível dialogar no caos. E talvez nem seja preciso gritar muito alto."
Detenhamo-nos nas palavras de Luís Barbot/Mário Cláudio... As últimas apresentações de "A Cantora Careca" terão sido - se a memória não me falha - a 12 e 13 de Abril (desta vez para os sargentos do CTIG). Era o tempo em que os Majores Passos Ramos, Pereira da Silva e Magalhães Osório e o Alferes Joaquim Palmeiro Mosca tentavam dialogar com certos sectores do PAIGC. Uma semana depois, no dia 20 de Abril, eram brutalmente assassinados. O diálogo nem sempre é fácil, afinal.

Carlos Nery disse...

Aqui há tempos, convidado para o lançamento de um livro do Mário Cláudio, conversámos sobre a Guiné. Perguntei-lhe se nunca pensara em escrever sobre a experiência ali vivida. Respondeu-me que não tencionava fazê-lo. Que não se sentia à vontade para falar sobre esses tempos.
Eu penso que, na verdade, ele e os seus camaradas da Secção de Justiça, tiveram da guerra uma visão especial. Feita de papelada, de processos, de autos... Um ponto de vista privilegiado mas que envolve pessoas e acontecimentos. Enfim, só a ele caberá a decisão de quebrar ou não os silêncios que, sobre este assunto, parece preferir.

Carlos Nery disse...

Acabo de conversar com Ruy Barbot, aliás Mário Cláudio. Ele lê o blogue e aceita integrar a Tabanca Grande! Tem mesmo dois textos relacionados com a Guiné que está disposto a enviar para publicação. Mais: vai colaborar comigo nalguma coisa que vamos elaborar sobre a peça teatral que levantámos em Bissau em 1970. Deu-me o seu endereço de e-mail, estou autorizado a fornecer-vos. Dá-me muita alegria comunicar-vos isto, como podem calcular. Um abraço!