por Luís Graça
Às quintas-feiras encontram-se no Parque da Cidade, têm lá um grupo e amigos e conhecidos que gostam de fazer a sua caminhada matinal, de duas horas.
“Duas voltas ao bilhar grande”, dizem eles e elas. Desenferruja-se as pernas, desentaramela-se a língua, massaja-se os neurónios, tonifica-se o coração, estreita-se os laços sociais e afetivos, limpa-se a vista (com o azul do mar, ao fundo, e o verde da vegetação em redor), cultiva-se a boa disposição e o humor, desliga-se o malfadado telemóvel…
O grupo, de dimensão variável, no máximo uns vinte nos melhores dizas, é quase todo ele de gente sénior, como sói agora dizer-se, “colarinhos brancos”, reformados, gente com tempo e vagar, e algumas economias no banco. No essencial, e em comum, têm o gosto por conviver, conversar e andar a pé. É a “tertúlia dos caminheiros do Parque da Cidade”… Já são populares entre os demais utentes e os trabalhadores do Parque e frequentadores dos cafés e esplanadas da zona.
Há de tudo um pouco: professores, talvez a maioria, engenheiros, bancários, magistrados, advogados, secretárias, domésticas, uma médica, uma enfermeira, uma jornalista, e até um editor, um militar e um operador de câmara. Vêm do Porto e de Matosinhos, e até de mais longe.
É a primeira geração de portugueses de que se pode dizer que são filhos da abundância, do Estado-Providência, e que podem aspirar a viver, com alguma tranquilidade e relativa qualidade, o “outono da vida” (, contrariamente ao que se passou com os seus antepassados, pais, avós, bisavós).
Em função da condição física e do número , variável, dos que vão aparecendo às quintas-feiras de manhã, mas também do estado do tempo, das afinidades e das idiossincrasias, o grupo acaba por fragmentar-se ao fim de meia-hora.
Formam-se então pequenos grupos de três ou quatro que continuam a caminhar e a conversar, sem qualquer preocupação aparente com os mais atrasados ou os mais adiantados. Aqui não há solidariedade com os fracos que vêm na cauda do pelotão. A meio do percurso, entre as 10h50 e as 11h00, faz-se uma pausa, de dez minutos, para ir à casa de banho e descansar um pouco, nas esplanadas à beira-mar. É então que o pelotão se reagrupa, antes de atacar o regresso ao ponto de partida, e completar o circuito.
Os temas de conversa são os mais variados, desde as inevitáveis doenças da idade (, há gente com um ou mais doenças crónicas, as famigeradas comorbilidades) às viagens passadas, das deliciosas fofoquices às viagens futuras, das agendas culturais às grandes questões existenciais (tais como: “se Deus não existe, o que é que eu estou aqui a fazer?!”)… Sem esquecer, naturalmente, as preocupações mais terrenas e comezinhas com os filhos que se divorciam e os netos que vão para a escola…
Vêm também à baila os grandes marcos do ciclo de vida de cada um e das suas famílias: nascimentos, batizados, casamentos, divórcios e, cada vez mais, funerais (dos amigos e parentes)… Por uma questão de “bom senso e bom gosto”, ou simplesmente por pudor, “não se fala em sexo nem em dinheiro”, segundo me confidenciou a minha amiga “Nucha”. Percebe-se: muitos tiveram uma formação puritana e conservadora, o sexo praticava-se mas dele não se falava, e o dinheiro não passava do “vil metal” que comprava tudo (ou quase tudo), do amor ao temor…
− Sabes como é, rapariga, o sexo na nossa idade é o último dos tabus! – gracejei eu.
O telemóvel e o tabaco são, agora, dois dos novos pecados mortais… O “no smoking” é uma condição “sine qua non” para a entrada de novos membros na tertúlia. E os ex-fumadores são, nesse ponto, os mais intolerantes. (Aliás, todos os ex-qualquer coisa... são os mais intolerantes!)...
Às quintas-feiras de manhã o uso do telemóvel é “proibido”, a não ser para fazer alguma “chamada de emergência”. E, tanto quanto me apercebo, quando por lá ando, não há fumadores no grupo.
Um ou outro mais “chato” vai, por vezes, desenterrar coisas do passado não menos “chatas” como a escola primária, as férias grandes, o liceu, a mocidade portuguesa, a tropa, a guerra colonial, a ação católica, a militância política, o 25 de Abril, o PREC, o fim do Império… Alguns passaram por África e têm memórias desse tempo, umas boas, outras más. Há retornados e ex-combatentes…
Chegam por volta das 9h15 / 9h30 da manhã, ainda a tempo para “pôr a escrita em dia” e para tomar o “cimbalino” ou a “meia de leite”, numa esplanada perto de uma das entrada do Parque, que é o ponto de encontro, em dias soalheiros e aprazíveis. É toda uma geração do tempo da “meia de leite”, do “cimbalino”, do “Português Suave”, dos “brandos costumes", enfim nascida no Estado Novo.
No caso de alguns, os mais velhos, quando nasceram, ainda estava em vigor o racionamento, imposto durante a II Guerra Mundial, e ainda não havia a “francesinha”, hoje, para o bem ou para o mal, um dos ícones da cozinha tripeira.
São quase todos portistas, mas também não se fala de futebol. Por uma questão de “higiene mental”, e por respeito das “minorias futebolísticas”: os boavisteiros, os benfiquistas, os sportinguistas, os minhotos...
Ficam lá fora as “redes sociais, a par da “política partidária”. São quase todos “desalinhados”, à esquerda e à direita, mas alguns/algumas têm um passado de militância política ou religiosa. Desalinhados, desencantados com as suas “igrejas”, agora mais centrados no seu umbigo, o que até é compreensível.
− Muito autocentrados, para o meu gosto! – confidencia-me a “Nucha”, uma mulher nortenha de grande generosidade.
Quando chove (e aqui chove mais do que no Sul…), ficam a cavaquear no café até próximo do meio-dia, altura em que cada um vai às suas vidas.
− Por que é que repetimos sempre, ou quase sempre, as mesmas histórias, as mesmas anedotas, as mesmas tretas, as mesmas dicas, até as mesmas palavras e expressões ?
− Sim, “ad nauseam”… Essa é uma boa pergunta, mas eu não te sei responder, nem nunca tinha pensado nisso – observa o “Filósofo”, a caminhar ao lado do “Mister” e da “Poetisa”.
E prossegue o “Mister” que vai no meio dos dois:
− Sabes como é, já estamos fartos de ouvir aquela cena passada há tantos anos, com o fulano de tal, lembras-te, pá?!... Aquele gajo que andou no liceu connosco, e cujo pai era da “bófia”…
− Então, não me lembro, carago, o “Focinho de Porco”, andou na escola com todos nós… É uma figura que me é estranhamente familiar, até a mim que estudei em Bragança – ironizou a “Poetisa”.
Transmontana, a “Poetisa” é uma mulher extrovertida, ‘engraçada’, cuja personalidade é um misto de truculência, rudeza, franqueza, autenticidade e… língua viperina… Chamam-lhe a “Poetisa” porque dá ares da Natália Correia… e também escreve… “versos”. Tanto quanto julgo saber, foi professora de português.
Nem todos os caminheiros (e sobretudo as caminheiras) apreciam e toleram o seu “génio”. Tem fama de ser uma mulher de pelo na venta, muito independente e… feminista. Gosta de fazer, de vez em quando, a sua "peixeirada"...
− E as anedotas, estafadíssimas, do Samora Machel, eivadas de racismo e de revanchismo, que circulavam no tempo do PREC e dos retornados ?! – acrescentou o “Filósofo”.
− Mas desde que morreu o “bicho”, acabou a “peçonha”… Já não oiço uma anedota do Samora Machel, há anos. Em contrapartida, continuas a ter as estafadíssimas anedotas sobre os alentejanos e os mouros de Lisboa… – interveio o “Mister”.
− Ah!, o Portugal plural no seu melhor, agora a cores do arco-íris. Por que dantes, irra!, era tudo a preto e branco – lembrou a “Poetisa”.
− Não concordo, acho que o humor lusitano era mais refinado, e até mais criativo do que é hoje, justamente porque havia a lei da rolha e a censura – acrescentou o “Mister”.
E para reforçar a sua tese de que as pessoas hoje são “repetitivas, circadianas, chatas”, o “Mister” foi buscar mais um exemplo:
− Eu próprio caio na armadilha de repetir as mesmas histórias… Conto muitas vezes aquele episódio, que aconteceu a um casal meu amigo, naquelas férias que poderiam ter sido as melhores férias das suas vidas, lá nos picos da Europa ou coisa parecida, mas não foram porque os melhores amigos são muitas vezes os piores companheiros de viagem…
− Tens razão, ó “Mister”, olha, a mim, já me aconteceu isso, numa viagem ao sul de França, Grenoble, Alpes, Vale de Aosta…
E explicou a “Poetisa”:
− Fiquei escaldada para sempre… Dois poetas no mesmo carro, macho e fêmea, com egos de todo o tamanho, mais as nossas respetivas caras-metade, no tempo em que eu ainda vivia com o meu 1º marido… Imaginem, quatro caramelos num Fiat 127, nos anos 70, foi pior a emenda que o soneto, carago!…
− E sem “airbag”, que era coisa que, nesse tempo, os carros ainda não tinham! – galhofou o “Filósofo”.
E lá foram continuando a caminhar e a tagarelar os três amigos.
Na Tertúlia dos Caminheiros do Parque da Cidade quase toda a gente parece ter alcunhas, diminutivos ou “nicknames”: ao que me disseram, faz parte da praxe e dos “estatutos”… Por outro lado, todos se tratam por tu, o que ajuda a esbater eventuais diferenças de estatuto socioeconómico, entre os doutores e os não doutores.
E também me parece que, pelo convívio que vou tendo(, irregularmente, diga-se de passagem), com este grupo singular, ninguém leva a mal por ser identificado por uma alcunha ou um diminutivo: no fundo, é mais uma manifestação de ternura, uma forma de tratamento entre iguais, o reconhecimento de um traço de personalidade ou de uma particularidade da(s) história(s) de vida. Enfim, um ou outro, no início, pode não ter gostado lá muito ou ter até rangido os dentes. Os novatos, que têm sido poucos nos últimos dois ou três anos, são sujeitos, como eu, à incontornável praxe de integração.
− Aqui no Norte, ninguém faz fretes. Gosta-se ou não se gosta de uma pessoa… Leva o seu tempo a aceitar-se um estranho. És posto à prova, tens de passar vários testes… Mas uma vez integrado na família ou no grupo, és um amigo para sempre! – explicou-me a “Nucha”, uma velha amiga de há, pelo menos uns 20 anos.
Em rigor, não há regras escritas, e a dinâmica de grupo é que, ao fim de quase uma década, vai criando e modelando valores e normas de sã convívio e até de amizade.
Curiosamente foi tudo trabalho de um grupo de mulheres, de que restam duas ou três, a quem chamam carinhosamente as “abelhas mestras”. São uma espécie de “mães fundadoras”. Trabalhavam na mesma escola, professoras, auxiliares de educação, administrativas… No ano em que umas tantas se reformaram, na maioria professoras, ainda “cinquentonas”, como a "Nucha", olharam umas às outras e perguntaram-se:
− E agora, o que vamos fazer amanhã, que é o primeiro dia do resto das nossas vidas, e em que deixamos de vir à escola por dever e obrigação ?!
Foi assim que nasceu a Tertúlia dos Caminheiros do Parque da Cidade, com a intenção mais ou menos explícita (mas não expressa) de “promover o envelhecimento ativo e saudável”, segundo me contou a minha amiga “Nucha”, que foi professora de biologia… São mais as mulheres do que os homens, o que até é natural neste grupo etário de gente sexagenária e septuagenária… Em dez anos, o grupo sobreviveu e renovou-se. As fundadoras arrastaram os seus maridos ou companheiros… Uns e outros convidaram amigos e amigas… E por aí fora...
Mas no grupo também há a “Viúva Alegre” (que já despachou para o céu os dois "anjinhos" dos seus maridos…), a “Papa-Léguas” (também conhecida por “Rosa Mota”, por ser uma “corredora de fundo”, compulsiva…), a “Facebook…eira” (que se vangloria de ter “cinco mil amigos”), além do “Manuel de Oliveira” (um operador de câmara reformado, sempre muito calado), o “Morcão” (ex-autarca, que vem de Gondomar), a “Dina” (ou “Adrenalina”, por ser uma das mais “stressadas” do grupo…) e o “Coronel”, enfim, outros tantos figurões ou exemplares de diferentes “espécies”, de ambos os sexos, daquela amostra do zoo humano que frequenta o Parque da Cidade, misturando-se com as aves que proliferam por lá, entre as lagoas, as charcas e os pequenos bosques, separados por agradáveis campos arrelvados que, no passado, devem ter dado muitos carros de milho…
− Por que é que somos “repetitivos, circadianos, chatos” ?!... Boa pergunta, ó “Mister” – retomou o “Filósofo” o fio à meada.
E continuou:
− Mas essa questão até nem parece tua!... Tu que vens da área do desporto onde o sucesso, sobretudo na alta competição, é o resultado de mil e um esforços repetidos até à exaustão, de mil e um micromovimentos…
− O treino leva à perfeição, exceto na pistola russa! – ironizou a “Poetisa”, que gosta de “picar” tanto o “Mister” como o “Filósofo”.
Prosseguiu este, que tem sempre uma “teoria” para explicar tudo:
− Deixem-me avançar com a minha teoria…
− Então, avança lá!...Somos todos ouvidos.
− Somos repetitivos porque somos circadianos, temos um relógio, biológico, que nos obriga, por exemplo, a descansar 6 ou 7 horas por dia… Sem esse relógio, entraríamos rapidamente em entropia, levando-nos por fim à morte… Temos por isso hábitos, automatismos. Somos animais de hábitos, o que tem vantagens e desvantagens.
− Por outro lado, temos uma memória seletiva, curta, um registo limitado de memórias, de recordações, de vivências…− acrescentou o “Mister”.
− Há uma economia de meios, de energia, de recursos ! – concorda o “Filósofo”. – Avaliamos os custos e dos benefícios das nossas decisões e ações, mas sempre com base em informação limitada, em quantidade e qualidade. Por exemplo, avaliamos a prática do exercício físico, numa ótica de custo-benefício… Custa-me andar a pé duas horas, mas faz-me bem à saúde, se esse esforço for conjugado com uma dieta mediterrânica e com a interação social, como diz a nossa “Nucha”… Enfim, é a minha teoria…
− Como alguém disse – continuou o “Mister” – somos animais dotados de racionalidade limitada, e no futuro seremos ultrapassados por formas superiores de inteligência…
− Queres dizer que somos demasiado estúpidos ? Em termos coletivos, não tenho dúvidas, vê como estamos alegremente a dar cabo do planeta, a abrir a cova para o caixão da humanidade… − interrompeu o “Filósofo”.
− Sim, não somos criaturas assim tão inteligentes quanto apregoa a propaganda do criador – comentou, com sarcasmo, a “Poetisa”.
− E depois achamos graça − completou o “Mister” – a certas situações que afinal são banalíssimas, que acontecem a toda a gente.
− Ou então são confrangedoras! – ripostou a “Poetisa”.
− Sim, repara, tanto rimos como choramos… Ficamos à beira de um ataque de nervos nas bichas para os centros comerciais nas sextas-feiras treze, ou na época natalícia, ou na noite de São João… Por outro lado, somos capazes de achar piada ao mal dos outros, às desgraças alheias, somos maus e, pior, somos capazes de ser cruéis como nenhum outro animal da Arca de Noé!
− A minha teoria – volta à carga o “Filósofo – é a seguinte: mais do que estúpidos ou predadores, somos animais sociais, somos palhaços, palhaços de circo, gostamos (e precisamos) de circo, de fazer rir, de entreter e apaparicar os outros.
− Catar e encantar os outros, como os nossos parentes primatas… − esclareceu a “Poetisa”− Que é a catar os parasitas e a fazer favores sexuais que se reforçam as alianças… Aponta aí, ó “Filósofo”.
− Mas, no fundo, não temos piada nenhuma, não temos sentido de humor!
− O humor cultiva-se, é uma forma superior de inteligência! – diz a “Poetisa”.
− E quanto mais velhos, pior! – sentenciou o “Mister”. − Precisamos de mais mimos, de amar e de ser amados…
− Desculpa lá, mas estou em desacordo total contigo, os velhos são egocêntricos como o carago!... – contestou a “Poetisa” que é ainda, segundo os critérios da Organização Mundial de Saúde, uma “jovem… idosa”, como ela faz gala de dizer.
(Continua)
____________
Nota do editor:
Último poste da série > 19 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19208: A Galeria dos Meus Heróis (15): O "Bate-chapas" que queria ser fotocine... (Luís Graça)
Um ou outro mais “chato” vai, por vezes, desenterrar coisas do passado não menos “chatas” como a escola primária, as férias grandes, o liceu, a mocidade portuguesa, a tropa, a guerra colonial, a ação católica, a militância política, o 25 de Abril, o PREC, o fim do Império… Alguns passaram por África e têm memórias desse tempo, umas boas, outras más. Há retornados e ex-combatentes…
Chegam por volta das 9h15 / 9h30 da manhã, ainda a tempo para “pôr a escrita em dia” e para tomar o “cimbalino” ou a “meia de leite”, numa esplanada perto de uma das entrada do Parque, que é o ponto de encontro, em dias soalheiros e aprazíveis. É toda uma geração do tempo da “meia de leite”, do “cimbalino”, do “Português Suave”, dos “brandos costumes", enfim nascida no Estado Novo.
No caso de alguns, os mais velhos, quando nasceram, ainda estava em vigor o racionamento, imposto durante a II Guerra Mundial, e ainda não havia a “francesinha”, hoje, para o bem ou para o mal, um dos ícones da cozinha tripeira.
São quase todos portistas, mas também não se fala de futebol. Por uma questão de “higiene mental”, e por respeito das “minorias futebolísticas”: os boavisteiros, os benfiquistas, os sportinguistas, os minhotos...
Ficam lá fora as “redes sociais, a par da “política partidária”. São quase todos “desalinhados”, à esquerda e à direita, mas alguns/algumas têm um passado de militância política ou religiosa. Desalinhados, desencantados com as suas “igrejas”, agora mais centrados no seu umbigo, o que até é compreensível.
− Muito autocentrados, para o meu gosto! – confidencia-me a “Nucha”, uma mulher nortenha de grande generosidade.
Quando chove (e aqui chove mais do que no Sul…), ficam a cavaquear no café até próximo do meio-dia, altura em que cada um vai às suas vidas.
− Por que é que repetimos sempre, ou quase sempre, as mesmas histórias, as mesmas anedotas, as mesmas tretas, as mesmas dicas, até as mesmas palavras e expressões ?
− Sim, “ad nauseam”… Essa é uma boa pergunta, mas eu não te sei responder, nem nunca tinha pensado nisso – observa o “Filósofo”, a caminhar ao lado do “Mister” e da “Poetisa”.
E prossegue o “Mister” que vai no meio dos dois:
− Sabes como é, já estamos fartos de ouvir aquela cena passada há tantos anos, com o fulano de tal, lembras-te, pá?!... Aquele gajo que andou no liceu connosco, e cujo pai era da “bófia”…
− Então, não me lembro, carago, o “Focinho de Porco”, andou na escola com todos nós… É uma figura que me é estranhamente familiar, até a mim que estudei em Bragança – ironizou a “Poetisa”.
Transmontana, a “Poetisa” é uma mulher extrovertida, ‘engraçada’, cuja personalidade é um misto de truculência, rudeza, franqueza, autenticidade e… língua viperina… Chamam-lhe a “Poetisa” porque dá ares da Natália Correia… e também escreve… “versos”. Tanto quanto julgo saber, foi professora de português.
Nem todos os caminheiros (e sobretudo as caminheiras) apreciam e toleram o seu “génio”. Tem fama de ser uma mulher de pelo na venta, muito independente e… feminista. Gosta de fazer, de vez em quando, a sua "peixeirada"...
− E as anedotas, estafadíssimas, do Samora Machel, eivadas de racismo e de revanchismo, que circulavam no tempo do PREC e dos retornados ?! – acrescentou o “Filósofo”.
− Mas desde que morreu o “bicho”, acabou a “peçonha”… Já não oiço uma anedota do Samora Machel, há anos. Em contrapartida, continuas a ter as estafadíssimas anedotas sobre os alentejanos e os mouros de Lisboa… – interveio o “Mister”.
− Ah!, o Portugal plural no seu melhor, agora a cores do arco-íris. Por que dantes, irra!, era tudo a preto e branco – lembrou a “Poetisa”.
− Não concordo, acho que o humor lusitano era mais refinado, e até mais criativo do que é hoje, justamente porque havia a lei da rolha e a censura – acrescentou o “Mister”.
E para reforçar a sua tese de que as pessoas hoje são “repetitivas, circadianas, chatas”, o “Mister” foi buscar mais um exemplo:
− Eu próprio caio na armadilha de repetir as mesmas histórias… Conto muitas vezes aquele episódio, que aconteceu a um casal meu amigo, naquelas férias que poderiam ter sido as melhores férias das suas vidas, lá nos picos da Europa ou coisa parecida, mas não foram porque os melhores amigos são muitas vezes os piores companheiros de viagem…
− Tens razão, ó “Mister”, olha, a mim, já me aconteceu isso, numa viagem ao sul de França, Grenoble, Alpes, Vale de Aosta…
E explicou a “Poetisa”:
− Fiquei escaldada para sempre… Dois poetas no mesmo carro, macho e fêmea, com egos de todo o tamanho, mais as nossas respetivas caras-metade, no tempo em que eu ainda vivia com o meu 1º marido… Imaginem, quatro caramelos num Fiat 127, nos anos 70, foi pior a emenda que o soneto, carago!…
− E sem “airbag”, que era coisa que, nesse tempo, os carros ainda não tinham! – galhofou o “Filósofo”.
E lá foram continuando a caminhar e a tagarelar os três amigos.
Na Tertúlia dos Caminheiros do Parque da Cidade quase toda a gente parece ter alcunhas, diminutivos ou “nicknames”: ao que me disseram, faz parte da praxe e dos “estatutos”… Por outro lado, todos se tratam por tu, o que ajuda a esbater eventuais diferenças de estatuto socioeconómico, entre os doutores e os não doutores.
E também me parece que, pelo convívio que vou tendo(, irregularmente, diga-se de passagem), com este grupo singular, ninguém leva a mal por ser identificado por uma alcunha ou um diminutivo: no fundo, é mais uma manifestação de ternura, uma forma de tratamento entre iguais, o reconhecimento de um traço de personalidade ou de uma particularidade da(s) história(s) de vida. Enfim, um ou outro, no início, pode não ter gostado lá muito ou ter até rangido os dentes. Os novatos, que têm sido poucos nos últimos dois ou três anos, são sujeitos, como eu, à incontornável praxe de integração.
− Aqui no Norte, ninguém faz fretes. Gosta-se ou não se gosta de uma pessoa… Leva o seu tempo a aceitar-se um estranho. És posto à prova, tens de passar vários testes… Mas uma vez integrado na família ou no grupo, és um amigo para sempre! – explicou-me a “Nucha”, uma velha amiga de há, pelo menos uns 20 anos.
Em rigor, não há regras escritas, e a dinâmica de grupo é que, ao fim de quase uma década, vai criando e modelando valores e normas de sã convívio e até de amizade.
Curiosamente foi tudo trabalho de um grupo de mulheres, de que restam duas ou três, a quem chamam carinhosamente as “abelhas mestras”. São uma espécie de “mães fundadoras”. Trabalhavam na mesma escola, professoras, auxiliares de educação, administrativas… No ano em que umas tantas se reformaram, na maioria professoras, ainda “cinquentonas”, como a "Nucha", olharam umas às outras e perguntaram-se:
− E agora, o que vamos fazer amanhã, que é o primeiro dia do resto das nossas vidas, e em que deixamos de vir à escola por dever e obrigação ?!
Foi assim que nasceu a Tertúlia dos Caminheiros do Parque da Cidade, com a intenção mais ou menos explícita (mas não expressa) de “promover o envelhecimento ativo e saudável”, segundo me contou a minha amiga “Nucha”, que foi professora de biologia… São mais as mulheres do que os homens, o que até é natural neste grupo etário de gente sexagenária e septuagenária… Em dez anos, o grupo sobreviveu e renovou-se. As fundadoras arrastaram os seus maridos ou companheiros… Uns e outros convidaram amigos e amigas… E por aí fora...
Mas no grupo também há a “Viúva Alegre” (que já despachou para o céu os dois "anjinhos" dos seus maridos…), a “Papa-Léguas” (também conhecida por “Rosa Mota”, por ser uma “corredora de fundo”, compulsiva…), a “Facebook…eira” (que se vangloria de ter “cinco mil amigos”), além do “Manuel de Oliveira” (um operador de câmara reformado, sempre muito calado), o “Morcão” (ex-autarca, que vem de Gondomar), a “Dina” (ou “Adrenalina”, por ser uma das mais “stressadas” do grupo…) e o “Coronel”, enfim, outros tantos figurões ou exemplares de diferentes “espécies”, de ambos os sexos, daquela amostra do zoo humano que frequenta o Parque da Cidade, misturando-se com as aves que proliferam por lá, entre as lagoas, as charcas e os pequenos bosques, separados por agradáveis campos arrelvados que, no passado, devem ter dado muitos carros de milho…
− Por que é que somos “repetitivos, circadianos, chatos” ?!... Boa pergunta, ó “Mister” – retomou o “Filósofo” o fio à meada.
E continuou:
− Mas essa questão até nem parece tua!... Tu que vens da área do desporto onde o sucesso, sobretudo na alta competição, é o resultado de mil e um esforços repetidos até à exaustão, de mil e um micromovimentos…
− O treino leva à perfeição, exceto na pistola russa! – ironizou a “Poetisa”, que gosta de “picar” tanto o “Mister” como o “Filósofo”.
Prosseguiu este, que tem sempre uma “teoria” para explicar tudo:
− Deixem-me avançar com a minha teoria…
− Então, avança lá!...Somos todos ouvidos.
− Somos repetitivos porque somos circadianos, temos um relógio, biológico, que nos obriga, por exemplo, a descansar 6 ou 7 horas por dia… Sem esse relógio, entraríamos rapidamente em entropia, levando-nos por fim à morte… Temos por isso hábitos, automatismos. Somos animais de hábitos, o que tem vantagens e desvantagens.
− Por outro lado, temos uma memória seletiva, curta, um registo limitado de memórias, de recordações, de vivências…− acrescentou o “Mister”.
− Há uma economia de meios, de energia, de recursos ! – concorda o “Filósofo”. – Avaliamos os custos e dos benefícios das nossas decisões e ações, mas sempre com base em informação limitada, em quantidade e qualidade. Por exemplo, avaliamos a prática do exercício físico, numa ótica de custo-benefício… Custa-me andar a pé duas horas, mas faz-me bem à saúde, se esse esforço for conjugado com uma dieta mediterrânica e com a interação social, como diz a nossa “Nucha”… Enfim, é a minha teoria…
− Como alguém disse – continuou o “Mister” – somos animais dotados de racionalidade limitada, e no futuro seremos ultrapassados por formas superiores de inteligência…
− Queres dizer que somos demasiado estúpidos ? Em termos coletivos, não tenho dúvidas, vê como estamos alegremente a dar cabo do planeta, a abrir a cova para o caixão da humanidade… − interrompeu o “Filósofo”.
− Sim, não somos criaturas assim tão inteligentes quanto apregoa a propaganda do criador – comentou, com sarcasmo, a “Poetisa”.
− E depois achamos graça − completou o “Mister” – a certas situações que afinal são banalíssimas, que acontecem a toda a gente.
− Ou então são confrangedoras! – ripostou a “Poetisa”.
− Sim, repara, tanto rimos como choramos… Ficamos à beira de um ataque de nervos nas bichas para os centros comerciais nas sextas-feiras treze, ou na época natalícia, ou na noite de São João… Por outro lado, somos capazes de achar piada ao mal dos outros, às desgraças alheias, somos maus e, pior, somos capazes de ser cruéis como nenhum outro animal da Arca de Noé!
− A minha teoria – volta à carga o “Filósofo – é a seguinte: mais do que estúpidos ou predadores, somos animais sociais, somos palhaços, palhaços de circo, gostamos (e precisamos) de circo, de fazer rir, de entreter e apaparicar os outros.
− Catar e encantar os outros, como os nossos parentes primatas… − esclareceu a “Poetisa”− Que é a catar os parasitas e a fazer favores sexuais que se reforçam as alianças… Aponta aí, ó “Filósofo”.
− Mas, no fundo, não temos piada nenhuma, não temos sentido de humor!
− O humor cultiva-se, é uma forma superior de inteligência! – diz a “Poetisa”.
− E quanto mais velhos, pior! – sentenciou o “Mister”. − Precisamos de mais mimos, de amar e de ser amados…
− Desculpa lá, mas estou em desacordo total contigo, os velhos são egocêntricos como o carago!... – contestou a “Poetisa” que é ainda, segundo os critérios da Organização Mundial de Saúde, uma “jovem… idosa”, como ela faz gala de dizer.
(Continua)
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Nota do editor:
Último poste da série > 19 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19208: A Galeria dos Meus Heróis (15): O "Bate-chapas" que queria ser fotocine... (Luís Graça)