quinta-feira, 7 de setembro de 2006

Guiné 63/74 - P1054: Agradecimento da viúva do Rosa Gonçalves (CCAÇ 3566, Os Metralhas, Empada/Catió, 1972/74)


Guiné-Bissau > Região de Quínara (Buba) > Empada > Abril de 2006 > De novo, o pai, Xico Allen, e a filha, Inês, juntos na pesquisa de vestígios da presença dos Metralhas (CCAÇ 3566) nos já idos tempos de 1972/74.


Foto: © A. Marques Lopes (2006)


1. Mensagem que me foi enviada, em 26 de Agosto último por Maria Clarinda Gonçalves, viúva de um camarada nosso, da CCAÇ 3566 (Empada/Catió, 1972/74)

Viúva de um ex-combatente dos Metralhas

Lembram-se certamente do António Joaquim Rosa Gonçalves, também ele pertenceu à vossa companhia, também ele foi um metralha... Pois eu sou a viúva dele, que era grande amigo do Xico Allen (1) e do Joaquim P. Silva, o brasileiro (2), e mais outros (3).

O meu marido falava tanto dos amigos, tinha tanta coisa para contar de Empada, o meu filho andava sempre a pedir ao pai para falar dos amigos da tropa e, claro, lá vinham mais histórias.

Por curiosidade fui à Internet e dei comigo a pesquisar sítios sobre a Guiné e a CCAÇ 3566. Gostei do que li e vi, lembro-me perfeitamente do meu marido falar de alguns nomes de vocês, senti que o meu marido deixou em mim o gosto pela vossa companhia, OS METRALHAS.

Agora quero que todos vocês, OS METRALHAS, fiquem a saber que, a quando da doença do meu marido, recebi apoio que da parte do Xico Allen e do Joaquim Pinheiro da Silva , o brasileiro (este mesmo estando do outro lado do Atlântico, as dezenas de vezes que telefonava para saber do amigo Rosa!).

Não me esquecerei também de um colega vosso que apareceu no hospital para saber como o meu marido se encontrava, e como a situação era muito complicada, prontificou-se a nos apoiar, a mim e ao meu filho. Nunca mais o vi para lhe agradecer pessoalmente.

Agora passados 7 anos após a morte do meu marido, quero agradecer a todos por terem sido tão amigos dele, não deixando de sublinhar o quanto é grande e bonita a amizade que vos une, amizade essa que transmitiram para nós, mulheres,como é bom saber que ao longo dos anos ainda mantêm bem vivas as lembranças, a amizade.

Sendo mulher de um dos vossos e já não o tendo junto de nós, ele e outros colegas que já partiram deste mundo continuarão a estar sempre nos nossos corações. A todos OS METRALHAS espero que se mantenham sempre unidos porque uma amizade como a vossa já é uma raridade nos dias de hoje. Além disso, quantas lembranças há ainda em cada uma de vós!

Maria Clarinda (Lina) e Venâncio Gonçalves.

2. Comentário de L.G.:

É uma mensagem singela mas que nos toca a todos, esta da Maria Clarinda Gonçalves que já viu o seu companheiro partir, precocemente, e que vem agora, através deste espaço que é o nosso blogue, agradecer as provas de amizade e solidariedade que recebeu, ela e a sua família, por ocasião da doença e da morte do nosso camarada da CCAÇ 3566, o Rosa Gonçalves. Aqui fica o convite para ela se juntar à nossa tertúlia, se assim o entender, e partilhar connosco as memórias da Guiné, do nosso Rosa Gonçalves (aerogramas, fotos, etc.).
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Notas de L.G.

(1) Vd. post de 1 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P831: Do Porto a Bissau (23): Matando saudades de Empada (A. Marques Lopes e Inês)

(2) Vd. post de 15 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLIV: Que maravilha de trabalho (Joaquim Pinheiro, CCAÇ 3566, Empada/Catió, 1972/74)

(3) Sobre outros camaradas da CCAÇ 3566 - Os Metralhas, vd os posts de:

16 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXVI: O Xico de Empada, grande amigo dos guinéus (Albano Costa)

18 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCX: O Cherno Rachid da Aldeia Formosa (Antero Santos, CCAÇ 3566 e CCAÇ 18)

Guiné 63/74 - P1053: Corrigindo a foto com o monumento da CART 2716 (David Guimarães)


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Xitole > 1972 > Monumento mandado erigir pela CART 2716, em princípios de 1972. Esta unidade foi substituída pela CART 3492, a que pertenceu originalmente o nosso camarada Joaquim Mexia Alves, ex-alferes miliciano de operações especiais, CART 3492 (Xitole / Ponte dos Fulas), Pel Caç Nat 52 (Bambadinca, Ponte Rio Udunduma, Mato Cão) , CCAÇ 15 (Mansoa ).

Foto: © Joaquim Mexia Alves (2006)


Guiné > Xitole > 1969/70 > Guiné >Xitole > 2º semestre de 1970 > Copluna logística Bambadinca-Xitole: da esquerda para a direita: o fur mil Humberto Reis, da CCAÇ 12; o alf mil cav Vacas de Carvalho, comandante do Pelotão Daimler 2406; o fur enf Godinho, da CCS do BART 2917; e o fur mil T. Roda, também da CCAÇ 12.

Foto: © Humberto Reis (2006)


Mensagem do David Guimarães, datada de 4 de Setembro último:


Luís:

E eis-me chegado de férias... Pronto, acabaram. E logo vim ver a Guiné, o nosso blogue, outras novas velhas histórias, de 30 e mais anos. E valeu a pena...

Não há dúvida: o Mexias Alves foi para o Xitole quando eu já estava em fim de comissão terminando-a em Bafatá... Mas - e aqui é que sou chato - ponho-me a olhar os pormenores...

Ora, vamos lá corrigir a fotografia do Xitole, com o nosso monumento que está ao contrário... no post de 11 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1033: Monumento da CART 2716, Xitole, 1972 (Joaquim Mexia Alves)

Envio a cópia direita da fotografia - pois que, se fosse como na figura anteriormente publicada, o monumento não estava à entrada como o deixámos e as letras [CART 2716] não estavam invertidas...

Anexo a fotografia direitinha... Esse momumento encontrava-se à frente onde o Humberto está com o macaquito algures numa fotografia e junto à Daimler do Vacas de Carvalho, bem perto da porta de armas do quartel - acampamento, claro..

Pronto, um abraço ainda com sabor a férias, num regresso lento ao trabalho...



David J. Guimarães

Ex-Fur Mil At Artilharia e Minas e Armadilhas
CART 2716 / BART 2917
Xitole (1970/72)

quarta-feira, 6 de setembro de 2006

Guiné 63/74 - P1052: Pel Caç Nat 63: A paz em Missirá (Jorge Cabral)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Missirá > 1971 > Jorge Cabral, comandante do Pel Caç Nat 63, o mais paisano dos oficiais milicianos que eu conheci na Guiné (LG)

Foto: © Jorge Cabral (2006)


Texto enviado, em 24 de Agosto último, pelo nosso camarada Jorge Cabral (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 63, Fá Mandinga e Missirá, 1969/71)

Amigo,


Sei que é tempo de férias, mas aí vai texto acompanhado de fotografia onde apareço arranjadinho para ir a Bambadinca.


Tenho aproveitado estes dias para revisão do material publicado no blogue, o qual merece um estudo.


Por ora, um Abração, com votos de descanso e Paz.


Jorge



A Paz em Missirá

Estivemos lá, é certo. Alguns nos mesmos sítios. Iguais foram os sons, as cores, os cheiros. Diferentes as memórias… O que recordamos e o que esquecemos, tem a ver com o que fomos lá e ao longo da vida, e reflecte a nossa forma de estar e ser, quase quarenta anos passados.

É impossível sentir o que sentíamos e pensar o que pensávamos, então. O que agora contamos surge filtrado pelo tempo, pela razão, pela experiência da vida. Tentamos reconstruir o ontem, com a cabeça de hoje e dessa forma moldamos uma realidade, a nossa verdade, inteiramente lícita e legítima, mas não obviamente única.

Menos de um ano após a saída do Beja Santos, fui eu para Missirá. Já contava quinze meses de comissão, conhecia o Mato Cão, passara uma temporada em Finete, e convivera com o Saiegh, o qual me havia informado sobre o que iria encontrar.

Missirá constituía um Destacamento isolado, de importância quase simbólica, e com diminuta capacidade de intervenção, numa área de forte implantação do PAIGC. As operações na zona eram escassas. Enquanto lá estive, apenas tomei parte em duas. Fui, a título individual, com os Páras a Madina/Belel, creio que em Abril de 1971, e com a CCAÇ 12 a Salá, já em Julho do mesmo ano.

Assim, e com exclusão das Seguranças em Mato Cão, a actividade operacional resumia-se a alguns patrulhamentos, o que me deixou tempo para passear. Gostava muito de ir pescar à granada, no rio Gambiel, junto ao qual fiz um prisioneiro que praticamente se entregou com arma e tudo, e me forneceu informações curiosas sobre os comerciantes de Bambadinca… Levei-o ao Batalhão, onde inventaram uma ordem de patrulhamento, que eu cumprira com óptimos resultados…

Também tentei, e quase consegui, restabelecer a ligação rodoviária com o Enxalé, como já relatei. Comigo, nunca o quartel foi atacado, o que me levou a pensar que os turras se haviam transferido, apesar de encontrar vestígios da sua passagem, presumivelmente para Mero. Aliás, por essas bandas encontrei um porco, não tendo percebido se o animal havia fugido, ou se se tratava de uma oferta… Comido foi e em festa…

Ainda hoje não compreendo as razões desta Paz, tanto mais que quando visitei Madina/Belel (1), constatei o poder e importância da base ali existente. Bem armada e com significativa guarnição, possuía abrigos, posto de socorros, escola e um recheado depósito de víveres, com centenas de quilos de arroz. Teria o respectivo Comandante, Corca Só, sido atacado de preguiça? Ou convencera-se do meu inventado parentesco com Amílcar Cabral? (2)

Claro que tão estranha quanto pacífica situação gerou opiniões, palpites, invenções, dizendo-se no Batalhão que eu era amigo dos turras. Quanto aos Africanos, não tinham dúvidas.:
- Alfero Cabral tem grande feitiço.

Estou em crer que tinham razão!

Jorge Cabral


P.S.

1. É verdade que sofri três mortos e um ferido, mas por via de minas, que rebentaram sempre atrás de mim. Quando teriam sido colocadas?

2. Constitui uma dolorosa surpresa a revelação de que o meu Amigo Saiegh coleccionava orelhas. Conheci-o muito bem, cheguei a jantar em casa dele, em Bissau, e nunca suspeitei que se dedicasse a semelhantes práticas. Antes pelo contrário, quando aconteceu o tristíssimo episódio da cabeça cortada pelo João Uloma, o Saiegh foi dos poucos da Companhia de Comandos Africanos a criticar o feito (3).

__________

Notas de L.G.

(1) V. post de 27 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P918: Operação Tigre Vadio (Março de 1970): uma dramática incursão a Madina/Belel (CAÇ 12, Pel Caç Nat 52 e outras forças)

(2) Vd. post de 5 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXXI: Cabral só havia um, o de Missirá e mais nenhum...

(3) Vd. posts de:

19 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1038: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (6): Entre o Geba e o Oio, falando do Saiegh e dos meus livros

23 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXXIV: Lista dos comandos africanos (1ª, 2ª e 3ª CCmds) executados pelo PAIGC (João Parreira)

11 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CIII: Comandos africanos: do Pilão a Conacri

Guiné 63/74 - P1051: Pel Caç Nat 63: Uma Mina em Sancorlá, poema de Jorge Cabral

Texto do Jorge Cabral (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 63, Fá Mandinga e Missirá, 1969/71)


Amigo Luís,

Então essas férias? Certamente óptimas! Por mim, cá estou, preparado para mais um ano de trabalho duro, e às vezes frustrante. Escrevi muito na Guiné, principalmente poesia, tendo deixado todo o material no Biafra, como já relatei. O Blogue porém deu-me força para tentar recuperar alguns escritos, que havia enviado a familiares e amigos. Assim, descobri mais um poema, que ora envio acompanhando um Grande Abraço.

Jorge



P.S.

1) Também eu não entendo as razões que ditaram a implementação do destacamento do Mato Cão, talvez em Setembro de 1971 (1).

2) O Pel Caç Nat 52, comandado na altura pelo Nelson Wahnon Reis, voltou a Missirá em Julho de 1971, ficando o Pel Caç Nat 54 em Fá, e o Pel Caç Nat 63 na Ponte do Rio Udunduma.

3) Quando cheguei em Junho de 1969, dependiam de Bambadinca, apenas dois Pelotões de Caçadores Nativos, o 52 e o 63.

4) O Pel Caç Nat 54, pertencia a Mansoa e o Pel Caç Nat 53, andava pelo norte, tendo vindo para o Saltinho, substituir o 63. Era então comandado pelo Alferes Mota, que conheci muito bem, e que infelizmente já faleceu.



Uma Mina em Sancorlá
Segundos? Um Minuto?
O Tempo desta Morte
Meio corpo evaporado
Só resiste o olhar
Quem a terá pisado?
Fui eu que tive sorte
Ou ele que teve azar?

Depois a Raiva, o Medo
Sim, Beber
(Chorar só em Segredo)

E para sempre o Luto!


Missirá, 14/02/71
J. Cabral

_____________

Nota de L.G.

(1) Vd. posts de:

6 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1049: O destacamento de Mato Cão (Paulo Santiago)

5 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1045: Pedido ao Joaquim Mexia Alves (Pel Caç Nat 52) para ajudar a desvendar o passado (Beja Santos)

Guiné 63/74 - P1050: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (7): O espectro de Kafka nas guerras do Cuor



Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Destacamento de Missirá > s/d > O Alf Mil Beja Santos, de óculos escuros e lenço azul ao pescoço, com uma secção do seu Pel Caç Nat 52, em cima de um burrinho (Unimog), na estrada Missirá-Finete.

Foto: © Beja Santos (2006)



Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Destacamento de Missirá > s/d > O Alf Mil Beja Santos, comandante do Pel Caç Nat 52, de óculos escuros, ao lado do condutor e, na frente da viatura, o furriel Saiegh, na picada da bolanha de Finete

Foto: © Beja Santos (2006)


Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos, com data de 22 de Agosto de 2006:


Caro Luis, aqui te deixo um texto que fica a aguardar o teu regresso. Tu tens sido exímio na ilustração e nos comentários aos materiais que te dei. Vais encontrar o teu computador inflacionado com os meus mails que subitamente se reproduziram. Espero que tudo já esteja consertado em termos informáticos. Continuação de férias retemperadoras e recebe um abração do Tigre de Missirá.



O espectro de Franz Kafka nas guerras do Cuor

por Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70)


A 6 de Agosto [de 1968], de manhã, o rádio fez chegar a mensagem de que iam passar três barcos civis em Mato do Cão, pelas 3 horas da tarde. Constitui-se uma coluna de 25 homens, bazuca, morteiro 60 e três dilagramas. Como era a minha estreia, pedi ao Saiegh (1) que percorréssemos a estrada no seu troço a Missirá/Cancumba, Morocunda, Gambana, Mato do Cão. Consigo ainda visualizar um céu azul eléctrico, uma estrada bem pronunciada (se bem que o capim fosse tomando conta das bermas), o voo das aves de rapina, os poilões... E eu ia fazendo perguntas:
- Saiegh, que elevação é aquela?
Ele explicou:
- Chama-se baga-baga, e é uma formação de terra feita por térmitas.

Se bem que tivéssemos flanqueado a estrada, foi uma viagem muito boa e só senti a opressão de um silêncio da falta de vida humana. Para quem nunca lá foi, quero que se saiba que o passeio abaixo da bolanha de Chicri (2) até ao pontão apodrecido de Mato de Cão é de uma rara beleza. Farei este percurso vezes sem conta, a todos os segundos de todos os dias durante 17 meses, com sol tórrido, com árvores a dançar no meio dos céus, em plena época seca e com a garganta encortiçada, no meio de trombas de água como se um cortejo de cegos divagasse por entre oceanos de lama e trovões.

Não será ainda nesse dia que vou conhecer o macaréu, só dois meses depois. Mas foi uma viagem fascinante, ver passar barcos iguais àqueles em que viajei dias antes, igualmente para Bambadinca, o último porto navegável do Leste, acenar e ser calorosamente correspondido pelos djilas e outros passageiros.

Quando chegámos a Missirá, o Teixeira das transmissões já decifrara outra mensagem: amanhã devia apresentar-me em Bambadinca, na secretaria. Aqui, a 7, entregaram-me o processo de uma granada incendiária abandonada num reboque em Finete, que vitimara uma criança, Abudu Cassamá. Li rapidamente que em Fevereiro de 1964, numa altura em que um pelotão de uma companhia sediada no Enxalé estava instalada em Finete, formando milícias e criando um dispositivo de defesa com abrigos e arame farpado, uma criança subiu para um atrelado e accionou uma granada.

A palavra incendiária lembrou-me fósforo e napalm. Na ocasião, não fiquei inquieto, o que eu queria era perceber o que ia fazer. O Tenente da Secretaria foi claro:
- O nosso alferes tem que fazer deprecadas a toda a gente envolvida, pedindo-lhes esclarecimentos sobre a razão de ser do acidente e apurando responsabilidades, a criança está viva, sofre muito e tem direito a uma compensação.

Aprendi que uma deprecada era uma deligência em que por entreposta entidade um militar iria ser questionado sobre uma determinada matéria. Muni-me de papel e legislação, voltei para Missirá e desatei a escrever para quartéis e destacamentos da GNR de todo o país, entre Vila Nova de Cerveira e Angra do Heroísmo, num universo onde couberam um capitão, dois alferes, um sargento ajudante e quatro furriéis.

A primeira leva de respostas chegou aproximadamente um mês e meio depois. Houve protestos ("Não aceito ser ofendido pelo conteúdo da pergunta, exigo decoro pela minha patente"), houve esquecimentos absolutos ("Não só não sei como nunca ouvi falar"), houve menção de eventuais outros responsáveis ("Quem respondia pela segurança do parque de viaturas era o Cabo X..."). Entretanto, ouvi os familiares de Abudu e, claro está, conheci Abudu. Era uma criança de 7 anos de lindos olhos e as costas pregueadas e sulcadas pela destruição. Sobrevivera milagrosamente e os pais só se lembravam das circunstâncias do sinistro.

Eu levara na minha carga de livros O Processo , de Kafka. Para quem não leu ou não recorde, o genial autor checo aborda a inacessibilidade da autoridade e os contornos e ínvios da Justiça. Joseph K. é preso e não sabe porquê. Ao longo de toda a obra procura defender-se e é constantemente acusado com argumentos e linguagem que não pôde rebater nem compreender o vigor lógico. É condenado à morte e aceita a sentença com maior indiferença possível.

Kafka ajudou-me imenso neste processo: aquela granada aparecera num atrelado num acaso divino, nenhum ser humano dela se apercebera; o verdadeiro culpado fora a criança que não devia ter subido a uma viatura militar; quando se dera o acidente todos tinham feito o possível para mitigar o sofrimento daquela explosão. Como há limites para Kafka, a vida encarregou-se de tornar tudo ainda mais complexo. Ia o processo já bem gordinho, na segunda volta das deprecadas, tudo cada vez mais ilógico e torvado quando a flagelação de 19 de Março de 1969 consumiu tudo quando estava dentro da minha morança, com excepção dos ferros da cama do Prof. Armando Cortesão.

Recomecei o processo mas meses mais tarde foi arquivado por falta de provas. Em 1991, durante os cerca de 5 meses que fui cooperante na Guiné-Bissau procurei avidamente rever a criança Abudu Cassamá. Nessa altura eu vivia nas instalações da Cicer, a companhia de cerveja que, penso eu, estava semifalida. Uma noite batem-me à porta e quando abri deparou-se-me um homem franzino com cabelo hirsuto com um tamanho de uma juba que me gritou com todos os dentes à mostra:
- Sou Abudu Cassamá e quero um rádio, um relógio e dinheiro para comprar um saco de arroz!

Não houvera justiça para Abudu Cassamá, só aquele processo gerara um afecto e uma memórias perduráveis. Agora uma confissão. O Alferes de Missirá e Finete e depois pau para toda a colher em Bambadinca teimava, discreta mas obstinadamente, contra ventos e marés da criatividade literária, em poetar, quando devia fazer outras coisas. O produto é no seu todo intragável e desconchavado, mas hoje e noutras ocasiões a ele se fará referência, tal a sua sinceridade e o peso do seu testemunho. Aqui fica a

Canção para Abudu

Quem me espera às portas de Finete
quando venho cansado?
Quem me espera com incêndio nos braços,
corpo de velho nos olhos de carvão?
Quem me tira a arma do ombro
e me leva um copo à boca?
Abudu! Como é bom ter um menino
que nos espera! Abudu!


Quem me esquece a mina e emboscada,
quem me ensombreia os nervos do sol
no choro dos pássaros, no vértice das picadas?
Sim, quem me sufoca de beijos retalhados?
Abudu! Que estrela ou fio de música
te priva de olhares rancoroso
para teu corpinho de escaras,
para longe, tão longe, da explosão
que não te adormeceu


Abudu, és febre ou uma flor?
Ou és o coral de uma missa no deserto?
Quem éstu, beleza de anjo emudecido?
Mais que Abudu, és rei de um presépio?
Abudu, coração de marfim!
Mil vezes Abudu!


Como é bom ter um menino que nos espera,
que me espera às portas de Finete!
Dia após dias, quem grita os pulmões da vida
no seu limiar em arame farpado?
E, dia após dia, sempre:
grandeza de bissilão, obrigado!


Entretanto, com o apoio do Teixeira das transmissões, que se ofereceu para trolha, planeou-se cimentar a nossa sala de convívio, uma espelunca permanentemente empoeirada e aspecto sórdido; com a malta da engenharia em Bambadinca, procurou-se uma solução para tomar banho e levámos sanitários para Missirá e Finete. Aprendi a escrita dos abastecimentos e subitamente fui envolvido por acontecimentos amorosos no meio militar e civil. Mais tarde explico.

___________

Notas de L.G.

(1) Vd. posts de

19 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1038: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (6): Entre o Geba e o Oio, falando do Saiegh e dos meus livros

3 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1021: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (4): A minha paixão pelo Cuor


(2)Vd. post de 21 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P888: Antologia (44): O presépio de Chicri (Beja Santos)

Guiné 63/74 - P1049: O destacamento de Mato Cão (Paulo Santiago)


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Mato Cão > O Ten Cor Polidoro Monteiro, último comandante do BART 2917, o Alf Médico Vilar e o Alf Paulo Santiago, "vendo a dentadura do crocodilo"...

Foto tirada em Novembro ou Dezembro de 1971 no Mato Cão, após ocupação da zona com vista à construção de um destacamento, encarregue de proteger a navegação no Geba Estreito e impedir as infiltrações na guerrilha no reordenamento de Nhabijões, um enorme conjunto de tabancas de população balanta e mandinga tradicionalmente "sob duplo controlo".

Foto: © Paulo Santiago (2006)


Texto do Paulo Santiago (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 53, Saltinho, 1970/72) (1),

Luís

Vi o pedido do Beja Santos ao Mexia Alves (2), resolvi dar uma achega.

1- Tive um click ao ler a mensagem do Tigre de Missirá, quando menciona o nome do substituto, Nelson Wahnon Reis.Não tivemos grandes contactos, mas o Alf Mil Reis aparecia, por vezes, em Bambadinca, durante os meses que lá permaneci, Outubro de 71 a Março de 72. O Pel Caç Nat 52 estava em Fá. Recordo agora, outro click, ouvir a história do cajado [em substituição da G-3] ao Reis, não referindo-se ao Beja Santos, mas sim ao Cabral do 63.

2- O Mato Cão foi ocupado em Novembro de 71 - posso precisar a data-, com o objetivo de protejer a navegação no Geba Estreito e também evitar as infiltrações no Reordenamento dos Nabijões (3). Dizia-se em Bambadinca, meio a sério, meio a brincar, que à noite nos Nabijões cruzava-se um militar de G3 com um turra de Kalash, que vinha reabastecer-se. Penso, sem certezas, que o Pel Caç Nat 63 estava nos Nabijões.

3- Será que no Mato Cão, quando lá fui com o Polidoro e o Vilar [vd. foto acima], estava um grupo de combate da CCAÇ 12 ou era o Pel Caç Nat 63 ? Inclino-me para a última hipótese.

4- Quando lá fui de visita, em Novembro ou Dezembro de 71, as condições eram do pior. Não havia qualquer construção, por mais rudimentar que fosse, não havia valas nem arame farpado. Tinham desmatado uma zona junto ao rio,onde tinham aberto uns buracos para caberem os colchões, protegidos pelos mosquiteiros.

5- As flagelações e ataques eram quase diários e ferozes. Recordo um ataque num Domingo, durou mais de 30 minutos, em que o IN retirou abandonando vários mortos, incluindo um guerrilheiro com uma pistola Tokarev à cinta.

6- Alguém sabe dizer-me como se chamava o comandante do 63 ?

Um abraço a todos

Paulo Santiago


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Notas de L.G.

(1) Vd. post de 26 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P914: As emoções de um regresso (Paulo Santiago, Pel Caç Nat 53)
(1): Bissau


(2)Vd. post de 5 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1045: Pedido ao Joaquim Mexia Alves (Pel Caç Nat 52) para ajudar a desvendar o passado (Beja Santos)

(3) Sobre Nhabijões, ver entre outros os seguintes posts:

28 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXCIV: Nhabijões: quando um balanta a menos era um turra a menos

2 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXIX: E de súbito uma explosão (Luís Graça)

21 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCII: O reordenamento de Nhabijões (1969/70)

23 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCV: 1 morto e 6 feridos graves aos 20 meses (CCAÇ 12, Janeiro de 1971)

Guiné 63/74 - P1048: Nunca fui capitão miliciano (Joaquim Mexia Alves, CCAÇ 15)

Mensagem de 29 de Agosto de 2006, enviada pelo camarigo Joaquim Mexia Alves:

Caro Luís Graça:

Uma correcção: nunca fui Capitão Miliciano (1).

Comandei a CCAÇ 15 como Alferes, por diversos períodos mais ou menos compridos, ao longo dos cerca de seis meses que lá permaneci.

Passaram por lá três Capitães, um ou dois quase nem os vi. Estava-se melhor em Bissau.

Abraço

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Nota de L.G.

(1) Vd. post de 4 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1024: Pel Caç Nat 52, destacamento de Mato Cão (Joaquim Mexia Alves)

(...) Nota de L.G. :

(1) O Joaquim Mexia Alves, ex-alferes miliciano de operações especiais, durante o período de Dezembro de 1971 a Dezembro de 1973, pertenceu a: (i) ; CART 3492 (Xitole / Ponte dos Fulas); (ii) Pel Caç Nat 52 (Bambadinca, Ponte Rio Udunduma, Mato Cão) ; e (iii) CCAÇ 15 (Mansoa ) (aqui já já como capitão miliciano).

terça-feira, 5 de setembro de 2006

Guiné 63/74 - P1047: Blogpoesia: Alá não passou por aqui (Luís Graça)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1970: Da esquerda para a direita, os ex-furriéis milicianos Marques e Henriques da CCAÇ 12 (1969/71), em amena conversa ou talvez disputando amigavelmente o lugar do morto (que era ao lado do condutor). Os dois foram vítimas, juntamente com as suas secções (do 4º Grupo de Combate), da explosão de uma mina anti-carro na GMC em que seguiam (Estrada de Nhabijões-Bambadinca, a 13 de Janeiro de 1971, a um mês e meio da sua rendição individual).

Foto: © Luís Graça (2005).



Texto do editor do blogue, Luís Graça (ex-furriel miliciano Henriques, CCAÇ 2590/CCAÇ 12, Maio de 1969/Março de 1971):

A maior parte da malta que foi mobilizada para a Guiné, teve quase três anos (ou até mais) de tropa. No mínimo, passou dois dos seus aniversários de nascimento no Teatro de Operação (TO) da Guiné. Foi o meu caso, mobilizado já com quase 12 meses, aos 22 anos de idade, já feitos: passei os meus 23 e 24 anos na Guiné, “longe do Vietname”, como eu costumava escrever no meu diário, a que eu chamo Diário de um Tuga. Desses escritos, seleccionei e revi, nestas férias, os apontamentos referentes ao dia em que fiz 24 anos, já na recta final da minha comissão...Vale apenas como documento que atesta o estado de espírito de um jovem que, como Manuel Alegre escreveu, foi "soldado contra a sua própria regra"...


Bambadinca/Imbecilburgo, 29 de Janeiro de 1971 / Lourinhã, verão de 2006


Alá não passou por aqui,
por Luís Graça


Bambadinca/Imbecilburgo, 29 de Janeiro de 1971 / Lourinhã, verão de 2006


Vinte e quatro anos:
ocorreu-te que hoje fazias anos,
e que por mera curiosidade
era o teu segundo aniversário
nestas terras da Guiné,
e, por sinal, o teu terceiro
na tropa,
coincidindo com o terceiro
da era do marcelismo.

Vinte e quatro anos,
vividos mal,
vinte e um meses de tropa-macaca,
entre o Geba e o Corubal,
vida de cão rafeiro,
de macaco-cão,
saltando do chão
e do baga-baga
para a copa
da árvore dos teus desenganos.


Tempo de miserabilismo,
tempo do salve-se quem puder,
tempo de calculismo e de cinismo.
Desenfiado,
é a palavra de ordem,
para a soldadesca,
para os gajos do quadro
ou do contingente geral,
quer concordem ou discordem
desta farsa grotesca.

Aqui vive-se sem calendário
nem ética,
nem dignidade,
não se apurando perdas e danos,
não se distinguindo
dias da semana, sábados,
domingos ou feriados,
o verão e o inverno,
os bons, os maus e os safados.
Se há resistência, ela é invisível e muda,
e o tempo que conta
é o que falta para a peluda.


És um cão,
um cão danado,
apanhado na rede.
O tempo é pura aritmética,
soma de momentos,
de dias riscados
na parede,
suja, mimética,
dos nossos abrigos:
se um ano aqui é uma eternidade,
dois é o inferno.
O teu corpo fede,
tresanda a terrafo,
a suor
cheira a morte,
cheira a merda,
a luto,
a perda,
a da tua juventude,
a dos teus ideais.

És um pobre fantasma de Quinhentos,
que perdeu o norte
e os demais pontos cardeais,
a idade,
a quietude,
a auto-estima,
a praça-forte,
o astrolábio,
as Índias,
a caravela,
a rota,
a proa,
a pose,
a árvore genealógica,
as coordenadas de Lisboa,
os Lusíadas,
a Peregrinação,
do Fernão Mentes Minto,
a História (trágico-marítima),
o ritmo,
a rima,
o ADN,
o pedigree,
a inocência do Nuno Tristão da Silva,
a cruz,
o cruzeiro,
o estandarte,
a espada,
o manual,
a valentia do Teixeira Pinto,
e até o jeito de matar
do Afonso Albuquerque,
para além da arte
e da ciência de marear,
no macaréu do Geba,
nas bolanhas do Corubal.

Mais prosaicamente,
na Guiné
o dia dos teus anos é
uma rodada
de uísque ou de cerveja
pr’os teus camaradas
no bar de sargentos.
No fundo,
o teu dia é um pretexto
para a autocomiseração,
para um voo até
às galáxias da metafísica,
que é sempre melhor, chiça!,que ouvir
o silvo de uma granada,
em teu redor,
que é coisa bem mais real
e mortífera,
é a quilha
do barco da morte.
Com sorte,
talvez o amável Zé da Ila,
de nós todos o menos reguila,
pegue na viola (1)
e te cante
a Pedra Filosofal
Talvez cantemos todos juntos,
às tantas da noite,
africana,
pestífera,
mortal,
e suficientemente alto,
com as nossas vozes guturais,
para que Eles, os gajos,
nos oiçam, mesmo ali ao lado,
no bar dos oficiais…

Eles não sabem nem sonham
Que o sonho comanda a vida
E sempre que um homem sonha,
A vida pula e avança
Como bola colorida
Entre as mãos de uma criança…

Seguramente
um dia como os outros,
sem mais nada,
seguramente mais um dia
de solidão,
com ou sem o poema do Gedeão
e a música do Manuel Freire,
a tua canção favorita,
a nossa balada querida,
e que eu sei que irrita
os teus Cães Grandes

Ninguém te vai dar os parabéns,
só por fazeres anos:
ainda não ganhaste nada,
nem o direito a outra vida.
De resto, estás sempre só,
mesmo quando segues,
em bicha de pirilau,
coberto de suor e pó,
com o teu pelotão,
às ordens de Bissau,
para montar segurança à TECNIL
que está a construir
a nova estrada de Bambadinca-Xime (3).

Enfim, mais um dia da tua condição,
triste e vil,
de poeta travestido de soldado
de uma guerra
a que sempre chamaste crime,
mas da qual és actor,
cúmplice,
quiçá testemunha sublime,
guerra que tem dor e tem horror,
mas de que os teus camaradas não falam,
por pudor.

Je m’en passe,
je m’en fous,
escrevias tu
no teu diário de um tuga.
Como quem diz:
aqui não há lugar para a fuga,
nem sequer te podes dar ao luxo
de um mísero voo raso
sobre a cerca de arame farpado
ou sobre o ninho de metralhadoras
que varre a pista de aviação,
como um vulgar jagudi
que é uma pássaro feio
mas é livre,
e tão ou mais importante do que tu
no seio da criação.

Senhores e senhoras,
respeitável público
do Circo de Imbecilburgo:
Simplesmente, neste caso,
este homem não é um homem
é um palhaço,
é um soldado,
fardado,
de camuflado,
verde oliva, desbotado,
um número mecanográfico,
uma peça da engrenagem,
que na sua essência
cumpre ordens,
às vezes com coragem,
outras com medo,
é isso que lhe dói,
neste cenário
que não é cinematográfico,
mas também pouco conforme
com o RDM:
não é um mercenário,
nem um caso psiquiátrico,
não é o homem-aranha
nem o super-homem,
não é nenhum deus do Olimpo,
nem nenhum herói
da resistência
nem muito menos do 10 de Junho:
saíu, de noite, (mal) armado,
com os pés descalços dos seus nharros,
para a impossível Missão do Sono,
em Bambadincazinha,
guardar as costas
dos senhores
de Bambadinca,
que dormem na cama,
em lençóis lavados,
fazendo p’la sua vidinha.

Os Cães Grandes,
como tu gostas
de chamar-lhes,
com o teu humor corrosivo
de dramaturgo
do teatro do absurdo,
aos oficiais superiores
de Imbecilburgo.
Escuta,
quer queiras quer não,
são eles os lídimos representantes
da tua Nação,
foi o que ouviste desde o primeiro dia
da tua recruta.

Vida de puta:
com raiva e impotência,
vês o tempo,
a areia da ampulheta,
escoar-se,
do cabo até ao fundo,
e tu aqui hipotecado
ao Estado,
a este Império de opereta,
dono da tua existência,
que te requisitou o corpo,
da cabeça aos pés,
e te comprou a alma
e a vendeu ao diabo,
aqui no cu do mundo.

Voaste há dias, ai!,
sob uma mina anticarro,
à saída do reordenamento de Nhabijões (3,
mas estás vivo, ó tuga,
graças talvez à mezinha
que te deu um nharro,
um mauro, um marabu,
em Sinchã Mamadjai
e melhor prenda de anos
desejar poderias,
meu grande safado ?

És um sortudo,
se acordares,
de manhãezinha,
com o dedo grande do pé
a mexer,
dizia o Marques,
que nesse dia treze,
que nem sequer era sexta-feira,
teve azar, coitado,
sentado na parte traseira,
da GMC,
não teve a mesma sorte que tu,
indo parar, em mau estado,
em estado de coma,
ao Hospital Militar.


Pobre tuga,
pobre nharro,
pobre turra:
na Guiné,
longe do Vietname,
em plena guerra fria,
há muito ano
que vos chupam o tutano.
Aqui faz-se poesia,
de barriga vazia,
o corpo exangue,
só com o cavername,
a pele e o osso,
a morte na alma.

Resta-te a consolação da escrita
e da leitura,
além do teu uísque
com água de Perrier.
Eis o poema,
que te ofereço,
com ternura,
como prenda de aniversário,
O Tempo que Faz em Imbecilburgo:

Ah! como o tempo (não) passa
enquanto um gajo ajusta contas
com o tempo que já passou,
vinte e quatro,
contados em anos
do calendário gregoriano,
no ano da graça
de mil novecentos setenta e um.
Mas é o presente que importa
ou que importava
porque já não é mais presente
mas passado
o tempo transcorrido,
por estas terras e águas do Geba,
como furriel miliciano.

Insistes no presente do indicativo
porque é o presente minuto
que import-export
para a gente ainda ter tempo
de ganhar um lugar (cativo)
no futuro próximo
(se o houver).

Tu até podias acreditar
numa Guiné Melhor,
no Herr Spínola,
nos teus nharros,
nos patriotas dos guinéus
que lutam a teu lado,
ou até na derrota do Cabral,
teu herói e teu inimigo,
o líder revolucionário,
ou no Nino,
teu turra de estimação,
vestido à cow-boy
e armado de RPG
no nosso imaginário;
podias mesmo acreditar
na transmigração
das almas mortas em combate,
para o Panteão Nacional,
se não fora essa ideia (fixa)
do passado,
glorioso,
perdido,
sabendo-se que o dinheiro e as armas
compram tudo
menos o direito à eternidade,
e nem talvez à liberdade.

Se te portares bem,
meu velho,
aos vinte e um meses de Guiné,
na recta final da tua comissão,
enquanto esperas a tua rendição
individual,
ainda corres o risco de apanhar um louvor
do comandante do batalhão,
sob proposta do teu capitão,
à beira de ser promovido a major,
não por façanhas e valentia,
mas por seres o cronista-mor
da estória oficiosa da tua companhia
.

Post scriptum:
Alá
não passou por aqui,
disse-me uma vez um homem-grande
da tabanca de Saré Ganá (4).
__________

Notas de L.G.

(1) Furriel Sousa, da CCAÇ 12, madeirense: Vd post de 8 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P945: 'Gente feliz com lágrimas': o Zé da Ilha, o furriel Sousa, madeirense, da CCAÇ 12

(2) Empresa que em finais de 1970/princípios de 1971 estava a construir a nova estrada alcatroada Bambadinca-Xime. A CCAÇ 12 faria regularmente a segurança destes trabalhos, já no final da sua comissão.

(3) Vd. postes de

2 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXIX: E de súbito uma explosão (Luís Graça)

23 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCV: 1 morto e 6 feridos graves aos 20 meses (CCAÇ 12, Janeiro de 1971)

(4) Zona leste, Regulado de Joladu, carta de Bambadinca, 1/50.000

Vd. post de 30 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXXI: Sare Ganá, a última tabanca de Joladu

Guiné 63/74 - P1046: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (4): a portuguesíssima arte do desenrascanço

Guiné > Zona leste > Subsector de Galomaro > Dulombi > CCAÇ 2405 > 1970 > Construção de abrigos. À esquerda, o Al Mil Paulo Raposo. Foto: © Paulo Raposo (2006)


Guiné > 1968 > Mansoa > CCAÇ 2405 > Os Alf Mil Raposo e Felício, dois dos futuros baixinhos de Dulombi. Foto: © Paulo Raposo (2006)


Texto do Rui Felício, enviado por e-mail de 29 de Agosto de 2006:


Meu Caro Luis Graça,

Há longo tempo que não intervinha no teu blogue. Mas tenho lido com alguma frequência o que por lá vai aparecendo.

Aí vai mais uma estória engraçada (1) que publicarás se assim o entenderes.

Espero que o encontro sugerido pelo Paulo Raposo [no próximo mês de Outubro, em Montemor-O-Novo] se concretize. Vale a pena estar umas horas no agradável Hotel que ele possui em Montemor-O-Novo.

Um abraço

Rui Felício
Alf Mil, CCAÇ 2405 (1968/70),
Dulombi, Junho de 1970 (2)

_______


TRANSFERÊNCIA DE CARGA (ou a arte do desenrascanço que a tropa afinal nos ensinou)...


Daí a poucos dias íamos finalmente embarcar em Bissau no Carvalho Araújo para o ansiado regresso…

Tinhamos acabado de receber no Dulombi a Companhia de atónitos periquitos que, durante uma semana, iam ficar em sobreposição connosco.

Acolhemo-los com o aquele ar superior de guerreiros invencíveis, calejados pelos combates, a pele tisnada dos sóis tropicais, e além das costumadas praxes, meio inofensivas, que exercemos sobre eles, dedicámos-lhes, com a proverbial simpatia característica dos Baixinhos do Dulombi, um hino de recepção ao periquito que ainda hoje cantamos em todos os almoços anuais de comemoração que realizamos.

Fui eu o autor da letra (perdoem-me o orgulho ) que, em versos decassilábicos, procurava transmitir aos novatos o que era o dia a dia que os esperava nos confins do mato onde iriam passar dois anos.

O Alf Mil Rijo sacou dos seus dotes musicais até aí ocultos e plagiou uma música que se adaptasse à versalhada que em momento de suprema inspiração eu tinha produzido. É ele que hoje guarda religiosamente essa letra que eu, embora seu autor, não sou já capaz de reproduzir na íntegra (3).

...Mas urgia transferir o espólio da Companhia aos novos... Formou-se então uma equipa para conferir e entregar aos novos as cargas que oficialmente estavam a cargo da Companhia. E por parte dos periquitos procedeu-se de igual modo para as receber, assinando os respectivos recibos de quitação.

A mim e ao furriel Veiga coube-nos a tarefa, entre algumas outras mais simples, de entregar aos periquitos os materiais de construção que a nossa Companhia tinha (ou devia ter…) em armazém e que recebera com a exclusiva finalidade de serem usados na edificação de casas para a população que foi deslocada no âmbito do programa de reordenamentos.

No essencial, os materiais de construção a que me refiro eram constituídos por sacos de cimento, chapas de zinco, barrotes de madeira, pregos, ferramentas diversas, etc.

O problema é que os mapas de existências e de movimentação de stocks exibiam quantidades muito superiores (!!!) às que efectivamente existiam…

E eram mapas assinados pelo Capitão, pelo Sargento Silvano e por mim próprio, regularmente enviados superiormente para os Serviços de Adminsitração Militar em Bissau e, quiçá, em Lisboa.

Estava portanto fora de questão a sua falsificação!

A verdade é que, se os não entregássemos à nova Companhia e esta, como seria natural, se recusasse a ignorar as diferenças, isso redundaria por certo num demorado e complicado processo de inquérito para apuramento de responsbilidades, seguido de um outro de cariz disciplinar para punição dos responsáveis.

Resumindo: Uma grandessissima chatice a meia dúzia de dias do embarque!

Sei que vos baila no pensamento a natural pergunta:
- E como foram gastas tão significativas quantidades de materiais de construção, se não foram aplicadas na totalidade nos tais reordenamentos?

Os meu queridos amigos Vitor David e Paulo Raposo, ambos alferes dos Baixinhos do Dulombi, se estiverem a ler isto, são dos poucos que não fazem essa pergunta. O primeiro porque sabe o destino dos tais materiais em falta. O segundo porque foi ele mesmo quem lhes deu o (in)devido destino…

Fez ele bem, comento eu!

O Raposo, como já tive ocasião de dizer noutros escritos semelhantes a este, era uma pessoa desenrascada, que não abdicava do mínimo de conforto que as circunstâncias lhe permitissem.

Combater sim, mas confortavelmente, se possível…

Quando começámos a receber o cimento e as chapas de zinco em apreciáveis quantidades, destinadas ao reordenamento da população e também à construção de um heliporto, o Raposo, indiferente aos reparos do Capitão Jerónimo, mobilizou os seus soldados para cimentarem o seu abrigo e para revestirem o respectivo tecto, por baixo da terra que o cobria, com chapas de zinco na tentativa de o impermeabilizar às águas da chuvas que nos restantes abrigos inundavam por completo o interior.

Não seria, porém, na altura da transferência das cargas que iriamos falar disso. Era assunto tabu!

Importante era descortinar uma forma de entregar sem falhas os materiais que constavam dos papéis. Embora sabendo-se que já só existiam em pequena parte…

A noite é boa conselheira e em África acho que ainda mais. E por isso, quando acordei no dia seguinte já tinha mentalmente encontrado a solução.

Contando obviamente com a inexperiência do alferes periquito ( seja me desculpado tratá-lo assim, mas o seu nome já se me varreu…), que me iria assinar os recibos de quitação da entrega, libertando-me de responsabilidades.

Chamei o Veiga, furriel de transmissões e matosinhense muito vivo e desenrascado, e segredei-lhe:
- Oh Veiga, eu vou chamar o alferes periquito e começarei por lhe dizer que os materias de construção que lhe vamos entregar estão dispersos por variados lugares da tabanca.

E continuei:
- Depois digo-lhe que temos que ir anotando num caderno as quantidades que contarmos em cada um desses locais, somando tudo no final e conferindo com os mapas oficiais da Companhia.

Prossegui, perante o olhar atento do Veiga, que ia abanando a cabeça em sinal de assentimento:
- Para que as coisas resultem como eu quero, é necessário iniciarmos este trabalho à hora de maior calor, digamos que por volta da uma da tarde, a seguir ao almoço.

De sobrolho franzido, o Veiga interrompeu-me:
- Porquê? Não entendo o motivo…

Retorqui-lhe, sorrindo:
- Mais adiante você vai compreender!

E continuei, descrevendo o plano:
- Agora você pega em meia dúzia de soldados e manda carregar em cima de um Unimog os poucos sacos de cimento e chapas de zinco que temos fechadas na tabanca que serve de armazém improvisado.

Sem perder o folego, acrescentei:
- De seguida manda-os descarregar num sítio qualquer, de preferência meio escondidos entre as tabancas, por forma a não serem visíveis de longe, e depois vem me chamar à messe onde estarei com ele, para nos deslocarmos ao sítio onde você despejou os materiais.

E porsseguindo:
- Depois de anotarmos no tal caderno as quantidades que tivermos contado, e perante o insuportável calor que estaremos sentindo, eu convido-o a si e ao alferes a virem beber uma cerveja. Você inventará um desculpa e recusará o convite. Logo que eu e ele nos afastarmos, você volta a carregar os materiais e colocá-los-á noutro sítio da tabanca afastado daquele, enquanto o alferes periquito se encharca em cerveja para vencer o tórrido calor da uma da tarde…

O Veiga sorriu e interrompeu-me de novo:
- Agora entendo porque é que o meu alferes disse que mais adiante eu ia perceber a razão da hora do calor para se fazer este trabalho! O homem a cada caminhada que fizer não vai querer outra coisa senão abrigar-se do calor e matar a sede…

- Para mais, periquito transpira como o caraças!...

- ... Enquanto me dá tempo para eu mudar os materiais de um sitio para outro - concluiu o furriel com uma sonora gargalhada.

Epílogo

O alferes periquito sucumbiu ao truque. E encharcou-se com alguns litros de cerveja que eu magnanimamente lhe fui oferecendo ao longo daquela tarde.

Acho que nas últimas duas contagens ele já via tudo a dobrar, o que, se assim foi, acabou por me beneficiar nos cálculos finais…

Lamento dizê-lo mas há uma regra básica que o próprio exército nos ensinou: A tropa manda desenrascar…

Tenho a certeza que ele acabou por fazer algo parecido quando acabou a comissão.. e isso alivia-me os remorsos…

Sim, porque tenho muitas dúvidas que as existências das Companhias do mato alguma vez conferissem com os papéis que constavam das secretarias.

O resultado das contagens acabou por dar no seguinte:

(i) Os mesmos sacos de cimento foram contados 4 vezes;
(ii) As mesmas chapas de zinco, 5 vezes
(iii) Os mesmos pregos, 2 vezes


Tudo somado deu um total praticamente igual ao que constava nos papéis oficiais do Sargento Silvano.

E tudo acabou em bem!

Se isto fosse um romance côr de rosa e se em vez do alferes periquito eu estivesse a transferir as cargas para a enfermeira paraquedista Rosa, podia terminá-lo à laia dos filmes da década de 50:

... e casaram, foram muito felizes e procriaram belos e rechonchudos rebentos…

The End



Rui Felício
Ex-Alf Mil Inf
CCAÇ 2405 (1968/70)
___________

Notas de L.G.

(1) Estórias anteriores: vd posts de

19 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXL: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (3): O dia em que o homem foi à lua

14 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVII: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (2): O voo incandescente do Jagudi sobre Madina Xaquili

9 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXIX: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (1): O nosso vagomestre Cabral

Vd. também post de 31 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1006: Estórias de Mansoa (1): 'Alfero, água num stá bom' (Rui Felício, CCAÇ 2405)

(2) Vd. post de 7 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1029: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (17): Dulombi

(3) Meu caro Rui: Ficamos à espera desses famosos versos...para que não se perca o Cancioneiro de Dulombi.

Guiné 63/74 - P1045: Pedido ao Joaquim Mexia Alves (Pel Caç Nat 52) para ajudar a desvendar o passado (Beja Santos)

E-mail do Mário Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Bambadinca e Missirá, 1968/70), datado de 30 de Agosto último:

Camaradas Luís e Joaquim:

Despedi-me do Pel Caç Nat 52 em Agosto de 70 e a partir daí só me interessei pelas pessoas e não pelo destino da unidade militar: era o mais terapêutico para quem estava a refazer a sua vida de alto a baixo.

Escrevi uma vez ao meu substituto, o Nelson Wahnon Reis (1), para lhe desejar as maiores felicidades, mesmo sabendo da existência de profundas tensões irreconciliáveis. Pelo blogue tive a felicidade de saber da existência do Joaquim Mexia Alves e de que o 52 fora para Mato de Cão em 72. Peço pois o favor de o Joaquim, dentro das suas possibilidades, me ajudar a ter uma ideia sobre a história do 52 entre 70 e 74: nos finais de 70, creio que o 52 foi para Fá e depois? Como é que chega a Mato de Cão? Porque é que se criou um destacamento em Mato de Cão (2), a guerrilha tornou-se intolerável?

Não consigo reconhecer o militar sentado na fotografia mas não me é estranho o rosto do soldado que está de pé. Há mais fotografias dessa época, nomes que partiram e nomes que chegaram? Agradeço toda a ajuda.

Outra coisa: o Joaquim que não se preocupe das datas que estão na bruma da memória. Creio que é profiláctico não nos recordarmos de toda a gente, nem de todas as circunstâncias dos eventos e respectivas datas. Há pessoas que não nos marcam a existência ou marcando ficam imprevistamente ao lado. Descubro agora nesta viagem ao diário de 26 meses que passei na Guiné que houve seres humanos com quem partilhei o sofrimento e pesadas responsabilidades que já não existem no meu coração. O fenómeno é seguramente natural, pois evoluímos transformando em matéria viva a aprendizagem do que amamos. E ponto final nesta conversa perfeitamente subjectiva. Abraços do Tigre.

__________

Notas de L.G.

(1) V. post de 4 de aGOSTO DE 2006 > Guiné 63/74 - P1024: Pel Caç Nat 52, destacamento de Mato Cão (Joaquim Mexia Alves)

(2) o Jorge Cabral assegura que o destacamento do Mato Cão foi inaugurado pelo Pel Caç Nat 63, "já após a minha saída (em meados de 1971)": vd. post de 4 de Agposto de 2 006 > Guiné 63/74 - P1028: O Pimbas que eu (mal) conheci (Jorge Cabral, Pel Caç Nat 63)

Por sua vez, o Joaquim Mexia Alves assevera que "o Pel Caç Nat 52 esteve largo tempo em Mato Cão, chegou comigo, salvo o erro, um mês ou dois antes do Natal de 72 e por lá foi ficando ao longo de 73": vd. post de 29 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1039: O Pel Caç Nat 52 no Mato Cão (Joaquim Mexia Alves) .

segunda-feira, 4 de setembro de 2006

Guiné 63/74 - P1044: Estórias do Zé Teixeira (12): As vitaminas abortivas (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

1. Mais uma estória do nosso camarada José Teixeira (Ex-1.º Cabo Auxiliar Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70)


As vitaminas que provocaram um aborto


Em Empada uma das coisas mais gostosas que a tropa gostava de fazer era ir até à fonte apreciar as bajudas no banho... À falta de melhor e com um bocadinho de sorte aparecia uma ou outra que vestia apenas o fato que a mãe lhe tinha dado ao nascer. Para alguns camaradas virgens aquilo era sopa da boa.

A Fátma - mais uma das muitas Fátmas que conheci na Guiné - abeirou-se de mim:
- Fermero parte quinino pra matá minino que na tem na bariga !
- Como ?
- Minha tio brinca e faz minino na bariga di mim. Tem pacensa, parte quinino !
- Quinino ká tem, vai na mudjer grandi, ele trata di ti.
- Nega mesmo, mudjer grandi ká na tem quinino. Tu tem quinino.
- Olha vou pensar nisso, passa amanhã pela enfermaria.
- Tem de ser hodje. Parte quinino.


Seguiu-me até à enfermaria e eu sem saber o que fazer para afastar a chata, que ainda por cima era daquelas poucas feias que por lá apareciam e de quem todos nós nos afastávamos.

Bem, para grandes males grandes remédios. Se estava grávida, nada como lhe dar uns comprimidos de vitaminas. Mal não faziam. Talvez o milagre se desse...

Quinze dias depois, lá fui eu até à fonte passar um pouco de tempo e treinar uns apalpos, nem sempre bem sucedidos, quando a Fátma aparece.
- Estou tramado, aí vem a chata…

Qual quê! Ao ver-me, desata a correr para mim toda contente.
- Fermero minino na vai. “Coisa” (1) na tchega mesmo. Tu bom pessoal.


Ganhei mais uma amiga e juntei à fama de curandeiro e milagreiro, mais uma: a de aborteiro...

Zé Teixeira
__________

(1) Menstruação

Guiné 63/74 - P1043: Estórias do Zé Teixeira (11): O camarada embalsamador amador (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

O embalsamador amador, por Zé Teixeira (Ex-1º cabo enfermeiro, CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70)

Conheci em Buba um camarada de Vila do Conde que se dedicava a embalsamar pássaros. Procurei saber que produto químico usava. O químico era formol, produto letal, logo perigoso. Decidi requisitar um frasquinho ao Laboratório Militar e estranhamente fui atendido.

Então cacei um pássaro daqueles muito pequeninos que aparecem aos milhões e são muito coloridos. Enfiei-lhe o formol e o gajo esticou o pernil, e ficou em conserva. Mais uma arte do fermero. Encantar passarinhos que não fugiam quando os putos o tentavam assustar.

Durante cerca de quinze dias, logo de manhã lá o punha num ramo de árvore junto à enfermaria em Chamarra. Até que apareceu um gato e... záz.

O pobre passarito apareceu dois dias depois, em mísero estado de conservação, pois o gato perdeu o apetite e limitou-se a brincar com o gajo.

Valeu pelo funeral que lhe fiz com toda a pequenada.

José Teixeira
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Nota do edito

Último poste da série > Guiné 63/74 - P1042: Estórias do Zé Teixeira (10): camaleões, putos e cobras (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

Guiné 63/74 - P1042: Estórias do Zé Teixeira (10): camaleões, putos e cobras (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

Mensagem do Zé Teixeira, com data de 7 de Agosto:

Eih, Luís.
Nem em férias descansas e deixas de pensar no blogue ? Então aí vão algumas estórias para tempo de férias.

Um abraço e continuação de boas férias

Zé Teixeira

(Ex-1º cabo enfermeiro, CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70)




Vivências num país em guerra – pequenas estórias para tempo de férias

Conheci e vivi histórias engraçadas.

Periquitos (pássaros e não militares recém chegados ao teatro de guerra) a quem se cortava o bico ou se desafiava a picar a chama do cigarro para ganharem medo e não picarem o proprietário e os amigos e que se tornavam uma paixão assolapada do seu dono, chegando a gerar conflitos entre camaradas; macacos saguins ao ombro, e, ai de quem se aproximasse ou fizesse um gesto de agressão ao patrão: tinha o macaco à perna; cães amestrados como o parafuso que corria atrás de um arco, metia a cabeça e trazia-o de volta pendurado no pescoço; embalsamadores de passarinhos que os punham em exposição na caserna e depois vinha um gato atrevido e...zás!

Agora segue-se uma sobre a minha pequena colecção de camaleões.

Comecei por passar horas a observar as diversas camisas que vestiam ao mudar de ambiente.

Achei imensa graça e cacei uma meia dúzia. Amarrei-lhes uma linha de costura a uma pata e prendi-os a um pau junto a um charco. Durante alguns dias, foram a minha distracção e a alegria da pequenada. Divertíamo-nos a apreciar as cores que tomavam face ao local onde se encontravam e sobretudo à sua capacidade de caçar insectos e formigas com a grande língua bifurcada.

Foram baptizados um a um, pelo seu tamanho, já que quanto a cores ou outros pormenores... tinham sido criados segundo o mesmo modelo de série e mudavam de camisa enquanto diabo esfregava um olho. Era um espectáculo.

Os putos tinham medo de pegar neles, pois que na sua defesa bufavam e assustavam os miúdos.

Faziam-se apostas sobre qual o mais rápido a apanhar a mosca ou insecto que aparecesse. Buscavam-se folhas e cascas e árvores, pedregulhos e outros adereços para provocar a sua mudança de cor. Até que apareceu, possivelmente, uma cobra e...teve um lauto banquete.

quarta-feira, 30 de agosto de 2006

Guiné 63/74 - P1041: O Pimbas e os outros (Jorge Cabral)

Mensagem do Jorge Cabral, datada de 16 de Agosto de 2006:


Amigo Luis,

Conheci mal o Pimbas, conheci mal o Corte-Real, conheci mal o Magalhães Filipe, e ainda bem...

Parece que eram todos bons homens, ex-professores, que ao fim de trinta anos de carreira, haviam descoberto não ter vocação militar...

É necessário distinguir, entre a tropa miliciana, civís militarizados à força, e investidos em funções para as quais não estavam preparados, e os profissionais, designadamente os Oficiais Superiores.

Comandar um Batalhão exigia possuir qualidades de liderança, determinação e coragem, que a não existirem, deviam ter impedido a Promoção. Sabemos todos, e alguns pelas piores razões, que assim não sucedeu.

Talvez quem me conheceu e conhece, me possa considerar preconceituoso, dada a minha postura 200% paisana e anti-militar, mas sei que muitos viram, sentiram e sofreram, as prepotentes arrogâncias, os ocos autoritarismos e as criminosas incompetências.
Felizmente que consegui passar a comissão afastado da hierarquia, a qual imbuída de um espírito de casta, não compreendeu muitas vezes, que já não estava numa qualquer Unidade da Metrópole, mas sim em África e na Guerra. Aliás, tendo sido convidado em Julho de 1970 para ir para Bolama, dar instrução, recusei, precisamente por não querer integrar-me num Quartel "normal"...

Reitero o que já escrevi, sobre os quatro Comandantes de Batalhão de Bambadinca, meus contemporâneos - apenas o Polidoro me mereceu consideração, embora desconheça se gostava de ópera ou se alguma vez foi professor...

Continuação de Boas Férias, Amigo
... e desculpa lá, mas mesmo velho ou talvez por isso, não posso branquear a Verdade (a minha).

Grande, Grande Abraço
para ti, Camarada!

Jorge

terça-feira, 29 de agosto de 2006

Guiné 63/74 - P1040: Hola, desde España pasando por Bafata (Felix Perales)

Simpática mensagem, datada de 25 de Agosto último, que me foi enviada por um cooperante espanhol, Felix Perales, a quem agradeço, em meu nome e em nome dos restantes amigos e camaradas de tertúlia, as palavras bonitas, simpáticas e solidárias que diz a nosso respeitpo e a respeito da 'nossa' Guiné. Esta é uma das muitas mensagens que estão na minha caixa de correio, que abri hoje, de passagem por Lisboa, e ainda em férias até início de Setembro. L.G.

Hola, le escribe Felix Perales, miembro de una asociacion llamada SILO, que en Mandiga, de Gambasse, significa Camino... Y eso es lo que estamos intentando hacer en el Bairro de Nema en Bafata en la tabanca de Gambasse, Dembamje, Sara-Meta, Priams donde hemos hecho unos jardines de infancia y un dispensario medico en Gambasse, ademas de asociacion de mulleres agricultoras..

Esto era un pequeña introduccion para que viera vds. lo que nos une y espor lo que he leido en su pagina el amor a Guinee con todas suscontradicciones que tiene el pais... Pero aun asi se le quiere y ellos nosquieren, porque una cosa que constatas al menos en las tabancas es que todos dicen que se vivia mejor con los portugueses como tambien pasaba en Guinea Ecuatorial antigua colonia [española] y que tambien estuve alli y pude constatar...

Bueno el motivo de escribirle es muy simple, solo darle las gracias por haber hecho la pagina por ver los mapas tan detallados... Es algo que a me ha emocionado ya que no es facil encontrar documentacion sobre Guinee Bissau y menos sobre la region de Bafata....Nada mas y disculpe mi atrevimiento de escribirle...y espero que algun dia podamos coincidir en Gambasse o Bafata y podamos charlar un abrazo y graciasde nuevo

Felix Perales

Guiné 63/74 - P1039: O Pel Caç Nat 52 no Mato Cão (Joaquim Mexia Alves)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Destacamento do Mato Cão > Pel Caç Nat 52 > 1973 > O Alf Mil Joaquim Mexia Alves, pousando com um babuíno (macaco-cão) mais o Braima Candé (em primeiro plano), tendo na segunda fila, de pé, o seu impedido, o Mamadu, ladeado pelo Manga Turé.

Foto: © Joaquim Mexia Alves (2006)


Mensagem do Joaquim Mexia Alves, de 4 de Agosto último:

Caro Luís Graça:

Espero que as férias estejam a correr bem, embora a gente não te dê descanso.

Guarda as histórias para quando as férias acabarem, mas como tu - tal como nós - gostas disto, acaba por ser um trabalho agradável, desde que não seja vivido como uma obrigação, tal como eu acredito que para ti não é.

Com efeito, para esclarecer o Beja Santos (1), o Pel Caç Nat 52 esteve largo tempo em Mato Cão, chegou comigo, salvo o erro, um mês ou dois antes do Natal de 72 e por lá foi ficando ao longo de 73.

Eu fui para a CCAÇ 15 em meados desse ano de 1973 e o Pelotão ainda lá ficou.

Quando acabares as férias, contarei estas andanças.

É interessante notar em mim, que tendo eu a chamada memória de elefante, para a minha vida passada, o período da Guiné não é preciso, e tenho muitas vezes de fazer um grande esforço para recordar com alguma precisão as coisas que por lá se passaram. As datas então são quase impossiveis de confirmar na minha memória.

Enfim, fenómenos da natureza do homem.

Abraço do
Joaquim Mexia Alves (2)

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Notas de L.G.

(1) Vd. post de 4 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1024: Pel Caç Nat 52, destacamento de Mato Cão (Joaquim Mexia Alves)

(2) O Joaquim Mexia Alves, ex-alferes miliciano de operações especiais, durante o período de Dezembro de 1971 a Dezembro de 1973, pertenceu às seguintes unidades:

(i) CART 3492 (Xitole / Ponte dos Fulas);

(ii) Pel Caç Nat 52 (Ponte Rio Undunduma, Mato Cão); e, por fim,

(iii) CCAÇ 15 (Mansoa ).

sábado, 19 de agosto de 2006

Guiné 63/74 - P1038: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (6): Entre o Geba e o Oio, falando do Saiegh e dos meus livros

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Cuor > Missirá > S/d > O comandante do Pel Cacç Nat 52, Alf Mil Beja Santos, dirige a construção dos abrigos.

Foto: © Beja Santos (2006)


Amigos e camaradas: O Tigre de Missirá volta a atacar... Regressado de férias, mandou-me, com data de 18 de Agosto, mais um texto com as suas memórias das terras do Cuor. Eu continuo de férias, na terras do oeste estremenho, a caminho, no próximo domingo, do Norte, do Porto e do Marco de Canaveses. De vez em quando tenho acesso à Net, e já inseri, roubando alguns minutos às horas sagradas das férias, alguns dos textos e mensagens da malta da nossa tertúlia, que estavam em atraso. Infelizmenet não tenho aqui acesso a fotos (novas) que o Beja Santos me mandou para enriquecer o nosso já fabuloso álbum. Numa delas aparace o furriel Saiegh, aqui evocado, no post que hoje insiro. Fica essa foto para divulgação em Setembro. Até um dia destes. Bom regresso ao trabalho ou boa continuaçãod e férias para os amigos e camaradas de tertúlia. L.G.


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Entre o Geba e o Oio

Beja Santos

A 5 de Agosto de 1968, levanto-me com a primeira luz, estonteado por não ter dormido. A minha preocupação é identificar a geografia desta guerra em Missirá e Finete. Para quem me está a ler e não vai consultar o respectivo mapa, o Cuor que eu a partir de hoje vou conhecer tem duas povoações onde se hasteia a bandeira portuguesa e no seu interior, sobretudo na região de Madina/Belel, estão os guerrilheiros (1).

Para quem nunca foi à Guiné, as distâncias que a carta marca são precisas mas a realidade alterou profundamente essa relação na marcha sobre o terreno. É que o mato cresceu por toda a parte, tirando meia dúzia de picadores experimentados atravessar rios, como os de Gambana ou de Daganã ou Queba Jilã ou Passa podem ser dificuldades intransponíveis ou fatais.

O Furriel Saiegh veio fazer-me companhia, tomamos um café horrível enquanto nos debruçamos sobre a carta. Pergunto-lhe por onde anda o inimigo, do lado do Geba. Ele responde que por vezes há indícios da sua presença sobretudo na estrada de Mato de Cão. Continuo a fazer perguntas e ele propõe-me que façamos um patrulhamento a Aldeia de Cuor.

O reconhecimento dá-me a percepção de que não teria havido nos últimos anos a preocupação de vigiar os possíveis itinerários usados pelos guerrilheiros junto ao rio, do lado de Badora. Como a experiência demonstrará, o PAIGC tinha adoptado a estratégia de nos intimidar sem asfixiar: de vez em quando uns tiros de obus e morteiro sobre Missirá, uns raptos de população civil em Finete, umas fogueiras nas bolanhas secas para se saber quem mandava no interior do mato, umas balas abandonadas ao descaso.

Até à Aldeia de Cuor, nada a assinalar: o capim cresceu naturalmente, as ruínas da destilaria erguem-se como um espectro intocado, não há um mínimo de presença humana. E regressamos a Missirá 6 horas depois. Volto a perguntar a Saiegh que outros patrulhamentos têm feito nesta área. Sinto no seu olhar uma sobrançaria de quem se sente beliscado por ter de dar contas: “É a primeira vez que alguém põe em causa o meu trabalho”. Clarifico que pretendo apurar a realidade dos factos e que não estou a emitir juízos de valor. Mal sabia eu que era o primeiro sinal de um conflito entre a autoridade cessante e a emergente.

Saiegh na véspera, depois do jantar, dera-me um sinal de cortesia levando-se ao seu abrigo para bebermos um uísque. Olhando à volta do seu ambiente privado, vi frascos que me lembraram aqueles que se encontram nos laboratórios de biologia. Vendo-me intrigado, sopesando as palavras mas atirando-as a frio, esclareceu-me:
- São restos dos meus despojos. Aproveito sobretudo orelhas.

Aclarei a voz e fui cortante:
- Saiegh, ainda nada sei desta guerra, mas asseguro-lhe que a partir de hoje não haverá despojos humanos, nem relíquias nem troféus. Não trago ódios nem os vou despertar. Recordo-lhe que esta disposição é irrevogável.

Os olhos de Saiegh cuspiram fogo, mas ele conteve a dimensão da chama. Com o tempo, virei a saber que este descendente de sírio-libaneses também se movia por razões raciais, independentemente dos seus interesses económicos têm sido profundamente afectados pela luta de guerrilhas. O nosso conflito estava armado, mas passados estes anos todos reconheço que ele me deu uma colaboração exemplar, apagando-se progressivamente do mando e da decisão militar. Irei chorar amargamente no dia em que soube do seu fuzilamento (2).

A limpeza da morança onde vou habitar já começou. Durante a tarde, depois de ter percorrido a pé o caminho entre Missirá e a fonte de abastecimento de água e o lavadouro onde as mulheres cantam, abro as minhas malas para contemplar livros e discos. Folheio algumas obras que, mal sabia eu, décadas depois ainda serão companheiras indefectíveis: por exemplo, “Rebeca” por Daphne Du Maurier, “O Terceiro Homem” por Graham Greene e “Kaputt” por Curzio Malaparte. Trouxe comigo os livros mais representativos da minha formação, está ali todo o meu investimento de economias e presentes de entes queridos.

Estas centenas de livros irão ficar reduzidas a cinzas, em Março do ano seguinte. No entanto, a sua importância é indelével, e quase que posso justificar caso a caso a sua importância na minha postura cultural. Cito “O Terceiro Homem” de Graham Greene. Não é certamente o título mais representativo deste grande escritor britânico (pessoalmente prefiro “O Mistério do Medo” e “O Nosso Homem em Havana”) mas ensinou-me que um relato pode ser enunciado a várias vozes, em vários tons, sobrepondo protagonistas, e que tal estrutura pode constituir uma potencial riqueza no florilégio literário. “O Terceiro Homem” tem vários relatores, o que adensa magistralmente a intriga e torna ainda mais plausível o cenário de incerteza de um enredo de espionagem e corrupção passado em Viena, após o fim da Segunda Guerra Mundial. Folheio hoje “O Terceiro Homem” recordando o sonho que tive aos 18 anos quando pensei que ia ser um escritor de ficção.

Estes livros, e os que se seguirão, são companheiros fabulosos e tem pouco sentido repetir aqui todos os elogios sobre a leitura. Ainda hoje leio disciplinadamente de 2 a 4 horas por dia, entre clássicos e uma vanguarda que será joeirada na próxima geração.

Mas é bom dar livre curso à saudade daquelas caixas de livros que me preparam para a vida e para aguentar a brutalidade da guerra, ora no seu início. Nas semanas que se vão seguir , vou descobrir três coisas: tenho um quartel para reconstruir, introduzindo-lhe segurança e algum conforto; os patrulhamentos a Mato Cão são diários, e por vezes a dobrar; vou ter poucas ilusões, logo após a descoberta dos trilhos dos guerrilheiros em quatro pontos estratégicos do rio Geba, sobre a paz flexível que se instalara no Cuor. O primeiro sinal vai chegar no início de Setembro, com uma flagelação nocturna devastadora. A medição de forças vai começar.


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Nota de L.G.:
(1) Vd. post de 3 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1021: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (4): A minha paixão pelo Cuor

(...)"No dia 3 de Agosto de 1968, o Capitão Lester Henriques, oficial de operações do Batalhão de Bambadinca, explicou-me a minha missão no regulado do Cuor:- Precisamos de si para manter o Geba navegável. A partir de Bambadinca, o Geba é intransitável já que qualquer embarcação ficará destruída por um RPG2 que dispare a três metros de distância. Você comandará Finete, tem lá um pelotão de milícias e cerca de 150 almas. A sua missão é aguentar a todo o custo Missirá, em frente a três santuários do PAIGC: Madina/Belel, Sara e Sarauol. Em Missirá tem um pelotão de caçadores nativos e um pelotão de mílicias. Não tem electricidade no quartel, aviso-o que não tem nenhum conforto à sua espera, à volta de Missirá é terra de ninguém e estamos em crer que vem muita gente do PAIGC a Badora à procura de alimentos. Das informações que disponho, você vai comandar alguns dos melhores soldados do mundo. Desejo-lhe as maiores felicidades. E acautele-se com as minas" (...)

(2) Vd. post de 23 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXXIV: Lista dos comandos africanos (1ª, 2ª e 3ª CCmds) executados pelo PAIGC (João Parreira)

Vd. também o meu post de 11 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CIII: Comandos africanos: do Pilão a Conacri

quarta-feira, 16 de agosto de 2006

Guiné 63/74 - P1037: Não cuspir no rancho, mas RDM... nunca mais ! (João Tunes)

Guiné > Região de Tombali > Cacine > 1970 > O Alf Mil Transmissões João Tunes . Legenda do fotógrafo: "Em Cacine, Sul da Guiné-Bissau, Maio de 1970, a meio da comissão na guerra colonial. Faltavam três meses para a Catarina nascer".
Foto: © João Tunes (2006) (com a devida vénia, do blogue do João Tunes, Água Lisa (6) > post de 2 de Agosto de 2006 > Foi no stress, não foi ?) (1)


Resposta do João Tunes, de 28 de Julho de 2006, ao comentário do Joaquim Mexia Alves, inserido no post anterior (P1036, com data de hoje):

Caro camarada Mexia Alves:

Mas porque raio havíamos de estar de acordo seja no que for? O direito de que não abro mão de discordar daquilo que discordo, implica o dever do total respeito para quem discorda de mim. É assim que me tenho sentido na nossa Tertúlia - dizer livremente o que penso e sinto, desde que com respeito pelos outros e pela verdade percebida, dever a que julgo nunca ter faltado, respeitando com absoluto fair-play e bonomia as opiniões divergentes, diferentes, até opostas, de outros camaradas.

Em nada me belisca a diferença, pois só tenho uma cabeça e não sou dono de qualquer uma outra que assente noutros ombros. Assim tenho feito com posições de outros camaradas sobre a forma como sedimentaram a memória da guerra, muitas vezes nas antípodas da forma como eu as sedimentei.

Não sendo para me gabar, julgo que dei um pouquinho do meu canastro para que houvesse liberdade no nosso país. Seria cuspir no rancho, agora não me reconhecer e não reconhecer a todos o pleno e livre direito de concordarem ou discordarem no quer que seja. Desde que se esteja de boa fé, defendo que tudo se deve permitir e que a única coisa que deve ser proibida é proibir. E ... RDM, nunca mais!

Sobre as questões que colocas (descolonização, fuzilamentos dos guineenses que serviram no exército colonial) percebo e respeito os teus pontos de vista. Não os rebato. Por uma simples razão - para estes peditórios já dei em substância noutras abordagens feitas tempos atrás no blogue. Não vou repisar e muito menos polemizar.

Só uma nota: o meu texto que o blogue transcreve e tu comentas foi escrito e publicado na Net em 2004 (antes do blogue-fora-nada e quando eu curtia solitariamente o meu cacimbo). Disse e está no post de introdução à sua republicação no blogue, que hoje não escreveria da mesma forma (a catarse vai fazendo a cura) mas resolvi conservar a sua redacção inicial só porque, assim, o cacimbo se notava mais. Se calhar, fiz mal, admito. Mas a um camarada nem tudo se perdoa?

Sou um admirador dos teus textos que julgo vieram enriquecer e muito o blogue. Obrigado por isso. Grande abraço para ti. Outros iguais para os restantes camaradas. Manda sempre. Mandem sempre.

João Tunes
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Nota de L.G.:
(1) Vd. post de 3 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1020: Stress pós ou pré-traumático ? (João Tunes)

Guiné 63/74 - P1036: A propósito do aspirante Barros e do 'crime' da descolonização, na evocação do João Tunes (Joaquim Mexia Alves)

1. Mensagem do Joaquim Mexia Alves, datada de 28 de Julho de 2006:

Caro Luís Graça:

Li o Post do João Tunes (1) e recordei essa história do aspirante que ainda se contava quando estive na Guiné.

Tinham-me contado no entanto que o Caco tinha, embora chateado, gostado da resposta do Aspirante.

Pelos vistos não foi assim.

O João Tunes fala no fim do seu post daqueles que clamam contra o crime da descolonização, e penso eu que se refere obviamente aos políticos que hoje em dia se querem aproveitar de algo que nem sequer conheceram ou se baldaram a conhecer.

Porque eu sou muito contra o crime da descolonização, não a dita cuja, mas a forma como foi feita, pois segundo relatos que me foram feitos, e aliás alguns confirmados em postes aqui colocados, muitos daqueles, Guineenses, Angolanos, Moçambicanos, que comdateram connosco, alguns até que nos salvaram algumas vezes de morrermos ou ficarmos feridos, acabaram mortos, fuzilados, etc e segundo sei quando ainda não tinham acontecido as Independências.

Devo dizer aliás, que esse é o assunto que mais me incomoda e dói em toda a história da Guerra do Ultramar e que como Português me envergonho do modo como o meu País tratou aqueles que o serviram e aqui estou a pensar também naqueles que aqui no Continente ainda precisam de ajuda, sobretudo talvez psicológica, e não a têm.

Repito, caro Luis Graça, que este é um assunto que ainda me traz lágrimas aos olhos, lembrar-me dos meus camaradas do Pel Caç Nat 52 e da CCaç 15.

Perdoa, porque o assunto não é o melhor para começares as férias, mas senti necessidade de desabafar.

Boas férias, bem merecidas e se passares por estes lados telefona.

Abraço
Joaquim Mexia Alves

2. Comentário de L.G.:

Mexias Alves: Comigo não há tabus, podes sempre falar de tudo... A liberdade de pensamento, de expressão e de opinião é como o oxigénio: sem isso morreríamos asfixiados na nossa caserna.... Bom fim de semana.
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Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1003: Eu, cacimbado, me confesso (João Tunes)(II): tirem-me daqui!


(...) "Uma vez, o General Spínola visitou um quartel onde estava o Aspirante Barros e quis conhecê-lo. O Barros apareceu mal amanhado e com olhar ausente. Spínola disparou a censura:- Você não tem vergonha de ser o único Aspirante na Guiné?

"O Barros concentrou-se, olhou Spínola de frente e disse mansamente:- Estamos em igualdade, o senhor, que eu saiba, é o único General na Guiné.

"Puseram o Barros numa prisão em Bissau por ter insultado o General" (...).

(...) "Não voltei a ver o Barros. Mas, volta e meio, o Barros entra-me pela memória dentro. E então, a raiva, ai a raiva, a raiva aos que alimentam guerras, faz-me um nó na boca do estômago. Não sei sequer se está vivo, onde está e o que faz o meu antigo camarada e companheiro de quarto. Espero bem que não ande a passear, sem olhar, sem falar, sem ler e a gritar TIREM-ME DAQUI!, ouvindo os palermas saudosistas do Império a clamarem contra o crime da descolonização e caçarem votos aos ex-combatentes. Porque esses merdosos não valem um caracol ao pé do Barros. Desejo sinceramente que o Barros esteja recuperado e a discutir Sócrates e Platão. Algures. Em paz".

Guiné 63/74 - P1035: Ainda sobre o Pimbas, com um quebra-costelas para o Beja Santos (Paulo Raposo)

Foto: © Paulo Raposo (2006)

Mensagem do Paulo Raposo, datada de 31 de Julho de 2006:

Meu caro Luís Graça:

O meu cripto está de férias, foi para águas para o Cartaxo. É coisa para estar sempre com uma cadela. Não sei como o fígado dele aguenta.

És capaz de re-enviar este rádio em claro ao baixinho do Beja Santos ?

Olá, rapaz:

Leio com gosto os teus escritos, escreves muito bem e com muita amizade para com todos, o que me agrada muitissimo. Bem Hajas.

Depois de sair de Mafra fui para o extinto BC 8 em Elvas, como comandantes estavam o Pimbas e a Alzira (1).

De lá seguimos para Abrantes para formar o Batalhão [de Caçadores] 2852 e depois Guiné (2).

Só tenho boas recordações deles. Ainda serão vivos ? Bem espero. O Pimbas nasceu para ser professor, nunca um militar. Na casa comercial que era do meu Pai, na Rua da Prata, Casa dos Pneus, cruzei-me com ele. Falámos, estava ele na altura no tribunal, em Santa Clara.

O Payne, ao que ouvi dizer, já morreu. O Trigo de Sousa, outro médico que esteve comnosco na Guiné e também era do foro psico, está neste momento no mesmo ramo em Évora nos canaviais.
[Alferes] Augusto e Calado: Recordo-me bem deles. Qual era a especialidade de um e outro?

E tu, rapaz, como estás? Eu estou velho e pesado. 4 filhos, 5 netos. Minha filha casou na semana passada com os seus 22 anos. Estava tão feliz. Já estou na idade de repetir a mesma história montes de vezes.

The best is yet to come.

Um quebra-costelas para ti do

Paulo Lage Raposo
Caçanho da 2405

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Notas de L.G.


(1) Vd. posts de:

12 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCXCVI: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (1): Mafra

18 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXII: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (2): Aspirante em Elvas, Tancos e Abrantes

19 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXV: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (3): De Santa Margarida ao Uíge

(...) "A largada foi terrível. O barco a afastar-se do cais é muito doloroso para nós, com as carpideiras que para lá eram enviadas, para nos desmoralizarem ainda mais.

"Depois do navio largar e passar S. Julião da Barra, fomos para o bar à espera que nos chamassem para o almoço.

"O Major Branco, que comandava interinamente o nosso Batalhão [o BCAÇ 2852], uma vez que o nosso Comandante, Ten. Cor. Pimentel Bastos, já tinha seguido de avião, perguntou ao nosso Capitão:- Embarcaram todos os rapazes?O Capitão respondeu de imediato:- Sim, sim, meu Comandante.

"Ele sabia lá!" (...)

(2) Vd. post de 1 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1012: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (3): Eu e o BCAÇ 2852, uma amizade inquebrantável )
Sobre o primeiro comandante do BCAÇ 2852, o tenente-coronel Pimentel Bastos, vd ainda os seguintes posts da minha autoria:
Também o Jorge Cabral escreveu recentemente um apontamento sobre este controverso militar:

Guiné 63/74 - P1034: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (18): O fim da comissão

Guiné > Região do Oio > Mansoa > 1968 > O Alf Mil Raposo, mais o seu grupo de combate, atravessando uma bolanha, no início da sua comissão.

Foto: © Paulo Raposo (2006).


XVIII parte do testemunho do Paulo Raposo (ex-Alf Mil Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas, da CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852 > Guiné, Zona Leste, Sector L1, Bambadinca, 1968/70 > Galomaro e Dulombi).

Extractos de: Raposo, P. E. L. (1997) - O meu testemunho e visão da guerra de África.[Montemor-o-Novo, Herdade da Ameira]. Documento policopiado. Dezembro de 1997. 49-50 (1).


O FIM DA COMISSÃO. A ORDEM DE IR PARA BISSAU


Vem finalmente a ordem para o embarque. É uma alegria, é uma satisfação, é um alívio. Seguimos em coluna até ao Xime para embarcar outra vez na LDG para Bissau.

Lá estava novamente a companhia do Xime (2) a fazer protecção lateral na estrada para passarmos em segurança. Assim que entro na LDG e largo o mato de vez, sinto uma alegria tão grande, tão grande.

A hospitalidade da guarnição do navio foi igual à de ida para cima (3). Ficámos 15 dias em Bissau à espera do navio para Lisboa. Desta vez fico em casa de outro amigo meu, o Núno Geraldes Barba. Foi um amigo, como tinha carro, emprestava-mo para eu ir tratando dos últimos pormenores para o embarque.

A DESPEDIDA

No dia do embarque formámos novamente nos adidos em Brá, onde o General Spínola faz o agradecimento e se despede. Nesta cerimónia faz-se a chamada dos mortos. É um momento muito emocionante. A medida que se vai pronunciando o nome de cada um que caiu, nós respondemos:
- Presente!

Era uma parte de nós próprios que lá ficou. Porquê aqueles e não nós? Como reagiram os pais daqueles rapazes que não voltaram para casa? A pior coisa que pode acontecer a um pai é perder um filho. Não há nenhum que substitua outro.

Vemos hoje os revolucionários da última hora queixarem-se de perseguições do regime anterior. Se alguém passou mal com o regime anterior fomos nós, e no entanto não nos andamos a queixar por todas as esquinas. Aqueles e mais uns ferrabrazes queria tê-los visto por lá. Do que nos queixamos é que os políticos depois do 25 de Abril entregaram África despudoradamente.
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Notas de L.G.

(1) Vd. último post, de 7 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1029: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (17): Dulombi

(2) Na época a unidade de quadrícula do Xime era CART 2520 (1969/70)

(3) Vd. post de 19 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXIV: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (8): A ida para o leste