Mafra > Escola Prática de Infantaria (EPI) > 1968 > Cerimónia do Juramento de Bandeira > Desfile dos novos militares, onde se integrava o Paulo Raposo, frente ao Convento de Mafra. O Paulo Enes Lage Raposo, que nada tem a ver com a história que a seguir se conta (os nomes são ficcionados, mas onde os factos são verdadeiros), foi alf mil inf, MA, CAÇ 2405 / BCAÇ 2852 ( Mansoa, Galomaro e Dulombi, Guiné,1968/70), e o organizador do histórico I Encontro Nacional da Tabanca Grande (Ameira, 2006). A sua companhia perdeu 17 militares na travessia do Rio Corubal, na sequência da retirada de Madina do Boé, em 6 de fevereiro de 1969 (Op Mabecos Bravios).
Foto (e legenda): © Paulo Raposo (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Contos com mural ao fundo (25) > Um país de gente porreira (Parte I)
por Luís Graça
1A. Conheceste o Bacelar em Mafra.
Em finais de novembro de 1972.
Um mês antes do Natal.
Numa tarde fria e chuvosa...
E logo em Mafra. Logo ali, na ”Máfrica”,
como tu e outros que por lá passaram na tropa,
chamavam àquela terra desgraçada.
Tudo por causa da EPI,
a Escola Prática de Infantaria,
que se tornara a principal fábrica
de oficiais milicianos, alferes e capitães,
comandantes operacionais
com destino à guerra de África.
Ainda te soava aos ouvidos a frase de uma canção de protesto, de um gajo de Coimbra, estudante de medicina, que deve ter chumbado a meio do curso, e que era do “reviralho”, cantava bem e tocava viola sofrivelmente :
− Muita chuva, muito vento, muita merda… e um convento! − cantarolava ele na caserna, enlameado e estafado, depois do crosse semanal... Completamente "passado dos carretos"!
Por aqui passaras tu, cerca de quatro anos antes, como “feijão-verde”. Tu, o teu antigo capitão miliciano e outros camaradas de que já havias perdido o rastro. Para ti, "criminoso" contra a a tua vontade, era como voltar ao “local do crime”. Foi dos regressos ao passado mais penosos da tua vida. Ao sítio onde não foras feliz, nem nunca o poderias ter sido.
Afinal, foi aqui que recebeste a trágica notícia da morte do teu pai. Prematura, sem ter completado os sessenta anos. Não te autorizaram sequer a ir despedir-te dele. Morrera na véspera do teu juramento de bandeira. Mandaram-te, da agência funerária, um telegrama em cima da hora. O tenente da tua companhia de instrução chamou-te ao gabinete e disse-te, seco e perentório, em resposta ao teu pedido para ir a Mértola, ao funeral:
− O nosso soldado-cadete pode ir, o pai é seu, mas perde o juramento de bandeira, chumba no COM, vai parar ao CSM, a Tavira, às Caldas ou a Santarém, atrasa o seu embarque para o Ultramar em mais alguns meses… Enfim, a escolha é sua!”…
Sim, o pai era teu, mas a pátria era deles... Ficaste com um pó ao tenente... Enfrentaste, nesse fim de tarde, um terrível dilema, dividido entre o teu amor filial, o teu dever de ir prestar a última homenagem ao teu pai, e a tomada de consciência, naquele preciso momento, de que passavas a estar, doravante, na “linha a frente” e, ao mesmo tempo, a ser o sustento da tua família, da tua mãe e da tua irmã, mais pequena.
Por outro lado, davas-te conta da impossível escapatória daquele sistema concentracionário, que era a “Máfrica”, representado pela nudez e a crueza daquelas paredes que te encarceravam. Mas, se não ficaras em França, não ías agora fugir do teu país...
Confessarás, mais tarde, que choraste lágrimas de sangue no dia seguinte, enquanto juravas bandeira, na praça frente ao palácio, com a arraia-miúda, muda e calada, ao largo… Não tinhas ninguém a acenar-te, e muito menos a mostrar-se solidário na tua dor.
Trágica ironia, juravas defender a tua Pátria (se necessário, até "à última gota do teu sangue”), no preciso momento que descia à terra o corpo do homem que te dera o ser. Lá longe, em Mértola, que o tenente nem sequer sabia onde ficava, a muitas léguas dali.
Passado pouco tempo estavas em Vendas Novas, na Escola Prática de Artilharia, a meio caminho de casa, e mais perto também da tua irmã mais velha, que vivia em Almada e cujo marido, soldador, trabalhava na Lisnave. Foste lá fazer a instrução de especialidade. Atirador de artilharia: não sabias o que era...
Aproveitaste uma licença de alguns dias para dar um salto à tua terra e depor um ramo de flores silvestres na campa, rasa, do teu velhote, morto pela silicose que lhe destruira os pulmões.
Mas o Bacelar não tinha nada a ver com isto, com o teu passado recente e muito menos com os teus dramas de consciência. Ele era apenas mais um “companheiro de infortúnio” que tu tiveras o azar de encontrar em Mafra, desta vez no mesmo emprego. Claro que tu não o conhecias de lado nenhum. E, muito provavelmente, não irias voltar mais a vê-lo, a partir do dia em que cada um fosse à sua vida, uma vez colocados noutros sítios, lá onde onde o fisco muito bem entendesse.
Mas tu devias estar, se não feliz, pelo menos aliviado por arranjar um emprego na função pública, com as habilitações literárias que tinhas, o 7º ano do seminário que só dava equivalência para a tropa e o funcionalismo público. Mas não!... Logo por azar teu, as finanças estavam instaladas naquele pavoroso convento, o mesmo onde funcionava, nas traseiras, a “Máfrica”, de triste memória para ti.
Tu tinhas chegado em cima da hora. O chefe da repartição, que te pareceu, à primeira vista, boa pessoa, afável, educado, com um típico sotaque açoriano, foi quem vos apresentou um ao outro, e ao restante funcionalismo.
Mas, dado o adiantado da hora, com a repartição a fechar, fez questão de deixar a cerimónia da tomada de posse para a manhã do dia seguinte, com a promessa de, no respetivo termo, constar a data da véspera. Ele era a amabilidade e a calma em pessoa. E fez questão de dizer a ambos, no seu sotaque de ilhéu, que não queria, em caso algum, prejudicar-vos a “antiguidade”. E carregava na penúltima sílaba com evidente deleite.
Percebeste logo que também aqui, tal como na tropa, a “antiguidade” era um posto. Bem te tinhas lixado com essa da "antiguidade", tiveste de substituir o teu capitão, na Guiné, depois de ele ter sido evacuado para a “metrópole”, por motivo de doença, que, toda a gente sabia, mas não dizia em voz alta, era do “foro mental”.
Nunca foram chegados, tu e o teu capitão, falavam apenas das coisas estritamente indispensáveis de serviço. Ele também não era de grandes falas. Nunca te falou do seu passado. Devia ter mulher, filhos, um emprego, aos trinta e poucos anos. Sabias que tomava algumas drogas para o sistema nervoso, almoçavam juntos na messe de oficiais. Tínham uma messe só para os oficiais, o capitão e os quatro alferes milicianos.
Na prática, a messe era igual, para oficiais e sargentos, mas havia uma divisória, uma espécie de biombo, a separar as duas classes. O resto da maralha, comia à parte, no refeitório geral. "Nobreza, clero e povo, / Cada um para seu lado; / Na Guiné, nada de novo, / Saia um bife bem passado "..., ironizava o "baladeiro" da companhia, no "Fado do Vagomestre".
Alguém da companhia ainda o encontrou, ao capitão, em Bissau, no HM 241, na “psiquiatria”. Era um verdadeiro labéu para a reputação de um militar, uma baixa psiquiátrica. Um tipo podia ser “apanhado do clima”, que se lhe desculpava tudo (ou quase tudo). Um gajo podia apanhar uma "borracheira", daquelas de caixão à cova, que logo lhe acrescentavam mais uns pontos no currículo de macho. Um gajo podia até ser "cornudo", coitado, que isso não acontecia só aos outros. Um gajo podia ser “maluco”, mas nunca podia dar “parte de fraco”, "dar baixa", neste caso ir parar à “psiquiatria”… Muito menos sendo um comandante operacional.
Antes de saírem para o conforto dos seus lares, os novos colegas das finanças, solícitos, se não mesmo afáveis mas algo premonitoriamente distantes, deram, aos recém-chegados, indicações sobre onde jantar e pernoitar.... Que no dia seguinte logo se arranjaria melhor sítio para se ficar por uns tempos, já que quartos para alugar não faltavam naquela terra, "saloia, dizem, mas acolhedora e hospitaleira" (sic).
Não gostaste logo da cara de alguns, que pareciam os verdadeiros “donos da baiuca”.
Dormiste, nessa noite, tu e o Ravasco, numa pensão, rasca, a condizer, numa daquelas ruas que atravessavam o casario frente ao canvento, e que o teu novo colega logo reconheceu do seu tempo de soldado-cadete. E que cheirava a grelhados, a serradura e a mijo de gato. Ele fizera aqui a tropa há quatro anos atrás, em 1968, segundo te confidenciou. E ficara, desde então, com um asco a Mafra.
Em conversa com ele, ao jantar, descobriste que ambos tínham regressado, ainda relativamente há pouco tempo, da guerra do Ultramar. Tu de Angola, ele da Guiné. Eram da mesma colheita, 1947, embora ele fosse mais novo uns meses. Mas cada um, afinal, com diferentes memórias, experiências e até expectativas. As recordações que tu trazias eram até boas, as dele nem por isso.
Evitaste, deliberadamente, falar em demasia desse passado recente que vos aproximava. Talvez por pudor. E também porque não conhecias o Ravasco, ou melhor, tinhas acabado de o conhecer há umas escassas horas. E, em boa verdade, não tinhas a certeza de poder confiar nele. Tiveste até o pressentimento que muitas coisas vos podiam separar.
Nunca foste pessoa de fazer amizades logo à primeira vista. Sempre fora uma das recomendações da tua mãezinha que era uma mulher sábia e com um formidável sexto sentido: nunca se enganava no primeiro juízo que fazia dos estranhos. Tirava-lhes logo a "pinta", pelas primeiras frases e gestos...
Para começar, o Ravasco era, seguramente, de famílias modestas ou humildes, como se diz na tua terra. Em contrapartida, era um antigo camarada de armas, se bem que tu, na época, ainda não valorizasses muito essa condição. Agora era teu colega de trabalho. Mas tu, ao princípio, atrapalhavas-te, tratavas o Ravasco ora por colega ora por camarada. Com alguma cerimónia, talvez nortenha.
E apercebeste-te logo que ele não gostava de tocar na tecla da Guiné. Tu puseste-te então a imaginar que ele teria passado um tempo pior, na Guiné, do que o teu, em Angola. Talvez tivesse até apanhado uma "porrada", ou coisa parecida.
Toda a gente sabia que a Guiné era um duro osso de roer. Mas os gajos da Guiné também gostavam de cantar o "fado da desgraçadinha", como se em Angola (e até certo ponto em Moçambique, dependendo dos sítios) a malta tivesse só andado a brincar aos índios e cobóis.
Percebeste logo, também, ti e ele eram diferentes, se calhar irredutivelmente diferentes, oriundos de diferentes regiões do País, e até de meios sociais distintos. Tu, do Norte, ele, do Sul.
O Ravasco era alentejano de Mértola, e tu minhoto de Ponte de Lima. Do Alentejo tu só conhecias meia dúzia de anedotas, estúpidas, dirias hoje. E nenhum dos dois conhecia a terra um do outro. O que não admirava: naquele tempo, há meio século atrás, ainda era fraca a mobilidade espacial dos portugueses, viajava-se pouco, dentro (e, pior ainda, fora) do País, embora tu já tivesses carro. Mas o mais longe aonde já tinhas ido, a Sul, era até Lisboa, quando prestaste serviço no RI 5, nas Caldas da Rainha.
O Ravasco confessava que o mais a Norte aonde já tinha ido fora a Aveiro. Fora lá, de comboio, com uns camaradas, mobilizados para a Guiné, comer um ensopado de enguias. Um deles era da Murtosa ou coisa parecida.
Estivera menos de dois meses no Campo Militar de Santa Margarida, a formar companhia. Fora mobilizado para a Guiné pelo RI 2, o Regimento de Infantaria 2, em Abrantes. E não teve pejo em dizer-te que não sabia exatamente onde ficava Ponte de Lima, “lá no mapa do Minho”. O que para ti era imperdoável, quase um insulto, não conhecer a geografia do país...
De facto, para ti, o Minho era a “joia da coroa” deste país à beira-mar plantado, o teu país. Era no Minho que começava Portugal, o Portugal do Minho a Timor, como havias aprendido na escola. Sempre tiveste muito orgulho do teu Minho e, claro, do teu torrão natal, Ponte de Lima, que, segundo te ensinaram os teus avoengos maternos, era a terra, a vila, mais antiga de Portugal.
2A.Viste logo que o Bacelar era mais viajado do que tu.
Viera de Mini, de Viana do Castelo até Mafra,
um dia inteiro a conduzir.
Tinha um Mini Morris 850,com jantes especiais.
Mas também não fazia a mínima ideia
onde ficava Mértola, a tua terra natal.
Disseste-lhe que ficava na margem direita do rio Guadiana,
e que já vinha do tempo de fenícios, romanos, visigodos e mouros.
Não mostrou curiosidade em saber mais.
Na primeira noite, em que ambos se conheceram, por sinal uma noite desagradável por causa do frio e da chuva, falaram sobretudo do tempo. Falar do tempo é sempre uma solução airosa quando um gajo não tem assunto para conversa, ou não está afim de conversar, ou não quer mostrar logo o jogo, a sua maneira de ser e de estar, a sua história de vida, os seus pontos fortes e fracos… Falaram pouco das terras e das andanças de ambos pelo país.
Simpático, o Bacelar mandou vir duas aguardentes velhas de vinho verde, "duas amarelinhas", que fez questão de ser ele a pagar. E estiveram ali os dois a falar, afinal amenamente, evitando, todavia, tocar em assuntos da tropa e da guerra. O que era difícil, disseste para ti mesmo...
Na realidade, era como se estivessem ainda em África, a resguardarem-se da picada do mosquito e a contar as noites e os dias que lhes faltavam para a “peluda”. Em geral, tu eras mais reservado, nunca ou raramente falavas da tropa e, muito menos, da Guiné. Por outro lado, tratavam-se por você (e assim continuaram até pelo menos ao 25 de Abril de 1974). Ele também era cerimonioso, mais do que tu, e talvez mais por educação do quer por feitio.
Todavia, já mais para o final da conversa, ficaste com a ideia de que ele tinha o "bichinho de África" e que hoje ainda estaria arrependido de não ter aceite uma boa oferta de trabalho em Luanda. No Banco de Angola, gabava-se ele. De resto, não terão faltado outras propostas de emprego, menos aliciantes, como por exemplo a de guarda-livros numa fazenda de café, a norte de Luanda.
Não te explicou as razões por que voltara para a santa terrinha, ele que se gabava de ter alguns “grandes africanistas” na sua ascendência, do lado materno, um dos quais, militar, da Armada, ainda conhecera o Zé do Telhado no desterro, em Luanda, a caminho de Malanje.
Mas as saudades, às vezes, falam bem mais alto do que a razão. E já que puxara a conversa, disseste-lhe que fizera bem, que haveria de continuar a fazer a sua vida na sua terra, que era Portugal, e que o futuro de Angola era incerto, tal como o de toda a África Austral, último reduto dos brancos, o mesmo era dizer, do colonialismo. E não te enganaste, o velho “apartheid” branco haveria de ruir em 1994, tal como já tinha antes ruído o muro de Berlim e tudo o que ele representava, "dividindo o mundo em duas partes como uma maçã, mas de cores diferentes por fora.
Ouviu calado as tuas divagações. Foram-se deitar cedo, estavam ambos cansados, o Bacelar tinha vindo a conduzir desde Viana do Castelo. Tu vieras de mais perto, de Almada, onde pernoitaras na casa da tua mana mais velha. (Era casada, ainda de fresco, com um operário da Lisnave, estavam a montar a casa, viviam com dignidade mas com muito aperto, como as famílias operárias da época.) Vieste de cacilheiro para Lisboa para depois apanhar, na Rua da Palma, uma camioneta da Mafrense.
Tínhas guia de marcha para te apresentar até às cinco horas da tarde desse dia, para a “tomada de posse”. E o Bacelar também. Reparaste no olho azul dele. Soubeste, mais tarde, que era oriundo de uma família de senhorios, donos de terras de um antigo morgadio com direito a brasão.
Sempre invejaste, diga-se de passagem, quem tinha algo de seu, casas, montes, terras. O teu pai construíra uma casinha de paredes de tabique no couto mineiro. Nada a que ele pudesse chamar seu. Os gajos do Sul, como tu, não tínham raízes telúricas e muito menos “pedigree”, brasão, árvore genealógica, antepassados, memórias, referências, valores, ... E quem não tinha raízes na terra nem árvore genealógica para mostrar aos outros, era mais propenso às depressões, ouviste essa teoria da anomia ao alferes miliciano médico do teu batalhão, que deve ter seguido psiquiatria, era mais “apanhado do clima” do que os operacionais.
O primeiro emprego que o Bacelar arranjara, depois do regresso de Angola, fora numa repartição de finanças do distrito de Viana do Castelo. Um tio (ou tio-avô, materno) tinha (ou tivera) um cargo importante na Direção Distrital de Finanças do Porto. Teria sido, ao que parece, condiscípulo de diretor-geral das contribuições e impostos, o dr. Vitor Duarte Faveiro, natural de Ansião. Por isso, no gozo, tu chamavas-lhe “filho de Ansião”… E o apodo ficou, quando os outros sacanas dos colegas mafrenses descobriram… “Dor de corno!”, pensaste tu. Quem tinha “cunhas” para entrar na DGCI, nas contribuições e impostos, era logo apodado de “filho de Ansião”, a terra do director-geral que toda a gente reverenciava e temia, sendo tido como uma referência enquanto fiscalista.
Tu não lhe disseste, por vergonha, que também tiveras uma cunha, essa eclesiástica. De um cónego do cabido da sé-catedral de Beja. Teu antigo professor. De qualquer modo, tanto tu como o Bacelar, haviam feito, com sucesso, um concurso de provas públicas, como era norma no Estado Novo. Eram já “concursados”… Consolava-te a ideia de teres entrado, por mérito, para a função pública, não tendo roubado o lugar a ninguém.
O Bacelar tinha a secreta esperança de ainda poder ser chamado para o Banco Nacional Ultramarino ou para o Banco de Portugal, se bem percebeste. Ou de vir a ficar mais perto de casa, no caso de continuar nas finanças.
Se ele tinha defeitos que saltassem logo à vista, era essa de se gabar do seu “capital de relações sociais”, como se diz hoje…. A matriz da sociedade portuguesa era ainda na época muito clientelar, nada se conseguia (empregos, negócios, casamentos, tropa, etc., ou um simples internamento no Hospital de Santa Maria ou de São João…) sem “conhecimentos”, o mesmo era dizer, sem “cunhas”.
Mas não precisava de ser “cunha” de gente muito importante, às vezes até parecia que quem mandava mais neste país era a criada,o contínuo, o motorista, a amante, a secretária, o sargento, o sacristão, o caseiro, o feitor, o maioral, enfim o chefe do pessoal menor… Nas zonas rurais, o feitor era um tipo poderoso, tal como o sargento na tropa… Tu vias por Mértola e Beja, onde os latifundiários, a viver na capital, raramente lá punham os pés, a não ser na época das colheitas e da caça.
Ambos arranjaram, entretanto, um quarto, amplo, com duas camas, numa casa sita no centro da vila de Mafra. Vivia-se, naquele tempo, do aluguer de quartos a professores primários, funcionários públicos e militares da Escola Prática de Infantaria, incluindo soldados-cadetes que tinham algum poder de compra. Era simpática, a velhota, a dona da casa, viúva de um sargento.
Os quartos já não eram baratos na época e tu, tanto como o Bacelar, se haviam convencido, estupidamente, que estavam ali de passagem. Mais ele do que tu. A ideia de ambos era, logo depois da tomada de posse do lugar do quadro, pedir de imediato transferência. Tu, para Beja ou para Almada (estavas indeciso), o Bacelar para Braga ou Viana do Castelo. Acabariam por ficar em Mafra mais de 21 meses naquela "vida de ciganos".
Detestava a "Máfrica", como tu chamavas àquela terra, tomando a parte pelo todo. Estavas farto da tropa. E se calhar as pessoas de Mafra também estavam, tirando as viúvas de militares, simpáticas mas empobrecidas, que viviam do aluguer de quartos aos desgraçados que lá iam parar.
O teu tenente-coronel, comandante do teu batalhão, na Guiné, ainda te fez a cabeça para meteres o "chico". Deu-te inclusive um louvor, imagina!
− E se tu tivesses metido o "chico" ? − perguntavas-te hoje a ti mesmo.
Bom, não te livrarias de voltar à Guiné, agora como capitão. Secretamente, a ideia não te desagradava de todo, terias hoje um melhor pé de meia ou conta bancária. Mas também lá podias ter deixado a meia, o pé ou até a vida.
Os galões dourados de capitão não te deixavam indiferente, a ti que, não passando de um simples alferes miliciano, experimentaras, por breves meses, a secreta volúpia do poder, que tinha como contrapartida o angustiante desafio de comandar 150 homens num teatro de guerra, e o risco de perder alguns. Tu que antes nunca estiveras à frente de nada, nunca foras ninguém, nem sequer chefe de turma ou capitão de equipa de futebol!...
Tínham apenas um reposteiro a separar as duas camas, como nos quartos de hospital. A tua cama tinha um colchão de palha (!) onde te afundavas com os teus 90 quilos. (Engordaste, estupidamente, depois que passaras à "peluda"!.)
2B. Para o teu gosto, feitio e educação,
o Ravasco tinha um tipo de humor um pouco brusco e mordaz.
Não sabias se era um humor tipicamente alentejano.
Afinal ele era o primeiro alentejano com quem tu ias trabalhar.
E não te lembrava de ter lidado na tropa
com alentejanos ou algarvios.
A malta do Norte, já na altura os tratava por “mouros”.
Por sorte, a tua companhia em Angola
só tinha angolanos, minhotos e durienses.
E deram-se todos bem.
Não te importaste de partilhar um quarto, com o Ravasco, afinal ainda estavam habituados, tanto um como o outro, ao ambiente de caserna, aos seus maus cheiros, à sua bagunça, ao seu ar opressivo, à sua promiscuidade... O teu quartel no leste de Angola também era uma espelunca, dormiam com cobras e ratos....Sempre poupavam algum dinheiro e, dentro em breve, estariam de volta a casa. Ou, pelo menos, era essa a tua secreta esperança.
Viste que o Ravasco era poupado, se não mesmo forreta. Usava roupa fora de moda. O seu único luxo eram os jornais e um ou outro livro. Percebeste que andava a preparar-se para fazer o exame do 7º ano do liceu. O 7º ano do seminário não lhe valia de nada. Queria seguir letras, e tirar o curso de direito. Tinha uma obsessão pelo direito. Se calhar, era-lhe mais fácil por causa do latinório. Queria aproximar-se de Lisboa para poder entrar na universidade.
Acabaram também por tornar-se, se não íntimos, pelo menos mais próximos, por força das circunstâncias, como os prisioneiros que estão na mesma cela e estão condenados a, minimamente, entenderem-se. Ficaste a saber que ele tinha deixado noiva em Beja. Ora tu, nesse aspecto, estavas mais à vontade, eras "livre como um passarinho".
Foste conhecendo-o, a pouco e pouco. Foram-se conhecendo. Deste conta de que, debaixo da sua aparente bonomia, e do seu verbo fácil, fluente, alegre e até folgazão, havia um homem reservado, subtilmente amargo e revoltado com a vida e com a sorte que lhe coubera a ele e à sua família e à gente da sua terra. Não esquecia a injustiça da doença e da morte do pai. E tivera uma infância difícil.
− Criado a migas, a toucinho de porco e a ervas do campo que agora vão à mesa do rico − rosnava ele, mal humorado.
Tanto quanto pudeste apurar das conversas com ele em Mafra, onde ambos estavam “desterrados” (a expressão era dele), o Ravasco era neto de ganhões, e filho de mineiro. Tirara o 7º ano do seminário, graças a uma bolsa de estudo da diocese de Beja. Por detrás dessa obra benemérita haveria uma senhora devota, de uma família de grandes proprietários agrícolas, muito conceituados na região. Foi o que ele te deu a entender, sem entrar em pormenores. Era uma bolsa para estudantes pobres, oriundos do Baixo Alentejo.
Quiseram-no encaminhar para o sacerdócio, mas ele terá percebido, quando acabou filosofia, o 7º ano, que “não tinha vocação”. Ou talvez pior, para um cristão: terá perdido a fé ao lidar (mal) com as injustiças de que o pai fora vítima, ainda em vida, nunca lhe tendo ocorrido que Deus poderia estar a pô-lo à prova. Como te pôs á prova a ti, quando deixaste pai e mãe e foste para Angola, não para o “bem-bom de Luanda”, mas para a guerra no Norte e depois no Leste.
No verão, quando ainda andava a estudar, o Ravasco ia sempre para França, para a região de Bordéus, fazer a campanha das vindimas e ganhar uns francos. Entretanto dera o nome para a tropa, mas beneficiava de uma licença militar para se poder ausentar temporariamente do país. Nunca lhe passara pela cabeça não voltar a casa e ficar em França, tornando-se refratário. Sempre se considerou um homem de palavra. E patriota.
E aí a tua consideração por ele aumentou, apesar de tu o continuares a chamar de “mouro”. Não levava a mal. Tal como tu, também não, quando no gozo te chamava “morgadinho” e, depois do 25 de Abril, "pequeno-burguês".
Ainda chegou a ser “aliciado” por um comité luso-francês, católico, contra a “guerra colonial” que dava apoio a desertores e refratários portugueses na região de Bordéus. Mas ele nessa altura não queria saber nada de “política”. E era agarrado à família. E, em boa verdade, temia represálias contra o pai, já doente, se ele não regressasse de França. (Sabendo o que se sabe hoje, não houve represálias contra as famílias de exilados, desertores e refratários; a PIDE podia ter um braço comprido, mas não chegava felizmente a todo o lado.)
Segundo ele te contará, mais tarde, o pai tinha sido mineiro nas minas de São Domingos, entretanto definitivamente encerradas em meados dos anos 60. Vem a morrer quando ele estava aqui, em Mafra, a fazer o COM. De silicose, ao que parece, uma doença de evolução prolongada, então muito comum entre os mineiros. Mas só tardiamente fora diagnosticada e reconhecida, ao pai, essa doença profissional, com direito a reparação médico-legal, segundo ele te explicou. De pouco lhe terá valido a “miserável pensão de invalidez” que lhe fora atribuída, a expressão era do Ravasco.
Tu ainda comentaste que no Norte era bem pior, os pequenos lavradores, rendeiros ou não, ao fim de um vida dura de trabalho, morriam de miséria num catre, numa cabana de madeira, só com a ajuda da família, quando a tinham. E chamavam o médico só na hora da morte.
Ele endureceu a expressão do rosto e respondei-te com veemência:
− É porque você não sabe o que é um ganhão nem nunca engoliu o pó de uma mina!…
E tu aí tiveste que reconhecer que ele tinha razão, tu sabias lá o que era um ganhão e muito menos uma mina ou um mineiro e essa coisa da silicose que destruía os pulmões lentamente. Nalgumas coisas tu tinhas sido um privilegiado da sorte, embora nunca tendo sido rico, como fizeste questão de lhe frisar.
O Ravasco tinha ajudado a família com o vencimento de alferes miliciano de artilharia, enquanto estivera na Guiné. Era frugal, não se metia em tainadas. Bebia de vez em quando o seu uísque. Não fumava. Nem sequer veio de férias para poupar o dinheiro da passagem. Saberás mais tarde, quando ganharem mais confiança, que terá optado por ir uma semana a Bubaque, nos Bijagós. Tencionava arranjar um pé de meia para se poder casar. Mostrara-te, ao fim de uns meses, uma fotografia da rapariga que lá deixara em Beja. Não fixaste o nome. Só reparaste que não era lá muito bonita: era trigueira, de olhos de cor de azeitona, não fazendo o teu género.
Sentiste, isso sim, que a morte prematura do pai, antes dos sessenta anos, deixara-o muito abalado e revoltado. Adivinhaste logo que ele era do “contra”, como diria o senhor teu pai. Não gostava de Salazar nem de Caetano. E referia-se à guerra do Ultramar como “guerra colonial”, expressão que era então proibida nos jornais. E que tu também não usavas. E, pior, também não frequentava a igreja. Fazia-te confusão, sendo ele um antigo seminarista. Enfim, um "herege".
Depois de vir da guerra, começou a interessar-se pela política. Lia o “Diário de Lisboa”, além do “Comércio do Funchal”, de que tu nunca tinhas ouvido falar antes. Era um jornal cor de rosa. Chegaste a dar uma vista de olhos, mas não te despertou a curiosidade.
Em suma, as afinidades entre os dois eram puramente acidentais ou circunstanciais. Foram parar àquela terra que, tal como a conhecemos hoje, não existiria se o Dom João V, para ti de boa memória, não mandasse ali construir aquele monumental palácio e convento, um dos mais grandiosos da Europa, que o Ravasco teimava em qualificar de “monstruoso”.
A repartição de finanças estava lá instalada, tal como a EPI, e outras repartições públicas como as comservatórias, já não te lembras ao certo, até por que convivias com pouca gente da terra (e, sempre que podias, davas uma escapadela pelos arredores, sobretudo ao fim de semana).
No inverno rapava-se frio de rachar. Tu, que vinhas do Norte, onde também fazia frio a sério, lembras-te de ter de usar ceroulas no inverno e grossas camisolas de lã em Mafra. Tu e o Ravasco davam-se mal com aquela humidade marítima que chegava do Atlântico e se entranhava nos ossos. Não havia aquecimento central, nem uns simples aquecedores a gás.
Mas Mafra tinha belas praias, com destaque para a Ericeira. Começaste a gostar da Ericeira, e da Foz do Lisandro, e sobretudo das miúdas estrangeiras que começavam a parar por lá.
3A. Bom, lá foste tomar posse no dia seguinte, logo de manhã.
No gabinete do chefe, que mandou chamar o resto do pessoal
para assistir à cerimónia.
Ficou só um funcionário, ao balcão.
Para o caso de chegar algum contribuinte por causa da “décima”
Mas nessa manhã estava tudo muito calmo.
O termo de posse já estava pré-preenchido, com os dados de cada um, era só precisa a assinatura dos empossados, no final, depois de lido o famigerado juramento de lealdade ao Estado Novo.
Repetiste mecanicamente a fórmula, como quem rezava o Padre Nosso, no último ano do seminário, depois de teres perdido a fé e a vocação. Olhaste, com um misto de temor e de desdém, para os retratos, pendurados na parede, dos três mais altos magistrados da Nação (os vivos, Américo Tomaz e Marcelo Caetano; e o morto, Salazar, o “pai da Pátria”, ou o “refundador da Nação”, que ainda ninguém tivera a coragem de mandar retirar) e disseste, firme e em voz bem alta:
− Declaro por minha honra que estou integrado na ordem social estabelecida pela constituição de 1933, com ativo repúdio do comunismo e de todas as ideias subversivas....
O juramento dos funcionários públicos fora aprovado pelo decreto-lei nº 27 033, de 14 de Setembro de 1936, mas tu nunca chegaras a ler esse diploma, tal como nunca leras a Constituição de 1933.
E, de repente, lembraste-te do teu juramento de bandeira na “Máfrica” e indignaste-te por, na altura, nem sequer teres questionado as palavras que, mesmo em voz baixa, atabalhoadamente e a medo, proferiste na parada…
Regressado de uma guerra, repugnava-te ter aceite, no passado, o dever absurdo de jurar “obedecer cegamente aos teus chefes”. Afinal, eles poderiam ser todos cegos, conduzindo todo um povo, também de cegos, à beira de um precipício…
Tiveras um pesadelo nessa noite. Voltarias a tê-lo quatro anos depois...
3B. Ganhava-se mal na função pública,
mas era um emprego certo,
com cheque da Caixa Greal de Depósitos ao fim do mês
Nas finanças, havia os “emolumentos”,
que representavam mais uns tostões ao fim do mês.
Tu terias preferido entrar para a banca,
nessa altura tinha mais prestígio.
Os bancos, privados, pagavam melhor
E havia já uma ou outra rapariga ao balcão…
“manga de alpaca”, como ele dizia, com desdém, do pai.
Tu chamavas-lhe o “morgadinho”, com ironia.
Tinha a mania que era de “sangue azul”.
Mas a verdade é que ele tinha de fazer pela vida, tal como tu.
Via-se que tinha “bons princípios”,
tendo nascido, se não em berço de ouro,
pelo menos em cama com lençóis de linho.
Pois fora coisa que tu nunca tiveras.
E a tua mãe, coitada, era analfabeta.
E o teu pai, mineiro. E o teu avô, ganhão.
E acima de avô já não conheceste mais ninguém.
Depois procuraste mentalizar o teu colega de “desterro” (mas, no fundo estavas a tentar arranjar algum consolo para o teu próprio infortúnio): um gajo, na vida, tem de começar por qualquer coisa, “estagiário” ou “aspirante” a qualquer merda. A menos que se tenha um pai rico…
Começavam ambos como “aspirantes estagiários”, muito bem… E um dia, se o convento não desabasse, haveriam de subir mais um ou dois degraus… Pensavas nisso quase todos os dias quando subias aquela maldita escadaria, de manhã, para chegar à repartição. Foi o que o “chefe” disse a ambos, incentivando-os a estudar, como ele tinha feito…
− É uma carreira bonita mas dura…
E, aí, de repente, tiveste a intuição de que ele, o teu "chefe", só poderia ter sido padre, há uns vinte e tal anos atrás… Os padres são marrões, conhecia-os de ginjeira.
Salazar, também ele seminarista (chegara quase a padre), esse, já tinha morrido, uns tempos antes, mas o seu regime sobrevivera, aparentemente incólume, reproduzindo-se o “mandarinato chinês”, como tu dizias depreciativamente. Era o que se estava a viver, na época, a “mudança na continuidade”, com o Marcelo. O regime estava a chegar ao fim, mas tu não conseguias predizer quando nem como… E os “mandarins” começavam a andar nervosos. Não sabias nada do que se passava por detrás dos muros da “Máfrica”, naquela época, em finais de 1973, longe de imaginar que, mesmo com RDM em vigor e a PIDE a vigiar, pudesse haver conspirações, traições, concluios, alianças, vinganças, etc.
Tudo isto para dizer que foste completamente apanhado de surpresa pelo 25 de Abril de 1974. Nessa manhã tu estavas na repartição, quando alguém, de confiança, da tua tertúlia (a dos "jaquinzinhos"), te veio dar a notícia, alvoraçado, ao balcão. Mas ainda a medo, segredando-a ao teu ouvido.
Tu próprio pensaste logo que era um golpe da extrema-direita, orquestrado pelo Américo Tomás e o Kaulza de Arriaga. Mas de tarde já andava tudo nervoso, lá na repartição, a começar pelo "açoriano", que se trancou no gabinete.
Pessoalmente não tinhas grandes ideias para o teu futuro pessoal. Querias poder equacioná-lo numa perspetiva de futuro… coletivo. Precisavas de sentir que o teu país tinha futuro. Era uma dos chavões da época... Querias continuar a estudar, mas não tinhas grande cabeça para o fazer. Faltava-te a disciplina mental. Ainda estavas a fazer o “luto”: não já da morte do teu pai, mas da tua participação na guerra… Estranhamente, só depois de teres regressado, é que começaste a sentir “asco” por ter feito aquela guerra…
Não é que tu fosses muito “informado” quando partiste para a Guiné… E, confessas até, não tinhas “consciência política” na altura… Nem grande nem pequena… Não tens hoje vergonha de o dizer, depois de passar à “peluda”…
Quando foste mobilizado, não questionaste sequer a "legitimidade da guerra"… Aceitaste a “canga” que te puseram em cima, como o burro que puxava a nora, lá no quintal de um dos vizinhos dos teus avós de São João dos Caldeireiros, em Mértola…
Mas depois viste coisas, na tropa e na guerra, de que não gostaste. E isso terá enviesado a maneira de ver o que se passava em Portugal, a partir de 1972. De resto, tinhas tido uma educação, no mínimo, “religiosa e conservadora”, propícia à aceitação resignada da "ordem estabelecida", como então se dizia… O Vaticano II, o Concílio, levara tempo a chegar a Portugal, mas começava a “fazer estragos”, e um deles foi o progressivo despovoamento dos seminários...
4B. Uns meses antes do 25 de Abril,
5A. Achavas um ridículo e atroz o Bacelar usar,
no anelar esquerdo, um cachucho com brazão!...
Não escondia as suas simpatias monárquicas
e era católico de ir à missa.
Fazia questão de te dizer que não se interessava
pela “política politiqueira”.
Onde é que tu já ouviras isso ?
Nas “conversas em família”…
do senhor professor doutor Marcello (com dois eles) Caetano
Gostava de gabar-se de que ainda tinha algumas boas relações, que vinham do tempo em que um dos antepassados, do lado do ramo materno, fora juiz-conselheiro e par do reino no tempo do senhor Dom Carlos. Não quiseste humilhá-lo perguntando-lhe o que era isso de ser “par do Reino”… e lembrando-lhe que em 1910, há mais de 70 anos, tinha caído a monarquia em Portugal…
Para desgosto da mãe, que devia ser uma pessoa intelectual e moralmente exigente, ele nunca fora bom aluno, tirara o quinto ano dos liceus, se calhar à rasquinha, pelo que tu deduziste. O que não era normal nos filhos dos professores primários, formatados para serem os primeiros da turma. Mas tinha jeito para línguas, mais do que tu, que eras um cepo. Vá lá, tu safavas-te no latinório, que era uma língua morta, e desenrascava-te no francês de praia…
O Bacelar era o que se podia dizer um sedutor nato, tinha sorte, garantia ele, junto do “sexo fraco”. Mas também fazia facilmente amigos de ocasião. Tinha olho azul e inha uma bela cabeleira, alourada. Enfim, era bem “apessoado” e caprichava no vestir. Mas tu não lhe davas grande trela, não tinhas pachorra para lhe ouvir as aventuras amorosas desde o tempo do colégio dos jesuítas… Secretamente, invejavas-lhe a sorte de ter tido, nessas matérias, melhores professores do que os teus…
Ao Bacelar não era totalmente estranha a “região saloia” (como ele abusivamente dizia, confundindo-a com a Estremadura), já que tinha passado dois ou três meses, mais a norte, nas Caldas da Rainha como 1º cabo miliciano, monitor no Curso de Sargentos Milicianos, antes de ser mobilizado para Angola.
Explicaste-lhe que a “região saloia” ia das muralhas de Lisboa até Mafra… O Dom Afonso Henriques poupara os mouros, não os passando pelo fio de espada, como era norma, bárbara, em tempos de cruzadas, mas mandara-os cultivar alfaces fora das muralhas. Enfim, esta era a historieta que te contaram um dos teus instrutores, na “Máfrica", se calhar ele próprio ainda com sangue mouro nas veias...
Quis o destino que fossem os dois parar àquele antro de públicas virtudes e vícios privados, desde o tempo do senhor Dom João V… O "cubículo" da repartição de finanças era, só por si, um casarão, com um pé direito muito alto. Mas falava-se baixo. O chefe impunha o seu tom de voz, mavioso, de ilhéu terceirense. Era da terra do Vitorino Nemésio, Praia da Vitória. Raramente aparecia em público. Passava a maior parte do dia, no seu gabinete, com um enorme estante, de madeira exótica, pau-preto, forrada de códigos e diários do governo encadernados, a preparar-se para o “próximo concurso” que nunca mais chegava...
Ah!, também não gostavas de ver o Bacelar a puxar do “cartão da PIDE”, como tu lhe chamavas com sarcasmo, quando ambos iam ao “Ouriço” ou até ao bar do hotel da Ericeira!... Ele tinha cá uma lata!... Tu, pelo contrário, recusavas-te a fazer uso do cartão da DGCI. Fizeste gala de dizer que nunca puxaste por ele para te impores a alguém ou entrar num estabelecimento da vida nortuna, que de resto só frequentavas para fazer companhia ao Bacelar.
atribuíram-lhe o imposto de compensação e transações….
Fazia o mapa das empresas rodoviárias,
de transportes de passageiros e mercadorias,
a Mafrense, a Isidoro Duarte e outras…
Desde o início que o gajo não simpatizara contigo, o adjunto, por alegadamente seres “filho de Ansião”. O homem devia ter tido algum conflito com o diretor-geral, no passado. E quem pagava, por tabela, eram os “afilhados”…
Inconsolável, foste pôr o caso ao chefe da repartição e puxaste pelos teus pergaminhos, falando-lhe do teu tio-avô, diretor de finanças…. Enfim, para não se chatear com o seu adjunto, alargou a tua área de competência com a do cadastro e a contribuição predial que era “muito trabalhosa”, e retirou-te o correio e o expediente, que era coisa de reles escriturário…
Em jeito de protesto, tu no dia seguinte pediste logo transferência para Viana do Castelo ou Braga, conforme as vagas…
O “serviço melhor” já tinha dono, três ou quatro funcionários do “grupinho do adjunto” controlavam as “principais áreas de poder”: contencioso, fiscalização externa, imposto sucessório, imposto profissional, imposto complementar, contribuição industrial… Eram todos da terra, quer dizer “saloios”, com exceção de um de fora, mas já com raízes familiares em Mafra.
Acabaste por descobrir, por portas e travessas, que este era também o “grupinho das meninas”: uma vez por mês iam a Lisboa, a uma casa de passe clandestina, controlada por uma “madama” com muito boas relações com a hierarquia da DGCI, ali no Terreiro do Paço (e se calhar com outra gente do poder)… Era à sexta-feira da última semana de cada mês… Percebia-se pelos sorrisos,piadas e conversinhas, entre eles, na segunda-feira de manhã, seguinte, que a noitada de sexta tinha sido em grande, acabando numa conhecida marisqueira das Portas de Santo Antão…
Contaste tudo isto ao Ravasco, que ficou indignado e mostrou-se solidário contigo. Afinal, quem pagava tudo isso ?, interpelava-te ele.
A tua consideração pelo teu colega alentejano aumentou mais um ponto ou dois. Mas não alterou nada da tua situação ali dentro. Sentis-te deslocado, infeliz, com saudades da tua gente e da tua terra.
6A. Não podias jurar que havia ali corrupção.
Corrupção ?!... Não se falava disso na época.
Discutia-se o regime como um todo.
E esperava-se, à boa maneira sebastiânica,
que acabasse por cair um dia. De podre.
O Bacelar levou o carro dele, tu foste num outro, não querias ser votado ao ostracismo logo nos primeiros dias. Percebia-se que cultivavam boas relações com alguns dos maiores contribuintes, empresários e proprietários ruaus, ricaços da terra. Era costume, por exemplo, um deles, muito conhecido, ligado à indústria de alimentação e bebidas, oferecer, pelo Natal, uma lauta ceia aos funcionários da repartição de finanças. Era uma tradição já arreigada, não só nas contribuições e impostos, como no restante funcionalismo da província, incluindo os tribunais. Noutras ocasiões ia-se a uma marisqueira de Ribamar da Ericeira.
Nesse final de ano de 1972, tu e o Bacelar também foram convidados. Parecia mal não alinhar, logo no “primeiro ano”. Sabias que os "novatos" estavam “à prova”, debaixo de escrutínio… O chefe, esse, delegou no adjunto. Parecia-te um homem decente, mas fraco em termos de autoridade… Chamavam-lhe, nas costas e no gozo, o “achou...riano”…
Nessa “ceia de Natal do fisco”, entre “charutos cubanos” e “conhaques franceses”, ouviste a história do fundador da empresa que, no tempo da guerra de Espanha, aprendera a fazer contrabando de “essência de laranja”, e acabara por abrir uma fabriqueta de “pirolitos”…O segredo do negócio ? A água, o acesso a água, “muita e de boa qualidade”… Percebeste depois que, com a “guerra de África”, as exportações haviam aumentado em flecha…Era um dos fornecedores da Intendência Militar. Lembras-te de ter visto a marca, na Guiné, por todo o lado… Mas tu não bebias refrigerantes, com carradas de acúcar, que só faziam aumentar a sede…
A tua santa ingenuidade, a tua crença, parva, na honestidade e bondade intrínsecas do ser humano, sofreu mais um duro golpe. Tu tinhas idade para ficar de pé atrás contra certa gente. Afinal, aquilo da "respublica", da administração pública tinha pouco. O tal adjunto era apenas a ponta do iceberg. Entristecias-te ter colegas daqueles a trabalhar a teu lado. Infelizmente tinhas que lhes sorrir e apertar a mão direita enquanto, com a mão esquerda, eles enfiavam no bolso o “santo antoninho”, a nota de vinte paus, que o pobre do contribuinte saloio lhes deixava debaixo da capa do “processo"... O "processo”, o terror de qualquer pequeno contribuinte !!!...
Mas, adiante. O acontecimento mais marcante que viveste em Mafra , no tempo em que lá estiveste, enquanto trabalhador dos impostos, foi o 25 de Abril de 1974. Não por nenhum acontecimento local, digno de especial nota: não viste movimentação de tropas, alvoroço de tropas, viaturas, chaimites, tiros para o ar, nada disso…
Tudo se decidiu alguns quilómetros mais a sul, a 40 km, na capital. Mas antes tens de recordar aqui uma cena, das tuas memórias de Mafra desse tempo, que nunca mais esquecerás, enquanto pelo menos não apanhares o Alzheimer.
(Continua)
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Nota do editor:
Último poste da série > 1 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25324: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (24): O tio Ortiz (1906-1944), um herói trágico
3 comentários:
E.P.I. Catalogada no meu tempo 1963 como: Entrada para Inferno nome de "baptismo", Máfrica.
Uf!, tivemos um camarada de blog que tinha cerca de 5.000 folhas de A4 com escritos, mas o Luís Graça a escrever desta maneira deve ter uns bons milhares de folhas.
(para se ter uma ideia do que são 5.000 folhas, olhemos o volume de uma resma de folhas A4 que se vende por aí e tem 100 folhas, e que tenha 10 cm de espessura, o total de folhas escritas teria 5 m de altura)
Na fotografia o desfile no ano de 1968, ainda era feito com a Mauser, tal como em 1967 assim desfilei na EPC.
Valdemar Queiroz
Vou ficar a aguardar a publicação do resto do conto, o qual mantém a qualidade literária a que o Luís Graça já nos habituou.
Já não me lembrava da colecção impressionante de formas hábeis de sacar dinheiro ao Zé através dos denominados impostos. Imposto profissional, imposto complementar e por aí fora como nos tempos actuais mas com outros nomes.
Abraço
Eduardo Estrela
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