Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
domingo, 25 de junho de 2006
Guiné 63/74 - P908: Recordações de 1968/69 (Torcato Mendonça, CART 2339)
Caro Luís Graça:
Continuo a ler o Blogue com muito interesse.
Há acontecimentos vividos por mim, mas não os recordo como são descritos. O tempo, a memória e a subjectividade da análise. Falei com o Marques dos Santos e, por vezes, acontece-lhe o mesmo.
Vão umas notas sem qualquer pretensão historiográfica… nada disso!
Fui ao Centro de Saúde (...) e conheci uma senhora simpatiquíssima.
GUINÉ 68/69 RECORDADA EM 2006
"Às vezes me alegro outras me entristeço”,,, ou rio com o matchudandi di branco, os mails do (des)encontro do 10 de Junho e o cão Labrador [do J. Vacas de Carvalho, contada na tertúlia, off-record...]; comovo-me (arrepio-me) com Gadamael/Guilege, as listas de fuzilados, o Presépio de Chicri…Vou lendo o Blogue e cada vez sinto mais presente aquela terra vermelha e ardente….
Só umas notas rápidas:
(i) O Beja Santos é meu contemporâneo na Guiné. Pensava que tinha comandado o Pel Caç Nat 53.
(ii) Na História da Guiné e Cabo Verde – publicada com o apoio da UNESCO em 1973/74 e impressa em Paris –apesar da sua natural “parcialidade”, devido ao ano da publicação, pode ler-se a pag. 92: “Os povos de África prestam hoje homenagem, como seus heróis nacionais, aos combatentes... Infali Sonco (e outros ).
Sobre o Alferes português e a Campanha de 1907/08, a pag. 102 refere:
Infali Sonco, régulo do Cuor, é ofendido pelo Comandante do Posto de Geba, o qual bate na sua própria presença num dos seus colaboradores. Ele reage matando um Alferes português e prende o Comandante, que libertará de seguida. Recusa o pagamento do imposto, corta a navegação no Geba, entre Bissau (?!) e Bafatá... Tiveram depois de vir reforços de Lisboa
Não será o Governador Fortes o Comandante de Geba?
O Historiador Leopoldo Amado certamente terá deste episódio, Infali Sonco e campanha posterior 1907/08, dados mais consentâneos com a realidade. Como também das campanhas de Teixeira Pinto e outros.
Não li a Nova História Militar de Portugal, mas com os autores que tem deve ser um óptimo elemento de consulta.
(iii) Longe de mim a pretensão de fazer história. Estórias da passagem pela Guiné! Gosto de História mas isso não interessa.
Claro que o Beja Santos ficciona as suas estórias. É natural e vale a pena ler textos com aquela qualidade.
Há (tenho) um outro livro – Grandeza Africana: Lendas da Guiné Portuguesa, de 1963- que, servindo-se da transmissão oral, relata os feitos de muitos heróis fulas, mandingas e outros. Termina com a Canção de Cherno Rachide, de Aldeia Formosa. Não conheci mas ouvi falar muito deste homem. São contos lindos sobre aqueles povos.
Gostava de aprofundar este assunto, mas já alonguei as breves notas.
(iv) Uma última: Se bem me lembro, a emboscada sofrida pelo Paulo Raposo foi próximo de Mansambo, na subida do pontão do rio Almami. A Secção era do Pelotão de Mil 145, estacionado na Moricanhe. À passagem dos militares do 145 foi accionada, com comando á distância, uma mina anti-carro. Dois mortos, um capturado – Soldado Lamine que conseguiu fugir e voltar cerca de uma semana depois – e três feridos. Um deles o Sargento Mádia ainda perseguiu o inimigo mas, esgotado devido aos ferimentos, voltou para Mansambo.
Talvez os homens do 145 fossem filhos de um Deus menor. A Virgem Mãe não conseguiu salvá-los a todos. Bocados dos mortos ficaram, por muito tempo no cimo das árvores. Os vivos ripostaram bem e provocaram baixas , previstas por mim logo no local e confirmadas posteriormente pelo Laminé .
Era outra estória!
Guiné 63/74 - P907: Pensar em Voz Alta (Torcato Mendonça) (1): A nossa blogoterapia
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Caro Luís
Há algum tempo que estou na Guiné. Não enlouqueci. Só que li o que escrevestes e, principalmente o que o Beja Santos escreveu. É duro, sabes - um voltar ao passado em segundos ou minutos, eu nem sei. Lastimo o falecimento do David Payne (1); lastimo todas as vitimas daquela brutalidade. Até que ponto não fui também corresponsável. Até que ponto não estive mais com Marte e menos com a razão?
Hoje estive na Assembleia Municipal. Não trocaram ideias. Preferiram insultos. Quando cheguei a casa tentei jantar mas desisti.Telefonei aos filhos. Depois abri a Televisão, liguei o portátil e fui ao Blogue. Parei no tempo… ou fui até lá… quase que senti os cheiros!
Quando estou tenso a música clássica, em som alto, acalma-me. Hoje é tarde para o fazer. Desde sempre que a música, mesmo no rádio, me acompanha. Ici rádio Abdijan…. Só que era música africana. Gostas de Bach. Sei que o Beja Santos era melómano e ficou sem os discos. Nunca falámos nisso. Talvez a guerra fosse mais importante…Talvez!
Desculpa este desabafo. Estou mais calmo. Será isto uma terapia?
Um abraço,
Torcato Mendonça
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Nota de L.G.:
(1) Alferes Mil médico, da CCS do BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70). Era psiquiatra. Referido pelo Beja Santos no seu último post, de 24 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P904: SPM 3778 ou estórias de Missirá (3): carta a Alcino Barbosa, com muita intranquilidade (Beja Santos)
(...) "Não sei se deva contar como foi a nossa retirada até Finete, para vir buscar reforços. Os soldados válidos ficaram a tomar conta dos feridos. Retirei com crianças, com uma granada em cada mão. Em Bambadinca, encontrei a solidariedade do costume, regressei a Finete com o médico, David Payne (já falecido) e com o Alferes Reis, o sapador (nunca se recompôs da guerra, aparece-me no meu trabalho de vez em quando, sofre da mania da perseguição) e no dia seguinte, após a vossa evacuação por helicóptero, regressei a Missirá. Era minha intenção escrever-te, e depois visitar-te no Hospital Militar" (...).
Guiné 63/74 - P906: CART 2339 e Malan Mané, duas estórias para duas fotos (Torcato Mendonça)
Fotos apresentadas no almoço de convívio anual da CART 2339, que este ano se realizou em 20 de Maio de 2006. (Fotos do arquivo pessoal do ex-Alf Mil Cardoso; texto do ex-Alf Mil Torcato Mendonça; cópia enviada pelo ex-Fur Mil Carlos Marques dos Santos; )
FOTO 1: Évora - RAL 3
Esta foto é de uma das primeiras reuniões de graduados das CART 2338 e 2339. Na 1ª fila estão o Capitão Miliciano e o Alf Mil Diniz, da CART 2338. Este nosso camarada coordenava a travessia do Corubal, no Cheche, quando houve aquele trágico acidente. Texto ou textos já publicados no Blogue (1).
Não sei do Diniz. Mas mando-lhe um forte abraço.
Na foto éramos uns jovens… não sabíamos o que iríamos enfrentar, nem onde. Curioso seria ter tirado, no regresso, outra foto no mesmo local e com as mesmas personagens. Ver-se-iam as diferenças…
Malhas que o império teceu!
FOTO 2: Turra Mané
Interrogatório a um prisioneiro.
Pela disposição dos presentes é fácil imaginar a brutalidade do interrogatório. O militar das patilhas sou eu, na escrita. O sorriso é o mesmo nas duas fotos. O prisioneiro era o Malan Mané.
Só um apontamento sobre o Malan.
Em Agosto de 1969, o meu Grupo de Combate reforçado com Milícias, estava no COP 7 ou melhor, a trabalhar para a Companhia do Cap Mil Jerónimo, em Galomaro [CCAÇ 2405]. Como as Tabancas, em autodefesa, de Candamã e Afiá voltaram a ser atacadas, fomos chamados com urgência a Bambadinca. Houve uma reunião com o Comandante do Agrupamento – Coronel ou Brigadeiro Hélio Felgas -, o Tenente Coronel Pimentel Bastos, Comandante do BCAÇ 2852 e outros oficiais cujo nome já não recordo.
Recebemos a missão. Partir de imediato para Candamã/Afiá com mais um Grupo da minha Companhia. Recolhemos mais informações, com o Comandante da CART 2339, Capitão do Quadro Permanente Laranjeira Henriques, e, em coluna auto, deslocámo-nos para lá.
Na passagem por Afiá consegui convencer o Lhavo, caçador e guia em várias operações, para nos voltar a orientar. Mostrou-se relutante. Tinha as suas razões e, se bem me lembro, estavam correctas.
No dia seguinte lá partimos com o Lhavo e encontrámos a pista do IN. Seguimo-la, em progressão balanta. Vimos um local de pernoita, calculámos quantos seriam e, no fim do dia, descobrimos o possível local do acampamento. Som de pilão e outros indícios. Além disso, o local era óptimo para um acampamento.
Dois dias depois, salvo erro, forças das CCAÇ 2590 [CCAÇ 12], CART 2339 e o Pel Caç Nat 53 montaram emboscadas em possíveis locais de fuga do IN. Paraquedistas do Cop 7 assaltaram e destruíram o acampamento. Capturaram o Malan Mané. Na fuga o IN, junto á estrada Mansambo/Xitole, caiu numa emboscada da CART 2339. Sofreram baixas e foi ferido com gravidade o Comandante do PAIGC, Mamadu Indjai (2).
A nossa tropa regressou a quartéis e eu voltei a Mansambo. Uns dias depois entregaram-nos o Malan Mané. Íamos fazer uma operação – Pato Rufia – na zona do Xime e o Malan era o guia (3). Ele já tinha sido interrogado, creio que em Bambadinca. Não sei como decorreu mas imagino. Pelo breve relatório que nos entregaram disse pouco.
Em Mansambo o Malan foi para um dos dois abrigos do meu Grupo. Estes abrigos tinham uma sala que servia como refeitório, local de convívio, escrita e leitura e outros fins. Ficava na parte do abrigo virada para a parada, rodeada por duas fiadas de bidões com terra e tecto de zinco e colmo.
Entrei nessa zona e o Malan levantou-se, olhando para mim com um olhar inquieto, no mínimo. Fiquei, eu e os outros militares surpreendidos com aquela reacção. Como ele não falava mandinga e o meu crioulo era fraco, mandei chamar o Lali.É o guineense que se vê a sorrir na foto. Quando sentimos que o Malan estava mais calmo, conversámos com ele durante o tempo necessário para obter muitas informações. Foram passadas, as mais importante, a muitas folhas de papel.
O Malan sabia quem eu e outros camaradas éramos porque vinham, ele e outros militares do PAIGC, espiar-nos aquando da construção de Mansambo; tinha estado na fatídica emboscada da fonte, cerca de um ano antes. Viram-me passar mas não abriram fogo pois o objectivo era a fonte. Nesse dia fui com o meu Grupo á Moricanhe onde estava o Pelotão de Milícias 145. Disse-nos que o Cmdt do PAIGC para aquela zona era o Mamadu Indjai, recentemente reforçado e tendo 120/150 combatentes, com armas pesadas etc, etc. Não sabia o que entretanto sucedera ao seu ex-comandante.
Parece um relato de um santo. Claro que não o éramos. Aplicávamos a dureza julgada necessária, a disciplina, estávamos certos que o suor poupava sangue. Além disso sobre a Convenção de Genebra… só de nome… um conjunto de Leis, será?... Genebra, a cidade Suiça e a detestável bebida!... Mantínhamos era a nossa dignidade e o respeito por quem contra nós lutava. E não só.
Voltando ao Malan Mané. No dia seguinte fomos para o Xime. Correu mal a operação. O Malan enganou-se demasiadas vezes e, além de não atingirmos o objectivo, viemos de mãos a abanar.
Essa operação foi repetida, segundo me parece e o Malan foi ferido…Encontrei-o, em Novembro de 1969 no Hospital Militar em Bissau. Ver nota anterior no Blogue (4).
Em nota de rodapé: gostava de saber onde estará o Malan, o Braimadicô – ex-comandante do PAIGC, que nos guiou na operação Lança Afiada... Ainda vou escrever sobre ele e essa operação. Mas principalmente o que terá acontecido ao Lali, Lamine, Sargento Madia Baldé e a outros militares do Pelotão de Milícia 145 ou ao Régulo António Bonco Balde. Eram outras estórias!
África, principalmente a Guiné, é uma saudade. Mas... e mais não digo por agora.
Torcato Mendonça,
ex-operacional, Cart 2339 (Mansambo, 1968/69)
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Notas de L.G.:
(1) Vd., entre outros, os seguintes posts em que é referido o nome do Alferes Miliciano Diniz, da CART 2338:
7 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P853: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (10): A retirada de Madina do Boé
16 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXLIII: A verdade sobre o desastre do Cheche (Rui Felício)
2 de Agosto de 20054 > Guiné 63/74 - CXXXIII: O desastre de Cheche, na retirada de Madina do Boé (5 de Fevereiro de 1969)
(2) Vd post de 30 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXX: A CAÇ 12 em operação conjunta com a CART 2339 e os paraquedistas (Agosto de 1969) ...
(...) "Op Nada Consta > Desenrolar da acção:
"Enquanto as forças do Sector L1 ficavam emboscadas nas proximidades da bolanha do Rio Biesse (a leste, a CCAÇ 12 com 3 Gr Comb dispostos em semicírculo; a norte, o Pel Caç Nat 53; e a oeste, forças da CART 2339), veio a primeira vaga de paraquedistas que foram colocados na ponta oeste da bolanha, penetrando imediatamente na espessa mata que se estende para sul.
"Cinco minutos depois, é capturado um elemento IN armado de RPG-2 (9). Sucederam-se mais duas vagas de helicópteros, transportando outros tantos Gr Comb dos paras e a mata passou a ser percorrida de norte para sul.
"0 prisioneiro [Malan Mané, de seu nome, de etnia mandinga], entretanto, não dera nenhuma informação que permitisse levar à localização de qualquer arrecadação [de material] ou acampamento importante. Confessou apenas que no local se encontravam 80 homens (10), sob o comando de Mamadu Indjai, dispersos em pequenos grupos pela mata, e com quem os paras estabeleceriam depois contacto, fazendo 2 mortos e capturando 3 armas automáticas" (...).
(3) Vd. posts de:
8 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXLVI: Setembro/69 (Parte I) - Op Pato Rufia ou o primeiro golpe de mão da CCAÇ 12
9 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - CXLVII: Malan Mané, guerrilheiro, vinte anos, mandinga
(4) Vd. post de 15 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLIII: O Malan Mané estava vivo em Novembro de 1969 e eu abracei-o (Torcato Mendonça)
(5) Informação preciosa do Torcato: n relatório da Op Lança Afiada, publicada em quatro partes no nosso blogue não é referido o nome do prisioneiro, Braimadicô, que serviu de guia às NT:
Vd. posts de:
14 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIX: Op Lança Afiada (IV): O soldado Spínola na margem direita do Rio Corubal
9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIII: Op Lança Afiada (1969): (iii) O 'tigre de papel' da mata do Fiofioli
9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXI: Op Lança Afiada (1969) : (ii) Pior do que o IN, só a sede e as abelhas
15 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLIII:Op Lança Afiada (1969): (i) À procura do hospital dos cubanos na mata do Fiofioli
sábado, 24 de junho de 2006
Guiné 63/74 - P905: A morte na estrada Finete-Missirá ou um homem com a cabeça a prémio
Meu caro Luís,
Fico preocupado pela capacidade de retenção da tua memória.
A maior parte dos acontecimentos que aqui descreves são fidedignos. Não te esqueças que eu tive um papel vagabundo nesta guerra. Cheguei a Missirá a 4 de Agosto de 68 e lá permaneci até Novembro do ano seguinte. Só abandonei Missirá porque os soldados estavam fartos daquele tipo de guerra em que eu os envolvi. Depois, parti para Bambadinca, onde era pau para toda a obra. Se quiseres, um dia posso-te fazer esta memória descritiva. Talvez seja útil para os nossos netos. Tenho muito gosto em encontrar-me contigo a partir de Julho. Vê no que te posso ser útil. Penso reformar-me aos 67 anos, se não houver problemas de saúde. Depois, tenho agendado escrever SPM 3778. Caso não te recordes, era o meu endereço na guerra. Manda-me a morada do blogue onde está o meu texto, por favor.
Recebe um abraço do Beja Santos
2. Respondi-lhe no dia seguinte nestes termos:
Camarada e amigo Beja Santos:
Fico contente por saber dos teus planos… Vou ficar à esperar do teu SPM 3778… Que Deus te proteja, como te protegeu na Guiné, e te dê saúde para escrever as tuas memórias… Eu também tenho coisas na calha… Sei que eras católico, eu não…
Quanto à minha memória, é capaz de não ser assim tão famosa… Na Guiné ia escrevendo o meu diário… Memória de elefante tem o Humberto Reis, mas tu sabes como nós somos selectivos… Por exemplo, eu invejava a tua discoteca de música clássica quando ia a Missirá; em contrapartida, só há tempos soube que alguns colegas teus, alferes milicianos, te chamavam o tigre de Missirá… Digo-te isto com ternura, até porque sempre admirei a tua relação com os teus homens… A idade, a maturidade e a distância permitem-nos estas (in)confidências: mas é também para isto que o nosso blogue serve…
O Mário Dias, um durão dos comandos de Brá (1963/66), acabou de escrever isto a teu respeito, e que é lindo:
(...) Estou a reunir material para construir uma página só dedicada aos destacamentos de Bambadinca: Missirá/Finete, Fá Mandinga, Ponte Rio Undunduma, Nhabijões… Se tiveres material fotográfico ou outro, a malta agradece… Os direitos de autor ficam sempre garantidos: o seu a seu dono... Num ano, já juntámos mais de 100 camaradas … e alguns amigos, não-combatentes, como o historiador Leopoldo Amadao, o jornalista Jorge Neto, ou o Pepito – Carlos Schwarz – mentor do Projecto Guileje, fundador e director da prestigiada ONG AD – Acção para o Desenvolvimento (estará cá de férias em Julho)…
3. Resposta do Beja Santos:
Meu caro Luís, mentir-te-ia se te dissesse que não me tocou profundamente a carta e os mais conteúdos. Fiquei petrificado a ver a Capela onde eu ia à missa. Assim nasceu o conto que te ofereço para o blogue. E agora pára de fazer chatagens sentimentais, obrigando-me a escrever através de novas revoadas de comoção.
Esta guerra é desinteressante para a geração dos nossos filhos, pois vem no nevoeiro de uma outra época terminal. Passará à moda na geração dos nossos netos. Por isso é que [acções] tão meritórias como aquela que estás a fazer merecem ser apoiadas. Faço Frequências na segunda e fica prometido que quando te telefonar terei à mão as fotografias que me pedes.
Atenção, que já há muita bibliografia sobre a nossa guerra. Por exemplo, o Freire Antunes escreveu dois volumes no Círculo de Leitores. Eu apareço no primeiro, com extracto do meu relatório da operação Rinoceronte Temível e o poema que o poeta Ruy Cinatti escreveu quando lhe mandei o relato que deu origem ao Presépio de Chicri. Recebe um abraço do Mário Beja Santos.
4. Acho que acabei de lhe fazer outra surpresa ao publicar a fotografia que mostra o estado em que ficou o Unimog 404, depois de accionar uma mina, quando o Beja Santos seguia de Finete para Missirá, no dia 15 de Outubro de 1969, por volta das 18h00... Era voz corrente que ele tinha a cabeça a prémio... Ele acaba de o confirmar no magnífico texto que é a carta ao Alcino Barbosa e a que chamou "mais um continho para o teu álbum de memórias" (vd. post anterior).
O Beja Santos não me levará a mal se eu lhe roubar a ideia do título de um dos seus próximos livros e passar a chamar às suas estórias, reais e ficcionadas, SMP 3778 ou estórias de Missirá...
Só uma ressalva: Mário, o blogue não é meu, é nosso... Ficamos honrados com a tua presença, a tua lucidez, a tua frontalidade, o teu talento, o teu testemunho, puro e duro... Como sabes, uma das nossas poucas regras, é o respeito uns pelos outros, pelas vivências, valores, sentimentos, memórias e opiniões uns dos outros (hoje e ontem)... Aqui, nesta caserna virtual, ninguém é juiz de ninguém... É a única maneira de falarmos, abertamente, sem ressentimentos, das nossas experiências como homens e como combatentes...
Obrigado também pelas publicações que me mandaste pelo correio. Com tempo, farei aqui uma breve recensão dos teus livros, para os nossos amigos e camaradas te conhecerem melhor... (LG)
Guiné 63/74 - P904: SPM 3778 ou estórias de Missirá (3): carta a Alcino Barbosa, com muita intranquilidade (Beja Santos)
O Pel Caç Nat 52 foi depois transferido para Bambadinca, sendo substituído, em Novembro de 1969, pelo Pel Caç Nat 54, comandado pelo Alf Mil Correia, devido ao grande desgaste a que tinha estado sujeito nos últimos meses.
Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).
© Humberto Reis (2006)
Carta a Alcino Barbosa, com muita intranquilidade
Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70)
Alcino, esta carta está escrita no meu coração desde o dia 16 de Outubro de 1969, quando tu passaste a ser sinistrado de guerra. Até então, tu eras o 1º cabo a quem eu confiava a manutenção da dispensa, a preparação das escalas dos turnos da noite, a limpeza das metralhadoras nos abrigos, a elaboração da lista das munições que traríamos do batalhão.
Enviaram-me agora uma fotografia da Capela de Bambadinca, e a minha primeira recordação foi para ti. Um dia, regressava eu de um coluna do Xime, e alguém da secretaria me informou da tua chegada. Recordo um jovem transido, a olhar-me apavorado. Devem ter dito de mim cobras e lagartos, que ias para o inferno de Missirá sob o comando de um louco que andava permanentemente na mata. Tu vinhas substituir o Raposo, a quem apliquei 10 dias de prisão por ter adormecido no posto de sentinela. Apanhaste a fase épica da reconstrução do quartel, depois dos incêndios de Março, que devoraram as moranças, abrigos, depósitos. Ajudaste-me imenso. Eras reservado, o meu irmão mais novo a quem eu entregava aspectos de logística que me enfastiavam. Sei que adoeceste um dia que recebeste uma carta, sabe-se lá que calúnias ou suspeitas infundiram sobre o teu ânimo. Mas eu continuo a ver-te a tremer junto à Capela de Bambadinca, assombrado com a guerra que se aproximava. Eras um camponês, e ao longo destes anos eu interrogo-me sobre o que tens feito na vida, coxeando na tua fractura de calcâneo. Ora eu sou inteiramente responsável por tudo quanto se passou em Ganturé, pelas 18 horas de 15 de Outubro, e tu uma das minhas vítimas. Segue a minha confissão.
Os meses de Agosto e Setembro foram tumultosos, com operações, patrulhamentos diários a Mato Cão, a montar a vigilância às lanchas que navegavam até ao porto de Bambadinca. Tu deves estar recordado que em Agosto, entraste afogueado no meu abrigo aos gritos:
- O Furriel Casanova diz que vai matar toda a gente!.
Quando cheguei à porta do abrigo, de facto o Casanova andava de metralhadora em punho a ameaçar toda a gente de morte, caso lhe desobedecessem. Alguns soldados riam, pensando que se tratava de uma paródia. Mas não. Os nervos do Casanova tinham cedido. Demorei meia hora a avançar para ele, ele gritava:
- Não se mexa, mais um passo e dou-lhe um tiro na cara!
Quando lhe tirei a arma pelo tapa-chamas, ele caiu redondo no chão da parada. Como te recordas, foi evacuado e não mais voltou. Era assim a nossa guerra, eu via-te triste, penso que tu estavas muito distante, mordido de saudades da tua gente.
A 15 de Outubro devíamos ter regressado mais cedo. O Comandante local do PAIGC, Corca Só, já me tinha ameaçado de morte, tendo mesmo deixado um bilhete na estrada. Saímos tardíssimo de Finete, o sol a cair a pique, como acontece nos trópicos.
Mandava o bom senso que eu desse ouvidos ao nosso condutor, Manuel Guerreiro Jorge, que me pediu insistentemente que ficássemos em Finete. O Unimog 404 vinha carregado de combustível, rolos de arame farpado, munições e alimentos. E em Ganturé a roda dianteira do lado do condutor pisou a mina anti-carro que desfez completamente a frente da viatura.
Os minutos que se seguiram foram de apocalipse e caos, à altura daquela guerra. Saí com a G3 na mão e foi o que me valeu. O Cherno, que seguia no guincho, desapareceu, isto quando o guincho ficou completamente retorcido. O Cherno apareceu a dezenas de metros de distância, feito num Cristo, felizmente andou pelos ares e aterrou num morro de baga-baga. O desastre maior foi mesmo o Manuel Guerreiro Jorge que ficou desfeito da cintura para baixo e já chegou morto a Finete. Estou neste momento com a carta que o pai dele me escreveu quando regressei a Portugal, pedindo-me para o ir visitar ao Monte da Cabrita, Santana da Serra, concelho de Ourique. Prometi ao Sr Jesuíno Inácio Jorge ir visitá-lo em breve, o que nunca aconteceu.
De acordo com o relatório que fiz sobre esta emboscada e accionamento da mina anti-carro, tu ficaste ferido, bem como o Comandante da Milícia de Missirá, Albino Mamadu Baldé e o soldado Arlindo Bairrada. Imagina tu que o Bairrada foi ferido com estilhaços num saco lacrimal, andou com um olho pensado durante semanas e recompôs-se rapidamente. Também perdi o rasto do Bairrada.
Não sei se deva contar como foi a nossa retirada até Finete, para vir buscar reforços. Os soldados válidos ficaram a tomar conta dos feridos. Retirei com crianças, com uma granada em cada mão. Em Bambadinca, encontrei a solidariedade do costume, regressei a Finete com o médico, David Payne (já falecido) e com o Alferes Reis, o sapador (nunca se recompôs da guerra, aparece-me no meu trabalho de vez em quando, sofre da mania da perseguição) e no dia seguinte, após a vossa evacuação por helicóptero, regressei a Missirá. Era minha intenção escrever-te, e depois visitar-te no Hospital Militar.
Escrevo-te agora pedindo-te perdão pelo meu silêncio e pela minha ausência. É legítimo que tu nunca me perdoes a minha incúria naquela guerra demencial, onde eu arriscava tudo, esquecendo-me que comandava homens, jovens da minha idade. Devia ter-te procurado. E de vez em quando sinto-me intranquilo sabendo que tu, meu caríssimo Alcino, merecias que te tivesse procurado, dado companhia e confirmado a amizade que sempre senti por ti.
Não sei exactamente porque te estou a escrever hoje. Creio que o detonador foi a tal fotografia da Capela de Bambadinca, onde muito perto te conheci. Estamos numa idade em que não vale a pena guardar rancores e só me resta ter pena deste meu estúpido silêncio que alivio agora com esta confissão. A ver se ganho coragem para descobrir onde tu paras e tentar dar força à nossa amizade.
E se acaso leres esta carta, tal como nós dizíamos nos aerogramas, espero que a mesma te encontre cheio de saúde e prosperidade.
Teu, Mário Beja Santos.
sexta-feira, 23 de junho de 2006
Guiné 63/74 - P901: De Viana do Castelo a Cansissé (Américo Marques)
Boa tarde Luís!
Mais uns escritos, muito simples e sem conteúdo que doa, a recordar, como acontece com outros relatos. Unicamente descrevo um bocado da vivência, que em parte todos viveram. O ir, chegar e sobreviver – até regressar. Numa África que nos foi comum.
© Américo Marques
Américo Marques
A Estibordo do Niassa
Após ter ido de Viana do Castelo (B C 9) para formar batalhão até Penafiel e desta até Lisboa para embarcar no Niassa. E, como se tivesse acordado, dou comigo sentado no castelo da proa a estibordo do meu transportador marítimo. Num fim de tarde de Junho de 1973, quando avistei reconfortante vegetação – que me fez lembrar rapidamente a vida verde das montanhas e dos campos minhotos. Neste caso, as rendas verdes de Viana. Cidade pequena, dotada pela natureza com um rio calmo um mar muito iodado, e uma montanha que é destino de peregrinos. No resto é como outra qualquer. Composta de cedros, acácias, pinheiros, carvalhos, esquilos e miradouro para um deslumbrante horizonte. Quando o sol namora o mar, ao fim da tarde.
Depois deste devaneio ou divagação que me confundiu, resultante de um estado psicológico muito frágil (porque enjoei), deixei-me aconchegar pelos sendeiros de terra vermelha de Bissau. Envolvimento irreversível. Fazendo nascer em mim uma ligação que é neste momento - passados 33 anos - uma saudade maior que o oceano que nos separa... Fisicamente como é óbvio. Porque na mente a Guiné só não é a minha primeira terra porque existe uma outra, chamada Portugal.
E assim, já muito picado, fui andando, indo e me envolvendo com a realidade da Guiné. Foi quando nos enviaram para o Cumeré, para ouvir as boas vindas do supremo, o General A. Spínola. No dia seguinte, carregados de petiscos, bombarda e o Racal, foi dar ordem às botas até Mansoa. Cumprir o terrível I. A. O, que se estendia também às zonas de Nhacra e Dugal.
Passadas duas semanas, toca a carregar de novo o equipamento de campismo para definitivamente ficarmos acampados… Ah, mas não fomos à pata! Fomos enlatados num ferry, uma LDG, até ao Xime. Hall de entrada, via berliet, para as terras do Gabu.
Aqui tracei (mal) ou alterei o meu destino mais imediato. Como o bazuqueiro era amigo e companheiro de trabalho e como pertencia a outro grupo de combate que não o meu, pedi para trocar. Saiu-me a fava! Pois deixei de poder ficar em Nova Lamego. Que tinha comércio de gente ibérica, cinema, raparigas das nossas e vinho Lagosta. E de novo lá vou com as ferramentas. Desta vez para a vida paleolítica de Cansissé, acompanhado na viagem por muitos macacos que, para meu espanto, ladravam.
Ao chegar, embora nos tenham recebido com uma enorme festa, eu sou mal tratado (mas aceitei as caneladas) pois os 2 operadores de rádio que já cantavam; estaaaa´na mala… ficam encornados! Aguardavam dois transmissões e só chega um, e de maca, devido a estar com uma carga de paludismo.
Acreditem, que cá o doente teve pena do Lisboeta e do Alpalhão. Este grupo de combate até tinha o título de Os Duros de Cansissé, que chatice não os livrar das noites de escuta (até ao último dia) no Racal TR28.
Era só operações!... Na primeira, devido a levar a antena do STORNO à vista, o capitão chamou-me nomes feios, daqueles que se chama aos do apito... Desde o nascer do sol até ao pôr do mesmo. Quando assim não era, tinha que se cortar palmeiras - ai as minhas mãos! - para novos abrigos, pois o inimigo tinha armamento terrível. Nem os jactos escapavam. Eu que escutava nos diferentes rádios sei o que comunicavam, em cifra ou em codartemar.
Mas o pior era comer tripa seca (dobrada), tomar banho à bidonville; andar à pancada a escorpiões e aos tiros a serpentes. Iluminados com petróleo, que se metia em garrafas da cerveja Sagres e cuja torcida era feita de gaze, que nem sempre havia devido a ter duas estafadas Mercedes, constantemente avariadas. Obrigando durante as colunas que alguém tivesse que ir para trás, de bicicleta (emprestada!), por picadas não batidas até ao Destacamento ou a Canjadude, para trazer óleo. Neste caso, e que me lembre, o meu conterrâneo foi um dos valentes voluntários a fazer de aguadeiro (género o grande Joaquim Agostinho) para nós.
Escrever sobre sofrimento, situações sangrentas ou mortes dos da minha CART e das outras, não o faço, pois é provável que possa contar estórias sobre esta nossa História, no seu ponto mais dramático. E essa, só diz respeito ao colectivo do BART 6523. Nunca a uma vontade (embora normal) individual de prosar.
Concluo com uma grande necessidade de descarga emocional: nenhum Soldado devia ser sujeito a submeter-se - pois fomos obrigados a arrumar as armas e acatar ocontrolo do PAIGC - a um inimigo que tinha razão. E nós não sabíamos e foi uma grande humilhação. Por isso e só por isso. E por conseguinte, fomos escorraçados e hostilizados com palavras e gestos de desprezo, durante o percurso da viagem sem retorno, do Cumeré, local de concentração, até ao aeroporto. Naquela manhã de 9 de Setembro de 1974. Dia do Fim!
Junho 2006
Américo Marques
Guiné 63/74 - P900: O 25 de Abril em Nova Lamego (A. Santos, Pel Mort 4574/72)
2. Resposta pronta do A. Santos (ex-sold trms, Pelotão de Morteiros 4574/72, Nova Lamego, 1972/74)
Amigo Luís:
Em resposta ao teu pedido, sobre Abril em NL [Nova Lamego]:
Houve alguma confusão mas, como é lógico, ninguém me tira da cabeça que houve mãozinha do PAIGC.
No 1º de Maio [de 1974], NL acordou com muitas montras partidas, portas arrombadas e muita pilhagem, claro que houve muitos estragos, materiais e fisicos:
(i) materiais: tudo o que se podia levar para casa marchou, sendo os alvos principais as casas tradicionais do comércio guineense e as casas de libaneses;
(ii) físicos: 4 ou 5 mortos e vários feridos, não sei precisar.
De início a tropa tentou segurar a sublevação mas, como não estava a conseguir, o Coronel, comandante do CAOP2, mandou avançar os paraquedistas, que estavam ali à mão e o resultado foi o atrás descrito.
Quanto aos Fulas, sempre me dei bem com eles e vice versa, inclusive alguns até considerava como amigos. Recordo que principalmente as mulheres diziam que o branco não devia vir embora.
Após esse dia só houve mais uma tentativa, mas não me recordo de haver males fisicos, depois os ânimos serenaram, os militares do PAIGC começaram aparecer fardados, alguns até eram lá do sítio, e ostentavam a arrogancia própria dos vencedores,peito inchado... Na grande maioria, ao passar uns pelos outros nem nos cumprimentavamo, uns aos outros... Havia tensão no ar, mas nunca passou disso.
Todo o tempo de guerra dá cabo dos nervos aos seus intervenientes, mas, Luís, o período que mediou de finais de 1973 até depois do 25 Abril deu cabo dos meus. Na altura não avaliei a situação, como é natural, mas hoje passados estes anos todos é que sei o quanto me fez mal à saúde.
Um abração
A. Santos
Guiné 63/74 - P899: Diga se me ouve, escuto! (Renato Monteiro)
Foto do arquivo pessoal de © Luís Graça (2005)
O Renato, que faz parte da nossa tertúlia, ainda não disse quem era: dei-lhe um tratamento de privilégio... Mas já agora ficam a saber mais alguma coisa sobre o misterioso homem da piroga:
Embarcou para a Guiné em 18 de Fevereiro de 1969, fazendo parte da Cart 2479 / BART 2866... Passou por Contuboel (Junho/Julho)(1) e Piche, acabando por mudar de companhia, por motivos disciplinares... Sem entrar em detalhes, por razões de confidencialidade e respeito pela privacidade do meu amigo, julgo que caso destes não eram tão raros quanto isso no nosso tempo... Já aqui o João Tunes falou do caso dele (2)... A porrada valeu ao Renato a mudança de companhia: foi colocado no Xime e depois no Enxalé, na CART 2520 (1968/70)... Por pouco tempo, já que o paludismo apressou-lhe o fim da comissão: evacuado do Hospital 241 foi transferido para o HMP, em Lisboa, em 4 de Setembro de 1969.
Tudo para justificar a quebra de um compromisso e dar a conhecer, ao resto da tertúlia, mais um camarada da Guiné, com uma históira de vida e uma sensibilidade singulares, um homem desalinhado como eu, e sobretudo que sabe oôr em palavras muito daquilo que sentimos e vivenciámos na tropa e na guerra, ou não fosse ele um poeta e um artista. O Renato vai-me perdoar por lhe retirar um pouco do seu mistério... (LG)
Texto do Renato Monteiro (ex-furriel miliciano, CART 11, Contuboel e Piche, 1969/ CART 2520, Xime e Enxalé, 1969):
Amigo Luís:
Apesar dos inúmeros apagões (alguns intencionais) sobre o capítulo da minha história (desde o embarque ao regresso), tenho a ideia de, nesse tempo, ser sempre dos últimos a chegar à formatura. A falta de pontualidade acabava sempre por constituir motivo sério de repreensão (inúmeras vezes repetida) pelo Comandante da Companhia: -- Ó Monteiro, um dia destes, dou-lhe uma porrada”.
É bem provável que te recordes do sujeito: um tipo excessivamente baixinho, que nunca foi capaz de fazer uma meia volta - volver sem criar a impressão de mover-se numa matéria adesiva, impedindo a rotatividade livre dos calcanhares e por filtrar as sílabas e as vogais através do cornetim nasal, em vez do uso comum das cordas vocais quando comunicava com o pessoal...
Não vale a pena adicionar, a estas, outras características inerentes ao sujeito para perceber como, a partir de certa altura, o regime, com um número cada vez mais insuficiente de quadros permanentes não teve outro remédio senão mandar para as urtigas os manuais de selecção de pessoal para as três frentes... Em determinada fase do campeonato, os recursos humanos deixaram de se preocupar com a questão dos perfis: servia qualquer um.
Como não alterei, em nada, esta inclinação espontânea para o desalinho,
acabei por propiciar o cumprimento da promessa nasalada do capitão, cedo demais, em Piche, para onde fôramos transferidos.
Após 10 diz de detenção domiciliária, em situação de incomunicável, acabei por ser recambiado para o Xime, com um grande sentimento de luto, sobretudo em relação aos africanos do meu pelotão (com quem trocava imensas estórias) para além de me ver afastado do companheirismo de um ou outro camarada, especialmente do Furriel Cunha (mais conhecido por Canininhas) que, tendo sensivelmente a mesma estatura da do capitão, não era tão baixinho quanto aquele!
Natural do Barreiro e filho de um palhaço, herdara do pai um grande humor (que muito ajudou a contrariar a propensão para uma revolta amarga que me deixava a falar sozinho) sendo, ainda, dotado de uma aptidão fora de série para tocar qualquer instrumento. (Hoje não faz outra coisa do que andar pelo país fora, a concertar orgãos e pianos gripados...). Desde a aterragem no Aeroporto da Portela (1969) vi-o apenas três vezes: uma com o propósito de me facultar o Diário da Companhia ( a CART 2479); outra para me ceder algumas fotos tiradas por si na Guiné (algumas das quais figuram na Fotobiografia) e uma outra a pretexto de beber um copo...
Seguramente que a personalidade do Canininhas, vertida para a literatura, não careceria de muita elaboração ficcional, bastando quase só transcrevê-lo... E, pergunto-me se não terá sido ele o autor da foto da Piroga do Geba, já que uma das suas fixações era, para além de perfilhar uma gazela (!), adquirir uma câmara fotográfica...
Como tu, é difícil recordar o terceiro camarada que se encontrava connosco e a quem , afinal, se fica a dever este inesperado reencontro entre nós e, com uma certa memória de mim próprio...
Ao contrário da maior parte das pessoas que conheço (e crê, não me vanglorio desta particularidade) nunca mais cuidei em revisitar os antigos companheiros... Sequer os que integravam a Companhia sediada no Xime que incorporei.
Salvo os graduados, a maior parte era constituída por malta recrutada no Alentejo, tendo como comandante um homem com quem apenas troquei duas ou três brevíssimas conversas, uma das quais em torno de livros que líamos e autores que apreciávamos.... Igualmente miliciano, de formação católica, de quando em quando, procedia a uma breve cerimónia no centro da parada, junto a um padrão ou coisa do género, onde lia umas passagens da bíblia a muito poucos (meia dúzia ?) de soldados que, voluntariamente, o acompanhavam...
Ao que julgo, era professor de Química e, apesar de não recordar o seu nome (imagina, como trabalhei para a evaporação destas memórias) conservo dele a
melhor das lembranças... Aceitava pacificamente a minha tendência para o
desalinho (se é que dava por isso) e eu respeitava-o.
A partir do Xime, como sabes, a par das incursões que se faziam em direcção (por vezes mais aparentes do que efectivas) às bases ou acampamentos dos Turras (devidamente assinalados no mapa da tua página), mantínhamos um contacto regular com Bambadinca para o reabastecimento logístico.
A Ponte de Rundunduma, próximo daquela aldeia (e que se encontra igualmente ilustrada na tua página), foi ocupada inicialmente pela secção de que fazia parte.
No dia em que lá chegamos, a preocupação prioritária foi a de cavar uma vala, vertiginosamente, operação deveras penosa mercê da dureza do terreno, e de no dia seguinte tratarmos de construir uns frágeis abrigos, com os usuais bidões, enchidos com pedra e areia cobertos por folhas de zinco.
Imaginarás como nos sentíamos tão vulneráveis, sobretudo à noite, face a uma hipotética investida do IN. A expectativa de sermos atacados, com os parcos dispositivos de defesa e o reduzido número de homens que dispúnhamos, causava-nos uma grande intranquilidade... Alturas houve em que apenas dormitava durante o dia, por temer a probabilidade de virem a incomodar-nos de noite, estando ainda por perceber a que razão de não nos terem visitado... Ora, para serem bem sucedidos, nem precisariam de grande ousadia!
À volta do rio, nos charcos, o insistente coaxar das rãs era-me tão insuportável que a custo simulava junto da Guida a irritação que me provocava o pitoresco e pacífico som daquelas sujeitas quando, mais tarde, as surpreendíamos nos lagos do nosso namoro!
Apesar de partilhar com os demais aquele sentimento permanente face à iminência das emboscadas e flagelações aos aquartelamentos (que acabaram episodicamente por suceder) onde me senti, apesar de tudo, menos desconfortável (se assim posso dizer) foi no Enxalé, para onde fui destacado.
Aí, tive a oportunidade de retomar o contacto com as comunidades africanas, balantas e mandingas, que coabitavam, paredes meias, com o destacamento. Através da leitura recente que fiz a registos dessa altura, soube (para minha surpresa) que cheguei a ter perto de cem alunos aos quais procurava ensinar a falar e a escrever a língua portuguesa utilizando como espaço lectivo um antigo armazém de um colono, que se pôs em fuga no início da Guerra...
Logo no início desta longa resenha falava-te da falta de pontualidade em chegar às formaturas. Amigo Luís, essa lacuna mantém-se até hoje. Não apenas em relação às coisas que se comparam com a seca das formaturas, mas também com as que envolvem prazer, como o simples acto de responder-te...
Em parte, este deixar para amanhã o que deve ser feito logo, prende-se com a falta de tempo ou, melhor dito, com a forma como o ocupo...
Disso te darei notícia, tão breve quanto possível, aproveitando para responder às tuas últimas palavras.
Um grande abraço,
Renato
Lumiar, 28 - 7- 05
Notas de L.G.
(1) Vd. post de 29 de Junho de 2005 > Guiné 63/74 - LXXXVI: No 'oásis de paz' de Contuboel (Junho de 1969)
(...) "O que eu observo, sob o frondoso e secular poilão da tabanca, é uma típica cena rural: (i) as mulheres que regressam dos trabalhos agrícolas; (ii) as mulheres, sempre elas, que acendem o lume e cozem o arroz; (iii) as crianças, aparentemente saudáveis e divertidas, a chafurdar na água das fontes; (iv) os homens, sempre eles, a tagarelar uns com os outros, sentados no bentém, mascando nozes de cola…
(2) Vd. Blogue do João Tunes > Bota Acima > post de 7 de Abril de 2004 > Jogo de cartas
Guiné 63/74 - P898: Saudades do meu amigo Renato Monteiro (CART 2479/CART 11, Contuboel, Maio/Junho de 1969)
Guiné > Zona Leste > Contuboel > Junho de 1969: Passeio de piroga junto à ponte de madeira de Contuboel, sobre o Rio Geba. Furriéis milicianos Luís Manuel da Graça Henriques (CCAÇ 2590 / CCAÇ 12) e Renato Monteiro (CART 2479 / CART 11).
Foto (e legenda): © Luís Graça (2005)
1. Publica-se a seguir (ponto 5) a última mensagem do misterioso homem da piroga, um grande amigo que eu fiz na Guiné embora só tenha com ele convivido durante um mês e três semanas... Depois desaparecemos do mapa e só viemos a reencontrarmo-nos trinta e seis anos depois, graças à nossa página na Internet... Esta estória merece ser contada, sobretudo para os mais novos dos nossos tertulianos que a não conhecem...
Tinha-o reconhecido antes como coautor de um livro que li e apreciei muito sobre a guerra colonial (Renato Monteiro e Luís Farinha - Guerra colonial: fotobiografia. Lisboa: D. Quixote. 1990. 307 pp).
No início da nossa tertúlia, quando ainda éramos poucos (o Sousa de Castro, o David Guimarães, o Humberto Reis...) eu mandei-lhes esta foto, com o seguinte pedido, em e-mail datada do dia 1 de Maio de 2005, e com a secreta esperança de um dia dar de caras com ele numa esquina da cidade do Porto (....Afinal, ele vivia e trabalhava perto de mim, em Lisboa!):
"Quem conhece este gajo ? Não o que vai sentado na canoa (que sou eu, ou era eu… ), mas o homem que está na popa, de remo na mão… Esta foto foi tirada em Contuboel, Guiné, no 2º trimestre de 1969… O fulano chama-se Renato Monteiro, ex-furriel miliciano Monteiro, pertencente à CCAÇ 11… Conhecemo-nos em Contuboel, e convivemos durante três meses, no período em que estávamos a formar as nossas companhias (eu, a CCAÇ 12; ele, a CCAÇ 11).
3. Passado uns tempos, o Renato deu caras com a foto, inserida na nossa página na Net (Subsídios para a história da guerra colonial > Guiné (1963/74) > Memória dos lugares > Bambadinca)
Muito surpreendido por me rever numa piroga no rio Geba. Na verdade, não me lembrava desse episódio. Não menos espantado por rever a picada do Xime e outros locais que, passado tanto tempo, ainda se encontram bem presentes na minha memória... Lamento, ao contrário, não ter reconhecido ninguém nas fotos nem, sequer, te referenciar. Não sei a explicação.
Sou, na realidade, co-autor do livro que referes. Fico ao teu dispor para o caso de quereres comunicar, e feliz pela Internet ter possibilitado este reencontro. Um abraço, Renato Monteiro.
... A partir daqui mantivemos algum contacto regular,mas cedo percebi que o Renato tinha voltado a fechar o baú das memórias da Guiné e estava noutra... Com muita pena minha, como devem imaginar!
4. Mensagem de L.G., de 11 de Julho de 2005:
"Ainda não te pus na lista do Grupo da Guerra Colonial, porque não sei se estás interessado neste exercício serôdio de contadores de estórias, que estão a chegar ao limiar da sua esperança média de vida à nascença… De qualquer modo, ainda não me disseste por onde andou a tua CART 11 (confirmas ?)… Reconheci-te a ti e aos teus soldados nalgumas imagens da fotobografia…
"Sei que também publicaste dois livros de poemas, mas ao que parece fechaste esse departamento… Estou ansioso para ter tempo para recuperar o tempo perdido em que andámos por aí, tão perto e tão longe… A tua magnífica mensagem merecia outro tratamento, mas o dever chama-me e eu hoje fico por aqui… Um abraço apertado do amigo de um mês e meio, da Guiné, do lugar mais frio da memória… Luís (ex-furriel miliciano Henriques da CCAÇ 2590/CCAÇ 12, Contuboel, Junho e Julho de 1969).
5. Mensagem do Renato Monteiro, acabada de chegar esta noite, e que no fundo foi o pretexto para este exercício de saudade(s):
Luís:
Acho que da última vez que te escrevi estava a fazer as malas para uma viagem [à Polónia]. Acontece, agora, o mesmo só que para uma incursão breve, ao Porto. Um fim de semana lá.
Tenho acompanhado, com gosto, a comunicação mantida na página. Isto para te dizer que o meu silêncio não deverá ser interpretado como alienação. De forma alguma.
Espero, em breve, ver-te. Como tu, também passo este ano férias cá dentro.
Tenho umas coisas para te enviar que de certo modo explicam este não dizer nada até aqui. E também hei-de precisar da tua memória de Contuboel.
Um grande, grande abraço
Renato
quinta-feira, 22 de junho de 2006
Guiné 63/74 - P897: Pitéus da gastronomia local (Hugo Moura Ferreira)
Texto do Hugo Moura Ferreira, datada de 31 de Maio de 2006 (e que já circulou, por e-mail, pela tertúlia):
Caros Amigos.
Depois de ver o Post Guiné 63/74 - DCCCVIII: A Tertúlia do Porto (Albano Costa) e receber a mensagem do Marques Lopes titulada como Grande Almoço em Jugudul (1), fiquei com água na boca e com muitas recordações da Guiné nas papilas gostativas.
Assim, fui até aos meus arquivos e encontrei algo que certamente vos vai agradar receber. Receitas de culinária da Guiné que vos mando com amizade, que nunca se irão alterar, haja ou não bons ventos trazidos pela História.
Espero que possam tirar partido do que mando e que de vez em quando troquem o "Cozido à Portuguesa" por um bom "Caldo de Mancarra" e um "Chabéu de Galinha".
Um abraço a todos com amizade e votos de boa digestão.
Hugo Moura Ferreira
Ex-Alf Mil Inf(1966/1968)
CCAÇ 1621 (Cufar) e CCAÇ 6 (Bedanda)
_____________
Nota de L.G.
(1) Vd. posts de:
28 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCVIII: A tertúlia do Porto (Albano Costa)
7 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P854: Do Porto a Bissau (26): leitão à moda de Jugudul (A. Marques Lopes)
Foto: © A. Marques Lopes (2006)
Receitas culinárias da Guiné
Fonte: Cozinha e doçaria do Ultramar Português. Lisboa: Ag~encia-Geral do Ultramar, 1969.
Guiné 63/74 - P896: Bafatá: Ataque com 'bazucas' de 75 cl (Mário Cruz, aliás, Shemeiks)
Texto e foto do Mário Cruz, que foi furriel miliciano, da CCS do BCAÇ 2856 (Bafatá, 1968/70), juntamente com o Jorge Tavares (1)...
O Mário, mais conhecido pelo seu nome de guerra - Shemeiks - é um tertuliano fugidio, mas sempre bem humorado e melhor acompanhado. Agradeço-lhe o envio do seu notável curriculum vitae, que tomo a liberdade de divulgar, já que é um exemplo, entre outros, de como os cacimbados da Guiné, os apanhados do clima, os sobreviventes da guerra do ultramar também podem tornar-se casos de sucesso (social, profissional, económico, mediático...). Aliás, é a altura de falarmos e divulgarmos das nossas vidas depois da peluda... Quem quer dar o pontapé de saída ? Afinal, a maior de parte conseguiu sobreviver... (LG)
Caros Guerreiros:
Noite agitada no Bafatá com Bazucas a estalar por todo o lado !!!! Se bem me lembro os restos das camisas até pegaram fogo !!!!! E dançámos à volta da fogueira !!!!! Guerra é guerra !!!!!
Shemeiks
- Deutranómalo (Yale University, U S A )
- Master of Wine (London Wine College)
- INSEAD-Marketing MBA (Fontainbleau, Paris)
- Grão Mestre-Confraria de S.Gonçalo (AVEIRO)
- Singing Master(Salzburg Muzik Haus, Austria)
- Acrobatic Ski Teacher-E E E (Escuela Espanuela de Esqui)
- SKIPPER ALTO MAR- Instituto Maritimo Portuário (Lisboa)
- Master Cook-Royal School of Amesterdam (Holland)
- Master Paint - Van Gohg Arbeit Schulle(Holland)
- PUNHETEIRO - Empiric House Training (Since 1957)
- EXPERIMENTADOR OFICIAL das camisas DUREX (Portugal)
- Cod Fisher Adviser-Alesund Knurn (Norway)
-Cork Expert Lector-Amorim Search Lab.(Portugal)
- Dog Trainer-Hot dog Specialist ( U S A )
- EMPRESÁRIO-F D A A M (Fábrica de Descascar Alhos à Mão), Frossos(Portugal)
- F. C. A. Chairman-Fábrica de Correntes de Ar, SA (Ventosa de Baixo-Portugal)
- Broadcast Speaker-BBC (London)
- Enófilo-Comissão Vitivinicola da Bairrada-ANADIA
- Jornalista-Crítico Gastronómico ("PASKIM","O AVEIRO","DIARIO DE AVEIRO")
- TENOR - Cantante da Confraria de São Gonçalo" (AVEIRO)
Shemeiks>
Campus U A (Universidade de Aveiro)
Alameda das Cricas,6
Sala Aromatisada
3810-AVEIRO
__________
Nota de L.G.
(1) Vd. pots de 31 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CDVIII: A doce nostalgia de Bafatá (BCAÇ 2856, 1968/70)
Guiné 63/74 - P895: Humor de caserna: 'Matchundadi di branco' e o sentido de humor da nossa caserna (Luís Graça)
Guiné-Bissau > Região de Tombali > Guileje > Antigo aquartelamento das NT > Uma planta chamada matchundadi di branco, na expressão local usada pelos antigos milícias... Simbolicamente, é a vida que triunfa sobre a morte, a amizade que renasce da luta, a serenidade da paz que se impõe à lógica da guerra...
Foto: © Pepito (2006)
A propósito da flor que brota, hoje, do chão do antigo aquartelamento de Guileje - que os antigos milícias locais chamam matchundadi di branco, segundo preciosa informação do Pepito -, os nossos tertulianos não se coibiram de dar largas ao seu proverbial sentido de humor, reforçado seguramente pelo seu duro tirocínio em terras da Guiné, sempre em perigos e guerras esforçados...
Aqui ficam algumas bocas de caserna:
(1) Pepito: Semanticamente falando, que o assunto é delicado, a palavra em crioulo matchundadi vem directamente da palavra matcho, que vem de macho e, mais vernaculamente, de caralho...
(2) Mário Dias: Matchundadi designa especialmente a qualidade própria dos homens no sentido de másculo, valente, varonil, robusto.
(3) Paulo Raposo: Olá, pessoal,estamos sempre a aprender. Assim, e para o futuro quando se toca a sentido dir-se-á: - Ena, com matchundadi! Tá!... Diga se ouve, escuto.
(4) Zé Teixeira: O problema é que para alguns de nós já é difícil pôr o matchundadi de pé,quanto mais em sentido!... Um abraço para toda a gente e boa disposição.
(5) A. Santos: Correcto e afirmativo!!!Eu, dei tanto trabalho ao matchundadi pensando que não se gastava e agora vejo que não é verdade, que chatice... À escuta.
(6) Pepito: Como diz o Mario Dias, na realidade matchundadi também pode ser interpretado como coragem. É um pouco como o que se passa com a palavra colhões que são o que são (ou que foram um dia...), mas que pode ter outro significado quando se diz: é um gajo de colhões.
Guiné 63/74 - P894: Fuzilados do Pel Caç Nat 53 (Paulo Santiago)
Camarada Luís:
Vi agora o P886 do João Parreira (1) onde vêm dois soldados fuzilados pertencentes ao Pel Çaç Nat 53. Não são do meu tempo. Deverão ter ido para o 53 após Agosto de 1972.
Do meu tempo sei do fuzilamento do Queta Mané, sold 82035466. É mais um nome a juntar à trágica lista.
Paulo Santiago
(ex Alf Mil do Pel Caç Nat 53)
2. Comentário de L.G.:
Paulo Santiago, será que nos cruzámos nalgumas operações ? Creio que estiveste em Bambadinca, entre 1970 e 1972...Quanto ao teu e-mail, muito obrigado. Queremos a verdade e só a verdade... Quanto a ti, já reparei que ainda não fizeste um pedido formal para entrar na nossa caserna... Espero que aceites o convite, já cá temos os comandantes de vários Pel Caç Nat... Cibersaudações. LG
______________
Nota de L.G.:
(1) Vd. post de 19 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P886: Terceiro e último grupo de ex-combatentes fuzilados (João Parreira)
Guiné 63/74 - P893: 'Matchundadi di branco' e outras blogarias em crioulo (Mário Dias)
Caro Luis e restantes tertulianos:
1. Antes de mais, congratulo-me com o aparecimento de novos militares na nossa caserna. Sem desprimor para os restantes, quero saudar o Beja Santos cujo Presépio de Chicri me encantou e comoveu até às lágrimas. A idade tem destas coisas: torna-nos um pouco piegas. Ou será outra coisa? Estou em crer que as barreiras sentimentais que a nós próprios impomos enquanto novos, devido à nossa condição de machos, se esboroam com a idade.
2. E essa condição de macho vem mesmo a calhar para melhor entendermos a tal matchundadi referida pelo Pepito.
Eu sempre disse ao Luis que o crioulo é uma língua cheia de subtilezas. O Pepito traduziu a matchundadi com o significado implícito no contexto da fotografia da tal flor ou seja: pénis dos brancos.
Porém, e pelo meu entendimento do língua crioula (o Pepito que me emende se estiver errado) matchundadi designa especialmente a qualidade própria dos homens no sentido de másculo, valente, varonil, robusto. Aliás, alguns dicionários de português já registam a palavra machundade nesse sentido, fazendo menção da sua origem na Guiné-Bissau.
Por outro lado, e dado que fisiologicamente o atributo que distingue os machos é o seu aparelho genital, tem esta palavra, subjectivamente, o significado de órgão genital masculino. (Cada um traduza a seu gosto: pénis, gaita, etc. etc.).
3. Quanto ao termo nharro, e dado que actualmente é utilizado com uma certa dose de ternura, de afeição, ninguém, julgo eu, se ofenderá. O mesmo se passa com o tuga que, sendo antigamente uma palavra intencionalmente humilhante, já se tornou de tal forma vulgar para referir os portugueses (culpa do mundial de futebol na Coreia em 2002) que ninguém se ofende. Creio que o sentido das palavras se altera com o rodar dos tempos.
Um abraço para todos.
Mário Dias
quarta-feira, 21 de junho de 2006
Guiné 63/74 - P892: Memórias de Nova Lamego com o Pel Mort 4574/72 (A. Santos)
Guiné > Zona Leste > Gabu > Estandarte do Pel Mort 4574/72 (Nova Lamego, 1972/74)
Texto e fotos: António Santos (2006)
Camarada Luís,
Este é o 3º folhetim da minha história e de parte do pessoal do Pel Mort 4574/72 (1)
Desta vez junto mais umas fotos, a começar pelo nosso estandarte, já velhinho.
(1) Ainda em Bissau, em Brá, nos adidos, antes de rumar a Nova Lamego, já tinhamos ído ao shopping.
(2) Em Nova Lamego, no Cine Gabu, os caramelos são: da esquerda o G.G.G., eu e o Graça.
(3) A capela de Nova Lamego: pela mesma ordem, Graça, Cunha e eu.
(4) E a última por hoje, o café do Jacob, onde passei bons momentos, a ordem continua: eu, um amigo de Pirada, o Graça e um dos cabos criptos do BCAV 3854.
Um abração para ti, extensivo aos tertulianos.
A. Santos
Ex-Sol Trms
Pelotão de Morteiros 4574/72 (Nova Lamego, 1972/74)
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Notas de L.G.
(1) Vd. posts de:
8 de Maio de 2006
> Guiné 63/74 - DCCXXXIV: Nunca digas jamais (António Santos, Pel Mort 4574/72, Nova Lamego)
29 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCXI: Os cagaços de um periquito a caminho do Gabu (A. Santos, Pel Mort 4574/72)
Guiné 63/74 - P891: Recordando o Xime do Sousa de Castro (A.Santos)
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Xime
Foto: © António Santos(2006)
Amigo Castro (1), as casernas eram todas parecidas, quando as fotografias fossem captadas de perto como foi o caso da minha que enviei para o blogue (2).
Já que te referes ao teu Xime, não resisto em juntar uma foto para veres se reconheces o teu quartel, mas em 24 Junho de 1974, que está por trás destes dois marmanjos...
Estou abrir uma excepção, pois a minha ideia é enviar as fotos cronologicamente em relacção ao que for escrevendo, porque quanto ao teu chão também tenho uma história para contar mas passou-se no dia 27 de Fevereiro de 1973 e ainda lá estava a tua CART [3494].
Quanto ao Américo Marques, como deves calcular não me recordo do nome, porque na minha fornada saíram à volta de 250 TRMS, mas se ele entrou no turno de 2 Janeiro de 1972 para o BCAÇ 5 então conhecemo-nos. Devo acrescentar, pelo que sei, mais de 50% desta recruta foi para a Guiné.
Ainda mais uma nota: na tua CART [3494] esteve um Cabo enfermeiro que, na época, quando foi para a tropa, morava no Areeiro-Lisboa, que era a minha zona de trabalho na altura.
Um abração
A. Santos
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Notas de L.G.
(1) O Sousa de Castro há dias tinha mandado a seguinte mensagem:
"Santos: Por momentos pensei que tivesses tirado a especialidade no Porto. Pois a foto que está publicada no blogue (2) é muito parecida com a caserna do Quartel de TRMS, de Arca D`Água, Porto.
"Para além disso, depois de ler o teu texto inserido no blogue, fiquei deveras impressionado com a descrição que fazes quando chegaste à Guiné: é exatamente aquilo que senti quando em 27 de Janeiro de 1972 pisei solo Guinéu...
"Só que eu fui para o Xime de avião, no Dakota, de Bissau para Bafatá e daí para o Xime com paragem em Bambadinca para mudança de viatura Unimog, onde me juntei à CART 3494, a minha compnhia.
"Se calhar conhecerás o Américo Marques que também foi TRMS Infantaria, tal como tu. É de Viana do Castelo, esteve em Cansissé - Nova Lamego (1972/74).
"O endereço de e-mail dele é: americom@envc.pt ou setras@iol.pt
"Sem mais de momento, grande abraço. Sousa de Castro"
Sousa de Castro (ex-1º cabo de transmissões da CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/74)
(2) Vd post de 29 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCXI: Os cagaços de um periquito a caminho do Gabu (A. Santos, Pel Mort 4574/72)
Guiné 63/74 - P890: Memórias de Mansabá (2): Uma mina no Bironque (Carlos Vinhal)
Guiné > Região do Oio > Mansabá > CART 2732 ( 1970/72) (1)
Foto: © Carlos Vinhal (2006)
Texto do Carlos Vinhal, ex-Fur Mil Art MA CART2732, Mansabá (1970/72)
Mina no Bironque ou um voluntário que apanhou um grande susto
O Furriel B era um camarada com quem eu gostava especialmente de conversar. Éramos os campeões a receber cartas das respectivas miúdas. Tanto a minha como a dele nos escreviam diariamente e assim quando vinha o Correio era ver qual de nós contava mais cartas e aerogramas.
O camarada B levava uma vida sedentária no quartel, porque pertencia ao Pelotão de Artilharia 21, sediado em Mansabá (2). Só actuava durante os ataques do IN ao aquartelamento ou quando por outro motivo qualquer era necessário fazer fogo de obus. Tinha por isso inveja da nossa actividade. Os nossos dias eram todos preenchidos em saídas para o mato, serviço de guarda ao aquartelamento, colunas auto, etc. De quatro em quatro dias havia o chamado dia de descanso que era aproveitado, por exemplo, para reforçar algum pelotão nalguma operação mais complicada no mato, reforçar colunas auto, fazer reparações no aquartelamento, etc.
Ao fim da tarde do dia 16 de Julho de 1971 o meu pelotão, que estava de piquete, ia fazer uma coluna auto ao K3 para levar correio à CCAÇ 2753. Aparentemente tratava-se de mais uma normalíssima coluna, que por se tratar de uma distância tão curta, se faria numa hora, ir e vir. O camarada B que estava cheio de tédio, ao ouvir dizer que se ia fazer aquela coluna, veio ter comigo, sabendo que eu não ia, para me pedir emprestada a minha G3 que era coisa que ele não tinha. Fiquei um pouco surpreso porque não fazia parte das suas funções participar em colunas auto. Ele sossegou-me dizendo que ia como voluntário, ao que eu retorqui que voluntário só para comer e é preciso que se goste da ementa. Muito a custo emprestei-lhe a minha companheira e desejei-lhe boa viagem. Por coincidência ele foi na nossa GMC que era uma viatura muito antiga com cabina fechada, pouco recomendável para a saúde como vamos ver mais à frente e da qual nenhum condutor gostava.
A coluna saiu e no quartel a vida continuou dentro do normal até que, passados alguns minutos, surgiu um pedido de socorro, via rádio, porque uma das viaturas tinha accionado uma mina anticarro no Bironque, provocando um ferido grave e alguns ligeiros. Palavra de honra que me lembrei logo do meu amigo B, mas afastei imediatamente os maus pensamentos para longe.
Saíram logo as equipas de socorro, tanto para acudir aos feridos como para rebocar a viatura acidentada. Ficámos na expectativa até à chegada dos feridos e, para surpresa minha, o mais grave era o Bicho, condutor da referida GMC. A sua viatura que fez explodir a mina com a roda da frente do lado dele e, porque tinha cabina fechada fez com que os seus ferimentos fossem muito graves. Teve uma compressão na coluna por ser impulsionado contra o tejadilho. Ficou também com as pernas muito maltratadas pelos pedaços de metal da viatura projectados pela explosão. Os restantes feridos, magoaram-se ao caírem ao chão na confusão gerada.
Perante o que via, perguntei pelo Furriel B, que apareceu pouco depois, muito pálido e a tremer. Mal me viu deu-me um abraço, lamentando não ter seguido os meus conselhos. Disse-me que não tinha sofrido qualquer ferimento por imensa sorte, embora fosse sentado ao lado do condutor. Não estava lá muito bem dos ouvidos, mas foi uma questão de tempo para a audição voltar ao normal. A minha arma, que ele levava ao colo, apanhou com um estilhaço que danificou o carregador. Eu nem queria acreditar no que via e quando mais tarde vi a GMC, mais incrível me pareceu a sorte do B.
Dei a pensar em mim que andei centenas de quilómetros nesta viatura, sempre sentado no guarda-lamas da frente, agarrado ao farol com as costas no sentido do andamento, para poder conversar com os meus camaradas enquanto nos deslocávamos. Se um dia, por azar, ela actuasse alguma mina comigo sentado eu naquele sítio, não sei onde e como estaria agora.
O B não sofreu nada, mas deve ter tido muitas insónias nos dias que se seguiram e deve ter recebido a maior lição da vida. A minha arma teve direito a um carregador novinho em folha...
Eu, nunca mais pude andar sentado no guarda-lamas da nossa velhinha GMC.
Carlos E. Vinhal
Ex-Fur Mil Art MA
CART 2732,
CTIG, 1970/72
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Notas de L.G.
(1) Vd. post de 18 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXI: Breve historial da CART 2732 (Mansabá, 1970/72) (Carlos Vinhal)
(2) Bironque ficava na estrada de Mansabá-Farim.
Guiné 63/74 - P889: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (11): Férias em Portugal
Guiné > 1969 > A jangada, de reserva, com sobreviventes da tragédia de Cheche, no Rio Corubal, na retirada de Madina do Boé (1)
Foto: © Paulo Raposo (2006)
XI parte do testemunho do Paulo Raposo (ex-Alf Mil Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas, da CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852 > Guiné, Zona Leste, Sector L1, Bambadinca, 1968/70 > Galomaro e Dulombi).
Extractos de: Raposo, P. E. L. (1997) - O meu testemunho e visão da guerra de África.[Montemor-o-Novo, Herdade da Ameira]. Documento policopiado. Dezembro de 1997. 31-35.
MINI FÉRIAS em BISSAU
Foi nesta altura (1) que meu pai me foi visitar à Guiné. Como tinha muito medo de andar de avião, seguiu de barco. Era um barco misto, de carga e passageiros, e por esse facto ainda parou em Cabo Verde. A muito custo consegui uma licença para, a pretexto de ir tratar de assuntos da companhia, estar uma semana em Bissau, com ele.
Tanto o Brigadeiro Nascimento como a sua mulher, a Sra. D. Beatriz, que foram uns pais para todos os rapazes de Oeiras, tinham em sua casa um quarto para lá ficarmos. Fizémos cerimónia e instalámo-nos no Grande Hotel. Nunca tinha estado a sós com o meu pai tanto tempo. Conversámos muito naqueles dias.
Durante esta semana fomos visitar no Palácio o Ten Cor Pedro Cardoso, Secretário Provincial. Recebeu-nos muito bem, era uma simpatia. O meu pai tinha relações de amizade com o pai dele. A saída o meu pai deixou um cartão de cumprimentos ao Sr. Governador. Meu pai muito gostava destas cortesias.
Como eu tive de regressar entretanto ao mato, e o avião para Lisboa era apenas duas vezes por semana, o meu pai ainda ficou no Grande Hotel mais dois dias sozinho. Valeram-lhe a amizade e a companhia do casal Ten Cor Pedrosa.
Como disse atrás, o meu pai tinha muito medo de andar de avião e, por isso, andei à procura de alguém conhecido que fosse no mesmo vôo e lhe fizesse companhia. Achei um rapaz amigo que também ia e, como na altura os lugares no avião não eram marcados, pedi a este amigo que lhe arranjasse um bom lugar no avião e o acompanhasse na viagem. Assim o fez.
NOVAMENTE NO MATO
De regresso ao mato, enviaram-nos para outra Tabanca, com a missão usual de a ordenar e armar em Auto Defesa. Já estávamos treinados mas nunca gostei deste trabalho. Esta Tabanca ficava numa zona de paz a sul de Bambadinca (2). Ao todo fiz este trabalho em quatro Tabancas.
Um belo dia vou à sede do Batalhão buscar mantimentos e cruzo-me com o comandante que me dirige esta pergunta:
- Você pode reforçar um aquartelamento, uma vez que a companhia que lá está vai fazer uma operação?
Eu respondo-lhe:
- Meu Comandante, mesmo que eu diga que não posso, o Senhor manda-me na mesma, portanto diga quando nos quer lá.
Poucos dias depois para lá fomos, o local ficava a sul da Tabanca aonde estávamos, na estrada que ia ter à mata de Fiofioli. A companhia foi fazer a sua operação e nós por lá estivemos a fazer de baby-sitter.
Terminado o serviço, regressámos e Nossa Senhora nos valeu novamente. Saímos do aquartelamento de madrugada e passados uns 200 metros, ao começarmos a descer um relevo da estrada, no cimo da subida à nossa frente, dá-se um grande rebentamento e surge um grande tiroteio.
Eu ia logo à frente, atrás dos picadores (picadores eram os rapazes que iam à frente com umas varas, com um ferro na ponta para picar o chão à procura de minas), e deito-me imediatamente para o chão. A árvore atrás de mim fica toda picada com tiros do inimigo. De repente noto que algo se passa de estranho, que havia outro tiroteio cruzado.
Então o que se passara? Vinha na estrada, em sentido inverso ao nosso, uma secção de milícias nativas. O inimigo tinha na estrada uma mina comandada e montara uma emboscada. Como eles chegaram primeiro à mina foram eles a apanhar com a metralha.
Resultado: 3 mortos e três feridos graves evacuados de heli Se tivéssemos sido nós a lá chegar primeiro, tinha apanhado eu e os picadores com aquela mina. Durante toda a tarde andei com o caixão daqueles rapazes noUnimog para os entregar às famílias. Ao fim do dia, por causa do calor, o sangue ainda não tinha coagulado.
Voltámos à nossa rotina das Tabancas em Auto Defesa, de que o Capitão [Jerónimo, da CCAÇ 2405] muito gostava. Deste modo tinha a companhia dispersa, e pensava que não nos chamavam para operações, a nível de companhia.
FÉRIAS
E chegou a altura das minhas férias. Eu recebia ao todo 6.600$, dos quais ficava na Guiné com 2.200$, e ainda me sobrava dinheiro pois não havia aonde gastar. Os restantes 4.400$ ficavam em Lisboa e o meu pai ia levantá-Ios à Estefânia. Nessa altura, o bilhete de ida e volta a Lisboa, na TAP custava 4.000$ (3).
Pedi dinheiro ao meu pai, fiz a marcação das passagens, no Sr. Palma, o representante da TAP, em Bissau. De Bafatá para Lisboa fui na TAG. Ainda na pista e antes de embarcarmos no Heron, diz-me um rapaz que também seguia para Bissau, que aquele avião embora de alta segurança e usado para transporte do Eisenhower durante a guerra, tinha grande turbulência, mesmo com céu limpo. Julguei que ele brincava. Disse-me depois que era da PIDE. Mas era verdade. De Bafatá para Bissau, aquele avião parecia um canguru.
Chegado a Bissau, instalei-me no Grande Hotel para no dia seguinte, de madrugada, apanhar o avião para Lisboa. Com a excitação das férias, nada dormi naquela noite. De madrugada, levantei-me e tomei um táxi para o aeroporto de Biassalanca.
Conforme disse atrás, a TAP só ia a Bissau duas vezes por semana. Quando ia, era o dia do São Boeing. Toda a gente que prestava serviço em Bissau ia ver o avião, para ver quem chegava e quem partia, e encher os olhos com as meninas da TAP.
Já sentadinhos no Boeing 727, voámos para Lisboa. O vôo durou 4 horas que nunca mais passavam. A alegria e a excitação eram tantas, que a bordo fechavam o bar. Vim a saber depois que isto era hábito especialmente nos vôos da Guiné.
Curiosamente, depois do bar ter fechado, nós que já estávamos um bocado apanhados pelo clima, continuávamos a tocar nas campainhas do avião, mas sem sucesso.
Nesta altura dirijo-me ao que eu julgava ser um comissário, e digo-lhe que não são formas de tratar o pessoal que estava no buraco. Era o co-piloto, o Ricardo Silva Pires, e caímos nos braços um do outro. Hoje é um prestigiado comandante da TAP. Eu vivi até aos meus 10 anos na Rua João Penha, em Lisboa, e ele vivia mesmo do outro lado da rua. Chegava-se a casa dele através de umas escadinhas, aonde julgo que hoje há um bar. Todos os dias o pai dele, que trabalhava na Papelaria Fernandes, nos levava para o Liceu Pedro Nunes.
Depois de dormitar um pouco para pôr em ordem o equilíbrio, chegámos por fim a Lisboa. Passada a alfândega, depois de termos escondido as garrafas de whisky, que custavam 75$ na Guiné (3), lá estava toda a família e os amigos. Naquele tempo era assim. Menciono apenas alguns, a família Albarraque, Cardoso de Oliveira, Campos Rodrigues e Palma Carlos.
Meu pai mostrou-me o relógio dele. Desde a sua estada na Guiné ainda não tinha mudado as horas do relógio. Ainda não se tinha desligado da sua estadia em Bissau. Foi uma grande alegria ir para casa, tomar banho,dormir na minha cama, comprar o jornal, que subira de preço, para 1$50, e poder sair à rua sem perigo. Foram quatro semanas estupendas passadas no mês de Maio.
A 5ª e última semana já não sabia ao mesmo. Comecei a contar os dias e novamente recomeçava a ansiedade. No princípio de Junho, à 1 da manhã, regressei no mesmo avião da TAP.
Durante estas férias morre a minha avó Ana, que vivia connosco. Parece que esteve à minha espera. Era uma Senhora muito especial, não sabia dizer mal de ninguém. Embora tivesse ficado privada de sair por efeito de uma trombose que tinha tido, tinha o quarto sempre repleto de visitas. Sempre foi assim toda a vida.
No aeroporto outra vez as despedidas, mas já não íamos para o desconhecido, já sabíamos o que nos esperava. De novo a família e os amigos de sempre a despedirem-se de nós. Vim depois a saber que depois de eu entrar para o avião, pois naquela altura assistia-se a tudo do varandim do 1º andar do aeroporto, o meu pai ficou agarrado a uma coluna, a chorar como uma criança.
A viagem de regresso nada tinha de alegre. Dormi até chegarmos a Cabo Verde, de madrugada, para uma escala do avião. Comandava o avião o comandante Simões, visita de sempre da família amiga Simões de Almeida e Palma Carlos, relações que já vinham do tempo dos meus avós.
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Notas de L.G.
(1) Vd. post anterior, de 7 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P853: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (10): A retirada de Madina do Boé
(2) Provavelmemnte tabancas do regulado do Corubal, situadas a leste da estrada Bambadinca-Mansambo-Xitole
(3) Vd. post de 1 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXII: Cem pesos, manga de patacão, pessoal! (2)
(...) Humberto Reis:Já não me lembro da maioria dos preços mas tenho uma ideia de que uma viagem na TAP em Março de 1970, Bissau-Lisboa-Bissau, me custou à volta de 6 contos e nós ganhávamos cerca de 5.
"O pré dos soldados era de 600 pesos os de 2ª, 900 pesos os de cá e os cabos 1200 pesos. Eu sei dessa diferença pois tinha no meu Gr Comb o Arménio (o vermelhinha) que foi como soldado, visto que levou cá uma porrada (foi apanhado numa rusga pela PM no Porto quando já estávamos no IAO em Santa Margarida) que lhe lixou a promoção (...).
"Sei bem, isso não me esqueceu, que o visque era mais barato que a cervejola: 2,50 simples contra 3,00 ou 3,50, além de que dava direito, o whisky, a gelo. As cervejas nunca estavam suficientemente geladas pois os frigoríficos da messe, a petróleo, não tinham poder de resposta para a quantidade de pedidos." (...)