domingo, 14 de fevereiro de 2010

Guiné 63/74 - P5818: História da CCAÇ 2679 (33): Vesti toalha de praia para ir falar com o Trapinhos (José Manuel M. Dinis)

1. Mensagem de José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 9 de Fevereiro de 2010:

Meu Amigo Carlos,
Certamente já tinhas saudades minhas, face à delonga desde o último episódio da CCaç 2679. É para te ires habituando, porque vou fazer um interregno de um mês e meio numa deslocação a Bissau.
Pronto, agora que já sabes, faz favor de engatilhar no teclado e dar à estampa mais um trecho cá-do-je.

Para ti e para a Tabanca,
Abraços fraternos
JD


HISTÓRIA DA CCAÇ 2679 (33)

Toalha de praia


O calor fazia-se sentir intensamente, o que provocava bastante incomodidade e calanzeira. Não havia alternativa. Não havia ar condicionado, nem as ventoínhas funcionavam por falta de operacionalidade do gerador. O pessoal procurava sombras protectoras para minorar o efeito da canícula que quase nos deixava em prostração. Deitei-me sobre a cama no quarto da velha casa colonial onde tinha alojamento. Peguei num livro, mas não lhe dei atenção, pelo que o deixei escorregar ao lado da almofada. Entreguei-me a pensamentos de sublimação, imaginando-me com quem eu gostava, algures num local tranquilo e confortável, finalmente livre dos condicionamentos da guerra.

Quase adormecera. Deixara o tempo passar naquela modorra, quando vieram chamar-me, que o Trapinhos queria falar-me.

Agradeci, e respondi que já lá iria.

Levantei-me e olhei em redor. Aos pés da cama, o camuflado, calça e camisa, que se apresentava como indumentária pesada e transpirada da saída matinal. Imprópria para aquele abafo. Peguei na toalha, com côres transversais próprias dos modelas de praia, cingia-a ao corpo, como se de mini-saia se tratasse, e dei-lhe um nó de fixação nas pontas superiores. De baixo da cama retirei os chinelos de enfiar nos dedos, a coisa mais barata e comum para calçar sem cerimónia.

Com um ar de macaco mal disfarçado, fiz-me ao caminho, atravessei a parada solenizada pelo pau onde flutuava a bandeira nacional, directo ao edificio da secretaria, por onde se entrava para aceder ao gabinete do capitão. Ao entrar naquele ambiente de trabalho burocrático, dei as boas-tardes e os olhares incidiram para mim. Além dos sargentos e do escrita, os habituais titulares do lugar, também se encontravam à conversa três ou quatro furriéis. Entre eles o Marino que, velhaco, querendo sublinhar a minha apresentação, atirou-me com a pergunta jocosa:

- Então, vais para o Tamariz?

O pessoal sorria, como se vissem um simpático extra-terrestre.

- Não pá, eu faço tudo ao contrário. Primeiro vou encontrar-me com o agente de viagens, respondi.

Ainda houve uns dichotes sobre a minha maluqueira, mas não dei qualquer importância e apresentei-me ao Trapinhos. Este, que frequentemente andava de tronco nú, aproveitou as larachas relatadas para me chamar a atenção, ao que lhe perguntei com ar indignado, se me chamara para ver a indumentária, se não, que fosse direito ao assunto. De tal forma surtiu efeito, que, sem mais palavras, dirigiu-se ao mapa que servia de quadro de operações, deslocou a cortina que o tapava, e apresentou-me o programa para o dia seguinte: uma qualquer patrulha de combate, por uns quaisquer traços de diferentes côres e intensidades, representativos de linhas de água, rios, trilhos e picadas, sobre o fundo verde claro que significava a planura da savana.

Não me perguntou pelo pessoal, nem sobre o equipamento, nem sobre o que quer que fosse, porque não lhe interessava minimamente, nem queria saber disso para nada, como se nada lhe dissesse respeito. Por mim, como não esperava nada daquele senhor, e a patrulha era para se fazer nas melhores condições possíveis para o pelotão, coisa que me dizia a mim respeito, só lhe perguntei se era para vir almoçar. Respondeu-me que não, era para levantarmos as rações de combate. Todavia, logo a seguir, possivelmente lembrado do escasso stock de rações, disse-me para avisar, tanto o cozinheiro, como o padeiro, para providenciarem o pequeno-almoço bem cedo, e que regressaríamos pelas treze horas para a refeição.

Porreiro, uma passeata de cinco horitas, dava para chegar pelo meio-dia, e o resto do tempo ficava por nossa conta. Ainda lhe perguntei se era necessário falar com o Marino e o Vitor, para providenciarem acompanhamento de transmissões e enfermeiro, e respondeu que sim, eu que falasse com eles. Fiz um sinal de que tinha compreendido, recolhi a carta com o desenho do percurso, e ala!

Em seguida fui à arrecadação do material, onde tinha deixado a arma ao cuidado do Mário. Ali trabalhavam dois excelentes militares, sempre disponíveis, a quem eu costumava pedir que me embelezassem a canhota. Antes do jantar, pedi a um ou outro Foxtrot deambulantes, para avisarem o pessoal, que o pequeno-almoço seria às cinco, e a saída antes das seis, sem ração, o que era uma boa notícia.


A propósito de Brecht

Quando cheguei ao quarto deparei com o seguinte cenário: o Lopes sentado na berma da cama, ao fundo, onde havia uma penumbra permanente; o Jorge, em chinelos, completamente à pai-Adão, circulava com a mão esquerda a afagar os testículos, enquanto com a direita segurava um livro e falava em jeitos declamatórios. Eram os dois furriéis artilheiros que com o alferes Mendes, prestavam dedicação aos obuses. À sessão cultural também assistia o Abreu.
Transpus o umbral da porta, e o Jorge chamou-me a atenção para o poema que reiniciaria a ler. E era assim:

Caio a dormir de cansado
Quando a fome aperta.
Ouço-os gritar-me aos ouvidos:
"Alemanha, desperta!"

E vi muitos a marchar
Pra o Terceiro Reich - diziam.
Eu nada tinha a perder:
Fui para onde os outros iam.

E, quando eu marchava, marchava
O Pança-Gorda a meu lado.
Grito eu: "Pão e trabalho!"
"Trabalho e pão!" é o seu brado.

O chefe tem botas altas,
Eu cá vou de pés molhados.
E ambos os dois marchamos
No mesmo passo "irmanados".

Quero eu ir para a esquerda,
Bradam: "Direita volver!"
E deixei-me comandar,
Seguia cego, sem ver.

Para qualquer terceiro Reich
Os famintos lá marchavam;
A seu lado os bem-comidos,
Todos marchavam, marchavam.

E um revolver me deram.
Ordem: "Fogo ao inimigo!"
E o que era amigo deles
Era irmão meu, meu amigo.

Sei hoje que é meu irmão
E o que nos une é a fome;
E aquele com quem eu marcho
"Inimigo" é o seu nome.

E o meu irmão morre agora,
Eu mesmo lhe dei um tiro,
E ao vencê-lo sei bem
Que sobre mim mesmo atiro.


- Porreiro, refere mesmo os nossos sentimentos, não achas?

- Acho, respondi.

- É a mesma merda em todo o lado. Convencem-nos que é o dever, mas não passamos de peões ao serviço de poderosos, acrescentou ele.

- Pois eu também me sinto lixado, mas ainda não me deram a volta à cabeça. Eu sei que as relações humanas têm muito que evoluir no aspecto da solidariedade e do respeito.

- E eu estou-me cagando para quem me mendou para aqui, gritou o Calvo, que do outro lado da parede ouvia a conversa.

Fora a leitura de Brecht, um livro do Lopes, que suscitara a indignação. Fora um pequeno estímulo, e logo nos associámos à perplexidade do autor perante o poder. Por vezes a discussão ou a abordagem de assuntos políticos dominava as atenções. Normalmente, transmitiam estados de espírito, sem outras reflexões de carácter sistematizado ou ideológico. Aliás, ideologicamente andávamos muito longe dos conhecimentos teóricos, e pouco sabíamos acerca de ideologias políticas. Mas não ficávamos calados, e havia um sentimento de incompreensão relativamente ao sacrifício e aos riscos a que estávamos sujeitos.

O Aquino então declamava:

Lágrima,
Sorriso,
Cair.


A isto acrescentei numa alusão aos diferentes escalões de poder:

Com a mão apanhar,
No bolso meter,
Pra mais depressa encher.

__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 8 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5614: História da CCAÇ 2679 (32): Reflexões sobre Tabassi e o mau relacionamento com o Trapinhos (José Manuel M. Dinis)

5 comentários:

MANUELMAIA disse...

AMIGO ZÉ,

ENTÃO NA TUA GUERRA TAMBÉM HAVIA O BOM HÁBITO DE VESTIR A "MELHOR FARDA"...
SEI QUE PARA OS "MILITARISTAS" SERIA OFENSIVO E PARA O AB O TEU TEXTO É UMA "CHATICE" POIS NÃO FICARAM ATRÁS DO ARAME FARPADO ANTES SAINDO PARA A RUA DE MANHÃ CEDO...

TIVE UM CAMARADA FURRIEL NA MINHA COMPANHIA QUE FAZIA ESSE NUMERO DA TOALHA,SENTANDO-SE DEPOIS, NA MESSE. AO COLO DO PRIMEIRO SARGENTO.
O FERNANDO TEIXEIRA ,UM DOS MAIS CASTÇOS QUE CONHECI.
ERA TÃO BALDAS,TÃO BALDAS, QUE CONSEGUIU TRANSFORMAR O UNICO PROFISSIONAL DA NOSSA GUERRA EM
EM PRO-MILICIANO, O SAUDOSO JÚLIO CÉSAR GINJA.

ABRAÇO
MANUEL MAIA

Anónimo disse...

Caro José Diniz.

Antes de mais invejo-te, vais á Guiné, boa viagem e boa estadia, na volta vais contar novas.

Quero dizer que recitar Brecht com a mão nos “tomates” é uma cena invulgar, mas que foi importante a leitura, acho que sim, pelo menos fazia pensar.

No meu caso li livros emprestados por um camarada, que também tinha a boa mania de ler, além de ajudarem a matar o tempo, serviam para meditar e ver as coisas de forma diferente, e acima de tudo a mim ajudava-me a ignorar o “trapinhas” do meu aquartelamento.

Um grande abraço

Manuel Marinho

Hélder Valério disse...

Pois então, caro Zé Manel, vais assim, de repente, voltar à Guiné?
Não te esqueças de levar toalha de praia às riscas transversais... e vai fazendo fotos e mandando notícias.
Gostei desta tua crónica. Está bem escrita, conseguiste dar o 'clima', o enquadramento, o comportamento de vários 'espécimes'.
Também quanto à literatura achei o relato um mimo!
E merecedor duma maior reflexão que, para o caso, não cabe aqui.
Um abraço
Hélder S.

JD disse...

Helder,
Pois era sobre a outra reflexão que eu esperava algum comentário: sobre as transformações mentais e sociais que aconteciam na malta, para quem a lavoura de subsistência já não chegava; que tinha vencido o medo do desconhecido e, por isso, invadiu cidades e outos territórios; para quem a quietude resignada já não podia prolongar-se; o pessoal já esperava outra coisa, ainda não identificada, embora; e, afinal, a mudança veio de onde e como menos se esperava. Foi o resultado de uma crise patriótica, principalmente imputável aos políticos, e aos militares- políticos.
Abraço.
JD

Hélder Valério disse...

Caro Zé Manel

Tens razão!
É sobre a essência do teu relato que está a matéria para reflectir mas ainda não é o local ou o momento.
Reafirmo a importância do que descreveste, do que revela quanto à progressiva evolução da mentalidade e do conhecimento dos rapazes que foram e dos homens que voltaram.
Fica mais claro que a presença e a participação nos T.O. acabou por ser determinante para a mudança de atitudes. É também perceptível a importância que tiveram os elementos mais esclarecidos (do ponto de vista humano, político e social) para serem os motores dessa mudança de atitudes.Um abraço
Hélder S.