Como eu era o furriel "mais novo" e como havia muitos interessados em vir à metrópole, fiquei com as sobras, ou seja os últimos 15 dias antes da data limite em que toda a gente tinha que estar presente na Companhia por causa da época natalícia. Claro que não vinha gastar dinheiro por metade do tempo normal de férias. Por outro lado, como julgo, só se podiam gozar 30 dias de licença uma vez em cada ano civil, e nós terminávamos a comissão oficialmente a 17 de Janeiro de 1972, optei por vir mais ou menos a meio da comissão, Fevereiro/Março de 1971.
De que me lembro?
Vir para Bissau uns dias antes do dia 15 de Fevereiro, acompanhado de dois ou três camaradas madeirenses, ficarmos hospedados no Chez-Toi, que na altura tinha virado casa séria.
De não nos apresentarmos nos Adidos.
De ter ido à Agência de Viagens Fernando Correia pagar a viagem e levantar o respectivo voucher.
Da noite de 14 para 15 de Fevereiro, que não dormi, tal era a ansiedade.
De ter chegado a Lisboa, onde estava frio, e eu mal agasalhado, trazia apenas uma camisa branca de meia-manga e um blusão de veludo canelado.
De depois ter apanhado um voo de ligação para o Porto, onde cheguei já ao fim da tarde e onde o frio ainda mais se fazia sentir, lembro-me perfeitamente de anunciarem a bordo que a temperatura local rondava os 9º centígrados. Ainda de manhã teria suportado temperatura bem mais elevada em Bissau.
Chegado a casa, jantei e, já devidamente agasalhado, fui ver a namorada que não via há um ano.
Cheguei muito abatido pois tinha perdido alguns quilos, a minha mãe quase não acreditava no que via. Nos dias que se seguiram recuperei peso para voltar como devia ser, porque a guerra esperava-me de novo, em boa forma se possível.
Logo na manhã seguinte fui ao Porto e apresentei-me no Quartel General da Região Militar Norte dizendo que estava cá de férias vindo da Guiné. Que tivesse boa estadia e boa viagem de regresso no dia previsto. Que não precisava de voltar lá.
Visitei amigos e soube de notícias muito trágicas.
Fui à empresa onde trabalhava e entre outros colegas, encontrei um cujo filho, também nosso colega, tinha embarcado em Maio de 70 para Moçambique. Com a maior naturalidade deste mundo perguntei-lhe:
- Senhor Luz, como está o Nuno?
O senhor Luz desatou num choro convulsivo e virando costas afastou-se. Alguém me disse que o nosso jovem colega tinha morrido em combate ao fim de dois meses de comissão e que o senhor Luz não se conformava com a perda do filho.
Outra missão que tinha, era visitar um amigo de infância, colega de escola primária, camarada de recruta nas Caldas e de especialidade em Vendas Novas, que, também em Moçambique, havia pisado uma mina AP, do que resultou a amputação de uma perna. Sem jeito e sem palavras de ânimo para lhe dizer, fui por ele confortado, "que afinal ele já estava safo da guerra e que eu ainda tinha que voltar". Mais me disse que a sua cama no Hospital da Estrela era ao lado da de outro nosso camarada de especialidade em Vendas Novas, que vítima de uma explosão na Guiné, tinha fica cego e sem mãos.
As férias passaram rapidamente, quando dei conta era domingo 21 de Março, dia de apanhar o avião para Lisboa, para na madrugada seguinte apanhar outro para Bissau.
Um dos meus futuros cunhados, que tinha carro, foi-me buscar a casa nesse domingo à tarde, e lá fomos para o Aeroporto de Pedras Rubras, hoje Sá Carneiro, eu, a minha namorada, a sua irmã e o meu futuro cunhado. Falou-se pouco durante a espera e a hora da despedida foi complicada. A primeira vez que tinha embarcado para a Guiné não sabia bem ao que ia, agora era diferente, tinha a consciência exacta dos perigos que me esperavam.
Eles subiram para o terraço, então existente, que permitia ver o percurso dos passageiros, que naquele tempo se fazia a pé, até ao avião, tentando registar com o olhar os derradeiros momentos antes da partida.
Gare do Aeroporto de Pedras Rubras
Com a devida vénia a Restos de Colecção
Em Lisboa tinha à minha espera um primo que cumpria o serviço militar na Trafaria, o sortudo safou-de ir para a guerra, que me propôs irmos ao cinema para "matar" o tempo. Não me lembro a que sala fomos, sei que o filme se chamava algo como Os Últimos Dias de Katmandu. Saímos a meio da sessão e vagueámos pelas ruas algo desertas. Entretanto o meu primo deixou-me porque tinha de entrar no quartel da Trafaria antes da 1 hora da madrugada e eu fui para o aeroporto ver se os meus camaradas madeirenses já por lá se encontravam.
A viagem de regresso foi péssima, com uma escala no Sal onde nem do avião nos deixaram sair. Chegámos a Bissau ao princípio da manhã, e o que eu ainda recordo, foi a sensação, ao sair do avião, de estar a entrar numa fornalha. Já não me lembrava daquele calor insuportável que contrastava com o ar condicionado da aeronave.
Julgo que ainda nesse dia segui para Mansabá. No sábado seguinte iria fazer 23 anos, já no mato, em plena guerra e de novo longe da família.
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Nota do editor
Último poste da série de 27 de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15164: O nosso querido mês de férias (6): Vim duas vezes a casa... Da primeira vez, regressei a 18/12/1968, para passar obrigatoriamente o Natal em Bambadinca... Apanhei uma boleia no DO 27 do meu amigo Honório (Ismael Augusto, ex-alf mil, CCS/BCAÇ 2852, 1968/70)
3 comentários:
Meu caro Carlos, era de um testemunho como o teu que estava à espera. Sincero, espontâneo, fresco, factual, assertivo, mas puro e duro, dramático...
Nenhum de nós, por certo, se pode hoje vangloriar, 40 ou 50 anos depois, de ter passado as melhores férias do mundo, nessa época, quando a perspetiva era voltar para a Guiné e para a guerra... Regressávamos, muitos de nós, com a "morte na alma"... Não consigo recordar os pormenores, tão importantes e ricos como aqueles que tu relatas, das minhas férias e do meu regresso de férias... Ainda hoje me custa imenso falar desse "pesadelo"... Porque para mim não foi um "sonho", foi um "pesadelo", não deixei a Guiné na Guiné, trouxe a Guiné comigo...
Um abraço fraterno... Luis
Carlos
Tivemos a sorte da Licença. Conheci quem viesse de Licença à Metrópole duas vezes, o meu caso; quem tivesse vindo uma vez à Metrópole; quem tivesse vindo uma à Metrópole e outra em Bissau; mais hipóteses e aqueles valentes que não gozaram Licença - a Licença na Guerra. Bom tema... Triste sabermos que o dinheiro era nenhum e a Guerra o destino em troca de umas Férias mais que merecidas.
A minha Licença gozeia a pensar que esses 35 dias seriam ós últimos que gozaria na Metrópole. O azedume de tal agonia. Gozei a vida que me fartei, mas parece ter sido gozado num cemitério. Dei cabo do dinheiro amealhado até ao momento, mas 1968 - embora a guerra a agudizar-se, o PAIGC mais bem equipado; mais operações, emboscadas, ataques e o perigo e a morte à espreita, gozei a Licença, calmo e foram 35 dias que tenho dificuldades de reter na memória.
Bom testemunho Carlos. Eu estendi-me, tal como na minha Licença à Metrólope de 22SET67 a 26OUT68.
Caro Carlos
Quando isto foi publicado estava 'inoperacional' com uma gripe forte e que entre outras coisas me impedia de olhar para os écrans.
Mas li o que escreveste e revi-me em alguns pontos, em alguns "estados de alma".
Daí até que me inspirou a escrever a minha própria experiência, relativa às primeiras férias.
Abraço
Hélder S.
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