segunda-feira, 4 de dezembro de 2006

Guiné 63/74 - P1338: Memórias de um comandante de pelotão de caçadores nativos (Paulo Santiago) (5): estreia dos Órgãos de Estaline, os Katiusha















Continuação da publicação das memórias do Paulo Santiago, ex-alf mil, cmdt do Pel Caç Nat 53 (Saltinho , 1970/72). Texto enviado em 20 de Novembro de 2006. Há dias (30 de Novembro de 2006) ele comunicou-nos que a sua esposa ia levá-lo, de manhã, de carro, a Porto Marin, perto de Pontevreda, para depois fazer, a pé, o resto do caminho de Santiago. E que esperava dentro de quatro a cinco dias chegar a Santiago. Tinha feito uma tentativa anterior, em Agosto passado, gorada por falta de tempo.

Desta vez, ele pode queixar-se da mochila que vai "um pouco mais pesada, devido à roupa da época"... Mas esperemos que as mazelas contraídas no Saltinho (no episódio que ele relata neste post) não o deixem ficar mal, nem perante o Santo - que era mui fero e guerreiro, como o Paulo - nem perante os seus camaradas da Guiné que muito o estimam e admiram... Muito provavelmente ele hoje já está em Santiago de Compostela e seguramente que lá, no famoso santuário cristão, também pensou em nós, nos seus amigos e camaradas da Guiné, e até é capaz de ter rezado por nós, santos e pecadores...
Em sua homenagem (dele, Paulo, peregrino, caminheiro, ex-comandante de um pelotão de caçadores nativosniurra incarnação), deixo-vos aqui algumas fotos do caminho de Santiago que eu fiz, no verão passado, comodamente, como turista... Devo dizer-vos que não é (nem pode ser) um santo da minha devoção, sendo eu meio-cristão e meio-mouro... Sempre o achei, de resto, muito guerreiro, para o gosto de paisano... De qualquer modo, apesar da massificação do turismo, Santiago de Compostela ainda é um lugar desta jangada de pedra onde há sortilégio, magia e espiritualidade, onde o profano e o sagrado se casam bem... Se lá forem, passam pelo Gato Negro e bebam uma malga de vinho do Ribeiro por mim, por todos nós, pobres de Cristo, que palmilhámos as terras da Guiné e trouxemos de lá uma sede tamanha que só a água de Lisboa podia matar... Em Santiago de Compostela não se morria nem morre de seda: é, de facto, uma das cidades não só da nossa querida Galiza como de toda a Espanha, com mais bares de tapas, bodegas, tabernas e chiringuitos por metro quadrado... Ou não tivesse o santo também olho para o negócio... (LG)

Fotos: © Luís Graça (2006). Direitos reservados.


Guiné > Zona Leste > Sector L5 (Galomaro) > Saltinho > 1971 > O comandante do Pel Caç Nat 53 (1970/72), Paulo Santiago, tomando o seu banho à fula no Rio Corubal.

Foto: © Paulo Santiago (2006). Direitos reservados.

Em 6 de Janeiro de 1971, fiz vinte e três anos de idade e um ano de tropa. Tinha entrado para o calhau em Mafra, precisamente no dia em que fiz vinte e dois anos, foi o pior aniversário da minha vida, completamente perdido naquele labirinto de escadas e corredores.

Este 6 de Janeiro no Saltinho foi bem bebido, muito whisky a acompanhar umas rodelas de tomate com sal.

Em 21 de Janeiro, aí pelas 21.00 horas, entra um militar da CCAÇ 2701 pelo bar de Sargentos e Oficiais e informa, meio esbaforidamente, que um dos sentinelas está a avistar uma pequena luz numa curva do Corubal, situada aí a uns 500 metros na margem oposta à do quartel.

Saímos todos a correr em direcção ao posto de sentinela, verificando, haver de facto uma pequena luz a mover-se no local indicado. Acrescento que a zona em causa daria uma boa base de fogos para uma flagelação ao Saltinho, com uma posterior retirada pelo rio. O abrigo do [Pel Caç Nat] 53 ficava ali ao lado, e foi onde me dirigi, agarrando no morteiro 60 e duas granadas.

Procuro um local, com visibilidade para a curva do rio, instalo o morteiro, joelho direito em terra, mão direita no tubo, calculo a inclinação e aí vai granada. Tudo foi feito com rapidez., esquecendo-me que a zona do Saltinho ,contrariamente à maior parte da Guiné, era rochosa, o que resultou em azar. Não vi, estava escuro, o prato da arma ficou assente num afloramento de rocha. À saída da granada o prato desliza na pedra, atingindo-me a perna direita acima do joelho. A pancada foi tão forte que caí para o lado, cheio de dores, pensei logo ter ossos partidos.

O Cap Clemente e o Alf Julião que estavam ao meu lado, agarram-me ao colo e trazem-me para o Posto médico, onde me deitam na marquesa. Felizmente o osso ficou à vista, mas não estava partido. Havia que coser a perna, trabalho para o Fur Mil Enf Freire.

Como não havia anestesia, estavam quatro matulões a imobilizar-me e eu a sentir a agulha a coser-me, a repuxar músculos e peles. Hoje suporto a dor com alguma rusticidade, deverão ser
ainda resquícios do que passei naquela noite. Levei exteriormente quinze pontos e fiquei
inoperacional um mês e poucos dias.

No dia seguinte, deveria ficar de cama, não consegui e rebentei de imediato com um dos pontos. Agarrado a uma pseudo-bengala lá vim beber uns copos para o bar. Foi um mês de grandes exageros (ainda mais) com as bebidas. O maior problema passou a ser o banho, não podia mergulhar no rio, então protegia o penso com um plástico, sentava-me à beira da rio e, com uma bacia, ia virando água por cima da cabeça, um banho à fula.

Chegamos ao Carnaval e resolvem fazer um baile na escola que ficava junto do quartel ,ficando eu a beber uns copos no bar . Por volta das vinte horas, ouço várias saídas de arma que não sei determinar. Venho agarrado à bengala dar uma espreitadela à parada, vejo o rasto de vários foguetões (?) dirigindo-se na direcção de Aldeia Formosa, ouço o estrondo dos rebentamentos, repetindo-se de imediato a mesma cena, várias saídas, o rasto dos foguetes e respectivos rebentamentos.

Chega entretanto o pessoal que andava no baile, ficando também a assistir aquela chuva de foguetes e a ouvir os rebentamentos. Aparece o Fur Rui das Transmissões, informando que o quartel de Aldeia Formosa acaba de perguntar se estávamos a ser atacados, e quais as armas utilizadas no ataque.

Chegou-se à conclusão que as granadas estavam a cair em zona entre Saltinho e Quebo
e a arma era desconhecida. Passados alguns dias veio informação do Com-Chefe: naquele ataque falhado a Aldeia Formosa, o IN tinha utilizado pela primeira vez Foguetes Katiusha, também conhecidos por Órgãos de Estaline.

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Guiné 63/74 - P1337: O campo de concentração da Ilha das Galinhas (João Tunes)

Guiné > Região de Tombali > Catió > Mato Farroba > Abril de 1970 > Em primeiro plano, o ex-Alf Mil Transmissões e hoje nosso estimado camarada João Tunes .


Foto: © João Tunes (2005). Direitos reservados.


Mensagem do João Tunes, já enviada a toda a tertúlia.

Sobre os Outros
por João Tunes

Caro Luís e restantes camaradas,


Como era incontornável, o nosso blogue, cada vez mais rico e recheado de facetas mais encadeadas, assenta sobretudo na visão da guerra de um dos lados, o das NT. Não podia ser de outra forma. Mas, julgo eu, sobretudo a esta distância no tempo, não entenderemos o que passámos e lá estivemos a fazer, sem compreender o outro lado, o lado do IN. Só numa compreensão abrangente das duas metades, é que, nós e os guineenses, podemos ter a percepção da epopeia daquele drama comum e que nos ficou a unir.

Infelizmente, da parte do PAIGC, há uma exiguidade de produção histórica e tratamento documental e testemunhal sobre a sua luta. A par do facto terrível de que a grande maioria dos antigos combatentes do PAIGC ou morreu ou para lá caminha proximamente sem deixar lavrados os seus imprescindíveis relatos e testemunhos (é muito curto o horizonte de vida na Guiné).

Esperemos que a saída à luz do dia, e em breve, da tese académica do nosso amigo tertuliano Leopoldo Amado compense uma parte das lacunas que nos atrapalham a visão larga da memória da guerra na Guiné (1).

Entretanto, aproveitando para o divulgar e recomendar, saiu um livro importante da Dalila Cabrita Mateus (*) em que ela apresenta um conjunto de depoimentos recolhidos e verificados junto dos prisioneiros africanos no período da guerra colonial. Julgo até que este livro é de leitura impositiva pois possibilita, coisa rara, que se oiçam vozes do sofrimento daqueles que
combatemos e nos combateram. O que é útil a vários níveis - permite-nos relativizar os nossos sofrimentos enquanto combatentes coloniais; traz à luz do dia uma bestialidade escondida no tratamento da pessoa humana que era o lastro do suporte ao nosso combate e sobrevivência. Sem aquilo, sem aquela PIDE, poucos de nós estaríamos aqui a escrever e a contar.

Uma parcela importante do livro de Dalila Cabrita Mateus é composta de entrevistas com prisioneiros da segunda fase de funcionamento do Campo de Concentração do Tarrafal (Ilha de Santiago - Cabo Verde). Como se sabe, o Campo (também conhecido como Campo da Morte Lenta) funcionou entre 1936 e 1954 para prisioneiros políticos portugueses e o seu encerramento deveu-se ao escândalo internacional devido à demasiada semelhança com os campos nazis.

Após o declarar da guerra em Angola, o então Ministro do Ultramar Adriano Moreira (o mesmíssimo académico hoje celebrado como o grande visionário geoestratégico do desígnio português no mundo), firmou despacho legislativo para que o Campo do Tarrafal fosse reaberto para os prisioneiros capturados nas colónias. Esta medida coincidiu com o fim dos julgamentos, em Tribunal Militar, dos prisioneiros africanos. A partir de então, os prisioneiros passaram a ser dispensados de julgamento e, depois de interrogados e torturados, era-lhes fixada administrativamente (pelos Governadores sob proposta da PIDE) residência por tempo indeterminado num dos campos de concentração existentes em África.

No que respeita à Guiné, os prisioneiros que não eram liquidados pelas NT e pela PIDE, passaram a ir para a ilha das Galinhas (Bijagós-Guiné) (2) ou para o Tarrafal. Neste Campo,
além de alguns caboverdianos, estiveram, até 1974, muitos prisioneiros angolanos mas o grosso do número foram guineenses (várias centenas). E uma norma imposta era a proibição de qualquer contacto entre os prisioneiros das várias nacionalidades. Mas, os prisioneiros guineenses não só perfaziam a maior percentagem como estavam sujeitos a piores condições relativas (3).

Primeiro, ao contrário da maioria dos angolanos, não recebiam ajuda dos seus familiares (em géneros, em dinheiro, em correio). Segundo, cúmulo do sadismo administrativo, a alimentação dos presos fornecida no Campo era diferente pela razão que o orçamento era diferenciado consoante a origem. Uma regra estabelecia que eram os governos das províncias que custeavam a alimentação dos presos e enquanto o Governo Provincial de Angola dotava de 20$00 os
cofres do campo para a alimentação diária de cada prisioneiro angolano, Spínola atribuía apenas 5$00. O que levava a que, na alimentação dada a cada prisioneiro guineense, se gastasse um quarto do custo havido com cada angolano!

Imagine-se o resultado pois não havia suplementos alimentares por falta de apoios familiares. Foram inúmeras as mortes por doença entre os prisioneiros guineenses, nomeadamente por défice vitamínico que conduziu a várias mortes por escorbuto (!). E como não eram permitidos quaisquer contactos entre prisioneiros angolanos e guineenses, obviamente que a solidariedade inter-africana não tinha meios para se verificar.

Naquelas terríveis e ainda pouco conhecidas condições, compreende-se o desânimo e o desespero de grande parte dos prisioneiros guineenses. E como a PIDE nem ali dormia, entende-se também que ela tenha conseguido trabalhar um grupo de combatentes aprisionados no Tarrafal para os levar á traição dos seus e colaborado com a formação do grupo libertado que se reinfiltrou no PAIGC e levou a cabo o assassinato de Amílcar Cabral em 1973 (3).

Depois da PIDE reduzir aqueles homens à miséria humana ainda encontrou matéria-prima para que alguns dos miseráveis se prestassem a reproduzir a miséria.


Abraços para todos os camaradas.

João Tunes

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(*) - Memórias do Colonialismo e da Guerra, Dalila Cabrita Mateus, Ed. ASA . Sobre este livro, coloquei post no meu blogue > Água Lisa (6) > 27 de Novembro de 2006 > A África e Nós
Cópia da capa do livro de Dalila Cabrita Mateus > Memórias do Colonialismo e da Guerra. Porto: Edições ASA. 2006. Colecção: Arquivos Históricos. 672 pp. Preço: 24,00 € (com IVA).


Fonte: © Edições ASA (2006) (com a devida vénia...).


(...) "Neste quadro, assume um relevo extraordinário o trabalho da Professora Doutora Dalila Cabrita Mateus, do ISCTE, que tem vindo, desde há vários anos, a debruçar-se sobre a guerra colonial no período 1961-1974 e que culminou numa monumental tese de doutoramento sobre o tema após aturadas investigações nos arquivos e na recolha de testemunhos orais em Portugal e em África. Desta tese, a Editora Terramar já havia publicado a síntese do corpo principal (**) incidindo sobre a acção da PIDE nas colónias africanas.

"A Editora ASA acaba agora de editar (***) um complemento de enorme valor testemunhal e que são os depoimentos orais que a investigadora recolheu, aferiu e cruzou junto de portugueses e africanos que foram protagonistas, nos vários cenários coloniais, do drama do conflito-estertor do colonialismo português, esse banho de sangue com que quisemos selar o fim da presença portuguesa em África, na teimosia de contrariar os ventos da história.

"Significativamente, os depoimentos recolhidos por Dalila Mateus entre 1999 e 2001 e sistematizados neste segundo livro, são quase todos acompanhados de uma nota em que se refere os falecimentos da maior parte dos depoentes antes da edição do livro. O que demonstra que essa recolha, para além dos seus valores próprios e impressivos, foi salva à tira, ou seja, mais uns poucos anos passados e testemunhos únicos e riquíssimos perdiam-se na poeira das leis da vida.

"Para um português, não deixa de ser inovador e perturbador ouvir as vozes das elites dos africanos que nos sofreram em África. Dando-nos uma dimensão mais profunda à nossa vergonha necessária. E obrigando-nos, até, a relativizar o nosso próprio quadro europeu de sofrimento da ditadura e do consequente preço pelo alcance da democracia. E o único consolo que resta, no quadro abrangente do regime ditatorial, é que a brutalidade estremada utilizada no cenário colonial (basta comparar as práticas da PIDE na metrópole e nas colónias, lá mais brutal para os prisioneiros que cá, lá mais apoiada que cá pela população branca) acabou por ser a pá de cal deitada no caixão da ditadura.

"Vem aí o Natal, época de prendas. Para os outros e para nós. As minhas sugestões ficam aqui. Porque não há melhor oferta que a de nos ajudarmos a entender. E essa obra de entendimento (do eu, de nós, dos outros), ideia minha, é mister sobretudo dos poetas e dos historiadores. Sem uns e outros, seremos apenas, por muito bem que cantemos, pássaros à janela (para sair ou entrar)" (...).

__________


(**) –A PIDE/DGS na Guerra Colonial (1961-1974), Dalila Cabrita Mateus, Ed. Terramar. 2004.

(**) – Memórias do Colonialismo e da Guerra, Dalila Cabrita Mateus, Ed. ASA. 2006.


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Notas de L.G.:

(1) Há vários posts do Leopoldo Amado no nosso blogue. Vd., por exemplo, posts de:


22 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXXV: Simbologia de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau (Leopoldo Amado) - I Parte

25 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXXXVI: Simbologia de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau (Leopoldo Amado) - II Parte


(2) Ilha das Galinhas: fica situada a sudoeste da Ilha de Bolama, separada desta pelo Canal de Bolama. Por lá passaram muitos dirigentes e militantes do PAIGC, incluindo um dos seus fundadores, Rafael Barbsa:

(...) "Ora, para lá do provável ou mesmo real empolamento de Pindjiguiti e da justeza ou não das formas e conceitos, sempre discutíveis, sobre a forma como Pindjiguiti foi etiquetado (contenda laboral, massacre ou carnificina) ou ainda do quantitativo de mortes que se saldou na decorrência do acontecimento enquanto tal, temos para nós que o que se afigura importante é o reconhecimento da importância e o alcance históricos que o mesmo teve, à jusante e à montante da guerra colonial/guerra de libertação, no contexto do processo libertário do povo guineense.

"Aliás, não foi por acaso que depois de Pindjiguiti o PAIGC logrou atingir uma assinalável mobilização que permitiu o desencadeamento da luta armada de libertação. Também, não foi por acaso que no decorrer da guerra colonial/ guerra de libertação, invariavelmente, o PAIGC normalmente assinalava a efeméride com ataques simultâneos a várias localidades, inclusivamente os centros urbanos, sobretudo a partir de 1968.

"Não foi igualmente por acaso que em 1962, os vários partidos e movimentos de libertação que pululavam em Dakar e Conakry (mais contra o PAIGC do que contra o colonialismo português) decidiram criar a 3 de Agosto desse mesmo ano uma frente de luta, a FLING.
"Por fim, não foi também por acaso que Spínola, por ironia do destino, mas com objectivos claramente à vista, procedeu, no âmbito da sua política da Guiné Melhor, a 3 de Agosto de 1969, a uma espectacular libertação de cerca de uma centena de prisioneiros políticos guineenses, dos quais Rafael Barbosa, ex-Presidente do PAIGC, bem como todos os que se encontravam na colónia penal d da Ilha das Galinhas, da Colónia Penal de Tarrafal em Cabo Verde e os que se encontrvam no Forte de Roçadas, em Angola, em pleno deserto de Moçamedes" (...).

(3) Vd. blogue de Leopoldo Amado, Lamparam II > 14 de Maio de 2006 > Simbólica de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau



Fonte: Guiné-Bissau Contributo (blogue de Didinho)


Também José Carlos Schwarz (que não tem qualquer parentesco com o nosso Pepito) esteve desterrado na Ilha das Galinhas.O pioneiro da moderna música da Guiné-Bissau - poeta, músico, compositor e intérprete - nasceu na capital em 6 de Dezembro de 1949. Fez os seus estudos em Bissau e Dacar. Preso político, foi deportado para a Ilha das Galinhas. Após a independência, foi director do Departamento de Arte e Cultura do Comissariado da Juventude e Desportos e encarregado de negócios da Guiné-Bissau em Cuba. Foi, de resto, aqui que encontrou a morte, num dedsastre de aviação, ocorrido a 27 de Maio de 1977 .

domingo, 3 de dezembro de 2006

Guiné 63/74 - P1336: Catió: Autor de pintura mural, procura-se (Victor Condeço)

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Guiné > Região de Tombali > Catió > 1967 > Pintura mural, de autor desconhecido, provavelmente da CCS do BCAÇ 1858 (1965/67). Em latim pode ler-se "Cationis civitatis modernissma charta" (carta recentíssima da cidade de Catió).

Fotos: © Vítor Condeço (2006). Direitos reservados.

Texto do novo elemento da nossa tertúlia, Vitor Condeço, 63 anos, reformado, residente no Entroncamento, ex-furriel miliciano mecânico de armamento, CCS do BART 19163 (Catió, 1967/69) (1).


A Arte em Catió no tempo da guerra
por Victor Condeço

Luís:

Pedi-te que me desses uns dias para escrever alguma coisa, pois aqui estou, não propriamente para escrever uma estória, mas para te mostrar um trabalho de um artista desconhecido, que fotografei em Catió em Julho de 1967.

Resolvi enviar-te este trabalho por considerar que ele é muito mais que um daqueles simples desenhos murais feitos um pouco por todos os quartéis da Guiné e que caricaturavam alguma situação digna de registo, – como a chegada dos periquitos -, ou pretendiam apenas mostrar como encontrámos o quartel e como o deixámos... Enfim, pinturas murais que embelezavam as nossas messes, refeitórios e camaratas.

Se for tua opinião que tem algum interesse e que se pode enquadrar no blogue, adapta as minhas descrições, corta o que entenderes e faz os comentários que te aprouverem, inclusive podes arranjar outro título, fica ao teu superior critério. Outra questão são os direitos de autor da obra, analisa isso por favor!

Um dos meus hobbies na Guiné foi a fotografia. Bater a chapa e fazer o trabalho de laboratório ajudavam a esquecer as saudades de quem estava longe. Tinha ainda a vantagem de me afastar dos vícios do bar e era também mais económico e rápido fazer os próprios bonecos, que enviava à família.

A foto que envio foi mal tirada e mal feita, foi das primeiras que fiz no nosso laboratório (i) em Catió, dela só encontrei o que devem ser duas provas e talvez por achar que não estavam boas, devo ter pensado em repetir a fotografia mas, não sei porquê, o certo é que isso não deve ter acontecido. Recentemente, procurando entre o espólio dos meus negativos para fazer as digitalizações, nem sequer encontrei o que deu origem a estas provas.

Mesmo assim com má qualidade, dará para apreciar o excelente trabalho do artista, feito a carvão ou óleo (não posso precisar) no fundo de cal branca de uma parede interior de uma casa de habitação tipicamente colonial, situada no extremo norte do quartel e que era a antiga messe de oficiais - antiga porque, nos primeiros meses de 1968 foi inaugurada a nova, feita pela Engenharia Militar no extremo sul do quartel.

Aquela casa continuou no entanto a servir de alojamento às tropas que passavam por Catió em operações na zona, pelo menos até ao final da minha comissão em Fevereiro de 1969.

Luís, da memória visual que me resta do painel, este deveria ter cerca de 1,2 x 0,8 metros, retratava Catió e suas imediações num raio de cerca de 4 a 5 Km, abrangia áreas das cartas militares de Catió e de Bedanda.

Com o quartel bem no centro, a poente deste a vila, o cemitério, a pista de aviação com avião e tudo, as tabancas de Areia, Quintafine e Sua, o rio Cobade, para sul o rio Cangopere com o cais exterior, o rio Cadime com o cais interior, e onde não falta sequer a lancha da Marinha Portuguesa LP2 que fazia o reabastecimento diário de pão e água potável ao Cachil.

A norte o rio Ganjola, o destacamento do mesmo nome, e as tabancas de Cachanga e Dissimbile.
A nascente a bolanha, a tabanca de Priame, a mata, a estrada para Cufar, o desvio para sul para as tabancas de Quibil e Ilhéu de Infanda, a norte da estrada as ruínas de Cubaque e mais à direita as tabuletas que devem indicar no cruzamento de Camaiúpa, a direcção de Cufar e provavelmente Cobumba e Bedanda no outro sentido.

Quem fez este trabalho não sei, nunca soube, eu cheguei a Catió em Maio e o mesmo já existia, com alguma dificuldade consegue-se perceber a data inscrita, em numeração romana MCMLXVII (1967) – A. D. (não sei o significado) (2), a assinatura está ilegível, contudo no final desta parece poder ler-se Porto.

Terá sido feito provavelmente com recurso às cartas militares, mas decerto por alguém profundamente conhecedor da região e um artista, talvez um oficial da CCS do BCAÇ 1858 que o BART 1913 rendeu, mas poderia ser de outra unidade, pois em Catió na época havia outras, uma CCAV, um Pel Rec DAIMLER, um Pelotão de Canhão sem recuo um Pelotãod e Morteiros (não recordo os números, mas gostava de saber).
Os pormenores são tantos e tão bons, que não faltam os trabalhadores na bolanha e não escaparam ao autor as diversas espécies da fauna da região que se podem ver por todo o painel.

Brazão actual de Catió, vila da Guiné-Bissau
Fonte: International Civic Heraldry (por sugestão do nosso tertuliano Jorge Santos) (3)


Os tertulianos que passaram por Catió durante e após 1967, terão conhecido este painel? O Hugo Moura Ferreira (Cufar, 1966/67), mas que deve por ali ter passado, o João Tunes em 1970/71 (3)... Mas também o Leopoldo Amado, ainda muito criança, talvez por ali tivesse passado alguma vez na companhia de seu pai, na altura chefe dos Correios de Catió.

Luís: se entenderes publicar esat imagem (**), até poderás lançar um desafio aos frequentadores deste blogue, que são já da ordem das várias centenas, diariamente -, a saber, quem é que consegue, através de um amigo que conhece outro que esteve por aquelas paragens, dar uma dica sobre o possível autor do trabalho.

Seria giro passados 40 anos descobrir o autor e facultar-lhe uma cópia do seu trabalho, que se calhar nunca teve.

Luís aproveito para te desejar e a toda a tertúlia e seus familiares, também a todos os que lêem este blogue, um Feliz Natal e um Novo Ano com muita saúde e felicidades.
Até breve um abraço.

Victor Condeço

(*) O BART1913 comprou e levou para seu serviço um pequeno laboratório fotográfico, tendo facultado a sua utilização a duas ou três pessoas interessadas na fotografia, cada utilizador pagava os próprios materiais que encomendava em Bissau.

(**) Tenho outro tipo de digitalização desta foto, tem muito mais ampliação, foi feita com a divisão da foto em quatro partes, servirá para reproduzir em papel e fazer a respectiva colagem. Se te interessar está ao teu dispor.
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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 3 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1335: Um mecânico de armamento para a nossa companhia (Victor Condeço, CCS/BART 1913, Catió)

(2) A.D.= Anno Domini , em latim. Quer dizer que o mural foi pintado em 1967... da era cristã

(3) Vd. posts de:

4 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1245: Quarenta anos sobre Catió (João Tunes)

12 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CLXXXVI: No 'reino do Nino': Catió, Cacine, Gadamael, Guileje (1970) (João Tunes)

Guiné 63/74 - P1335: Tabanca Grande: Victor Condeço, ex-Fur Mil Mec Armamento da CCS/BART 1913, Catió, um mecânico de armamento para a nossa companhia

Vitor Condeço, o novo membro da nossa tertúlia: aqui fotografado em 1968 e mais recentemente em 2004. 

Foi Fur Mil Mecânico de Armamento na CCS do BART 1913 (Catió 1967/69). Tem 63 anos e reside no Entroncamento.

Caro camarada Luís Graça:

É com alguma dificuldade que vou tentar cumprir uma regra da tertúlia, que é o tratamento por tu. Torna-se-me difícil quando não conheço pessoalmente as pessoas, mas cá vai.
 
Foi com agrado que li os teus oportunos comentários ao material por mim enviado e as tuas palavras de incentivo para aderir a esta tertúlia (1).

Obrigado também pelas tuas felicitações ao meu 63º aniversário.

Seguem em anexo as fotos que solicitaste para a fotogaleria, a civil já é de 2004, de momento não tenho outra mais recente, mas estou na mesma, só o cabelo tem mais uns (poucos) branquinhos.

Confirmo os meus dados mais importantes... Formalizo assim o meu pedido de adesão á Tertúlia.
 
Como já te afirmei no meu anterior mail, não esperes grandes histórias da minha parte para contar no blogue, mas vou tentar escrever alguma coisa, dá-me um tempo.

Os meus cumprimentos a todos os terulianos.
Um abraço para ti, Luís.

Victor Condeço
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Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 21 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1301: O cruzeiro das nossas vidas (4): Uíge, a viagem nº 127 (Victor Condeço, CCS/BART 1913)

(...) "Comentário de L.G.:

"Meu caro Victor: Julgo que tu és o primeiro especialista mecânico de armamento que aparece por estas bandas. E não penses que é uma especialidade de 2ª classe: pelo contrário, se a G3 encrava ou se o canhão sem recuo não recua, estamos todos fritos...
 
"Humor à parte, nenhum de nós vem aqui exibir o seu cardápio de roncos, o seu currículo de horrores ou o seu estojo de cruzes de guerra... Todos estivemos lá, todos somos camaradas da Guiné... É isso que nos une. Sê, portanto, bem aparecido e, quando te der jeito, manda duas chapas tuas para a fotogaleria... A gente gosta de conhecer a cara dos camaradas e de os ouvir falar dos sítios fantásticos por onde andaram e da gente simples e boa, guineense, com quem conviveram...
 
"Fala-nos de Catió, e de como eram as coisas no teu tempo... A Catió que era gozada nos programas de rádio a fingir, para a plateia da caserna: E agora um disco pedido, pelo Embaló, que tem um primo em Catió!....

"Um dia destes, encontramo-nos por aí, para dar um abraço uns aos outros e beber um copo... Obrigado, pela teus recuerdos da viagem nº 127 do Uíge, a caminho de casa, depois de mais de quarenta longos meses de tropa (1200 e tal dias!!!)" (...).

Guiné 63/74 - P1334: Guileje: espectacular foto aérea de 1972 (Amaro Munhoz Samúdio, CCAÇ 3477)

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Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAÇ 3477 (Novembro de 1971/ Dezembro de 1972) > Foto aérea de 1972 do aquartelamento e tabanca de Guileje, tirada no sentido oeste-leste. A avaliar pela foto, havia um conjunto de moranças, fora do perímetro de arame farpado, a norte do aquartelamento, junto ao trilho da água e no início da estrada que dava para Mejo e Bedanda. Ao fundo, são bem visíveis: (i) a pista de aviação; (ii) o campo de futebol; e (iii) o heliporto
Foto: © Amaro Samúdio (2006). Direitos reservados. Foto alojada no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.

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Guiné > Região de Tombali > Guileje > 1973 > Croquis do aquartelamento e tabanca, desenhado à mão pelo Fur Mil Operações Especiais José Casimiro Carvalho (CCAC 8350, 1972/73) (1).


Foto: © José Casimiro Carvalho (2005). Direitos reservados. Foto alojada no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.


Colagem de duas mensagens recentes do Amaro Munhoz Samúdio, ex-1º Cabo Enfermeiro da CCAÇ 3477 (1971/73), a companhia de açorianos que ficou conhecida como Os Gringos de Guileje: estiveram em Guileje entre Novembro de 1971 e Dezembro de 1972); (ii) foram a penúltima unidade de quadrícula de Guileje, sendo rendidos pela CCAV 8350 (Dez 1972/Mai 1973) - Os Piratas de Guileje, a que pertencia o nosso camarada José Casimiro Carvalho, ex-fur mil e ranger.


1. Era inevitável que a pergunta sobre o que se passou com o chimpazé-bebé fosse feita (2). Outra coisa não era de esperar.

Num dos passeios que gostava de fazer, do abrigo até à estrada, um safado dum açoriano, condutor daqueles monstros que iam buscar água, resolveu, sem qualquer intenção, parar em cima dele. O caçador, que observou isto, disse-me que o animal ia morrer. O que é certo é que deixou de comer e veio a falecer.

Ficaram a Lolita e o Bobi, os nossos amigos vindos de Gadamel Porto, pedidos pelas transmissões.

2. O desenho efectuado pelo herói Casimiro corajosamente enviada a seu pai, é o que mais se aproxima da realidade de Guileje até 21 de Novembro de 1972. Calculo aquela saída pela pista em direcção a Gadamael Porto, depois de não poderem sair dos abrigos e o pessoal das tabancas também lá dentro, a fazerem todas as suas necessidades lá... Nós, em Nhacra, sabíamos o que se estava a passar em Guileje. Tínhamos saído de lá há três meses.

Os Obuses eram 11.4 , substituídos posteriormente por 14.0 Porquê ? A psico de Mr. Spínola? O não responder pela mesma forma de defesa ? É que, segundo o que me era contado pelo pelotão de artilharia, os 11.4 atingiam zonas que os 14.0 , embora mais potentes, não atingiam.

3. É muito difícil dizer tudo o que me está na alma, isto porque poderia, neste momento, quebrar o princípio de que nós éramos os ocupantes e eles os ocupados

As mina, armadilhas e fornilhos também existiam. O heliporto também, salvo erro, construído pelos Gringos.

Os abrigos, construídos pela engenharia, estão quase perfeitamente localizados, muito embora um deles estivesse localizado do lado direito para quem saía para a estrada de Gadamael Porto.

Entretanto, e salvaguardando os muitos conhecimentos do Nuno Rubim, recordo que antes da CCAÇ 3477 (Gringos de Guileje) - esta sim, uma companhia essencialmente açoriana (B.B.I. 18 – Ponta Delgada, S. Miguel, Açores), esteve uma Companhia de Madeirenses e depois é que veio CCAV 8350 (1972/73) , metropolitana, segundo o uso da designação.

Os Gringos de Guileje estiveram lá de 21 de Novembro de 1971 até 22 de Dezembro de 1972

Falta-me encaixar a CCAÇ 3325 pois, para mim, tinha sido a companhia madeirense, a CCAÇ 2617, que nos antecedeu .
4. Caro Luís Graça: Peço desculpa mas agora pregaste-me o vício de pensar e falar sobre a Guiné, nomeadamente sobre Guileje.

De tal forma se tornou vício que te vou transformar em responsável por, ao fim de trinta e três anos, tentar reunir, em Maio de 2007, os Gringos de Guileje (CCAÇ 3477), principalmente os do continente - já que vai ser muito difícil trazer os Açorianos, visto a maioria deles terem imigrado.
Continuando no vício, e pretendendo colaborar com o Pepito, anexo a fotografia que penso ser de início de 1972.

Um abraço
Amaro Munhoz Samúdio
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Notas de L.G.

(1) Vd. post de 1 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1234: Guileje: croquis do aquartelamento e tabanca (José Casimiro Carvalho)
(...) " Comentário de L.G.:
(...) "O aquartelamento e a tabanca de Guileje formavam um rectângulo, todo minado à volta, na parte desmatada, com minas, armadilhas e fornilhos.
"A orientação parece ser norte/sul, tendo as peças de artilharia de 11.4, em número de três, apontadas para a fronteira com a República da Guiné-Conacri. Originalmente, eu pensava que os obuses de Guileje fossem de calibre 14 cm. Podem ver-se ainda as posições dos morteiros: dois 81 (incluindo o 'meu', o que era operado pela secção do Furriel Carvalho, do lado oeste, junto a um dos abrigos) e dois 10,7.
"A oeste, há um campo de futebol, uma pista de aterragem de aeronaves e um heliporto. Ao longo do perímetro do aquartelamento, há arame farpado, postos de iluminação, postos de sentinela, abrigos e valas, todos devidamente assinalados. As palhotas da tabanca situam-se dentro do perímetro do aquartelamento. O trilho que corre a norte da pista de aviação era o trilho da água, o que significava que as NT e a população precisavam de sair do perímetro defensivo para se abastecer do precioso líquido.
"A estrada que atravessava o aquartelamento e a tabanca, no sentido norte/sul era a que seguia para Mejo e Bedanda (a noroeste) e ligava a sul à estrada de Mampatá - Gadamael - Cacine, ao longo da fronteira.
"O Pepito e o Nuno Rubim (...) saberão melhor do que eu interpretar e completar estas informações" (...).

(2) Vd. posts de

18 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1293: Guileje: do chimpanzé-bébé aos abrigos à prova do 122 mm (Amaro Munhoz Samúdio, CCAÇ 3477)

10 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1162: Guileje: CCAÇ 3477, os Gringos Açorianos (Amaro Munhoz Samúdio)

sexta-feira, 1 de dezembro de 2006

Guiné 63/74 - P1333: A grande emoção de recordar Cufeu e Guidaje (Albano Costa, CCAÇ 4150)

Guiné- Bissau > Região do Cacheu > Guidaje > Novembro de 2000 > "Foto tirada no Cufeu, quando parámos para o almoço... Hoje está um pouco diferente do que era no meu tempo, em 73/74" (Albano Costa, ex-1º cabo da CCAÇ 4150, Guidaje, 1973/74).

Foto: © Albano Costa (2006). Direitos reservados.


Texto do Albano Costa, recebido em 15 de Novembro de 2006

Comentário de L.G.:
O Albano habituou-se à grafia Guidage, e não consegue escrever Guidaje... Vou respeitar a sua vontade, além de lhe agradecer este texto singelo e solidário, de grande autenticidade humana... Sei que lhe fez muito bem voltar à Guiné, em Novembro de 2000, ainda para mais na companhia do seu filho Hugo, que fez uma excelente - e já muito badalada aqui, no blogue - reportagem da viagem (3 CD, 6 horas, belas imagens, óptima música em fundo, enfim, um trabalho profissional)...

Caro Luís Graça:

Estive uns dias ausente da Net, mas já regressei e tenho estado muito atento ao que se tem escrito sobre o que se passou em Guidage no ano de 1973 (Maio e Junho). É um assunto que me interessa saber e muito, pena que só agora comece a ser contado o que se passou.

A minha companhia não estava lá nessa altura, só foi destacada para Guidage mais tarde. Quando lá chegámos, não sabíamos exactamente o que se tinha passado. Naquela altura era tudo muito fechado, a maioria dos militares que para lá foram na altura do conflito já lá não estavam, vieram embora, e os relatos que agora leio confirmam-no.

Quando lá chegámos só lá estava a CCAÇ 19, companhia, essa, africana. Só os especialistas e graduados eram brancos. Procurava-se não comentar muito para não destabelizar as tropas. Os militares brancos que pertenciam à CCAÇ 19 estavam psicologicamente traumatizados e procuravam não falar sobre o que tinha acontecido. Limitavam-se a dizer que não desejavam a ninguém o que tinham passado. Por seu turno, os nossos quadros superiores procuravam ocultar o sucedido para manter as tropas psicologicamente activas.

Quem conhece Guidage - e eu conheço muito bem, estive lá oito meses -, era um destacamento completamente isolado, ficava mesmo na fronteira com o Senegal. Não se passava nada a não ser receio, não havia gente nova, não era sítio de passagem, ninguém lá ía, eramos sempre os mesmo, enfim, não foi fácil. O isolamento era total, só faziamos colunas de 15 em 15 dias, fora disso estavamos ali sozinhos.

Quando saíamos de Guidage era só para fazer reconhecimento no mato para ver se o IN estaria a organizar algum ataque ou para vir a Binta em coluna sempre com bastantes militares.

Ninguém se atrevia naquela altura a fazer o percurso de Guidage a Binta sem ser em coluna, e aí tinhamos que passar pelo Cufeu. Era sempre com muito cuidado, passávamos sempre pelo cemitério. As NT perderam lá meia dúzia de viaturas e também sabíamos que tinham morrido colegas nossos... Sempre com muito cuidado falava-se que ali tinham havido grandes confrontos com o IN. Toda a gente queria evitar passar lá, mas ao mesmo tempo tínhamos que fazer as colunas.

O Cuféu tornou-se para todos os militares do meu tempo um lugar de muito respeito a partir daquela data. Quando lá se passava dava sempre um calafrio pela nossa espinha dorsal. Só quem lá esteve é que o sente, e eu, ao ler estes textos, deu-me para ver que todos os ex-militares que estiveram nessa altura no conflito, não conseguem esquecer. E não é para menos, todo aquele percurso faz medo, e esse medo ainda hoje os atormenta como lemos nas suas estórias e eu sei que é verdade, mas peço-lhes: Contem tudo o que vos vai na alma, que vão sentir-se melhor a falar nessas coisas...

Eu sei que há colegas que ainda hoje não gostam de falar nisso, vivem atormentados, por isso fiquei muito contente que o A. Mendes e o Vítor Tavares tenham desabafado um pouco da sua vivência. Não parem, passem tudo cá para fora, eu também sofri, mas de maneira diferente, sempre com o pressentimento de que a qualqer momento o IN poderia voltar à carga. E, como já disse, só podiamos ser ajudados por Bigene ou Binta, não tínhamos mais ninguém próximo.

Quando lá fui em 2000, ao passar no Cuféu tudo veio ao meu pensamento, tive momentos de muita tristeza, quem já viu o meu vídeo da viagem dá para notar: é nessa passagem, quando atarcesso Cufeu e Ujeque até chegar a Guidage. Aí, para mim tudo começou a ser diferente, a Guiné passou a ter outra beleza.

Todos os ex-militares que lá estiveram nessa altura, muito, muito difícil, sofreram mesmo muito. Eu quase fiquei paralizado ao ler os vosso testemunhos, confesso que as lágrimas correram pela cara abaixo, mas agora estou a sentir-me muito bem a ler estas estórias, que a história nunca irá contar, por isso caros camaradas desabafem, que vos faz bem.

A minha companhia andou por lá, durante meses, sempre com o mesmo pressentimento que a qualquer momento poderíamos passar por tudo o que vocês passaram. Psicologicamente foi muito complicado, nós estavamos isolados, não tínhamos aviação, estavamos ali à nossa sorte. É que ninguém lá ia a não sermos nós, que tínhamos que vir a Binta sempre que era preciso, não íamos porque queriamos, mas sim quando havia necessidade e isso foi durante todo o tempo em que lá estivemos.

Seria muito bom que estes nossos colegas tivessem possibilidades de lá voltar agora, iriam sentir-se muito mais aliviados, e todo o sofrimento que ainda hoje carregam, estou convencido que se esvaziava.

Quanto ao cemitério que foi o Cufeu e Guidage, eu sempre ouvi falar que morreu lá muito gente, mas ao certo nunca soube quantos. E não sei se alguém sabe ao certo, visto que o conflito se arrastou por vários dias, e não foi sempre com os mesmos combatentes. Enquanto lá estive tivemos apenas uma emboscada no Cufeu, e umas minas na picada.

Quanto ao irem recuperar os nossos mortos a Guidage, ficarei muito satisfeito, mas espero que o lema Ninguém fica para trás, seja para todos os que lá ficaram, afinal são todos portugueses.

Um abraço,
Albano Costa

Guiné 63/74 - P1332: Antologia (55): Bambadinca, a guerra aqui tão a sério, tão cruel - Embaixador António Pinto da França (Luís Graça)

Guiné-Bissau > Região de Bafatá> Bambadinca > 1997 > Antigas instalações dos oficiais (à direita) e dos sargentos (à esquerda). A messe de sargentos ao fundo, do lado esquerdo. Eram excelentes instalações hoteleiras, para a época e por comparações com outros outros aquartelamentos. Criadas de raíz, faziam inveja aos desgraçados dos nossos camaradas das undiades de quadrícula do Sector L1 que viviam em bunkers (Xime, Mansambo, Xitole...). Com a independência, foram ocupadas pelas Forças Armadas da Rpública da Guiné-Bissau. Esta foto de 1997 documenta a sua degradação. Bambadinca, por outro lado, foi palco de alguns sangrentos e cruéis desvarios pós-revolucionários: julgamentos em tribunais populares e execuções sumárias dos colaboracionistas...

Foto: © Humberto Reis (2005) (com a colaboração do Braima Samá, professor primário de Bambadinca). Direitos reservados.


Bambadinca, a guerra aqui tão a sério, tão cruel

Excertos do livro Em tempos de Inocência – Um Diário da Guiné-Bissau, de António Pinto da França. Lisboa: Prefácio, 2005. 102-103. Já aqui foi feita a sua recensão pelo nosso camarada Beja Santos (1)

Bissau, 8 a 15 de Abril de 1978

(…) De Bafatá à cidadezinha de Bambadinca viajámos em autocarros. À entrada de cada aldeia aguardavam-nos grupos de homens com cartazes de boas vindas ao Ministro [dos Transportes].

Ao entrar na parada abandonada do quartel de Bambadinca, daquilo que foi um dos principais centros das Forças Armadas Portuguesas na Guiné durante a guerra, deparámos com uma multidão que nos acolheu com vivas, se acotovelou, para com a funda cortesia africana apertar a mão do Ministro.

(…) O discurso, em crioulo, do Governador de Bafatá, influente figura do PAIGC, era traduzida para fula por um intérprete (…) [que] cantava, na saborosa língua fula, que a guerra acabou, os portugueses são e foram sempre irmãos, que estão a ajudar muito a Guiné-Bssau (…).

No final, muitas vivas a Portugal, ao Presidente Eanes, ao Dr. Mário Soares, à amizade de Portugal e da Guiné BIsssau.

E não é milagre passar-se tudo isto naquela povoação tão recentemente castigada, quando ainda só quatro anos decorreram desde o fim da guerra, aqui tão a sério, tão cruel?” (França, 2006. 102-103) (2).

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Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 25 Setembro 2006 > Guiné 63/74 - P1113: Dez razões para ler 'Em tempos de inocência', diário do Embaixador A. Pinto da França (Beja Santos)

(...) "De 1977 a 1979, António Pinto da França foi embaixador de Portugal acreditado na Guiné-Bissau. Ele regista em forma de diário estes primeiros anos da independência, descrevendo com simplicidade e por vezes uma atmosfera quase mágica a vida da Embaixada, os membros do corpo diplomático, as compras, os passeios, os encontros, os ambientes múltiplos, alguns momentos históricos. Há pitoresco, desabafo íntimo, melancolia, registo meticuloso daquilo que não mudou no tempo africano" (...)

(2) Na série Antologia, divulgam-se textos - incluindo, excertos, partes de texto - de autores que, em princípio, não fazem parte da nossa tertúlia, mas que escreveram coisas, publicadas algures (sob a forma de livro ou de artigo em revista ou jornal), que nos interessam. Vd. o último post da série > 21 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1299: Antologia (54): Transporte de tropas, por via marítima e aérea (CD25A / UC)

Guiné 63/74 - P1331: Blogoterapia (9): Quando a Pátria não é Mátria para ti (João Bonifácio, Canadá, exvagomestre da CCAÇ 2402)

1. Mensagem do João Bonifácio, residente actualmente no Canadá, ex-camarada do Raul Albino, na CCAÇ 2402 (1968/70), e candidato a membro da nossa tertúlia:

Embora não tenha o prazer de o conhecer pessoalmente, estou muito feliz por toda esta informação, e que me foi facilitada por um amigo, que comigo serviu na Guiné em 1968/70 - Có, Mansabá, Olossato - CCAÇ 2402 (BCAÇ 2851) (1).

O ex-Alf Mil Raul Albino fez o favor de me enviar este site, e eu, quando posso, procuro rever toda a Guiné, através das exposições de todos os nossos ex- camaradas, a todos os níveis.

Depois de finda a minha comissão, como Furriel Miliciano do SAM (vulgo,vagomestre), e após um pequeno período de descanso e adaptação, regressei a Lisboa com a minha esposa e filho, onde reatámos as nossas vidas.

Não foi longa a minha estadia em Portugal, uma vez que a desilusão que sofri ao regressar... Assim, ao ver que o futuro seria complicado para os filhos, decidi pedir autorização para sair de Portugal, com destino ao Canadá.

Se na altura eu me sentia ofendido com o meu próprio país, bem pode imaginar quando na Amadora me pediram 1500 escudos em selos, para selar a minha desvinculação a Portugal. Saí de Portugal a 15 de Fevereiro de 1974, mas já sabia que alguma coisa se iria em breve passar. Mas era tarde, eu havia decidido que, depois de 37 meses no exército e 21 meses e 4 dias na Guiné, devia merecer mais um pouco de compreensão.

Mas o que se espera? Nós vemos e lemos o que todos os dias se passa. Somos os únicos que compreendem esta situação, e somos os únicos que tentamos manter esta chama de uma guerra onde estivemos, mas que acho nunca conpreenderemos.

Para si, Luís, um grande abraço e obrigado. Neste momento estou ocupado com o segundo livro da CCAÇ 2402, mas vou tentar entrar neste blogue, depois da sua aprovação.

João Gomes Bonifácio
Ex-Fur Mil do SAM
Guiné-Bissau 1968/70


2. Comentário de L.G.:

Meu caro João /My dear John:

1. Fico muito sensibilizado com a tua mensagem… Eu sei que a Pátria não foi Mátria para ti, foi madrasta... E eu sou o primeiro a ser solidário contigo, eu que decidi ficar na terra que me viu nascer... Sei que isso não te vai servir de consolo, mas não imaginas o rol de reclamações que recebo neste pequeno canto da blogosfera!... Enfim, o importante é que hoje estejas bem, nesse grande país que eu admiro… Mas as tuas raízes, a tua identidade, o teu passado estão aqui, estão connosco… Nenhum de nós terá futuro, se não souber preservar e até alimentar o passado. A Guiné marcou-nos a todos, com o seu ferrete... Mas foi em português, na língua de Camões, que exprimimos os sentimentos mais nobres ou dissémos os palavrões mais horríveis. João: não adianta. Não se escolhe a Pátria, não se escolhem os pais nem os irmãos, não se escolhe a língua materna... Mas dessa ao menos eu tenho (e tu tens, nós temos) orgulho... É em português, e em bom português, que comunicamos na blogosfera, neste blogue, na nossa tertúlia, nesta caserna virtual onde todos cabemos, de Lisboa a Bissau, de Viana do Castelo a Toronto, de Coimbra a Luanda...

2. A partir de hoje, tu és, de pleno direito, um camarada da nossa tertúlia… O tratamento por tu é natural entre nós… Com o tempo, habituas-te… Entra e acomoda-te: estás em casa… Os camaradas da Guiné não conhecem fronteiras, físicas, simbólicas ou culturais... Vais ver que te faz bem esta blogo…terapia.

Um abraço, um feliz Natal para ti e a tua família…

PS - O João respondeu-me logo na volta do correio:
Obrigado, Luís. Retribuo os votos de feliz Natal e Ano Novo com muita saúde para ti e todos os teus. O uso de João é o indicado. O John é só aqui por razões óbvias. Desculpa a falta de sinais na ortografia, mas os ingleses são assim.
Um grande abraço.
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Nota de L.G.:

(1) Vd. posts de:

17 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1082: Notícias da CCAÇ 2402 e do BCAÇ 2851 (Raul Albino)

23 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1105: Como escrever um livro de memórias de guerra 'à la carte' (Raul Albino, CCAÇ 2402)

4 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1246: O meu livro Memórias de Campanha da CCAÇ 2402 (Raul Albino)

15 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1282: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (1): duas baixas de vulto, Beja Santos e Medeiros Ferreira

Guiné 63/74 - P1330: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (4): Bissau-Bolama-Como, dois dias de viagem em LDG



Guiné > Região de Tombali > Ilha do Como > 1964 > Croquis da Op Tridente (de 14 de Janeiro a 24 de Março de 1964) .... "A designada Ilha do Como é, na realidade, constituída por 3 ilhas: Caiar, Como e Catunco mas que formam na prática um todo, já que a separação entre elas é feita por canais relativamente estreitos e apenas na maré-cheia essa separação é notória" (...). O Mário Dias desenhou este croquis com base na carta da província da Guiné (1961).


Infogravura: © Mário Dias (2005). Direitos reservados.


O Palmeirim de Catió é o Joaquim Luís Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Os Palmeirins (Catió, 1964/66). Publicamos hoje a quarte parte das suas crónicas (1),em que se relata a viagem da sua unidade, colocada na Ilha do Como, em Outubro de 1964, sete meses despois da Op Tridente, em que participou o nosso camarada Mário Dias, cujo testemunho, inédito, tivemos o privilégio de inserir no nosso blogue (2).


Marcha para a Ilha do Como

Em dia certo de Outubro [de 1964], a Companhia 728 fez as malas e teve de avançar para o sul da Guiné.

A companhia 726 já tinha seguido para Guileje, de má fama (3). Seria lá que tudo iria ser jogado. O nervosismo inicial, de quando se conheceu o destino, foi abrandando e o desejo geral era de que, quanto mais depressa, melhor.

A secção de espólio, comandada pelo alferes Barros dos Santos, com o 1º sargento Santos e o sargento Gaspar, já tinha feito a recepção do material, no próprio quartel, na ilha do Como. As suas impressões não eram tão más como isso.

A companhia que íamos render (4) já tivera o grande trabalho de construir, de raiz, as instalações mínimas que havia e, segundo disseram, limitava-se a marcar presença no terreno. Nunca fora atacada, depois de terminar a grande operação que a deixou lá [, a Op Tridente] (2).

À parte as privações derivadas do isolamento total e a dependência do abastecimento de água potável e mantimentos, feito a partir de Catió, a maior dificuldade estava em manter o pessoal activo e disciplinado, enquanto o tempo passava lentamente.

Por isso, o moral que reinava era positivo e, até, dominado por uma certa curiosidade pelo desconhecido.

De novo, o Geba foi a nossa rampa de lançamento. Toda a Companhia foi transportada em Unimogues até ao cais buliçoso de Bissau.

Uma grande barcaça de aço acinzentado, da marinha de guerra, com uma secção de fuzileiros, parecia uma grande banheira, de linhas nada aquático-dinâmicas, ali estava espalmada sobre as águas baças do gigantesco rio tropical.

Apenas uma pequena torre de comando, com duas metralhadoras pesadas, colocadas em sítio dominante e um vasto terreiro, de chapa singela, totalmente vago, assente sobre as águas.

Depressa engoliu toda a Companhia, algum material de apoio e ainda sobrou espaço para o grupo de gente nativa, de homens, mulheres e crianças interessados na boleia até Catió e, mais, o cão vadio, que ia ser a mascote da companhia com o posto de sete vinte e oito.

O pessoal, já armado de G-3 individual, mais 3 bazucas e 3 morteiros, tinha o encargo da autodefesa, durante a viagem. Esta ia ser feita em dois troços, sempre em águas de rio.
O primeiro, no estuário, quase oceânico, do Geba, até Bolama, a 2ª cidade da Guiné e sede das forças de Marinha. O segundo, até Catió, pelo rio Corubal (5). Dois dias. No 2º, havia que contar com as marés do Corubal (4) que lhe triplicavam a gorda superfície caudalosa..

A zona atravessada era pacífica, segundo se dizia. Por isso, um certo espírito de turismo dominou toda a expedição…

O deslumbramento do arvoredo farto que pendia sobre ambas as margens, o esvoaçar constante dos gigantescos jagudis, multicolores, de bico rubicundo, o bando de gaivotas a rodopiar à nossa volta para se deleitarem com os restos, uma granada de mão ofensiva que, de vez em quando, se desprendia de mão anónima, sobre o seio das águas turvas do rio, logo tapadas por uma manta prateada de peixes atingidos pelo estampido mortal, para gáudio das gaivotas persistentes; um tiro, furtivo, de algum soldado mais atrevido, sobre a carapaça do bando de crocodilos pachorrentos, que emergiam das águas salobras, tudo ia tornando aquela viagem numa aventura saborosa, bem ao jeito da nossa idade juvenil.

A bravura castrense do nosso, agora, capitão já dava sinais de amolecimento. Já se tinha abeirado da ralé, surpreendente, ajudando à festa, com um bem timbrado desfiar de fados de Coimbra e do hino da sua terra natal
- Oh Castelo Branco, Castelo Branco…

O vigoroso Sasso, com a voz rouca, crestada pelo cigarro, em fornalha permanente, acompanhava-se à viola, nos fados alfacinhas; as desgarradas brejeiras do furriel Brás, embrulhadas, também, na sua viola inseparável; o corpulento sargento Gaspar exibia, pela centésima vez, as suas habilidades circenses, em mais um flic-flac; o espírito, até aí, oprimido dos soldados começava a despontar, natural e as distâncias artificiais da parada do quartel dissipavam-se, lentamente, sem detrimento do entranhado respeito pelos superiores.

Sentia-se que um espírito de grande família, amiga, estava a despertar, decidida, sobretudo, a defender a vida de todos e de cada um dos seus elementos, onde quer que fosse, nos próximos dois anos.

Entretanto, o cheirinho da bifalhada que vinha da cozinha dos marujos, das batadas fritas e ovos estrelados, obrigava-nos a recorrer à ração de combate, de 1ª categoria, com que foramos prendados. A cerveja fazia o resto.

Pela tardinha, a LDM, escoltada à distância pela temida corveta da marinha, aportava à calma cidade de Bolama. Uma recepção festiva dos camaradas marinheiros e um jantar caseiro melhorado deram-nos uma noite inesquecível nas casernas prontamente partilhadas.

Um mergulho na piscina, no dia seguinte, deu-nos alento para mais uma etapa, a última daquela façanha que, em vão, se afigurara temível. Agora o rio Corubal (5) ficava mais estreito e sinuoso. A zona que atravessava era território dominado pelos turras. Ficavam por ali perto, dentro das matas impenetráveis, grandes acampamentos, até então, inexpugnáveis. Fula Kunda Ur, Bedanda, Cantanhês, Dar Es Salam… Eram as casas mansas dos turras ( aquartelamentos simples) donde partiam com as operações estudadas, contra nós, logo abandonadas, assim que sentiam uma pressão insustentável. Por isso, todo o cuidado era pouco. Uma emboscada, numa curva do rio, na zona mais estreita, era bem possível.

Daí até à Ilha do Como não demorou muito, aproveitando-se a maré-cheia. Deu para descarregar tudo e seguir a pé até ao aquartelamento, a partir do cais tosco construído pela nossa tropa.

Estávamos na época seca. Não houve problema em percorrer os 800 metros de terra batida, assente em toros de palmeira estendidos, transversalmente, de modo a dar para os rodados de um unimogue pequeno. O terreno era baixo e todo ele roubado à bolanha.

Subindo para o interior da ilha fomos dar logo com o quartel que iria ser o nosso castelo, nos próximos meses. Era do tamanho da cerca de dois campos de futebol, em forma de quadrilátero. As paredes eram feitas de troncos de palmeira cravados na terra e justapostos, com a altura de uns 2 metros e picos.

À sua volta, em reforço, uma barreira em bidões de chapa, cheios de terra, encastelados. Na paliçada de toros de palmeira, justapostos ao alto, havia seteiras para se divisar ao longe e fazer fogo, em caso de ataque.

Ao meio de cada lado, perpendicular à estrada, duas portas de armas largas, para passagem de viaturas. Por uma entrada oblíqua, para evitar o devassamento interior.

Um fortim reforçado e sobreelevado, em cada um dos cantos e ao meio de cada um dos lados. Ali permaneciam as sentinelas, dia e noite, cumprindo a vigilância, de uma importância e responsabilidade total…

Dois grandes embondeiros, ao centro do quartel, davam sombra e abrigo sobre uma parte substancial de toda a parada. Ali debaixo, ficava a cozinha tosca, a mesa corrida dos oficiais e sargentos, a enfermaria, a casa das transmissões e a secretaria do 1º sargento. Em frente, era o bar feito das tábuas dos barris vazios. As casernas dos três pelotões estavam distribuidas pelo espaço interior, de modo a evitar a concentração de pessoas.

Em lugares estratégicos, ficavam as armas pesadas. Morteiros, metralhadoras. Um forte gerador de corrente funcionava a tempo inteiro, dia e noite, para manter, sobretudo, acesos todos os altos postes avançados de iluminação exterior ao quartel, uns 40 ou 50 metros e todos os serviços de transmissões.

A palmeira, o bidão e a tábua dos barris eram a matéria prima vital. O estado de conservação era mau e desconfortável. Antes da época das chuvas, todos os melhoramentos tinham de ser realizados.

A companhia que saía, esvaída, já não tinha élan vital. Estava acomodada àquele desconforto total e ninguém conseguiria exigir à tropa cansada qualquer esforço que pudesse significar permanência. Se não chegássemos naquela altura, eles teriam debandado…pela floresta, com o desespero.

O aspecto geral era verdadeiramente dantesco. Na tropa, já não se reconhecia a cor original dos farrapos que ainda restavam a tapar o corpo. Cabelos e barbas compridas, troncos nus, calções esfarrapados, ninguém se atrevia a identificar as tão cultuadas classes da tropa originária: soldados, sargentos e oficiais. Uma centena e meia de homens e ano e meio de encarceramento, dentro do arame farpado.

À distância de uns 500 metros, descampados, começava a mata cerrada que ia dar ao território dos turras, a parte restante (melhor, a totalidade) da ilha... Os outros lados eram campos de arroz abandonados, orlados por braços de afluentes do Corubal (5).

Ao lado nascente, a companhia 556 tinha conseguido implantar uma pista tosca para a festa da avioneta, do correio e dos mantimentos frescos, durante a época seca. A época da chuva encarregava-se de a desfazer. Foi para ela que os olhos se voltaram quando nos vimos sózinhos. Havia que capinar todo o terreno ainda coberto de ervas rasteiras para que a Dornier pudesse visitar-nos, pelo menos de 15 em 15 dias.

Os primeiros dias foram intensos, sob a batuta astuta do capitão, para fixar o plano de vida e definir tarefas. A distribuição dos pelotões no espaço do quartel, ficou a mesma que a companhia 556 tinha fixado e bem. O critério era o do maior perigo. Dois pelotões do lado da mata, o do Sasso e o meu; do lado do cais, ficou o 3º, do Gonçalves.

Todos os dias a companhia formava e era apresentada, em sentido, ao capitão. Este nem parecia o mesmo durão de Évora… Lia-se-lhe no rosto uma certa preocupação e nervosismo. Criar todas as condições de segurança e amenizar o grande esforço que nos esperava era a grande prioridade. Não falava de ideais, como antes e nunca se lhe ouviu mais uma palavra que fosse a justificar a nossa presença ali. Autodefesa e a melhor subsistência possível eram a únicas razões básicas que se desprendiam da sua boca, nas prédicas de formatura, à mesa ou nos muitos momentos de laser.

Ninguém deveria afastar-se do quartel, muito menos sózinho; o serviço de sentinela, dia e noite, seria o mais exigente, como todos reconheciam. Guerra ao sono dos sentinelas, apesar do café que era distribuido, de tempos a tempos, por todas as guaritas. Dela dependia a segurança de todos, especialmente, durante as noites de cacimbo, banhadas de breu ou de jorros luminosos de luar.

Havia que exigir a maior limpeza e o asseio possíveis; ocupação permanente para os soldados e uma cuidada rotação das tarefas definidas.

______

Notas de L.G.


(1) Vd. post de 20 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1297: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (3): Do navio Timor ao Quartel de Santa Luzia

(...) "De Évora, pela madrugada calada de uma noite tórrida de Agosto, saíu o comboio especial, com todo o cortejo militar que perfazia o numeroso batalhão, dado pronto para a luta. Duas das companhias, a 726 e 728, iriam para a Guiné, outra para Angola e , creio, uma CCS, para Moçambique. O sorteio.

"Uma noite de viagem ronceira, desde Évora a Lisboa, cais de Alcântara. Só 130 Km, de linha secundária e sem qualquer prioridade. A longa paragem de Casa Branca ficou na memória: esgotaram as bifanas de porco no pequeno bar da estação, mas não a cerveja… O resto da viagem, até de manhã, correu às mil maravilhas.

"O imponente paquete Timor, amarelado, mais alto e corpulento do que a enorme estação fluvial, ali estava, calmo, à nossa espera, poisado nas águas paradas do Tejo. Várias escadas, longas, ligavam o cais ao bojo barrigudo mas elegante, do paquiderme, de proa arrebitada e pendão festivo, à solta.Não demorou muito e toda a gente estava a bordo, distribuida pelos muitos pisos, docilmente transformados em quartel" (...).

(2) Vd. posts do Mário Dias, sargento comando (Brá, 1963/66):
15 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXII: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): Parte I (Mário Dias)
(...) "Ao princípio da noite de 14 de Janeiro de 1964, a fragata Nuno Tristão deixava para trás o Ilhéu dos Pássaros e, dirigindo-se para a Ponta Oeste da Ilha de Bolama, rumou a Sul. A bordo, instalados como era possível, os elementos que formavam o Grupo de Comandos (20 homens) escutavam atentamente as indicações (poucas) que o alferes Saraiva, comandante do grupo, ia debitando. Ninguém sabia o que nos poderia esperar no Como mas a boa disposição reinava e a confiança nas nossas capacidades era grande.
(...) "Sabíamos apenas que íamos desembarcar na Ilha do Como para a sua reocupação. Nem ao menos nos foi dito por quanto tempo se estenderia esta missão pelo que não levávamos connosco o indispensável para uma longa permanência, como acabou por acontecer (...).
(...) "Era em Cauane, disserem, onde se encontrava a CCAV 488 e o 8º Dest Fuz na tabanca que era o posto mais avançado e próximo do IN e que viria a ser o local de maior resistência à nossa penetração na mata. Era para lá que iríamos. Enquanto na base logística, junto ao mar, se montavam as tendas de campanha que serviriam de posto de primeiros socorros, sala de operações, instalações para o comando e outras, se cavavam abrigos à volta do perímetro defensivo, se instalavam postos de vigia, se abriam as indispensáveis latrinas, iniciámos a marcha para Cauane" (...).
16 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXV: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): II Parte (Mário Dias)
(...) "O PAIGC estava a opor grande resistência. Foi necessária a ajuda da aviação e artilharia para que aos poucos se fosse tornando possível a nossa progressão para o interior do Como. Recordo algumas noites em que nos era recomendado não acender fogueiras, nem sequer cigarros, pois os P2V5 vinham (à socapa pois eram da NATO) bombardear a mata. As explosões eram tão fortes que o chão onde estávamos deitados estremecia.Durante o dia actuavam os F86 e T6 bombardeando e metralhando todos os movimentos que detectassem.
17 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXX: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): III Parte (Mário Dias)
15 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLI: Falsificação da história: a batalha da Ilha do Como (Mário Dias)
(...) "Com a operação a chegar ao fim previsto, o Comandante das Forças Terrestres, Ten Cor Cavaleiro, saiu com o grupo de comandos e o pelotão de paraquedistas às 23H30 do dia 20 de Março, atravessando a mata de Cauane, Cassaca e Cachil com a finalidade de verificar pessoalmente a capacidade de combate do IN. Passagem e pequena paragem na tabanca de Cauane, troca de informações com o comandante da CCAV 488, dono da casa, e iniciámos a penetração na mata à 1 hora do dia 21, partindo da casa Brandão. Reacção do IN?...nenhuma. Progredimos até Cassaca que foi alcançada às 02H30. Feita uma batida cuidadosa à região, encontraram-se a Norte algumas casas de mato quase destruídas e há muito abandonadas.
(...) "No dia 22 de Março, o grupo de comandos regressou a Bissau, aproveitando a boleia da Dornier e alguns hélis que em diversas vagas nos transportaram. O Grupo de Comandos não teve baixas, nem feridos, nem nenhum elemento evacuado por doença, fazendo juz ao nosso lema: Audaces fortuna juvat" (...).
(3) Vd. post de 11 de Junho de
2006 > Guiné 63/74 - P864: Unidades aquarteladas em Guileje até 1973 (Carlos Schwarz / Nuno Rubim)


Lista das unidades que passaram por Guileje:

CCAÇ 495 (Fev 1964/Jan 1965)
CCAÇ 726 (Out 1964/Jul 1966) (contactos: Teco e Nuno Rubim)
CAÇ 1424 (Jan 1966/Dez 1966)
CCAÇ 1477 (Dez 1966/Jul 1967) (contacto: Cap Rino)
CART 1613 (Jun 1967/Mai 1968) (contacto: Cap Neto)
CCAÇ 2316 (Mai 1968/Jun 1969) (contacto: Cap Vasconcelos)
CART 2410 (Jun 1969/Mar 1970) (contacto: Armindo Batata)
CCAÇ 2617 ( Mar 1970/Fev 1971) > Os Magriços (contacto: Abílio)
CCAÇ 3325 (Jan 1971/Dez 1971) (contacto: Parracho)
CCAÇ 3477 (Nov 1971 / Dez 1972) > Os Gringos de Guileje (açorianos) (contacto: Amaro Munhoz Samúdio, 1º cabo enfermeiro)
CCAV 8350 (Dez 1972/Mai 1973) > Os Piratas de Guileje (contacto: José Casimiro Carvalho)
(4) Seria a CCAV 488, que na Op Tridente ocupou em Cauane e pertencia ao BCAV 490 ? Vd. depoimento de Joaquim Ganhão, 1º cano da CCAV 489, que participou, tal como o Mário Dias, na batalha do Como > Post de 17 de Novembro 2005 > Guiné 63/74 - CCXXVI: Antologia (25): Depoimento sobre a batalha da Ilha do Como
(5) Lapso do autor, que queria dizer possivelmente Rio Grande de Buba ou Rio Cumbijã e não Rio Corubal... O que separa a Ilha de Bolama do Continente é o canal de Bolama ou Canal do Porto ... A Ilha do Como, por sua vez, é banhada a sul, pelo Oceano Atlântico, e a leste pelo Rio Cumbijã (Vd. carta geral da província; vd. carta de Catió e carta de Caiar).

quinta-feira, 30 de novembro de 2006

Guiné 63/74 - P1329: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (22): A memória de elefante do 126, o Queta Baldé

Lisboa > Há alguns anos atrás > O Beja Santos, ladeado pela esposa Cristina e uma amiga, toma chá com dois dos seus antigos homens do Pel Caç Nat 52. Ao longo destes anos todos, ele tem sabido cultivar e manter a sua forte ligação, histórica e afectiva, com as terras e as gentes do Cuor... É frequente encontrar-se com o Queta Baldé, que é segurança numa empresa, na zona centro de Lisboa. Ainda hoje os seus antigos homens procuram o nosso alfero (1), uns mais desinteressadamente, outros menos...


Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados



Texto recebido em 2 de Novembro de 2006. Continuação da publicação das memórias do Mário Beja Santos, como alferes miliciano e comandante do Pel Caç Nat 52 (Missirá e Bambadinca, 1968/70) (2).



Caro Luís, de surpresa em surpresa, vou desatando os cordões à memória. A vinda do 126 foi de grande importância. E ele ainda tem muito mais coisas para contar. Sinto-me constrangido, pois não tenho sugestões para ilustração. É a minha vez de esperar um milagre da tua parte, com o Rio Geba, o macaréu, o porto de Bambadinca. Não te esqueças que ainda tens do meu álbum de glórias aquelas meninas no "Fanado", na rua principal de Bambadinca. Obrigado pelo teu entusiasmo na colaboração que me tens dado. Momentos há em que eu ponho em dúvida que tudo isto aconteceu, no todo ou na parte. Mas temos muitas responsabilidades com os nossos mortos e feridos, doa a quem doer é melhor que se saiba agora tudo o que se passou, enquanto estamos vivos. Merecemos esta dignidade.

Um abraço do Mário.


Aqui, nesta casual distracção do destino
por Beja Santos


Chegou o momento de algumas confissões íntimas. Dou comigo a trocar datas, nomes, situações, conversas e eventos bélicos. Tomei a decisão de pedir auxílio, para não incorrer na suspeição de charlatanismo ou da aparência de um estado de vanglória associado a uma lembrança prodigiosa de todo o currículo da comissão. Lancei alguns gritos de auxílio e o primeiro que me chegou foi o Queta Baldé, que conheci com o nome 126.


Queta Baldé: ex-comando, exilado no Senegal, segurança em Lisboa

O Queta apareceu-me aqui há uns dias no trabalho pelas 8:30, vindo da sua noite como segurança numa empresa entre o Saldanha e o Marquês de Pombal. Conheci-o a arrastar os pés e não se tornou mais ligeiro com a idade. Às vezes, quando vem conversar aqui comigo lança-me um olhar que parece de um animal doído com os raspanetes do dono.

Ele tem algumas razões para mostrar um semblante marcado pelo sofrimento. Em 71, saiu do Pel Caç Nat 52 e alistou-se na 2ª Companhia de Comandos Africanos. Em 74, com a independência, fugiu de Cuntima para não ser baleado num daqueles delírios de ajuste de contas. Viveu sete anos no Senegal, lá conseguiu um visto, depois adquiriu nacionalidade portuguesa, trouxe filhos do primeiro casamento, voltou a casar e foi viver para Chelas J, numa autêntica alfurja. Mas não resistiu a ser útil a nosso alfero, que lhe pediu para retorcer os subterrâneos da memória.

Sentou-se, cruzou as pernas, ouviu a descrição do meu penar à volta de datas baralhadas, acontecimentos esvaídos, nomes perdidos. Sorriu e perguntou-me:
- Quer que eu comece por lhe dizer quem fazia parte do pelotão?


A composição do Pel Caç Nat 52


Tirou um papel e deu-me o nome de toda a gente. Nos furriéis, ele insistia no nome do Altino, esclareci-o que em Agosto de 68 só lá estavam o Saiegh e o Domingos Ferreira. Depois fomos para os cabos, as nossas listas coincidiam. A seguir, ao enunciar os soldados lembrou-me que o bazuqueiro conhecido por Campino se chamava Adulai Djaló e ficara gravemente ferido numa perna, o mesmo tendo acontecido a Sabidi Camará, Mamadu Camará e Samba Matei.

Eu já tinha esquecido Tomani Sanhá e Dembo Djassi. De repente, olhou-me e perguntou:
- O ferimento do Moli Baldé não lhe diz nada? - Ora o Moli Baldé tinha sido a primeira história quase milagrosa que eu tinha ouvido falar. Em 67, durante uma operação ao Buruntoni, uma bala teria passado de raspão num dos olhos de Moli, ele cegara e passar à disponibilidade. Achei aquela história uma fábula, algo de inacreditável, uma bala que raspa mas não mata. Como o dito Moli viva em Bambadinca e fazia comércio, pedi para mo apresentarem. O inacreditável é que uma bala passara junto de um olho e ele cegara mesmo. Nada de reparações de guerra (a legítima pensão), fora passado à disponibilidade. Ainda o levei à Secretaria do Batalhão, recordo-me que se abriu um processo e veio-se a descobrir... que o seu nome não constava da relação dos feridos no relatório da operação.



O jejum do Ramadão

Depois desta memória, o Queta Baldé continuou:
- Sabe o que é que aconteceu no dia em que chegou a Missirá? De manhã muito cedo, na fonte de Cancumba, quando fomos buscar água para os banhos, havia lá um grupo de gente de Belel, deu uns tiros por cima das nossas cabeças e deixaram na fonte um plástico cheio de papéis a convidar-nos a ir para o mato. Eu quero dizer a nosso alfero que quando me telefonou me lembrei logo de uma coisa que se passou no Ramadão, quando foi discutir com o padre que não podíamos fazer o jejum.


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Cuor > Missirá > Pel Caç Nat 52 > O Alf Mil Beja Santos, rodeado das autoridades civis e religiosas de Missirá, em dia de Ramadão. O velho régulo Malã Soncó está à sua esquerda.

Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados.


E prontamente iluminou-se-me o espírito. Com as idas diárias a Mato de Cão, e às mais desvairadas horas, comecei a notar gente combalida, ausente, mostrando sinais de desmaio iminente. E quando começaram mesmo os desmaios, chamei os cabos e pedi um esclarecimento que prontamente me foi dado: é o jejum do Ramadão.

Reuni o pelotão, pedi aos cabos para traduzirem textualmente em crioulo a mensagem de que não consentia continuar a vida operacional em tais condições e queria saber o que é que os soldados pretendiam fazer. Depois de alguma conversa em semi-privado, o Domingos Silva sentenciou:
- Não há solução, é a lei de Deus. Nosso alfero que vá falar com o padre.

E fui mesmo falar com Lânsana Soncó, padre e meu vizinho (3). Lânsana foi categórico:
- O jejum é para todos .- À beira de uma apoplexia, fui consultar o Corão. Logo descobri que entre as excepções ao jejum estava a guerra. Dada a explicação a Lânsana, este remeteu a decisão final para o régulo Malã Soncó. Li a passagem do Corão e disse-lhe:
- Régulo, tenho pouca tropa, com estas chuvas tenho cada vez mais gente doente, eu próprio me ando a arrastar, são os patrulhamentos a Mato de Cão, a Mato Madeira, as emboscadas nocturnas, até junto ao Gambiel. Não posso andar com gente esfomeada e a cair aos bocados. Se decidir que o jejum é para cumprir rigorosamente, diga-me já pois eu vou-me embora.

O régulo pediu-me para analisar a situação e no dia seguinte confirmou que toda a tropa estava informada que devia comer de manhã, à tarde e à noite.

Queta Baldé voltou a puxar do papel onde trazia as suas lembranças, deu uma gargalhada e perguntou-me com voz tonitruante:


O Alfero Reis, sapador, que parte mantenhas com gente de Madina/Belel (4)


- O nosso alfero lembra-se da primeira vinda do alfero Reis, o sapador, que queria armadilhar tudo à volta de Missirá?

Então, não havia eu de me lembrar? Eu pedira ao 2º Comandante, o Major Bispo, que a equipa de sapadores me ajudasse a armadilhar alguns pontos nevrálgicos em torno de Missirá. Concretamente, junto da fonte, no caminho entre Morocunda e o palmeiral em frente a Missirá e os caminhos que tinham servido de aproximação nas flagelações de 6 e 26 de Setembro. E um dia apareceu-me o Reis em Bambadinca dizendo-me que estava pronto para partir. Veio e avisou-me que tinha trabalho para duas semanas. Mostrei surpresa ao que ele respondeu:

- Ouve, tu não sabes nada do ofício. Primeiro, vou armadilhar tudo à volta do quartel. Mal para os turras, mal para os macacos, mal para quem se aproximar. Segundo, vou pôr cargas potentes em todos os acessos, com excepção das picadas para a fonte e o caminho para Canturé e Finete.

Entendi que o melhor era conversarmos em privado, expliquei-lhe serenamente que tinha dezenas de crianças, que a população civil cultivava os campos à volta, que não estava nos meus objectivos caucionar mais acidentes como o do Abudu Cassamá, a desditosa criança de Finete brutalmente afectada pela explosão de uma granada incendiária. Arrufado, o Reis exigiu armadilhar longe mas sem a minha presença. Aqui o Queta Baldé voltou a rir-se:

- O nosso alfero sabe o que é que o alferes Reis fazia? Levava folhas grandes e pregava nas árvores frases como Aqui esteve o Reis que vos manda cumprimentos, meus grandes paneleiros!.

O Reis colou-se-me à existência. Vai estar em Missirá no grande incêndio de Março e chegará a Bambadinca com roupa emprestada. Não perdeu a mania da perseguição, e de vez em quando vem aqui a toda a hora soprar-me ao ouvido maquinações atribuíveis a estranhíssimas ligações entre a direita e a esquerda...


O Zé Paz, o oficial mais punido da Guiné


A manhã vai alta quando o Queta recorda a história do soldado Fernandes e do alferes que apareceu sozinho em Missirá. Eu gostava de perguntar aqui no blogue se fazem ideia qual o oficial mais punido durante a guerra da Guiné. Não sabem? Pois foi o alferes José Manuel Paz, punido em todos os batalhões de infantaria, artilharia e cavalaria.

É verdade que um dia estava eu no palmeiral com os soldados a cortar madeira para os abrigos, quando me chegou o soldado Mamadu Silá a arfar:
- Meu alfero, chegou um alfero rupeu (europeu), vem sozinho e desarmado e perguntou por si. O que é que eu faço?.

Quem devia fazer alguma coisa era eu. Lá fui com o coração aos saltos e de facto era ele, o Zé Paz. Tínhamo-nos conhecido na infância, ele era filho da Sra Dona Arminda Paz, a chefe da contabilidade da Maternidade Dr. Alfredo da Costa. Sabia que eu estava também na Guiné, vinha punido não sei de que aquartelamento do Sul, assim que o informaram onde eu estava partiu sozinho. Em Finete, ainda o escoltaram até perto de Canturé mas ele enxotou a coluna de milícias, seguiu sozinho, entregue ao seu destino.

Como é que ele era punido? Ao que me disseram, era sacramental oferecer-se para jogar bridge, fosse qual fosse a linha que se formasse, o Zé Paz, logo que negociado o jogo, comentava, por exemplo:
- O meu Major é parvo. Abre com um ouro e tem jogo de um sem trunfo. Deve ser surdo, respondo com duas copas e fecha em três sem trunfo. Se não sabe jogar, ponha-se ali ao canto a fazer paciência com o baralho de cartas.

Inevitavelmente, cairão mais dez dias de prisão disciplinar agravada. Naquele dia, acolhi com imensa satisfação o Zé Paz e levei-o até Finete. Ficou muito pouco tempo em Bambadinca e não voltei a vê-lo durante a guerra. Apareceu-me, em Janeiro de 82, no velório da minha Mãe, e mesmo aqui envolveu-se à zaragata com um antigo oficial pára-quedista, o Jorge da Cunha Fernandes.

Nosso alfero tirou sossego a gente de Madina/Belel


Dou comigo a pensar que estamos a entrar num dos períodos mais duros, com os patrulhamentos a Chicri. No primeiro, morrerão civis, ao cair da noite. No segundo, irá acontecer o Presépio de Chicri, o meu maior sofrimento que não desejo a ninguém. Disse-me o Queta que toda a gente sabia que os de Madina/Belel cambavam o Geba junto de Malandim, e iam até Nhabijão Bulobate e Nhabijão Imbume e Bedinca. Com um ar muito sereno disse-me o Queta:
-Tinham uma canoa enterrada na lama. Trocavam comida e obtinham informações sobre o que se passava em Bambadinca. Nosso alfero tirou-lhes o sossego.


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Destacamento do Missirá > Pel Caç Nat 52 > 1972 > Na altura era comandante desta unidade o Alf Mil Joaquim Mexia Alves. Em 1971, alguns militares, como o Queta Baldé ou Mamadu Camará (3), que vinham do tempo do Beja Santos (1968/70), tinham-se alistado nos Comandos Africanos.

Foto: © Joaquim Mexia Alves (2006). Direitos reservados


Mesmo com toda esta dureza que se avizinha, eu tenho que vos contar como o Furriel Casanova cuidou do pequeno Braima Candé e o David Payne Pereira mandou a Bissau Braima Mané. Neste período oiço intensamente música barroca e romântica, com Bach e Telemanne, Grieg, Beethoven e Schumann à cabeça.

E tenho que vos dar as minhas impressões sobre o que representou, depois de ter lido Uma Abelha na Chuva, de Carlos de Oliveira, um monumento literário, O Delfim de José Cardoso Pires que ainda hoje guardo, escaqueirado pelas andanças do tempo. Eu estou a habituar-me a viver perigosamente mas ainda cheio do encanto adolescente pelas portas do mundo que se escancaram à minha passagem. Passo a contar, e mais tarde vou socorrer-me da memória dos outros. Até porque o Queta, que hoje veio aqui desinquietar lembranças estagnadas, prometeu voltar.

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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 4 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1149: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (15): Exmo Sr Alferes: Quero ir para Lisboa

(...) " Passou por aqui há dias o Queta Baldé, antigo soldado do Pel Caç Nat 52. É segurança nocturno numa empresa das redondezas, e de vez em quando vem partir mantenha. Trouxe-me uma carta datada de 1 de Janeiro, de Bissau, e assinada por Jobo Baldé. A fotografia dele já aqui apareceu, era o nosso padeiro a quem demos uma concessão de vender algumas fornadas de pão à população civil" (...).

(2) Vd. último post desta série > 22 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1304: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (21): A viagem triunfal do Pimbas a terras do Cuor

(3) Sobre o marabu ou padre de Missirá, vd. posts de:

11 Outubro 2006 > Guiné 63/74 - P1165: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (16): O meu baptismo de fogo

(...) "Estava na página 216 quando o primeiro rebentamento de canhão sem recuo veio cair nas traseiras do meu vizinho, o Padre Lánsana Soncó, com quem, dentro de dias, irei ter uma espinhosa discussão doutrinal acerca do Ramadão e da ira de Deus. Sentei-me tenso até que o estralejar das costureirinhas e o encadeamento de várias morteiradas me levou directamente para um abrigo onde, como em cinemascópio, as frestas central e laterais me permitiram ver alguma latitude da linha de fogo" (...)

14 de Setembro de 2006> Guiné 63/74 - P1070: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (10): A visita do soldado desconhecido

(...) Sentavam-se pois à mesa o oficial, os furrieis e as praças num total que variava entre seis e onze pessoas. Era neste espaço que de vez em quando eu convidava Lânsana Soncó, o marabu, para tomar chá e comer pão fresco feito por Jobo Baldé" (...)

(3) Vd. post de 13 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1068: O álbum das glórias (Beja Santos) (2): Misérias e grandezas de Mamadu Camará

(...) "Mamadu Camará: Era o 222, soldado indómito, de quem guardo a memória do seu companheirismo.

"Foi Furriel na 1º Companhia de Comandos Africana , perdeu um pé numa emboscada algures no Sul (creio que na mata do Fiofioli), veio para Portugal em 71 e cá vive. Foi o primeiro a dar muito trabalho antes da desconolização pois juntou-se a uma cabo-verdiana que tinha o morto o primeiro marido com um facalhão de talho e fez-lhe a vida mais negra do que ele era.

"Havia, salvo erro, 5 filhos fora do casamento, tive de andar pelas misericórdias a pedir ajuda, os míudos cresceram e hoje aparecerem-me já com filhos" (...).
(4) Região, a noroeste de Missirá, sob controlo do PAIGC, "região libertada", segundo a propaganda da guerrilha. As NT aventuravam-se a lá ir, uma vez por ano, na estação seca, em operações a nível de batalhão: foi o caso da Op Anda Cá (1969), e da Op Tigre Vadio (1970), já aqui evocadas no nosso blogue.