Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
segunda-feira, 9 de abril de 2007
Guiné 63/74 - P1649: II Encontro da nossa tertúlia: Pombal, Restaurante Manjar do Marquês, 28 de Abril de 2007 (Vitor Junqueira / Luís Graça)
1. Em 20 de Março de 2007, enviei a seguinte mensagem ao nosso camarada Vitor Junqueira:
Vitor: Como vai corpo de bó ? Escrevo-te só para te dar conta do seguinte: há malta da tertúlia a querer fazer um segundo encontro lá para a meados da primavera, antes da avalanche dos almoços-convívios das unidades (finais de Maio, Junho, Julho)...
O que é o homem grande de Pombal diz ? Há alguns condições para a gente se reunir aí na tua terra adoptiva (?), ponto ideal porque equidistante do norte e do sul, como tu mesmo sugeriste na Ameira ? (1)
O Carlos Marques dos Santos (estive com ele há dias em Coimbra) já se ofereceu para se encarregar das questões ditas administrativas e logísticas... Ele tem experiência destas coisas e dá boa conta do recado... Como é que está a tua vida ? Bom, diz-me alguma coisa... Temos que ter duas ou três alternativas, definir a agenda de trabalhos, etc.
Um grande abraço. Bjinhos para a tua filhota.
2. O Vitor, que em linguagem castrense não é nenhum... empata-fodas, respondeu-me logo, feio e grosso no mesmo dia, mostrando as suas qualidades de liderança, sem ter que puxar dos galões:
Amigos Luís e Carlos,
Corpinho di bó, jametum?
A nossa próxima reunião, a ser feita em Pombal conforme proposta minha tacitamente aceite no encontro da Ameira (1), poderá realizar-se em qualquer altura. A minha cidade tem condições de restauração e hotelaria para que as marcações se possam fazer de um dia para o outro.
Agradeço muito a disponibilidade do Carlos que com a experiência que já tem do encontro anterior, vai ser certamente um aliado de peso. Até porque, tenho de confessá-lo, não disponho no meu newsgroup dos endereços de todos os camaradas. Portanto, caro amigo Carlos Marques, se quiseres fazer o favor de avançar com uma data que te pareça consensual e propô-la à rapaziada para que se pronuncie, ficar-te-ia muito grato. Logo que tenhamos uma lista com o número aproximado de convivas, eu tratarei de negociar local e preços. A mesma coisa para as reservas de hotel, se as houver.
Entretanto devo estar a partir para a minha peregrinação anual. Desta vez tenciono ir até ao sul da Itália (Sicília), Grécia, Balcãs e Turquia. Se houver por aí alguém que queira alinhar, faça favor!
Tchau e até logo,
Vitor.
3. Em 26 de Março o Vitor mandou o seguinte e-mail ao Carlos Marques dos Santos com conhecimento editor do blogue:
Amigo Carlos,
Até agora ainda ninguém sugeriu qualquer data. Aliás, até agora ainda ninguém se pronunciou sobre o encontro. Excepto quanto a uma proposta alternativa [do Beja Santos] para que o mesmo se realizasse na zona de Figueiró dos Vinhos, e que eu só não aplaudo por me parecer que não teve grande eco. Portanto há que arregaçar as mangas e avançar.
Olhando para o calendário, temos o seguinte: Dia 7 de Junho é feriado, dia do Corpo de Deus, se não me engano. Calha a uma quinta-feira. Muito provavelmente haverá uma ponte no dia 8, sexta feira. A seguir vem, o fim de semana, que inclui mais um feriado, o do dia 10 de Junho. Proponho por isso que o nosso encontro se realize num dia a definir segundo o critério do interesse da maioria, entre sete e dez de Junho próximo.
Por favor malta, manifestem-se! Digam-me qual o dia que mais vos convém para que possamos dar início à fase das inscrições.
Aos amigos Carlos M. Santos ou Luís Graça, peço o favor de fazerem circular este e-mail pelos tertulianos.
Cordiais saudações do Vitor Junqueira
4. No dia 28 de Março, o Vitor perdeu a santa paciência e falou ainda mais feio e grosso do que das outras vezes:
Amigos Luís Graça e Carlos Marques Santos,
Após o apelo lançado à Tertúlia para que opinasse afim de se encontrar uma data consensual para a realização do nosso segundo encontro ...Quem se encontra em palpos de aranha sou eu! A maltosa, bem à portuguesa, vai deixando correr.
Honra ao P. Santiago, Mexia Alves e D. Guimarães que, conforme e-mails que já circularam pela tertúlia, disseram de sua justiça. Com base na opinião destes três camaradas, que naturalmente está longe de ser representativa, o intervalo que propus para o mês de Junho não parece sofrer grande contestação, salvo o pormenor de acerto para o caso do D. Guimarães. Mas como se vê e até ao momento, também não suscitou qualquer entusiasmo.
Será de recuperar a proposta do 28 de Abril, passá-la a definitiva e não se fala mais nisso? A vossa opinião (indeclinável), começa a urgir. Está tudo tão sereno! Ou haverá por aí algo de pessoal? O ímpeto dos encontros parece ter esmorecido após Ameira, porquê? Diferenças, mágoas escondidas, pedritas no sapato? Ora, camaradas, estamos velhos para isso, e além do mais essas porras fazem mal ao coração.
Querem a minha opinião? Pois queiram ou não, ela aí vai, e partindo de mim de mim sei que já não vão estranhar: Sapos vivos, daqueles verdes, viscosos e escorregadios, todos temos que engolir uns tantos. Quanto a isso não há volta a dar ao texto. Mas o mais importante, é ser capaz de os vomitar! Não permitir que nos provoquem indigestão crónica, amargos de boca ou sorrisos amarelos. E assim havemos de nos entender todos, de preferência de olhos nos olhos à volta da mesa do nosso próximo encontro. Para aconcretização desse objectivo, estou disponível para dar tudo, até o ... (não é isso chiça!), braço.
Fico à espera dos vossos comentários, sugestões e sobretudo, confirmação de presenças. Façam-no para o meu email > Vitor Junqueira
Telemóvel > 965517918
Abraços para todos.
5. Em 31 de Março de 2007, acabaram-se as desculpas, os alibis as moratórias, as hesitações... O Vitor foi peremptório: o nosso próximo encontro é em Pombal, no próximo dia 28 de Abril de 2007, sábado!!! Para a pequena história da nossa tertúlia, aqui fica a ordem de serviço:
Queridos camaradas,
Está decidido! Nem que chovam picaretas, no próximo dia 28 de Abril, vamos encontrar-nos. Estou certo de que iremos fruir de momentos inesquecíveis de especial camaradagem. Para isso torna-se necessário que cada um dos meus amigos se dê à maçada de preencher e devolver esta espécie de ficha que segue abaixo.
O nosso encontro irá decorrer no restaurante Manjar do Marquês, conhecido pela maioria como a antiga Shell. Vejam a sua localização através do diagrama anexo.
Proponho que comecemos a reunir por volta do meio dia, para que às 13.00 h toda a gente se encontre sentada à volta da mesa. Por favor, dêm-me a conhecer qual a vossa preferência quanto à ementa . Como TPC terão de imprimir, recortar e, se quiserem colar muma pequena cartolina o gráfico Portugal-Guiné. Depois é só pendurá-lo com a ajuda de um clip na botoeira do casaco ou na pestana do bolso da camisa. Para que possamos reconhecer-nos mútua e rapidamente.
Fico à vossa inteira disposição para quaisquer esclarecimentos que estejam ao meu alcance.
Ao Luís Graça, peço que faça correr os obrigatórios éditos no Blog.
Amistosos cumprimentos,
Vitor Junqueira
6. O editor do blogue, que andou desenfiado estes dias da Semana Santa & Aleluia, por terras do Norte (Porto, Marco de Canavezes, Braga, Amares, Terras do Bouro, etc....) causando alguma ansiedade na caserna, reaparece.... e só que tem que cumprir as ordens do nosso tenente general graduado Vitor Junqueira.
Lá estaremos em Pombal, no dia 28 de Abril, com a mesma alegria, entusiasmo e espírito de camaradagem com que estivemos na Ameira, o ano passado. Só espero que não deixem a vossa inscrição para o último dia, para não atrapalhar o pessoal da organização & logística... Já sei que há camaradas (e amigos) que não podem estar, por motivos de calendário. Outros há que já se inscreveram. Mas o grosso do pelotão ainda se manifestou a sua soberana vontade. Por favor não deixem o nosso tenente general graduado à beira de um ataque de nervos... De qualquer modo, não é caso para isso. A nossa guerra está ganha... L.G.
_____________
Nota de L.G.:
(1) Vd. post de 15 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1177: Encontro da Ameira: foi bonita a festa, pá... A próxima será no Pombal (Luís Graça)
sexta-feira, 6 de abril de 2007
Guiné 63/74 - P1648: Bibliografia de uma guerra (18): Uma obra de síntese, da autoria do Coronel Fernando Policarpo (Beja Santos)
Finalmente uma síntese da guerra colonial
por Beja Santos
Na colecção Batalhas de Portugal, editada pela Quidnovi ao longo de 2006, o volume sobre a Guiné 1963-1974 (1) deve merecer a nossa atenção, e passo a explicar porquê. O seu autor é o Coronel Fernando Policarpo que foi alferes de 1972 a 74, tendo ficado gravemente ferido em combate. Licenciado em História, foi co-fundador do Centro de Estudos de História Militar e é professor do Colégio Militar. A sua obra está centrada na divulgação dos principais episódios que levam à compreensão do nascimento do movimento independentista e as duas fases da resistência da forças armadas ao PAIGC (1963-1968; 1968-1974).
Ficamos com um quadro esquemático da História da Guiné Portuguesa, as lutas da pacificação e a emergência do sentimento anticolonialista e o respectivo contexto internacional. O Coronel Fernando Policarpo permite ao leitor não iniciado o enquadramento das realidades internacionais da descolonização entre os anos 50 e 60. Depois enumera as características físicas do território, o mosaico populacional, a economia dos transportes antes do início da luta armada. Para os mais desacautelados, lembra os grandes obstáculos que a Geografia oferece, desde os rios, aos pântanos, à vegetação, ao clima, os 99 por cento de analfabetos, a economia nas mãos da Casa Gouveia (CUF) e dos comerciantes sírios e libaneses. A natureza do movimento de libertação, a ideologização do PAIGC, a complexidade da luta deste movimento no âmbito da Guerra Fria, a diversidade de apoios entre a China e a União Soviética, entre a Guiné Conacri e o Senegal são expostas com rigor e acessibilidade.
Segue-se a exposição sobre a primeira fase do conflito, que se estendeu a praticamente todo o território, com a criação de santuários e bases em áreas dificilmente acessíveis. Com a desarticulação da organização social tradicional, de 1963 a 1965 a guerrilha consolidou posições e passou a seleccionar as áreas e os momentos da flagelação. O autor desvela a estratégia militar do PAIGC, o controlo do território, sobretudo a Sul e a incapacidade de o exército português fazer reverter os sucessos obtidos pelo PAIGC durante esta primeira fase do conflito.
É em 1968 que se aprofunda a superioridade da guerrilha e daí para adiante são desencadeados ataques aos povoados mais populosos ou nevrálgicos como Bafatá, Farim, Mansoa, Bolama e Bambadinca. Com a chegada do Brigadeiro António Spínola, estabelece-se uma nova orientação estratégica. Spínola encontra a Guiné numa fase progressiva de degradação, um PAIGC moralizado e interessado numa grande ofensiva militar na frente Leste. A sua estratégia de contenção para o PAIGC passa pelo reordenamento das populações, por operações ofensivas de limpeza, a formação de tropas especiais africanas, a criação de um espírito ofensivo para assaltar e destruir bases tidas como inexpugnáveis e o abandono de aquartelamentos tidos como inviáveis, caso de Madina de Boé, donde se retira em Fevereiro de 1969.
Só que o PAIGC tem uma estrutura inquebrantável e não cede. Spínola, lentamente, dá passos para uma solução política. Mas a 20 de Abril de 1970 os sonhos desmoronam-se com o massacre de três oficiais superiores e um alferes no chão manjaco num episódio que ainda hoje não está devidamente esclarecido (2). A operação Mar Verde, em fins de 1970 visa um golpe de estado da Guiné Conacri e no essencial resulta num fiasco, com a agravante de uma maior perda de credibilidade de Portugal.
Enquanto decorre o reordenamento da população e se promovem Congressos do Povo sob a égide de Uma Guiné Melhor e os efectivos militares são já de 50 mil europeus e africanos, o reequipamento do PAIGC, a sua pujança operacional manifestam-se a partir de Março de 1971. De falhanço em falhanço, Spínola mostra-se desapontado com a falta de solução política e em 1973 é substituído. A partir daí, o PAIGC que proclama a sua independência em Madina Boé vai-se assenhoreando do território e obtendo êxitos clamorosos nas frentes Norte e Leste. Um número apreciável de oficiais do Exército irão fazer parte do MFA, caso de Carlos Fabião, Ramalho Eanes, Firmino Miguel e Otelo Saraiva de Carvalho.
Este livro é também valioso pelo impressivo repertório fotográfico e textos complementares que envolvem personalidades como Alpoim Calvão, Marcelino da Mata ou Raúl Folques, mas também Amílcar Cabral, Nino Vieira, ou Rafael Barbosa.
Uma obra de síntese que os camaradas da Guiné podem em boa consciência pôr nas mãos dos familiares e amigos, tal a seriedade na narração dos facto, tal a chave explicativa para o desaire militar e apresentação dos principais protagonistas. Espera-se que depois desta síntese se possa evoluir para uma obra mais desenvolta, onde os indispensáveis subsídios que temos patrocinado neste blogue, testemunhos únicos que ainda podem substituir a documentação desaparecida, mereçam o devido tratamento histórico.
_____________
Nota de L.G.:
(1) Fernando Policarpo - Guerras de África: Guiné (1963/-1974). Matosinhos: QuidNovi. 2006. (Academia Portuguesa de História: Batalhas da História de Portugal, 21).
(2) Vd. posts de:
17 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1436: Dossiê O Massacre do Chão Manjaco (Afonso M.F.Sousa) (1): Perguntas e respostas
18 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1445: Dossiê O Massacre do Chão Manjaco (Afonso M.F.Sousa) (2): O papel da CCAÇ 2586 (Júlio Rocha)
19 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1446: Dossiê O Massacre do Chão Manjaco (Afonso M. F. Sousa) (3): O depoimento do 1º sargento da CCAÇ 2586, João Godinho
27 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1465: Dossiê O Massacre do Chão Manjaco (Afonso M.F. Sousa) (4): Os majores foram temerários e corajosos (João Tunes)
6 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1500: Dossiê O Massacre do Chão Manjaco (Afonso M.F. Sousa) (5): Homenagem ao Ten-Cor J. Pereira da Silva (Galegos, Penafiel)
8 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1503: Dossiê O Massacre do Chão Manjaco (Afonso M.F. Sousa) (6): Fotografia dos três majores (Sousa de Castro)
12 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1519: Dossiê O Massacre do Chão Manjaco (Afonso M.F. Sousa) (7): Extractos da entrevista de Ramalho Eanes ao 'Expresso'
25 de Fevereiro de 2007 >Guiné 63/74 - P1549: Dossiê O Massacre do Chão Manjaco (Afonso M.F. Sousa) (8): O contexto político-militar (Leopoldo Amado) - Parte I
6 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1566: Dossiê O Massacre do Chão Manjaco (Afonso M.F. Sousa) (9): O contexto político-militar (Leopoldo Amado) - Parte II
17 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1603: Dossiê O Massacre do Chão Manjaco (Afonso M.F. Sousa) (10): O contexto político-militar (Leopoldo Amado) - Parte III (Fim)
quinta-feira, 5 de abril de 2007
Guiné 63/74 - P1647: Estórias do Gabu (2): A Spinolândia (Tino Neves)
Camarada Luís
Vou contar uma pequena estória do nosso General Spínola. Das poucas visitas programadas que fez, houve uma,não programada, muito especial.
Um determinado dia, pousou na pista de Nova Lamego, uma DO, e quando o único soldado, que estava de guarda à pista, se apercebeu de quem se tratava, já o General Spínola e o seu guarda costas, um Capitão Paraquedista, estavam junto dele. Apalermado, correu logo para o telefone.
O General Spínola perguntou então ao soldado:
- O que é que vais fazer?
- Vou telefonar ao nosso Comandante, a dizer que o Sr. está aqui!
- Não, não vais ligar, não quero falar com ele, vim aqui falar contigo.
- Comigo???
- Sim, contigo!!!
Spínola falou com o soldado durante 30 minutos, e logo a DO levantou voo.
O soldado então depois disso, ligou então a dizer ao Comandante do Batalhão, o Sr. Tenente Coronel Fernando Carneiro de Magalhães, que tinha acabado de falar com o Sr. General Spínola durante 30 minutos.
O Comandante Magalhães, admirado, pergunta:
- Então e não me avisaste?
- O nosso General não deixou, disse que só queria falar comigo!
- Contigo???
- Sim, comigo!
- Então o que era que ele queria?
- Saber se eu gostava de estar aqui, se comia bem… assim essas coisas.
Conclusão, o General Spínola, da última vez, que tinha visitado Nova Lamego, em visita programada, tinha departado com um quartel que estava um primor, só faltava estar todo embandeirado com pequenas bandeiras de várias cores, e os militares a dançarem o Vira, o Fandango ou qualquer outra dança tradicional portuguesa, para mostrar que estávamos todos alegres e contentes, e satisfeitos por termos nascido.
E o nosso General sabia disso, quando as visitas são programadas. E nós também, tanto que nós dizíamos que não estávamos na Guiné, mas sim na... Spinolândia.
Um Abraço
Tino Neves
1º Cabo Escriturário
CCS/BCaç. 2893
Nova Lamego (Gabú)
1969/71
__________
Nota de L.G.:
(1) Vd. post de 3 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1146: Constantino Neves, ex-1º Cabo Escriturário da CCS do BCAÇ 2893 (Lamego, 1969/71).
Guiné 63/74 - P1646: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (11): Não foi a mesma Pátria que nos acolheu
Fonte: © Navios Mercantes Portugueses , página de Carlos Russo Belo (2006) (com a devida vénia...).
XI (e última) Parte das memórias de Joaquim Luís Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Os Palmeirins (Como, Cachil, Catió, 1964/66) (1).
2.16. REGRESSO A BISSAU
À cadência de uma grande operação de 15 em 15 dias, o tempo foi passando penosamente. Os olhos estavam cada vez mais presos ao final da comissão. Acima de tudo, havia que defender a pele… queimar o tempo da melhor forma e regressar inteiro de cada saída.
Uma ida a Bissau, por umas breves semanas, de vez em quando, por desgaste nervoso, não era difícil de conseguir, junto do castiço médico tripeiro.
O alferes Arlindo, cujo pelotão, logo de início, fora distribuido pelos restantes pelotões, como melhor forma de gerir a companhia, como sub-comandante, por si e oficiosamente, estava sempre disponível para suprir as nossas preciosas ausências.
São inesquecíveis aqueles descolares trepidantes na pandeireta desengonçada do Dornier do correio, a vencer, raivosa, a minúscula pista de terra barrenta e abaulada, ver a geometria das ruelas esquadrinhadas de Catió a afastarem-se, lá em baixo, as bolanhas verdes e imensas recortadas pelos braços tentaculares duma rede serpenteada de rios mansos e uma manta espectacular de matas densas, pejadas de turras no seu seio e de aparência tão calma, e chegar ao casario mais denso de Bissau, meia hora depois.
Três semanas de liberdade no bulício pitoresco de Bissau, com o vigor dos vinte anos, nas esplanadas dos cafés, onde a cerveja e os amendoins eram deliciosos, entrar nos fartos armazéns da CUF, recheados de tudo, com dinheiro no bolso, percorrer as tabancas negras, com os galões de alferes nos ombros, saborear, ao vivo, as vibrantes mornas e coladeras nas bamboleantes caboverdianas, naturais, passear ao longo do Geba, ressumante de vida, entrar ou assistir às missas africanas da catedral, davam para esquecer todas as angústias acumuladas no interior da guerra sangrenta.
Em finais de Junho de 66, a tão ansiada notícia da rendição da companhia chegou. Ninguém queria acreditar. Mais cedo do que o esperado…porquê, nunca se soube…
Sem regatear confortos, toda a companhia coube numa velha embarcação de madeira da carreira regular, à mistura com indígenas, mulheres, crianças, galinhas e toda a bicharia doméstica… a servir de escudo protector. Eficaz.
O regresso a Bissau foi muito mais saudado por toda a gente que, dois meses, após, iria ser a viagem no faustoso Uíge, transatlântico… para Lisboa, depois de todas as desparasitações, intestinas, da praxe.
Aqui, foi mais a sensação do acordar de um terrível e estéril pesadelo…
Mal sabíamos nós que outro iria começar. A Pátria, atenta e carinhosa que nos mandou p’ra guerra, não foi a mesma que nos acolheu…ingrata, como, com justeza, clama o certeiro e bem merecido
HINO AOS COMBATENTES DO ULTRAMAR
1
Corriam os anos sessenta.
Os clarins da guerra ressoaram, frementes,
Nos céus de Portugal, há muito,
Por artes do divino, do fado ou do destino,
Uma terra de paz, alegria e brandas gentes.
A cobiça de corsários, falsos,
Arautos de ideologias, vãs e malsãs,
Da igualdade e da fraternidade,
Servos do capital, cego e voraz,
Só do ouro, petróleo e diamante,
Da madeira, rica e do minério abundante,
Em filões,
Vestiu, de agna pele, e fez aliados,
Os eslavos cegos, os yanques e os saxões.
2
Avançar p'ràs terras da Índia, distantes,
E africanas, bem portuguesas.
Já e em força.
Foi o grito, presidente.
Imperativo, indiscutível, se tornou.
Defender as gentes e os haveres,
Muitos e imensos,
Até ao extremo,
Como glórias, lusas e sacras. Nossas.
Foi o lema, pronto e certo!
Queira ou se não queira,
A história do porvir, logo, aberto,
Bem claro, o demonstrou:
3
Aos sonhos do trabalho, da escola e da esperança,
Na flor d’aurora e no fulgor primeiro,
As gerações sucessivas, a gente jovem,
Pronta e digna, disse, adeus…
Vestiu farda e pegou armas, de guerreiro.
Fez-se aos mares, rasgou os ares,
Correu riscos…tantos… sofreu tormentos.
Só Deus o sabe…
Ofereceu tudo, a saúde e a vida, pela Paz!
Oh! Loucura e vã tristeza!… Para quê?!…
Tudo… em vão!
4
Com os ventos da discórdia,
em desvario e revolução
Não foi a mesma a pátria que os acolheu!
A que os mandou à guerra,
Cobarde e lesta, se despediu…
De tudo, aquela, hipócrita, se esqueceu.
Ou, bem pior, tudo… denegriu:
O sangue, o suor e as lágrimas,
Que Portugal, inteiro, verteu.
Ficou tudo letra morta…
5
Desfeitos os sonhos, a noite de bréu
Dos novos mundos, incertos,
Pós-revolução,
Toldou-lhes as vontades traídas
E, em pé de igualdade, abertos
Foram os caminhos da fortuna,
Da escola e do sucesso…
Como se nada fosse e nada houvesse,
Ou
Do zero, tudo começasse…
Oh!…Vil e imperdoável traição,
A desta pátria, secular…
Que tão ingrata se tornou
Para os guerreiros nobres do ultramar!?…
____________
Nota de L.G.:
(1) Vd. posts anteriores:
29 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1634: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (10): A morte do Alferes Mário Sasso no Cantanhez
11 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1582: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (9): O fascínio africano da terra e das gentes (fotos de Vitor Condeço)
8 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1502: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (8): Com Bacar Jaló, no Cantanhez, a apanhar com o fogo da Marinha
22 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1455: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (7): O Sr. Brandão, de Ganjolá, aliás, de Arouca, e a Sra. Sexta-Feira
8 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1411: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (6): Por fim, o capitão...definitivo
11 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1359: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (5): Baptismo de fogo a 12 km de Cufar
1 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1330: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (4): Bissau-Bolama-Como, dois dias de viagem em LDG
20 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1297: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (3): Do navio Timor ao Quartel de Santa Luzia
2 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1236: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (2): Do Alentejo à África: do meu tenente ao nosso cabo
20 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1194: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (1): Os canários, de caqui amarelo
quarta-feira, 4 de abril de 2007
Guiné 63/74 - P1645: Questões politicamente (in)correctas (29): O Capitão Diabo, Teixeira Pinto, e o seu tempo (A. Teixeira-Pinto)
Caro Colega Luís Graça:
Naturalmente que me dirigi logo ao endereço que teve a amabilidade de em enviar (2) e, como não poderia deixar de ser, deparei-me com a nota acerada do João Tunes sobre a questão monarquia-república e o aparente desfazamento das datas (1910 - 1912 - 1915).
Como monárquico que sou, não posso perdoar à república a forma como sempre olhou para o Ultramar (não sei se sabe que no tempo do Afonso Costa chegou-se a equacionar a venda de Angola para pagamento das dívidas). Vê-se depois (sem querer ir por aí) a forma como a 3ª república tratou o Ultramar, aviltando o esforço que tantos de nós fizemos na defesa daquelas terras.
Não me agarro a saudosismos nem a situações mais do que passadas, mas continuo a interrogar-me (e a indignar-me) sobre a irresponsabilidade absoluta com que tudo foi tratado, miserável e cobardemente à pressa. Com prejuízo, sobretudo, das populações cuja segurança e futuro estavam debaixo da nossa responsabilidade.
Macau, com uma população muito menos diversificada e com cerca de 2500 indivíduos europeus, levou 25 anos a ser descolonizada, formando-se comissões conjuntas, a todos os níveis, para estudar a transferência de poder para a China, um país com um cultura multimilenar e, concorde-se ou não com o actual regime, muito mais estável e organizada que qualquer grupelho armado ao serviço de interesses exteriores descarados mas complexos.
Nesses 25 anos a preocupação de Portugal com Macau cifrou-se na visita de 3 presidentes desta república (que me recuso a escrever com letra grande); o Ramalho Eanes (2 vezes), o Mário Soares( 2 vezes) e o Jorge Sampaio (2 vezes também). Preocupações excessivas (foi-se ao ponto de discutir com minúcia as leis) na devolução de uma pequena cidade à China (um país organizado) contrariamente à pressa de sair de África onde havia populações de origem europeia na casa das centenas de milhar e populações nativas na casa dos milhões (e em que muitas delas estiveram sempre do nosso lado, sendo por isso vítima fácil dos algozes a quem se entregou os territórios).
Foi assim na Guiné (onde por exemplo o Prof. Pinto Bull, uma voz moderada e não comprometida, nunca foi ouvida) (3), em Angola (onde havia muita gente alternativa aos guerrilheiros que praticamente não tinham expressão nem militar nem política), em Moçambique (onde havia também alternativas internas à Frelimo) e até na pacífica Timor onde se inventou um movimento revolucionário à pressa para reinvindicar a independência que a esmagadora maioria da poplulação não desejava.
Eu acho que o nosso esforço de combatentes foi desbaratado. Se defendemos numa primeira fase territórios que eram património Português ancestral, numa segunda fase o nosso esforço poderia ter sido reconhecido no encaminhamento para soluções honrosas em que os interesses das populações (sobretudo as indígenas, as mais indefesas) fossem salvaguardados.
Com as desculpas mais incríveis não quis assim a república. E o esforço de tantos, que inclusivamente ali deixaram o melhor que tinham, a Vida, foi desbaratado. Nem concorreu para uma solução digna. Por isso, (e ainda hoje!!!) me recuso a plebiscitar a república (que os republicanos nunca tiveram coragem de perguntar ao Povo se a queriam). E impuseram na Constituição o dogma da república, vedando ao Povo Português a livre escolha (o regime monárquico é rigorosamente proibido).
Desculpe-me o desabafo, esta já vai longe. Mas sem querer impor as minhas ideias a ninguém (respeito absolutamente os que se consideram republicanos, embora a maioria não saiba porquê), nem distorcer a História, mantenho para mim: naquele tempo, João Teixeira Pinto integrou o chão balanta na Coroa Portuguesa, que era o regime legal em Portugal (1). O outro, resultante do 5 de Outubro de 1910 ainda não tinha sido legitimado. E, em boa verdade, ainda não o foi. Nunca foi perguntado aos Portugueses se queriam o regime republicano. Convicções tolas, dirá, mas convicções que vão morrer comigo.
Uma pequena correcção, se me permite:
Nas notas que o estimado colega Luís Graça anexa ao respigo (muito bom) de Carlos Bessa diz a certa altura: Leia-se também o próprio Teixeira Pinto, em livro de memórias que eu não conheço > João Teixeira Pinto - A ocupação militar da Guiné. Lisboa: Agência Geral das Colónias. 1936.
O livro não é de memórias nem do próprio Teixeira Pinto, é apenas prefaciado pelo Capitão de Artilharia João Teixeira Pinto, filho do Capitão Diabo (que havia morrido em combate contra os alemães, em 1917, em Negomano no Norte de Moçambique). O livro não tem autor (foi ordenada a sua publicação à Divisão de Publicações e Biblioteca da Agência Geral das Colónias pelo respectivo Ministro) e apresenta os relatórios de campanha de João Teixeira Pinto contra o Oio, os Balantas, os Manjacos e os Papéis e os Grumetes de Bissau. Com a ajuda inestimável do Abdul Injai e do Mamadu Cissé, tão maltratados depois.
Um abraço amigo do Colega
A. Teixeira-Pinto
(uso o hífen, para tentar evitar que me chamem Sr. Pinto, o que abomino)
2. Comentário do editor do blogue: Alguns dos nossos camaradas reagiram, com alguma estranheza, a um anacronismo histórico, subjacente à afirmação de A. Teixeira-Pinto segundo a qual "o capitão Teixeira Pinto (na qualidade de chefe do Estado Maior da Guiné entre 1912 e 1915) (...) entrou [depois de conquistar o Oio] no chão dos Balantas e dominou-os, submetendo-os à Coroa Portuguesa" (sic).
João Tunes, por exemplo, fez a seguinte pergunta: "Porque o rigor também é uma forma de respeitar as nossas figuras históricas, se calhar a principal, gostaria que me esclarecessem como foi possível que o capitão Teixeira Pinto, tendo estado na Guiné entre 1912 e 1915, submeteu os Balantas à Coroa Portuguesa, se a República foi instaurada em Portugal em 1910?"...
Ficamos agora a saber que A. Teixeira-Pinto, como monárquico, não reconhece, ainda hoje, a legitimidade histórica da República (1910-1926). Como editor do blogue, limito-me a registar os diferentes pontos de vista sobre esta questão (algo bizantina, para mim, devo confessá-lo), mas também não estou interessado em alimentar qualquer polémica à sua volta. O nosso blogue não tem vocação para o debate político-ideológico. É um blogue de ex-combatentes que querem, sobretudo, partilhar entre si a sua experiência humana e militar na Guiné - basicamente entre 1963 e 1974.
Agradeço ao professor A. Teixeira-Pinto os elementos informativos que nos forneceu sobre o seu ilustre parente, o Capitão J. Teixeira Pinto (Angola, 1876 / Moçambique, 1917)(1), e que por certo contribuirá para despertar o interesse pelo aprofundamento do conhecimento sobre esta tão grande quanto mal conhecida (e quiçá mal amada) figura militar, ligada às campanhas de pacificação da Guiné, entre 1912 e 1915. Agradeço-lhe igualmente a correcção que me faz em relação ao livro de 1936, A ocupação militar da Guiné, que não é um livro de memórias, e que foi prefaciado pelo filho do herói do Oio, o Capitão de Artilharia João Teixeira Pinto.
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Notas de L.G.:
(1) Vd. post de 20 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1615: O Capitão Diabo, herói do Oio, João Teixeira Pinto (1876-1917) (A. Teixeira Pinto)
(2) Vd. posts de:
22 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1619: Questões politicamente (in)correctas (27): Teixeira Pinto, a Coroa e a República (João Tunes)
22 de Março de 2007 >Guiné 63/74 - P1621: Questões politicamente (in)correctas (28): Salazar, um dos últimos reis de Portugal (David Guimarães / João Tunes)
(3) Refere-se a Benjamim Pinto Bull (que morreu em Portugal em 2006) ou ao outro Pinto Bull, seu irmão, que foi deputado pela Guiné na Assembleia Nacional, e que morreu justamente na Guiné, em acidente de helicóptero, juntamente com o Pinto Leite, líder da ala liberal , em 25 de Julho de 1970, dois dias antes da morte de Salazar ?
Sobre Benjamim Pinto Bull, vd. artígo publicado no Diário de Notícias, de 5 de Janeiro de 2006, por ocasião da sua morte > O amigo de Senghor que a Guiné não aproveitou
Guiné 63/74 - P1644: A morte do 1º cabo José da Cruz Mamede, Pel Caç Nat 58 (4): Recordando o mítico Morés (Afonso M.F. Sousa / Carlos Fortunato)
Foto: © Carlos Fortunato (2007) (Reproduzida, com a devida vénia, da sua excelente página pessoal > Guiné - Os Leões Negros, CCAÇ 13, 1969/71).
Guiné > Bissorã / Mansoa > Duas fotos tiradas pelo ex-Furriel Miliciano da CCAÇ 13, Carlos Fortunato (1969/71), quando um dia passou por Braia-Infandre a escoltar uma coluna. O Carlso que esteve sobretudo em Bissorã, é uma apaixoanda pela terra e pelas gentes da Guiné-Bissau, que revisitou recentemente, em Novembro de 2006. Tenciona lá voltar em 2011.
Fotos: © Carlos Fortunato (2007). Direitos reservados.
1. Mensagem do Afonso M. F. Sousa (subtítulos da responsabilidade do editor do blogue):
Com que emoção recebo e leio esta excelente notícia! Há quanto tempo que eu e a irmã do meu conterrâneo José Mamede procuramos saber aonde e em que circunstâncias ele terá tombado em combate (1).
Com todas as entreajudas, boas-vontades, persistências e com esta ferramenta extraordinária que é a Internet, hoje chegámos ao objectivo pretendido.
Todas as peças do puzzle foram sendo sucessivamente montadas e o intuito foi atingido. Sempre pensei que depois de ter chegado à descoberta do local onde se deu a ocorrência fatídica (Infandre), mais tarde ou mais cedo chegaria à localização de alguém que nesse 12/10/70 a tenha acompanhado de perto ou mesmo integrado. Tinha essa esperança e hoje, dia 1 de Abril de 2007, isso, finalmente, concretizou-se, mesmo coincidindo com o dia das imaginações férteis. É assim que se faz a memória da Guerra Colonial e, em particular da Guiné. Com o contributo e empenhamento de todos (2).
Envolvo todos os meus amigos num abraço de sincero agradecimento e permitam-me que dê também conhecimento deste resultado final ao Senhor Director do Arquivo Histórico Militar do Exército - Sr. Tenente-Coronel Aniceto Henrique Afonso e agradecer-lhe a sua nota nº 691/2006, de 3 de Outubro de 2006 e a sua disponibilidade para uma continuação da investigação rumo ao objectivo que agora se atingiu.
Um obrigado também ao Carlos Fortunato pelos mails que comigo trocou há dias, pelas dicas que me deu e pela sua disponibilidade e empenho. A especulação que o Carlos Fortunato chegou a fazer apontava para a morte deste meu amigo e conterrâneo através de um ataque ou numa patrulha. E a verdade aí está: emboscada numa picagem e protecção a coluna, no itinerário Braia-Infandre (apenas 2 Km). E a sua percepção foi mais longe, quando me referiu: (desculpem a transcrição já que alguns dos amigos não tiveram acesso ao teor destes mails):
Mito e realidade do Morés
«Penso que a função deste aquartelamento, em Braia, era fundamentalmente defensiva, pois assegurava que a ponte não era destruída, e também dava proteccção à zona entre a ponte e Mansoa, pois o rio Braia dificultava a fuga aos guerrilheiro que actuassem nessa zona. Este sistema defensivo permitia que, entre Braia/Infandre e Bissorã, o PAIGC podia facilmente movimentar-se, pois não existia (naquela altura) mais nenhum quartel entre Braia/Infandre e Bissorã, e colocava Braia/Infandre na linha da frente. Infandre gozava do apoio das armas pesadas de Mansoa, e mais tarde também de Bissorã, e poderia ser socorrida por Mansoa, que ficava a pouca distância.
"Na estrada que seguia para Bissorã, depois de Infandre, tínhamos do lado direito da estrada, a uns 10 Kms, o Morés, onde estava o QG do PAIGC para a zona norte, era um dos seus santuários, e era considerado zona libertada; do lado esquerdo da estrada, tínhamos o Queré, nele existia um bigrupo, reforçado com uma unidade de artilharia (60 a 80 guerrilheiros).
"Na altura o que se pensava do Morés, era que existiam ali estacionados 900 guerrilheiros do PAIGC, nos quais se incluiam cubanos, possuindo armas pesadas (morteiros 82). A CCAÇ 13 foi lá uma vez, com 70 homens, e não ficou com saudades de lá voltar (Operação Jaguar descrita no site da CCAÇ 13 - Os Leões Negros). O que acontecia aos aquartelamentes estacionados naquela zona eram ataques pontuais do PAIGC, e confrontos durante as patrulhas ou operações que fazíamos.
"Poder-se-à dizer que existia um aquartelamento em Braia e outro em Infandre, não me lembro de tal (*), apenas me lembro de existir aquele. Especulando poderíamos imaginar que a tarefa do Pelotão de Caçadores Nativos 58 (1) seria a de assegurar a defesa da ponte e servir de tampão para a zona entre a ponte e Mansoa, pois face ao poderio inimigo na zona não tinha capacidade atacante, provavelmente faria patrulhas de proximidade, junto ao aquartelamento.
"Quando tiver oportunidade vou tentar reduzir um outro filme que fiz sobre Braia e envio-lhe por e-mail, o filme completo ocupa 356 MB, é demasiado grande para o conseguir enviar. As fotos foram tiradas na zona de Mansoa, mas já não me lembro se são do quartel que estava em Braia (eu penso que sim), ou se foram tiradas à entrada de Mansoa. Penso que o aquartelamento de Infandre ficava em Braia, quando se passava a ponte, era do lado direito.
"Quando estive em Braia (3), ainda havia algumas paredes de pé, mas à sua volta era um mato cerrado, que quase não dava para as visualizar. Junto envio-lhes 2 fotos tiradas por mim quando passei por Braia (Quartel de Infandre ?) a escoltar uma coluna. Na que tirei para a frente vê-se a ponte e o quartel à direita, e na que tirei para trás a bolanha e a enorme coluna de viaturas civis. O único problema, como lhe referi é que neste caso a minha memória não é clara, tenho a certeza absoluta que é na zona de Mansoa, mas já não tenho a certeza absoluta de ser Infandre, embora creia que sim, pois não me lembro de outro local ou aquartelamento assim. Talvez outros camaradas possam ajudar a confirmar o que descrevi (*).
"Em 2011 conto voltar à Guiné, e vou estar novamente nessa zona, caso não se consiga nenhuma informação até lá, talvez eu encontre alguém do Pelotão de Caçadores 58".
Houve festa na aldeia à minha chegada da Guiné
E já agora, permitam-se abusar da vossa paciência para lhes deixar esta confidência que, no fundo, justifica, de alguma forma, o meu interesse neste assunto e na sua clarificação quanto aos pontos que acima referi.
Era usual, na minha terra natal, a população homenagear todo aquele filho que regressava após o cumprimento do serviço militar no ultramar. A mim também me surpreenderam e, praticamente, exigiram-me esse acolhimento. Lá tive que fazer os 80 Km de distância que separavam a terra de residência, após o casamento [Ovar], e a terra de origem [Casal Comba, Mealhada] para ser recebido no centro cultural da aldeia e assistir, durante a noite, à exibição de uma banda musical, onde o povo manifestou a seu contentamento pela minha chegada da Guiné.
Para mim era tudo muito exagerado, mas a espontaneidade e pureza deste povo simples não me permitiu dizer não. Eu fui o último militar a quem, na minha terra, fizeram este tipo de manifestação de júbilo. Cinco meses depois da minha chegada, aquela aldeia estava a viver um momento de grande tristeza. O José da Cruz Mamede (1º cabo) chegava da Guiné mas jamais para voltar ao convívio dos vivos. Como alguém disse, a implacável lei da vida tornou-lhe o caminho mais curto. E quanto o Zé era estimado por aquelas gentes. No ultramar, tinha morrido o 1º militar oriundo daquela terra. Foi o fatídico 12 de Outubro de 1970, algures, num qualquer sítio da Guiné. Hoje fiquei a saber aonde e em que circunstâncias.
Afonso Sousa
PS - Mando em anexo as 2 magníficas fotos da autoria do Carlos Fortunato. É pena que ainda não possamos ver (com total definição) a zona Infandre-Mansoa, através do Google Earth. Talvez só dentro de um ano.
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Nota do Carlos Fortunato:
(*) O César Dias poderá confirmar ?
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Notas de L.G.:
(1) Vd. posts de:
3 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1641: A morte do 1º Cabo José da Cruz Mamede, do Pel Caç Nat 58 (1): Onde e em que circunstâncias ? (Afonso M. F. Sousa)
3 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1642: A morte do 1º Cabo José da Cruz Mamede, Pel Caç Nat 58 (2) : Em Infandre, a 13 km de Mansoa (Afonso M. F. Sousa)
3 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1643: A morte do 1º cabo José da Cruz Mamede, do Pel Cacç Nat 58 (3): 10 mortos em emboscada com luta corpo a corpo (César Dias)
(2) É de registar o mail que o Joaquim Mexia Alves mandou, em tempo oportuno (20 de Março de 2007) ao Afonso, e que passo a transcrever:
Caro Afonso Sousa: Tenho pena mas não te posso ajudar no que me pedes.
Fui para Mansoa em meados de 1973 (Julho ou Agosto), para a CCAÇ 15 e, por falta de Capitão, mal cheguei, e porque era o mais velho, passei a comandar a Companhia. Estive lá até Dezembro de 1973, tendo regressado à Metrópole.
Não me recordo, sinceramente, de ter ouvido falar no Pel Caç Nat 58. Aliás aquela zona, por força das colunas para Norte, o Morés, etc., falava-se apenas da situação do momento [e não do passado].
Espero que consigas saber o que procuras. Lembro-me que no meu tempo a CCAÇ 13 13 era comandada pelo Oliveira, Cap Miliciano, que tinha o Curso de Rangers. Talvez pela Associação de Operações Especiais, em Lamego, consigas localizá-lo e fazer-lhe as perguntas que desejas.
Abraço amigo do Joaquim Mexia Alves
(3) Vd. post de 17 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1533: De regresso a Bissorã: Uma viagem fantástica (Carlos Fortunato)
terça-feira, 3 de abril de 2007
Guiné 63/74 - P1643: A morte do 1º cabo José da Cruz Mamede, do Pel Cacç Nat 58 (3): 10 mortos em emboscada com luta corpo a corpo (César Dias)
Olá, companheiros de bala:
É verdade, o Pel Caç Nat 58, juntamente com a CCAÇ 2589, defendia o itinerário Mansoa - Infandre – Namedão (segurança e picagem para passagem de colunas para Bissorã e Olossato), itinerário esse que fazia parte do sector de Mansoa onde estava sediado o meu BCAÇ 2885 (1).
Sobre o Alferes Miliciano que comandava o Pel Caç Nat 58 (2), era desde Junho de 1970 o Alf Mil At, nº 16831968, Eduardo Ribeiro Manuel Cardoso Guerra que tinha vindo da CCAÇ 2679 para substituir o Alf Mil nº 04140867 [...] que terminara a comissão em 30 de Abril de 1970. Em 7 de Janeiro de 1971 o Alf Mil Eduardo Guerra foi evacuado para a metrópole, não sei se por doença ou se por ferimento em combate.
Quanto ao malogrado 1º Cabo José da Cruz Mamede (2), nº 17762169, veio do RI 3, tendo desembarcado em Bissau a 21 de Novembro de 1969 para substituir o 1º Cabo Joaquim da Silva Magalhães, nº 01779368, que havia falecido em combate em 30 de Agosto de 1969.
Amigos e camaradas: 12 de Outubro de 1970 é uma data que recordo com tristeza. Como muitas outras, era mais uma coluna a passar naquele itinerário (Braia-Infandre), mas daquela vez havia à volta duma centena de guerrilheiros, emboscados com morteiros, lança granadas-foguete (RPG) e armas automáticas.
Chegaram mesmo a lutar corpo a corpo. Sofremos 10 mortos (entre os quais, do Pel Caç Nat 58, o 1º cabo José Mamede , o 1º cabo Joaquim Baná, e os soldados Cumba, Seidi, Mundi e Baldé; da CCAÇ 2589 o meu amigo Furriel Miliciano de Op Esp Dinis Castro, e os soldados Joaquim João Silva, Joaquim Manuel Silva e Duarte Ribeiro Gualdino, a quem presto sentida homenagem). Tivemos ainda 9 feridos graves, 8 feridos ligeiros e um soldado capturado.
Recorri aos documentos que guardo com muito carinho, e mais uma vez fiquei emocionado. Espero ter ajudado
Um abraço para todos
César Dias
Ex Furriel Miliciano do BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71)
PS - Ao Luís Graça, mais uma vez o nosso obrigado por tornar possível situações destas. Bem Hajas !
2. Informação complementar do Benjamim Durães (ex-furriel miliciano do Pel Rec, CCS do BART 2917, Bambadinca, 1970/72) (3):
Pela informação do tertuliano César Dias, ex-furriel miliciano do BCAÇ 2885, averiguei quais os nomes completos dos nossos ex-camaradas (dez) que nesse dia 12 de Outubro de 1970 morreram, e que passo a indicar:
Furriel Miliciano Dinis César Castro;
1º Cabo José Cruz Mamede;
1º Cabo Joaquim Banam;
Soldado Duarte Ribeiro Gualdino;
Soldado Joaquim João Silva;
Soldado Joaquim Manuel Silva;
Soldado Gilberto Mamadu Baldé;
Soldado Idrissa Seidi;
Soldado Tangina Muté;
Soldado Betaquete Cumbá.
Força, Afonso, é assim que não nos esquecemos dos nossos mortos de guerra. Recordá-los é honrar as suas memórias. Ao César o meu muito obrigado por teres contribuído para um melhor esclarecimento da morte do Mamede. O blogue e a tertúlia do Luís Graça & Camaradas da Guiné existem para isso mesmo.
Benjamim Durães
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Notas de L.G.:
(1) Vd. post de 1 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1557: No regresso éramos menos 32 (César Dias, CCS do BCAÇ 2885, Mansoa, 1969/71)
(2) Vd. posts de:
3 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1641: A morte do 1º Cabo José da Cruz Mamede, do Pel Caç Nat 58 (1): Onde e em que circunstâncias ? (Afonso M. F. Sousa)
3 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1642: A morte do 1º Cabo José da Cruz Mamede, Pel Caç Nat 58 (2) : Em Infandre, a 13 km de Mansoa (Afonso M. F. Sousa)
(3) Vd. post de 21 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1618: Tertúlia: Benjamim Durães, ex-furriel mil da CCS do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72)
Guiné 63/74 - P1642: A morte do 1º Cabo José da Cruz Mamede, Pel Caç Nat 58 (2) : Em Infandre, a 13 km de Mansoa (Afonso M. F. Sousa)
Olá, caro amigo Benjamim !
Com que satisfação recebi este seu mail, dando-me indicações sobre o trajecto do Pelotão de Caçadores nº 58 (1). Este é um assunto que me vem interessando há já algum tempo. Efectivamente, persisto em tentar descobrir o aonde, quando e em que circunstâncias terá caído mortalmente um amigo e conterrâneo meu, na Guiné (em 12/10/1970). É um objectivo que eu e uma irmã dele perseguimos com todo o entusiasmo.
Diligências nesse sentido já fiz muitas, mas não tinha ainda obtido quaisquer resultados práticos. Talvez que, agora, com a sua prestimosa informação, se possa avançar na procura do alferes ou furriel que em 12 de Outubro de 1970 comandava o Pel Caç Nat 58, em Infandre (a 13 Km de Mansoa, a 45 Km de Bambadinca e a 50 Km de Bissau).
Um deles poder-me-ia informar o sítio exacto da sua morte e em que circunstâncias. Vamos ver se consigo chegar a este desiderato.
Sei que a CCAÇ 13 fez patrulhamentos nesta zona, a partir de 7 de Março de 1971.Quem sabe se algum dos seus elementos conhecia o nome do alferes, comandante daquele pelotão, em Outubro de 70, ou algum outro dos seus elementos brancos. Sei que o Carlos Fortunato pertenceu à CCAÇ 13 e, eventualmente, talvez me possa dizer algo sobre isto. Por isso tomo a ousadia de lhe enviar, também, cópia deste mail, agradecendo-lhe, desde já, a sua eventual ajuda. E, se calhar, atrevo-me a pedir igual favor a outros nossos amigos que estiveram em terras de Mansoa, como o Paulo Lage Raposo, o José Afonso ou o Joaquim Mexia Alves, aos quais, antecipidamente peço
desculpa do meu atrevimento.
Um grandes abraço para todos.
Afonso M. F. Sousa
2. O Benjamim Durães, em mail de 1 de Abril de 2007, sugeriu ao Afonso para contactar o César Vieira Dias (2), membro recente da nossa tertúlia:
(...) "Aqui volto a dar-te mais algumas dicas quanto ao Pel Caç Nat 58 que esteve em Infandre.
"Salvo melhor opinião, penso que o Pel Caç Nat 58, em Outubro de 1970 (mês em que morreu o teu amigo, 1º Cabo José da Cruz Mamede) estava sob o comando da CCS do BCAÇ 2885, de que fazia parte o Furriel Miliciano César Dias, membro da nossa tertúlia. Talvez ele possa dar mais alguma informação" (...).
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Notas de L. G.:
(1) Vd. post de 3 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1641: A morte do 1º Cabo José da Cruz Mamede, do Pel Caç Nat 58 (1): Onde e em que circunstâncias ? (Afonso M. F. Sousa)
(2) Vd. post de 1 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1557: No regresso éramos menos 32 (César Dias, CCS do BCAÇ 2885, Mansoa, 1969/71)
Guiné 63/74 - P1641: A morte do 1º Cabo José da Cruz Mamede, do Pel Caç Nat 58 (1): Onde e em que circunstâncias ? (Afonso M. F. Sousa)
Exmo. Senhor Director do Arquivo Histórico Militar do Exército (Sr. Tenente-Coronel Aniceto Henrique Afonso)
Na qualidade de ex-combatente do exército português no ex-território ultramarino da Guiné (Agosto 1968-Maio 1970), venho junto de V. Exa. na tentativa de recolha da seguinte informação:
Um conterrâneo meu, o José da Cruz Mamede (1º cabo), jamais chegaria da Guiné para voltar ao convívio dos vivos. Como alguém disse, a implacável lei da vida tornou-lhe o caminho mais curto. E quanto o Zezito era estimado pelas gentes da sua terra! No ultramar, tinha morrido o 1º militar oriundo daquela povoação. Foi o fatídico 12 de Outubro de 1970, algures, num qualquer sítio da Guiné. Ultimamente tenho querido saber onde isso terá acontecido e é isso que me leva a dirigir-me a V. Excia.
Ele foi mobilizado pelo RI3 e pertenceu ao Pelotão de Caçadores Nativos 58. A ajuda que lhe pedia era esta: se consta desse arquivo histórico os locais onde esteve e, sobretudo, o local onde faleceu, em combate.
Dados de identificação:
Nome: José da Cruz Mamede > 1º Cabo Exe - Guiné
Unidade de Mobilização: RI 3
Unidade no TO da Guiné: Pel Caç 58
Naturalidade: Casal Comba – Mealhada
Data da morte em combate: 12-10-1970
2. A resposta do Arquivo Histórico Militar veio a seguir, sob a forma da Nota nº 691/2006, de 3 de Outubro de 2006, informando o local em que o ex-1º cabo Mamede tinha sido morto em combate: Infandre (Mansoa).
3. Vários camaradas e amigos, deram informações ou pistas ao Afonso relacionadas com este caso e com o Pel Caç Nat 58. É justo referir aqui os seguintes:
Paulo Reis > 10 de Novembro de 2006:
(...) Gostaria de poder ajudá-lo com algo de mais concreto, mas as poucas pesquisas que fiz, até agora, têm-se concentrado nas companhias de comandos. O acesso aos arquivos do CTIG é livre, podendo ser consultados por qualquer pessoa que se drija ao arquivo histórico-militar, que abre das 11h00 da manhã até às 19h00, julgo eu.Só retomarei as minhas pesquisas lá a partir de Novembro. O que posso fazer é perguntar, nessa altura, que material lá há sobre a unidade que me referiu e tentar obter os dados de que necessita (...).
Eduardo Magalhães Ribeiro (o nosso pira de Mansoa) > 10 de Setembro de 2006:
(...) Aconselho aos que gostam de exactidão, a adquirir 2 livros, não muito caros, nos Museus Militares de Lisboa e Porto (...). Já aqui atrasado, reparei que alguém disse que desconhecia que na Guiné houvesse GEs - Grupos Especiais. Pois bem, segundo estes livros, da autoria do Estado Maior de Exército,em 1973 haviam 13 Grupos Especiais de Milícias, que aumentatram para 35 em 1974.
Têm todas as informações úteis sobre batalhões, companhias, mapas, esquemas, etc. (...)
Benjamim Durães > 18 de Março de 2007:
(...) Com um grande abraço de um ex-combatente na Guiné, aqui vos forneço o solicitado, e em anexo segue o guião do Pelotão de Caçadores 58 [que não chegou ao editor do blogue].
De acordo com o vosso pedido, de Setembro de 2005, (pois só agora fui ao site em causa (Kimbas do Olossato)[página da CCAV 3378,Olossato, 1971/73] passo a indicar quando foi formado o Pelotão, e as localidades onde estiveram.
O Pelotão de Caçadores [Nativos] nº 58 foi uma unidade formada na Guiné (CTIG). Iniciou, em Bissau, as suas funções em Abril de 1967. Em Junho de 1967 foi transferido para o Cacheu. Em Agosto de 1967, foi para Teixeira Pinto. Um ano depois (Ago-1968) voltou ao Cacheu. Em Abril de 1969, foi para Canjambari. Em Novembro de 1969, foi colocado em Infandre [Mansoa], onde permaneceu, para além do 25 de Abril de 1974 (...)
segunda-feira, 2 de abril de 2007
Guiné 63/74 - P1640: A africanização da guerra (A. Marques Lopes)
m Bedanda, durante 13 meses, sob o comando do capitão de cavalaria Ayala Botto. Um grande comandante,um verdadeiro oficial de cavalaria... que nos derretia com mimos: ovos liofilizados e outras delícias, que vinham de Lisboa, de uma fábrica da família... Estive primeiro em Cacine, que era deslumbrante... Percorri todo o sul, acabando em Bolama, depois de passar por Bedanda, Gadamael, Guileje, Tite...A CÇAÇ 6 tinha fulas e um pelotão de balantas... Em Bedanda, os tipos do PAIGC apareciam nas minhas consultas, nas calmas, disfarçados com a população... Bedanda, no tempo das chuvas, era inacessível por terra, transformava-se numa ilha. Ficava entre dois rios, o Cumbijã, a oeste e o seu afluente, o Ungauriul, a leste e a norte... Era abastecia pelos fuzileiros e pela força aérea... Em 2005 falei com o Nino sobre os ataques a Bedanda, quando ele era o comandante da região sul... Havia malta na tabanca que lhe fazia sinais de luz (com uma lanterna) para orientação do tiro... À terceira, eles acertavam todas... Os melhores abrigos, à prova do 120, eram os de Guileje... Mas o Spínola proibiu a construção de mais bunkers, queria que o pessoal fosse todo para as valas... Foram tempos muitos duros, tive uma actividade como médico... e eu próprio cheguei a desejar secretamente ser ferido para poder ser evacuado dali"...
Foto: © Amaral Bernardo (2007). Direitos reservados.
1. Amigos e camaradas: Estou no Porto e não tenho acesso aos ficheiros que alimentam o blogue(e-mails, imagens, textos...). Tenho, no entanto, diversos posts pendentes. Entre eles, material que o A. Marques Lopes tem vindo a compilar sobre as NT, as nossas baixas, etc., no TO da Guiné. Parte deste material já circulou pela tertúlia, mas ainda não foi divulgada através do blogue.
Mesmo sem a competente explicação do autor, acho útil para já divulgar a lista de unidades formadas na Guiné, com pessoal africano, ao longo dos anos. Algumas são mesmo anteriores ao começo oficial da guerra, como foi o caso das 1ª, 3ª e 4ª CCAÇ. Todas tinham quadros de origem metropolitana, com excepção das companhias de comandos, fundadas em 1969 (a 1ª CCmds Afr) e 1971 (as 2ª e 3ª CCmds Afr).
Vários dos membros da nossa tertúlia pertenceram a este tipo de unidades (como é o caso do próprio A. Marques Lopes, que esteve na CCAÇ 3). Acabo agora mesmo de sair do Hospital de Santo António onde fui expressamente conhecer, em pessoa, o nosso camarada Amaral Bernardo que me contou estórias emocionadas e emocionantes do sul da Guiné, da época de 1970/72, quando ele lá esteve como Alferes Miliciano Médico: de Bedanda (onde passou 13 meses, com o pessoal da CCAÇ 6, comandada na altura por um grande oficial de cavalaria, o Carlod Ayala Botto), de Gadamael, de Guileje, de Tite, de Bolama... Tenho que falar desde encontro noutra ocasião, com mais tempo e vagar... O Amaral Bernardo, que viveu em Angola dos 6 aos 18 anos, é um apaixonado da Guiné. E, mais do que isso, como cooperante (em vários projectos ligados à saúde e à formação médica), um grande amigo da Guiné, a par do Paulo Santiago.
O nome de Spínola está associado à criação da chamada nova força africana. É desse tempo, por exemplo, a criação da CCAÇ 12, a que eu pertenci, eu e vários outros camaradas (o Reis, o Levezinho, o Fernandes, o Sousa, o Martins, o Abel Rodrigues, o Gabriel Gonçaves, o António Duarte...) cuja presença neste blogue muito me honra e nos enriquece a todos. (LG)
Unidade / Formação / Extinção / Composição
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Unidade > 1ª CCAÇ
Formação > 01.01.61 (anterior a)
Extinção > 01.04.67 (passou a chamar-se CCAÇ 3)
Composição > Quadros metropolitanos e praças do
recrutamento local
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3ª CCAÇ / 01.08.61 / 01.04.67 (passou a chamar-se
CCAÇ 5) / Quadros metropolitanos e praças do
recrutamento local
__________________________________________________
4ª CCAÇ / 01.01.61 (anterior a) / 01.04.67 (passou
a chamar-se CCAÇ 6) / Quadros metropolitanos e
praças do recrutamento local
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CCAÇ 3 / 01.04.67 (por alteração da designação da
1ª CCAÇ) / 31.08.74 / Quadros metropolitanos e
praças do recrutamento local (1)
___________________________________________________
CCAÇ 5 / 01.04.67 (por alteração da designação da
3.ª CCAÇ) / 20.08.74 / Quadros metropolitanos e
praças do recrutamento local (2)
___________________________________________________
CCAÇ 6 / 01.04.67 (por alteração da designação da
4.ª CCAÇ) / 20.08.74 / Quadros metropolitanos e
praças do recrutamento local (3)
___________________________________________________
CCAÇ 11 / 20.06.72 (por alteração da designação
da CART11) / 23.08.74 / Quadros metropolitanos e
pessoal natural da Guiné, de etnia fula (a CART 11
foi formada a 18.01.70 por alteração da designação
da CART 2479, composta por quadros metropolitanos
e pessoal da Guiné de etnia fula) (4)
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CCAÇ 12 / 08.06.70 (por alteração da designação da
CCAÇ 2590) / 18.08.74 / Quadros metropolitanos e
pessoal natural da Guiné, de etnia fula (5)
__________________________________________________
CCAÇ 13 / 18.01.70 (por alteração da designação da
CCAÇ 2591) / 20.08.74 / Quadros metropolitanos e
pessoal natural da Guiné, de etnia balanta (6)
___________________________________________________
CCAÇ 14 / 18.01.70 (por alteração da designação da
CCAÇ 2592) / 02.09.74 / Quadros metropolitanos e
pessoal natural da Guiné, das etnias mandinga e
manjaca e um pelotão de etnia felupe
___________________________________________________
CCAÇ 15 / 29.01.70 / Finais de Jul 74
Quadros metropolitanos e pessoal natural da Guiné,
de etnia balanta, sendo inicialmente designada por
CCAÇ Balanta, e CCAÇ15 a partir de 28 Fev 70
____________________________________________________
CCAÇ 16 / 04.02.70 / 31.08.74
Quadros metropolitanos e pessoal natural da Guiné,
de etnia manjaca
_____________________________________________________
CCAÇ 17 / Princípios de Maio de 1970 / Princípios de
Ago 74 / Quadros metropolitanos e pessoal natural
da Guiné, de etnia balanta, predominantemente já
integrante das milícias
_____________________________________________________
CCAÇ 18 / 01.12.70 / 8.08.74
Quadros metropolitanos e pessoal natural da Guiné,
predominantemente de etnia fula e na sua maioria
já integrante das milícias
______________________________________________________
CCAÇ 19 / 01.12.71 / Princípios de Ago 74
Quadros metropolitanos e pessoal natural da Guiné,
predominantemente de etnia mandinga e na sua maioria
já integrante das milícias
_______________________________________________________
CCAÇ 20 / 05.06.73 / Princípios de Ago 74 /
Quadros metropolitanos e pessoal natural da Guiné,
de várias etnias
_______________________________________________________
CCAÇ 21 / 05.06.73 / 18.08.74
Quadros metropolitanos e pessoal natural da Guiné,
de etnia fula, predominantemente já integrante das
milícias
_________________________________________________________
Comandos africanos
Unidades / Formação / Extinção / Composição
_________________________________________________________
1.ª CCmds Afr / 09.07.69 / 07.09.74
Exclusivamente pessoal natural da Guiné
_________________________________________________________
2.ª CCmds Afr / 15.04.71 / 02.09.74
Exclusivamente pessoal natural da Guiné
_________________________________________________________
3.ª CCmds Afr / 14.04.72 / 07.09.74
Exclusivamente pessoal natural da Guiné
_________________________________________________________
Notas de L.G.:
(1) O A. Marques Lopes foi Alf Mil da CCAÇ 3 (Barro, 1968). Tem diversas estórias desse tempo publicadas no nosso blogue.
(2) À CCÇ 5 - Gatos Pretos - pertenceram os nossos camaradas e membros da nossa tertúlia José Martins e João Carvalho (Canjadude, 1968/70 e 1973/74, respectivamente). O Martins era furriel mil de transmissões e o Carvalho furriel miliciano enfermeiro. Vd. por exemplo os posts de:
4 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCV: A última noite em Canjadude (CCAÇ 5) (João Carvalho)
4 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCIV: Os últimos dias de Canjadude (fotos de João Carvalho)
23 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXXIV: O nosso fotógrafo em Canjadude (CCAÇ 5, 1973/74)
(3) À CCAÇ 6 (Bedanda) pertenceram, em diferentes épocas, os noaaoa camaradas Hugo Moura Ferreira (1966/68), Carlos Ayala Botto (1970/72), Amaral Bernardo (1970/72) e Mário Bravo (1971/72), estes dois últimos médicos (Porto). Vd. posts de:
22 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXCV: CCAÇ 16121 (Cufar); CCAÇ 6 (Bedanda) (1966/68) (Hugo Moura Ferreira)
23 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1457: Tertúlia: Apresenta-se o Alf Mil Médico Mário Bravo, CCAÇ 6, Bedanda (1971/72)
2 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1489: Tertúlia: Formalizo o meu pedido de entrada (Amaral Bernardo, ex-Alf Mil Médico, Catió, BCAÇ 2930)
(4) A CCAÇ 11 (recruta, instrução de especialidade e IAO) foi formada em Contuboel. Sobre esta unidadem formada a partir da CART 11/CART 2479, há já diversos posts:
23 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P899: Diga se me ouve, escuto! (Renato Monteiro)
23 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P898: Saudades do meu amigo Renato Monteiro (CART 2479/CART 11, Contuboel, Maio/Junho de 1969)
28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1001: Estórias de Contuboel (i): recepção dos instruendos (Renato Monteiro, CART 2479 / CART 11, 1969)
30 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1005: Estórias de Contuboel (ii): segundo pelotão (Renato Monteiro, CART 2479 / CART 11, 1969)
1 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1015: CART 2479, CART 11 e CCAÇ 11 (Zona Leste, Gabu, subsector de Paunca)
2 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1017: Estórias de Contuboel (iii): Paraíso, roncos e anjinhos (Renato Monteiro, CART 2479 / CART 11, 1969)
4 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1026: Estórias de Contuboel (iv): Idades sem lembrança (Renato Monteiro, CART 2479 / CART 11, 1969)
4 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1027: Estórias de Contuboel (V): Bajudas ou a imitação do paraíso celestial (Renato Monteiro, CART 2479 / CART 11, 1969)
19 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1612: Relembrando, com saudade, os nossos soldados fulas da CART 11 (Renato Monteiro / João Moleiro)
25 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1625: José Casimiro Carvalho, dos Piratas de Guileje (CCAV 8350) aos Lacraus de Paunca (CCAÇ 11)
(5) Foi também formada em Contuboel, a nordeste de Bafatá. A recruta do pessoal africana doi dada pela CART 2479. A especialidade foi já dada pela CCAÇ 2590 (quadros metropolitanos). Esteve como unidade de intervenção na Zona Leste, no Sector L1, em Bambadinca (até 1973) e depois no Xime, até ao fim da guerra.
Há numerosos posts, no nosso blogue,com referência a esta unidade, que esteve ao serviço do comando de três batalhões: BCAÇ 2851 (1968/70), BARET 2917 (1970/72) e BART 3873 (1972/74).
(6) Vd. página do Carlos Fortunato > Guiné - Os Leões Negros [CCAÇ 13].
O Carlos foi revisitar, ainda recentemente )Novembro de 2006), os seus balantas da CCXAÇ 13: vd. post de 17 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1533: De regresso a Bissorã: Uma viagem fantástica (Carlos Fortunato)
sábado, 31 de março de 2007
Guiné 63/74 - P1639: Estórias de Bissau (12): uma cidade militarizada (Rui Alexandrino Ferreira)
Foto: © Humberto Reis (2005). Direitos reservados.
Como foram as primeiras impressões da nossa chegada a Bissau ? Ainda pouco se escreveu sobre isso... Nesta série Estórias de Bissau cabe perfeitamente esta temática. Vejamos, por exemplo, como é que o angolano Rui Alexandrino Ferreira nos descreve Bissau: ele passou por lá em duas comissões, uma como alferes (CCAÇ 1420, 1965/67) e outra como capitão (CCAÇ 18, 1970/72). Já aqui fizémos uma referência ao seu livro de memórias, Rumo a Fulacunda, que já vai na 2ª edição (Viseu: Palimage Editores, 2003) (2). Aqui ficam alguns excertos do 2º capítulo, com o nosso apreço, amizade e agradecimento ao autor e ao editor:
Capº II - Guiné - Os primeiros contactos
por Rui Alexandrino Ferreira
(Subtítulos do editor do blogue)
Fundeados ao largo, frente a Bissau, do barco se avistavam as luzes da cidade. Para quem se extasiava com a imagem de Luanda à noite, com a beleza da sua extensa, profusamente iluminada e bem cuidada avenida marginal, confesso que as primeiras impressões não foram muito famosas.
Bissau parecia aquilo que na realidade era. Pequena, dava para logo antever. Dispersa, com muitos espaços devolutos pelo meio, desordenada, envelhecida e pouco cuidada, não foi possível perceber de imediato, mas rapidamente também disso me dei conta.
Como me dei conta igualmente que era uma cidade dominada pela presença da tropa e onde não se conseguia esquecer a realidade da guerra que se travava para o interior da província. Enquanto que em Luanda se olvidava por completo a guerra que decorria circunscrita ao norte de Angola, na Guiné a guerra chegava à capital. Em Bissau, ouviam-se ao longe os ruídos ora espaçados ora quase cadenciados dos rebentamentos provocados pelas armas pesadas. Eram os nossos aquartelamentos a ser atacados ou flagelados. Via-se inclusivamente, quem se virasse para sul para além do estuário do rio Geba, os clarões que eram produzidos pelo deflagrar das granadas.
Uma cidade dominada pela presença da tropa
Durante o dia, sobretudo às primeiras horas da manhã a cidade era constantemente sobrevoada por helicópteros que transportavam feridos para o Hospital Militar 241, onde por força das circunstâncias também acabei por ir parar, a primeira vez em 1966, com direito a repetição em 1972, de ambas as vezes ferido e helitransportado directamente do mato.
Era, na realidade, um estabelecimento hospitalar moderno e funcional, prático e adaptado às necessidades, com um corpo clínico excepcional, extremamente dedicado que ao longo dos anos conseguiu verdadeiros milagres. Tinha-se então um sentimento de extrema confiança na acção daqueles médicos (…)
Dizia-se então por lá, confirmando a absoluta confiança que neles se depositava que, «pouco mais era preciso que aí chegar com vida». Do resto, se encarregava quem lá estava.
Nos dois dias que se seguiram e antes de desandar para o mato, nos contactos iniciais que tive com a cidade, apercebi-me e cataloguei-a quase de imediato. Bissau era a prova real da escala proporcional de um para dez, ou seja, em dez indivíduos que passavam só um não era militar, uma em cada dez mulheres não era esposa ou filha de militar, de dez viaturas em trânsito só uma era civil, e quanto ao próprio comércio, fosse a retalho, de vestuário, calçado, de discos ou aparelhagens de som, de jornais, livros ou revistas, de bugigangas ou de miudezas, de fotografias, ou máquinas fotográficas, restaurantes, cervejarias ou simples tascas, apenas um não era prioritariamente destinado ao comércio com os militares e se manteria de porta aberta mal a tropa fizesse as malas.
Tudo vivia para a tropa e pela tropa e da tropa sobrevivia.Tudo em Bissau era dominado pela presença dos militares da Metrópole. E assim, era impossível esquecer ou passar ao largo da guerra.
O famoso tarrafo
A bordo do Manuel Alfredo ainda a alvorada do primeiro dia de Dezembro vinha longe e já eu estava a pé. O calor e a humidade à mistura com a curiosidade mas sobretudo com a ansiedade não me deixavam nem dormir nem permanecer no camarote, pois sentia-me invadido por um nervoso miudinho. Levantei-me e orientado pelo barulho e movimento das máquinas e dos homens fui observar as operações de descarga do pessoal e material.
Uma Companhia independente desembarcou directamente para uma LDG (lancha de desembarque grande) da marinha. Nem chegaram a pôr o pé em terra firme. Rumo ao seu destino, homens e imbambas, tudo amontoado conforme possível, lá tomaram a rota do sul, onde seguramente chegaram por um dos variados rios ou dum dos seus braços, que tal como rapidamente compreendi, constituíam o melhor e mais seguro meio de comunicação e penetrapara o interior.
Aos poucos foi-se fazendo dia. Olhei em redor, ainda mal se via e nem queria acreditar nos meus olhos. Dum lado a vastidão das águas, misturadas a doce e a salgada, era tal, o dito estuário do Geba era tão largo, que a olho nu, não se vislumbrava a outra margem. Do lado da cidade, onde há bem poucas horas era água, suja e barrenta, é verdade, aparecia agora no fundo escuro, lodoso e fedorento do rio, um misto de lama, detritos, resíduos e porcaria que exalava um cheiro pestilento e nauseabundo. Àquela argamassa com ar podre e pútrido se dava, como já referi, pomposamente, o nome de tarrafo.
Era quase impossível que uma qualquer acção ou operação na Guiné não obrigasse à passagem de bolanhas, rios ou zonas de tarrafo. Normalmente passei, vindo das operações onde tais travessias eram mais demoradas ou aprofundadas (no sentido, claro, do tempo que se teria de andar dentro delas ou da altura da zona de cambança ou local de passagem do que resultava ter ficado com maior ou menor parte do corpo enterrado no tarrafo ou no lama), a tomar um banho inicial com o camuflado vestido para lhe tirar o grosso da merda e só depois deste, esfregar, esfregar e voltar a esfregar, o camuflado e o corpo, para ver se o cheiro se atenuava. Mas custava a sair...
Rapidamente me apercebi também que, para determinadas travessias, deveria fazer anteceder cada elemento mais baixote de outro com altura suficiente, que lhe deitasse a mão em caso de necessidade. E muitas vezes isso teve aplicação prática.
Olhando para a ínfima espécie de cais, onde mesmo assim o calado do navio de reduzidas dimensões que nos transportara, não permitia a acostagem, comecei a calcular qual seria o desnível entre as marés. Para aí uns quatro a cinco metros, pensei. Era isso mesmo. Mais metro, menos metro...
O complexo de Santa Luzia, conhecido por o Seiscentos
E assim, divagando e entretendo o tempo, lá chegou finalmente a minha hora de desembarque. Da mesma maneira que os demais, a bordo de uma pequena embarcação, lá fiz os metros que nos separavam da terra firme. E daí para dentro de uma viatura rumo ao Quartel-General, situado na altura no seiscentos como vulgarmente era conhecido o conjunto de aquartelamentos de Santa Luzia. Seiscentos porque fora aquele o número do primeiro Batalhão que o ocupara e para sempre lhe dera o nome.
A viagem até ao Quartel-General acabou por me trazer novas surpresas. A viatura, cujo trajecto normal seria subir a avenida principal que desembocava no largo onde se situava o palácio do Governador, virou dessa feita à direita e subiu uma avenida paralela daquela, que se iniciava junto ao rio e atravessava uma zona praticamente desabitada. Passamos por meia dúzia de tabancas e casas de pau a pique e entramos directamente pela zona do Quartel-General a dentro.
De tal modo aquilo foi, que quando perguntei candidamente onde era a cidade e me responderam que a já tínhamos passado, fiquei completamente estupefacto.
Já tínhamos passado a cidade!?
- Valha-me Deus! Aonde é que tinha ido parar! Se aquilo era Bissau como seria o resto!? Aquilo tudo começava a parecer-me muito pior do que o que tinha imaginado.
Embora mentalmente preparado para o que desse e viesse e pensando que, logicamente não poderia ser nada de bom, era a segunda vez, num curto espaço de tempo que sinceramente me espantava.
A 1ª Rep ou o primeiro contacto com a guerra do ar condicionado
Chegados ao Quartel-General, lá fomos encaminhados para a 1ª Repartição a fim de fazer as apresentações. Aos poucos, toda a gente que ia comigo foi sendo despachada e eu nem por isso...
Lá andava a minha guia de marcha às bolandas, de mão para mão... De vez em quando chegava um e cochichava alguma coisa ao ouvido do outro e olhavam para mim, o que me levava a pensar que era eu o objecto do cochicho. E iam embora...
Comecei, pois, a ficar preocupado... que raio de trapalhada teria eu feito!? Mas por mais que tentasse nada me ocorria.
Arrisquei a pergunta a um sargento que ali estava sentado a uma secretária.
- Oh! Nosso primeiro, o que é que se passa!?
- Não sei, meu Alferes. Não é nada comigo!
E o rapaz Rui lá se entreteve a olhar para os quadros da parede, controlo de efectivos existentes na província, Batalhões, recompletamentos, baixas por isto e por mais aquilo, etc. e tal... Até que não havia mais quadros para ver... E ninguém me ligava nenhuma! Qu'os pariu!!!...
Aquilo é que ia bonito! Mas, - pensava eu -, já não podem demorar muito mais, pois daqui a pouco são horas do almoço. E assim foi. Mais uma meia-hora e lá se chegou a mim um Tenente do serviço geral.
- Alferes Ferreira?
- Sou eu.
- Venha comigo ao nosso Tenente-Coronel Vilela.
E lá fui eu, a pensar que raio de mosca teria mordido naquela gente. Ninguém tinha tido a honra de ir à presença do chefe... Logo eu...
Rapidamente o assunto se esclareceu. Segundo o citado senhor Tenente-Coronel Vilela, chefe daquela repartição, superiormente alguém acima dele, havia decidido que, apesar de ser destinado à guarnição normal e portanto desde logo colocado no Centro de Instrução Militar de Bolama, teria de ir em diligência, provisoriamente, claro estava, para uma Companhia de Caçadores que infelizmente se encontrava bastante desfalcada em oficiais, pois tinha perdido duma assentada o Capitão e um dos Alferes, o que sendo quase cinquenta por cento do seu efectivo, era preocupante. Mas que não me preocupasse, pois os recompletamentos dos Oficiais em questão já estavam pedidos para a Metrópole, e assim, a situação além de transitória era uma questão de poucas semanas, talvez mesmo menos de um mês, unicamente o tempo da sua chegada à província.
Claro que nem valia a pena argumentar contra a lógica militar. Nem agora vale a pena, que fará naquele tempo... Podia, na realidade, ter referido que já fora mobilizado sem que fosse destinado a qualquer vaga efectiva. Poderia ter argumentado que a bordo do Manuel Alfredo tinham chegado mais alferes em rendição individual, mais modernos e portanto em condições idênticas à minha, para ocupar a vaga que ele considerava vital. Poderia ter dito fosse o que fosse, mas nem uma palavra me saiu da boca, o que, segundo me apercebi, além de ter espantado o referido senhor teve o condão de pôr ponto final na entrevista.(...).
Fonte: Rui Alexandrino Ferreira - Rumo a Fulacunda, . 2ª edição. Viseu: Palimage Editores. 2003. 69-73.
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Notas de L. G.:
(1) Vd. último post da série Estórias de Bissau > 10 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1512: Estórias de Bissau (11): Paras, Fuzos e...Parafuzos (Tino Neves)
(2) Vd. de 17 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1285: Bibliografia de uma guerra (14): Rumo a Fulacunda, um best seller, de Rui Alexandrino Ferreira (Luís Graça)
sexta-feira, 30 de março de 2007
Guiné 63/74 - P1638: Pensar em Voz Alta (Torcato Mendonça) (5): Um abraço a um camarada comando
Amílcar Mendes: dou-te um abraço de Camarada.
Tenho muito respeito pelos Comandos. Não interessa agora o porquê. Viveste fortemente, violentamente, situações, ainda jovem, que te marcaram e dificilmente esqueces. Como tu muitos de nós. Eu tentei esquecer durante muitos anos. Puro engano! O melhor, quanto a mim, é mandar cá para fora.
Este Blogue proporciona a todos nós fazermos essa terapia: lendo, escrevendo ou não, revivemos, recordamos e libertamos, em revolta por vezes, os recalcamentos há muito reprimidos.
Estamos entre Camaradas, entre amigos, entre homens unidos pela violência de uma guerra, que foram obrigados a participar numa parte da sua juventude. O que nos une é demasiado forte. Este espaço na Net é demasiado importante para muitos de nós.
Compreendo-te, Camarada, não recalques e manda cá para fora o que sentes… Sou mais velho, estive em 1968/69, havia violência mas… Guileje e Guidaje e os anos de 73/74 são marcos naquela guerra.
Quando escrevo a algum Camarada dou C/C ao nosso Comandante Luís Graça. Assim não quebro regras do Blogue. Foste Comando (continuas sempre Comando) e compreendes bem o que eu quero dizer.
Camarada, um abraço do
Torcato Mendonça
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Nota de L.G.:
(1) Vd. post de 28 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1633: Guidaje na TVI: Um murro no estômago (A. Mendes, 38ª CCmds)